orçamento
Fernando Gabeira: Uma versão musical do Orçamento
Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte
No momento em que se discute um tema tão áspero como o Orçamento, lembrei-me de uma velha canção chamada “Matilda”, de um gênero antigo como o calipso, cantada por Harry Belafonte, hoje com 93 anos.
“Matilda, Matilda, Matilda, she take me money and run Venezuela” — dizia a letra. A idade atrai certas loucuras. Como essa de lembrar “Matilda” ao analisar os movimentos de Bolsonaro na articulação do Orçamento.
Bolsonaro previu uma destinação para as Forças Armadas maior do que para a Saúde e a Educação. O desejo de fazer dos militares sócios do governo é um traço comum entre o Brasil de hoje e a Venezuela bolivariana. Muita grana para a Defesa, militares em postos-chave, tudo isso revela que, ao se preparar para uma guerra imaginária, o governo tem em mente a verdadeira defesa que lhe interessa: a de si próprio contra uma eventual oposição popular.
Existe uma diferença, entretanto.
Os militares na Venezuela são acusados de corrupção por apoiar um governo do qual talvez discordem ideologicamente. No Brasil não há indícios de corrupção. O máximo que pode existir são algumas benesses que fundem salário e soldo.
Aqui há proximidade ideológica. Os militares, por uma bizarra concepção de Defesa, gostariam de ver o progresso clássico na Amazônia, como se a floresta em pé nos tornasse mais vulneráveis. E gostariam também de integrar os índios à sociedade abrangente: um só povo e um só Deus facilitam a Defesa nacional.
Bolsonaro prepara seu próprio Bolsa Família. Com a ajuda emergencial, percebeu o crescimento de sua popularidade. Pessoalmente, era contra a ajuda. No passado, acusava o PT de comprar votos com ela.
Em certos temas, esquerda e direita acham que escrevem a história e não percebem que são escritas por ela. O apoio de regiões mais carentes ao governo tem sido uma constante, uma vez que, em certa medida, dependem da ajuda oficial. Elas são as últimas a abandonar um governo decadente, mesmo no período da ditadura militar.
Se as pessoas desfavorecidas sentem que o governo alivia seu fardo, elas estão dispostas até a lutar por ele. Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte.
Nesse sentido que canto: Bolsonaro pega a grana e foge para a Venezuela. Naturalmente, as pessoas vão dizer: não é sustentável destinar tanto dinheiro para a Defesa nem manter grandes programas assistenciais.
Não discuto isso. Por acaso a Venezuela é sustentável? No entanto, Maduro sobrevive. O que interessa a ele não é a sustentabilidade nacional, e sim a do governo.
Nem interessa às Forças armadas de lá o fato de o país, pelo crescimento da pobreza, tornar-se mais vulnerável. A sensação corporativa é a de um poder crescente.
É sempre possível argumentar que políticas como a Educação e a Saúde influem diretamente no bem-estar das pessoas mais pobres. Neste momento de pandemia, a Educação é uma resignada lacuna, e a Saúde usa um orçamento de guerra.
Meu problema não é cantar calipsos na quarentena. Mas simplesmente tentar entender alguns enigmas como o de um presidente que se torna mais popular num país que entra em recessão. Há várias saídas para a Venezuela, de avião a Caracas, por terra até Santa Elena. Não esperava encontrar uma na própria discussão do Orçamento.
Não creio que Bolsonaro tenha tomado essa decisão consciente. Apenas tento imaginar as possibilidades futuras. A sedução das Forças Armadas e uma base popular não bastam para nivelar as experiências com a Venezuela. O Congresso é conquistável por métodos historicamente consagrados. A tentativa de destruir ou simplesmente arruinar uma parte da imprensa é idêntica. Resta um Supremo que também muda, embora demande algum tempo para a reposição de ministros.
Aqueles que se deslumbram com uma pseudonormalidade deveriam, pelo menos, levar em conta o processo de reorganização da inteligência estatal voltada basicamente a julgar pelos primeiros passos, a monitorar opositores. O movimento não cessa, nós é que, às vezes, não o notamos.
Adriana Fernandes: A caneta Bic de cada um
Bolsonaro parece estar caindo na tentação de que sua caneta pode tudo. Não pode.
O presidente Jair Bolsonaro costuma dizer que assina os documentos da Presidência com uma caneta Bic. Foi assim no termo da sua posse no cargo em janeiro de 2010 e segue nos dias atuais.
A pandemia da covid-19 encheu de tinta a caneta presidencial com bilhões de reais para gastos. São valores tão altos que muito provavelmente Bolsonaro não teria condições de assinar até o final de um eventual segundo mandato, caso consiga a sua reeleição para qual já está trabalhado desde agora.
Passados 20 meses de governo e cada vez mais confortável com a sua Bic, o presidente parece estar caindo na tentação que acomete muitas autoridades que desembarcam em Brasil. A de que a sua caneta pode tudo.
Não pode.
Quando essa visão chega à esfera orçamentária e o bom senso vai embora, o perigo ronda e acende os sinais de alerta da burocracia estatal.
O exemplo mais recente tem sido a discussão enviesada que tomou conta do Orçamento de 2021 na Junta de Execução Orçamentária, que define as diretrizes para a destinação e depois execução das despesas aprovadas pela lei orçamentária.
Primeiro foi a tentação de usar recursos via o orçamento de guerra da pandemia da covid-19 para bancar investimentos em obras de infraestrutura e outras tentativas para poder liberar mais dinheiro até o final do ano, quando as regras fiscais estão suspensas por conta do coronavírus.
Agora, o que se vê é a estratégia de reforçar a todo custo o orçamento do Ministério da Defesa em detrimento de outros gastos em áreas mais importantes, como saúde e educação.
Se não bastassem os gastos com a reformulação das carreiras militares, o presidente determinou um aporte ainda maior do já turbinado orçamento da Defesa. Como? Adiando o censo de 2020 previsto para 2022.
São cerca de R$ 2 bilhões a mais a custo sem precedentes para o trabalho de pesquisa do IBGE, o planejamento das políticas publicas e a transferências de recursos para Estados e municípios. A contagem populacional é determinante para a repartição. É bom lembrar que o censo, previsto para esse ano, já tinha sido adiado para 2021.
O risco de um novo adiamento, sem uma justificativa plausível, certamente pode levar a uma judicialização dos municípios que se sentirem prejudicados.
Como explicou o presidente do IBGE, distribuição do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) está congelada esperando o censo de 2020. “Isso é muito grave porque o censo de 2022 só vai ter resultado em 2023. Vai ter 13 anos sem nenhuma informação demográfica ”, disse o ex-presidente do IBGE, Roberto Olinto, ainda incrédulo com tamanha audácia do governo de fazer essa proposta, revelada em reportagem do Estadão dessa semana.
O que chamou atenção na decisão de ampliar em R$ 2,27 bilhões o orçamento para a área militar foi o comunicado da ampliação do Orçamento para os militares foi feito pelo secretário de Orçamento do Ministério da Economia, George Soares, em ofícios nos quais afirma que os pedidos foram feitos por Bolsonaro.
Quem conhece a burocracia de Brasília sabe que esse foi um ato de cautela e cuidado com assinatura da sua caneta Bic. Depois dos inúmeros processos abertos pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no rastro das manobras contábeis da ex-presidente, conhecidas como pedaladas fiscais, que atingiram servidores da elite do funcionalismo, ficaram muitas sequelas.
As carreiras que compõem o Ministério da Economia, diferentemente da maioria de outras carreiras existem há muito tempo com servidores que foram recrutados em concursos muito difíceis, com os da Receita, Tesouro e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Um técnico experiente, por exemplo, não foi condenando por que tinha registrado nos seus e-mails todas as advertências feitas ao seu superior, o ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin. Na época, os técnicos se rebelaram numa reunião, como está relatado no livro “Perigosas Pedaladas” do jornalista João Villaverde. Muitos desses processos ainda estão em andamento. Um deles com resultado recente, cinco anos depois das pedaladas.
Com certeza é de se imaginar que outras canetas Bic estão dando alertas ao presidente.
O Globo: Forças Armadas querem mais R$ 2,5 bilhões para caças, foguetes e submarinos
Pasta solicitou expansão para projetos das Forças Armadas, mas deve esbarrar em aval do Ministério da Economia
Vinicius Sassine, O Globo
BRASÍLIA — O Ministério da Defesa quer ampliar em 37% o seu orçamento para investimentos no próximo ano para bancar projetos considerados prioritários, como a compra de caças, lançadores de foguetes e submarinos de propulsão nuclear.
A proposta, em fase de elaboração, amplia a previsão de investimentos de R$ 6,7 bilhões, aprovada para 2020, para R$ 9,2 bilhões. Dos recursos previstos para este ano, R$ 3 bilhões já foram pagos, segundo o portal de orçamento do Senado. Integrantes da pasta, porém, admitem que será difícil conseguir o aval do Ministério da Economia para a ampliação desejada.
Esta é a verba que banca projetos como a compra de caças do projeto FX-2, que envolvem os Gripen suecos, pela Aeronáutica; de lançadores múltiplos de foguetes, pelo Exército; e de submarinos de propulsão nuclear, pela Marinha. Desde o começo do mandato de Jair Bolsonaro, as Forças Armadas vêm buscando — e conseguindo — ampliar seu orçamento.
Na ofensiva mais recente, o Ministério da Defesa incluiu na Política Nacional de Defesa (PND) e na Estratégia Nacional de Defesa (END) a intenção de que o orçamento do setor chegue a 2% do PIB. Os textos foram enviados ao Congresso Nacional.
Nos documentos, o governo passou a prever uma “rivalidade entre Estados” na esfera regional e relacionou essa “rivalidade” a uma necessidade de ampliação dos gastos militares. O governo Bolsonaro já expôs suas divergências com o regime de Nicolás Maduro na Venezuela — não reconhecido pelo Brasil — e manifestou sua insatisfação com a eleição de Alberto Fernández para a presidência da Argentina. Não há citação específica aos países nos documentos.
Caso a regra desejada de se alcançar os 2% do PIB já estivesse em vigor, os gastos totais com as Forças teriam alcançado R$ 146 bilhões no ano passado, R$ 49,1 bilhões a mais do que foi efetivamente desembolsado. O Ministério da Defesa, sob Bolsonaro, já teve um aumento de gastos superior ao crescimento registrado em ministérios como Educação, Saúde, Agricultura e Relações Exteriores. O grosso dos gastos das Forças é com a folha de pagamento do pessoal da ativa e da reserva.
O projeto do Orçamento da União para 2021 deve ser encaminhado neste mês ao Congresso. Apesar do pedido de mais recursos para investimentos, não há previsão de novos projetos, e os valores a mais seriam destinados aos que já estão em andamento. A pasta sustenta que o valor pedido seria condizente com uma média histórica. O orçamento de investimentos da pasta chegou a R$ 9,9 bilhões em 2017 e caiu nos dois anos posteriores, chegando a R$ 6,5 bilhões no ano passado.
Além do pedido por mais recursos, os materiais enviados ao Congresso citam formalmente a meritocracia como critério para capacitação de quadros militares e novas contratações. E uma estratégia para as Forças Armadas, também na área de formação educacional, prevê o desenvolvimento de programas que despertem um “sentimento de patriotismo”.
“Patriotismo”
A lei determina que PND e END — e o chamado Livro Branco, uma espécie de inventário da estrutura das Forças — sejam atualizados a cada quatro anos. Os textos são protocolares e genéricos, tidos como documentos de Estado, independentes do governo de ocasião.
O GLOBO comparou o conteúdo atualizado em 2020 com os documentos atualizados em 2012 e em 2016, nas gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer, respectivamente.
Na Estratégia Nacional de Defesa, no capítulo que trata de capacitação e dotação de recursos humanos, uma nova estratégia integra as diretrizes da defesa nacional: “Valorizar a meritocracia e a formação continuada”. O termo "meritocracia" não aparece nos documentos atualizados em 2012 e 2016.
A atualização das diretrizes feita no governo Bolsonaro também deixou explícito o desejo de promoção do “sentimento de patriotismo”. O termo aparece três vezes na END de 2020, enquanto é citado uma única vez no documento de 2016 e nenhuma no de 2012.
Uma nova estratégia surgiu no documento: “Fortalecer o sentimento coletivo, o patriotismo e a adesão da sociedade brasileira aos esforços de defesa do país.” Uma segunda foi adaptada. Antes, tratava-se de “contribuir para a ampliação de programas educacionais que visem à promoção da cidadania”. Agora, “contribuir para a ampliação de programas educacionais e desportivos, que visem à promoção da cidadania e do sentimento de patriotismo.”
Antes do envio dos documentos ao Congresso, duas inovações já haviam se tornado públicas: a intenção de elevar o orçamento da área a 2% do PIB e a previsão de “tensões e crises” nas áreas vizinhas ao Brasil. Os militares levam em conta como próximas uma região chamada de “entorno estratégico”, que inclui a América do Sul e a extensão do Atlântico até a costa da África Ocidental.
Felipe Salto e José Roberto Afonso: Um orçamento para a guerra
Proposta que cria regime excepcional fiscal e financeiro é arma poderosa
A gravidade da crise disparada pelo espalhamento da Covid-19 requer ações contundentes do Estado. Em tempos de guerra, gastos públicos vultosos serão necessários e precisarão ser planejados e executados com uma eficiência incomum. É recomendável ter um orçamento apartado para dar total transparência a fontes e usos de recursos e para blindar as contas públicas do risco de desarranjo e insustentabilidade.
A flexibilidade já está contemplada na Lei de Responsabilidade Fiscal e no teto de gastos (exceção para créditos extraordinários). Após a aprovação da calamidade pública pelo Congresso, endossada pelo STF, causou perplexidade a demora do governo federal em agir. Medidas provisórias criaram dotações extras para gastos com saúde com a intenção de tentar preservar empregos e distribuir renda mensal temporária, além de reforçar fundos de participação. A emergência certamente as justifica, mas está claro que falta um conjunto consistente de ações, de atos, de gastos e de dívidas.
Uma melhor ordenação desse esforço de guerra é regulada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A PEC propõe um regime especial fiscal e financeiro para combater desde o coronavírus até os seus efeitos colaterais sobre a sociedade e a economia. Possibilitará a alocação e a aplicação céleres de recursos públicos na saúde (inclusive compra e requisição de bens e serviços), na proteção social e na reação à recessão econômica.
Um comitê gestor comandará todas as ações da crise, composto por representantes das três esferas de governo. O Congresso deverá emitir parecer sobre todas as medidas provisórias de aumento de despesas em até 15 dias. A regra de ouro será suspensa durante a calamidade, já que é inevitável contrair dívida pública para financiar custeio da saúde e transferências assistenciais.
Proposições legislativas ficarão imunes às amarras, desde que não criem compromisso permanente do gasto público. Não se poderá, por exemplo, contratar novos servidores permanentes ou reajustar salários.
Além das matérias fiscais, a PEC proposta contempla alterações na atuação do Banco Central e em suas relações com o Tesouro Nacional para promover uma intervenção emergencial. Permitirá a concessão direta de crédito para empresas, em linha com o que outros países têm feito.
A construção do orçamento de guerra pode ser reforçada e complementada por outras propostas de lei complementar, ordinária e decreto legislativo. Elas podem dar mais fluidez ao processo de contratação e fiscalização das despesas, na crise, e, ao mesmo tempo, assegurar conforto aos gestores compatível com atos tomados em caráter emergencial, sem prejudicar a transparência.
Em particular, há um projeto do senador José Serra (PSDB-SP) que cria um fundo para estruturar o arcabouço orçamentário, podendo incluir até recursos privados para financiar a construção de hospitais e leitos de UTIs, contratar médicos, comprar remédios e testes, dentre outras ações.
É importante atentar que o SUS é organizado de forma descentralizada. Especialmente na assistência médica, cerca de 95% do gasto é executado diretamente pela rede hospitalar estadual e municipal. A guerra é sempre nacional, e um orçamento unificado permitirá integrar e conciliar o financiamento centralizado com ações descentralizadas.
Traçar uma fronteira entre as contas públicas de guerra contra o coronavírus e o orçamento regular dará a agilidade necessária para enfrentar a emergência e assegurará o controle e a transparência. Serão várias frentes de batalha: saúde, proteção social, produção e crédito.
A proposta iniciada pela Câmara dos Deputados para criar um regime excepcional fiscal e financeiro é uma arma poderosa para o Brasil vencer essa guerra pela vida.
*Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal e autor do livro ‘Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade’ (ed. Record)
*José Roberto Afonso, doutor em economia pela Unicamp, professor do Instituto de Direito Público (IDP) e conselheiro da IFI
Fernando Gabeira: O psicodrama na divisão do bolo
A discussão sobre o Orçamento acabou revelando mais uma vez os limites do populismo
Não creio que seja demagógico dizer que o momento no Brasil deveria reunir os Poderes para um debate sobre a economia de recursos. Mas a crise surgida nos últimos dias gira em torno de R$ 30 bilhões. O Congresso garantiu para si este naco do Orçamento. O governo vetou. Possivelmente vão rachar esse bolo.
Houve muita hesitação, mas desfecho previsível. Começou com a frase do general Heleno, concluída com um sonoro “f...-se!”. Durante a semana sites nas redes sociais anunciavam a manifestação do “f...-se” para 15 março. Essa batalha pode não acontecer, como a de Itararé. Estão marcadas manifestações da oposição e do governo para dias 14 e 15. Elas podem até ser grandes, mas o sentido original, a disputa pelo dinheiro do Orçamento, é um pouco confuso neste momento histórico.
O Orçamento mesmo está se distanciando da realidade. Primeiro, porque surgem gastos imprevisíveis, como os do combate ao coronavírus, e os militares, com o motim de policiais no Ceará. No caso do coronavírus, não se trata apenas do que se vai gastar, estimado em R$ 350 milhões, suficiente se a situação permanecer num estágio relativamente favorável: não há evidência de transmissão do vírus no território nacional.
O problema econômico do coronavírus é o que se deixa de ganhar. As dificuldades vividas pela China, a semiparalisação na Itália são só alguns indícios de que o crescimento global será reduzido pela disseminação do vírus. Aliás, de passagem, é bom lembrar que o Brasil é um país singular: marca grandes demonstrações de massa num período de coronavírus. Nesta mesma época, a Suíça está proibindo reunião de mais de mil pessoas e a própria Olimpíada de Tóquio pode ser adiada.
No universo paralelo da política, um momento necessário de solidariedade diante do inimigo comum, o vírus, é suplantado pela discussão sobre dinheiro, importante para os deputados que dependem das eleições de 2020. Muitos dependem de vereadores e prefeitos para se reeleger.
A frase do general Heleno foi um rompante. O palavrão, no sentido que usou, significa romper os laços, dinamitar as pontes. O governo teria de sair de seu isolamento encarnando o espírito de Chávez. Mas ele foi até o fim, até o controle do Congresso. Isso no Brasil é difícil. Bolsonaro tem uma frágil base de apoio no Congresso. É duro de cintura.
Dificilmente manifestações populares vão mudar radicalmente a correlação de forças. Ao dar as costas para a política, acabou sendo, de certa forma, engolido por ela. Assim, o que pode acontecer é continuar perdendo e achar uma forma de cantar vitória para seus seguidores.
Entre os muitos caminhos que levam o populismo à tentação autoritária está o próprio processo eleitoral. Líderes carismáticos são eleitos por sua personalidade e arrastam uma bancada heterogênea e incapaz. A história da base de apoio parlamentar de Bolsonaro é constrangedora. Não há um conjunto de ideias coerente. Quando surgem os conflitos, eles se personalizam e descambam rapidamente para a baixaria. Não dá para dobrar o Congresso apenas com manifestações. Mesmo porque os deputados também foram eleitos e se sentem legítimos.
Quando alguém repete o termo do general Heleno no cotidiano, de modo geral temos a tendência a dizer: “Calma, pense bem”. No caso do governo, não tem saída senão continuar negociando. A única atenuante possível é transformar as concessões em aparente vitória.
Além disso, existem alguns temas convergentes entre governo e maioria no Congresso, como foi a reforma da Previdência. Mesmo aí foi necessário fazer concessões às demandas parlamentares. É muito possível, no futuro, que o próprio Congresso evolua e novos presidentes levem consigo bancadas mais sólidas e capazes. Mas o único caminho é o processo eleitoral, o amadurecimento democrático.
Bolsonaro passou 28 anos na Câmara, mas quase não participou de negociações políticas, era um cavaleiro solitário. Inegável que existem muitas coisas repulsivas ou simplesmente condenáveis em acordos políticos. Mas é inegável, também, que a atividade parlamentar ensina muito, descobrem-se alguns atalhos, conquistam-se vitórias parciais.
Agora, ele tem o poder, mas não sabe como se relacionar com o universo que habitou por quase três décadas, como explorar algumas de suas qualidades, atenuar os grandes defeitos. Bolsonaro não apenas abriu esse flanco. Ele não foi capaz de trazer uma equipe da sociedade e teve de recorrer a um número excessivo de militares.
Não dá para ligar o “f...-se”. É preciso aprender alguns passos no caminho ou, então, arriscar-se a ver o termo voltando-se contra ele mesmo.
No front da saúde o governo sai-se bem, mas o coronavírus não se restringe a um campo. Tem repercussão na economia, aciona o aparato científico do País e pode até estimular grandes programas sanitários que não estão diretamente ligados a ele, como o saneamento básico. A única referência que o vi fazendo sobre tema foi a expressão “este vírus aí”. Este país aí, o Brasil num mundo complicado, está precisando cada vez mais de elos e pontes e cada vez menos da tática do general Heleno.
Discussões sobre orçamento costumam ser monótonas, mas esta, com todo o psicodrama, acabou revelando mais uma vez os limites do populismo.
Coronavírus: Como epidemia pode afetar crescimento econômico da China e do Brasil?
Em artigo produzido para Política Democrática Online, economista José Luis Oreiro cita que economia do Brasil pode ter crescimento inferior a 1,5% em 2020
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A epidemia do coronavírus pode contribuir na projeção da redução do crescimento da China para 4% em 2020 e queda de 33% no ritmo de crescimento na comparação com 2019, segundo analistas. A avaliação é reforçada pelo professor associado do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) e doutor em economia José Luis Oreiro. Em artigo que produziu para a 16ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), ele analisa como o aumento de casos de infecção pelo coronavírus também pode impactar, negativamente, a economia do Brasil. A íntegra do artigo e outros conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da entidade.
» Acesse aqui a 16ª edição da revista Política Democrática Online
“Nesse contexto, é possível que a economia brasileira apresente crescimento inferior a 1,5% em 2020, completando assim quatro anos de crescimento medíocre após o fim da grande recessão”, afirma o economista. A produção da indústria brasileira recuou 1,1% em 2019 na comparação com 2018, segundo informações divulgados no mês passado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ele tem um site próprio e já publicou mais de 80 artigos em revistas científicas no Brasil e no exterior.
De acordo com o economista, o recuo da produção industrial interrompe o movimento de tímida recuperação da produção industrial ocorrido em 2017 e 2018. “Os dados de recuo da produção industrial jogaram um balde de água fria nas expectativas de uma aceleração mais robusta do crescimento em 2020”, afirma Oreiro. Ele acrescenta que não há como escapar da conclusão de que a grande recessão de 2014 a 2016 produziu redução da tendência de crescimento da economia brasileira.
Dados divulgados pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), conforme ressalta o economista, mostram que a formação bruta de capital fixo recuou 2,7% no quarto trimestre, na comparação com o período imediatamente anterior. “Diante dos dados recentemente divulgados, os analistas do mercado financeiro já começaram a reduzir suas previsões de crescimento para 2020, as quais já se encontram bem abaixo de 2,5%, com algumas até mesmo abaixo de 2%”, afirma o professor da UnB.
A questão relevante, de acordo com o professor da UnB, é saber qual o motivo. “Na minha visão, a redução do potencial de crescimento de longo prazo é um fenômeno que vem ocorrendo desde meados da década passada, em função da desindustrialização crescente da economia brasileira; fenômeno esse que foi tardiamente percebido pelas administrações petistas e enfrentado de forma tíbia e inconsistente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.
Oreiro foi professor do departamento de economia da Universidade Federal do Paraná de 2003 a 2008, onde exerceu o cargo de Diretor do Centro de Pesquisas Econômicas (CEPEC), de vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico (2004-2008) e de coordenador do Boletim Economia & Tecnologia (2005-2007), do qual foi o fundador.
Além de escrever para a revista Política Democrática Online, o economista já publicou artigos em outras veículos de grande relevância, como Journal of Post Keynesian Economics, Cambridge Journal of Economics, International Review of Applied Economics, Investigacion Economica, Revista de la Cepal, Economia (Anpec), Revista de Economia Política, Economia e Sociedade e Estudos Econômicos.
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Ribamar Oliveira: Regulamentação chegou muito tarde
Agilidade do governo teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano envolvendo o Orçamento impositivo
Por mais incrível que possa parecer, somente nesta semana o governo tomou a iniciativa de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), válida para 2020, estabelecendo normas para aplicação, com segurança jurídica, do chamado Orçamento impositivo. Ou seja, os pneus estão sendo trocados com o carro em movimento.
Na exposição de motivos que acompanha o projeto de lei, o ministro da Economia, Paulo Guedes, comete uma impropriedade. Ele diz ao presidente Jair Bolsonaro que a regulamentação está sendo feita agora porque, quando as emendas constitucionais 100 e 102, que instituíram o Orçamento impositivo, foram promulgadas, o projeto da LDO válido para 2020 já tinha sido aprovado pelo plenário da Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO).
Na verdade, a emenda constitucional 100 foi promulgada no dia 26 de junho de 2019, quando o relator do projeto da LDO, deputado Cacá Leão (PP-BA), nem sequer tinha apresentado o seu relatório, o que só foi feito no dia 7 de julho do ano passado. Foi a EC 100 que determinou ser dever da administração “executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.
Na época, a EC 100 causou grande preocupação dentro da área técnica do governo, pois não estava explícito no texto constitucional que as programações orçamentárias poderiam ser contingenciadas para o cumprimento das metas fiscais ou do teto de gastos. Nem mesmo que elas não poderiam ser executadas em caso de impedimento de ordem técnica.
Em negociação direta com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a área econômica do governo acertou um texto a ser incluído em outra proposta de emenda constitucional para deixar todas essas questões explícitas.
A EC 102, aprovada no dia 26 de setembro de 2019, simplesmente determinou que a execução orçamentária se subordina ao cumprimento de dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas. Ela explicitou também que a obrigatoriedade da execução não impede o cancelamento necessário à abertura de créditos adicionais e não se aplica nos casos de impedimentos de ordem técnica devidamente justificados.
O Orçamento impositivo foi instituído, portanto, pela EC 100, de junho. O projeto da LDO foi aprovado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso no dia 8 de agosto de 2019. Havia portanto, tempo suficiente para que o governo pedisse ao relator que paralisasse a tramitação do projeto, enquanto a EC 102 não fosse aprovada. Mesmo porque o Congresso Nacional só aprovou a LDO válida para 2020 no dia 9 de outubro do ano passado.
Seria possível, portanto, fazer as alterações no projeto da LDO, estabelecendo normas para a aplicação do Orçamento impositivo, com segurança jurídica. O que teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano, quando as dúvidas sobre a aplicação da EC 100 dificultaram enormemente a execução orçamentária.
Em meio a todas as incertezas sobre a execução do Orçamento impositivo, o veto do presidente Bolsonaro ao artigo 64 da LDO adicionou um elemento politicamente explosivo. O presidente considerou contrário ao interesse público que os parlamentares indicassem os beneficiários de suas emendas e a prioridade de execução.
Em reação, os senadores e deputados aprovaram a Lei 13.957, explicitando a obrigatoriedade de execução das emendas do relator-geral do Orçamento e das comissões do Senado e da Câmara e reinstituindo os mesmos critérios de indicação e de prioridade que tinham sido vetados anteriormente. O presidente vetou novamente.
Quando o Orçamento para 2020 foi aprovado, descobriu-se que o relator-geral tinha feito emendas no valor de R$ 30 bilhões. Nunca antes um relator-geral tinha feito emendas nesse montante. Elas eram diferentes, pois ele cortou algumas programações propostas pelo governo e, ao mesmo tempo, as incluiu no Orçamento como emendas suas, com acréscimo de valor. Na área técnica do Executivo, esse procedimento é chamado de “emenda cachorro”, pois lembra um cachorro mordendo o próprio rabo.
Com esse mecanismo, o relator retirou do governo a gestão sobre uma montanha de investimentos e passou a ser a pessoa a indicar o nome dos beneficiários dos recursos e a prioridade de execução. Uma das emendas do relator-geral, por exemplo, destinou R$ 351,7 milhões para a ação de policiamento, fiscalização, combate à criminalidade e corrupção. Parece não haver dúvidas de que cabe ao ministro da Justiça e da Segurança Pública definir os beneficiários dessa ação e a prioridade de execução, e não ao relator-geral do Orçamento.
Finalmente, a proposta de regulamentação das ECs 100 e 102 chegou nesta semana ao Congresso. Junto com ela, um projeto que acaba com a possibilidade de o relator-geral apresentar a chamada “emenda cachorro”. Se o projeto for aprovado, ele só poderá indicar os beneficiários dos acréscimos que ele fez nas programações originais do Executivo.
Os projetos foram encaminhados após um acordo, feito pelo governo com as lideranças políticas, para a manutenção do veto do presidente ao artigo 64 da LDO. Ontem, o veto de Bolsonaro foi mantido e os parlamentares poderiam votar, à noite, as propostas de mudanças na LDO.
No caso da regulamentação do Orçamento impositivo, propriamente dito, o projeto define que o contingenciamento das emendas parlamentares será feito na mesma proporção aplicável às demais despesas do Executivo, que os restos a pagar de exercícios anteriores estarão dentro do limite financeiro anual de cada órgão e que o Executivo poderá remanejar os recursos de despesas que não estão sendo executadas para pagar outras.
Assinatura
A exposição de motivos de um dos dois projetos que alteram a LDO, justamente aquele que trata das emendas do relator-geral, não é assinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos.
Ribamar Oliveira: Opção preferencial pelos militares
Investimentos da Defesa se tornam obrigatórios
Contrariando o discurso oficial, que prega a redução do engessamento orçamentário, o governo aceitou que os investimentos do Ministério da Defesa programados para 2020 não sejam objeto de limitação de empenho, ou seja, não poderão sofrer contingenciamento. Os investimentos da Defesa serão, portanto, obrigatórios no próximo ano. Os únicos do Orçamento.
O governo poderia ter vetado o dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) - lei 13.898/2019 - que dá tratamento privilegiado aos investimentos da Defesa, como fez com outros gastos que os deputados e senadores tentaram proteger da tesoura no próximo ano, mas não o fez.
Os parlamentares incluíram na lista das despesas que estão livres do contingenciamento 13 novas ações e programas. Eles excluíram dos cortes, por exemplo, todas as ações vinculadas à educação, os gastos com o programa Mais Médicos e as ações do Plano Nacional de Segurança Pública. Tudo isso foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, depois de ouvido o Ministério da Economia.
A explicação para os vetos foi a seguinte: “Os itens propostos não são passíveis de limitação de empenho, o que, por consequência, eleva o nível de despesas obrigatórias e reduz o espaço fiscal das despesas discricionárias, além de restringir a eficiência alocativa do Poder Executivo na implementação das políticas públicas”. O governo também argumentou que “a inclusão contribui para a elevação da rigidez do Orçamento, dificultando não apenas o cumprimento da meta fiscal como a observância do Novo Regime Fiscal, estabelecido pela EC nº 95/2016 [teto de gastos], e da ‘regra de ouro’, constante do inciso III, do art. 167 da Constituição Federal”.
Os mesmos argumentos, no entanto, não foram válidos para os investimentos do Ministério da Defesa e para as despesas com ações vinculadas à função ciência, tecnologia e inovação, no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Quando encaminhou ao Congresso a mensagem modificativa da proposta orçamentária de 2020, o governo informou que incluiu na relação das despesas obrigatórias do próximo ano dotações de R$ 4,1 bilhões do Ministério da Defesa e R$ 3,1 bilhões do MCTIC.
Na mesma mensagem modificativa, o governo ampliou em R$ 5,4 bilhões as chamadas despesas discricionárias, que são os investimentos e o custeio estrito da máquina pública. Elas estavam com valores muito baixos na proposta orçamentária original. Do total, 44% foram destinados ao Ministério da Defesa, ou R$ 2,376 bilhões. A área de infraestrutura ganhou só 17,6% do total e o Ministério da Educação, ficou com apenas 11%.
Não houve explicações oficiais para a maior destinação de recursos ao Ministério da Defesa nem para a inclusão dos investimentos do órgão no rol das despesas obrigatórias da União, principalmente diante da carência de recursos em áreas vitais da infraestrutura, no momento em que o país passa por um verdadeiro apagão logístico.
Os investimentos do Ministério da Defesa que passarão a ter execução obrigatória no próximo ano são: programa de desenvolvimento de submarinos (Prosub) e programa nuclear da Marinha (PNM), com dotação de R$ 1,5 bilhão; desenvolvimento de cargueiro tático militar de 10 a 20 toneladas, com R$ 166,430 milhões; aquisição de aeronaves de caça e sistemas afins, projeto FX-2, com R$ 951,370 milhões; aquisição de cargueiro tático militar de 10 a 20 toneladas, projeto KC-390, com R$ 613,830 milhões; implantação do sistema de defesa estratégico Astros, com R$ 155,7 milhões; implantação do projeto Guarani, com R$ 338,1 milhões; e implantação do sistema integrado de monitoramento de fronteiras (Sisfron), com R$ 239,7 milhões. Os dados constam da mensagem modificativa da proposta orçamentária de 2020.
Mais gastos
Por meio do decreto 10.120, de 21 de novembro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro elevou os limites para despesas com pessoal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFJ). Especialistas em finanças públicas ouvidos pelo Valor estimam que os novos limites permitem que os dois órgãos elevem seus gastos com pessoal em até 45% ou algo em torno de R$ 1,4 bilhão.
A Constituição determina que o gasto da União com pessoal não pode exceder a 50% da receita corrente líquida, sendo o limite de 40,9% para o Executivo. Deste total, 3% serão distribuídos entre o Distrito Federal, o TJDFT, o MPDFT e o quadro em extinção dos ex-territórios do Amapá e de Roraima. Com o decreto, o limite do TJDFT passou de 0,275% para 0,399%, enquanto que o limite do MPDFT passou de 0,092% para 0,133%. Os limites dos ex-territórios foram diminuídos, o do Distrito Federal foi mantido, respeitando o limite global de 3%.
Consultado pelo Valor sobre a mudança, o Ministério da Economia informou que o decreto 10.120 “não altera os gastos no total, tendo em vista os limites estabelecidos pela emenda constitucional 95, de 2016, ou seja, para aumentar a despesa com pessoal, os órgãos envolvidos deverão reduzir os mesmo valores nas despesas discricionárias”.
Segundo o Ministério da Economia, “a alteração partiu de demanda do órgão em comum acordo com os outros órgãos submetidos ao mesmo limite para ajustar à realidade da divisão de gastos de pessoal entre os envolvidos”.
É preciso considerar, no entanto, outros aspectos desta questão. Em 2012, o TJDFT usava 65,1% do seu limite para gasto com pessoal e em 2019 foi para 87,3%. O MPDFT, por sua vez, saiu de 57,8% de seu limite para 86,1%, no mesmo período. Os dados indicam que há uma tendência nesses dois órgãos para uma política de pessoal expansionista. A modificação realizada não é neutra do ponto de vista fiscal, pois abre espaço para a continuidade dessa política.
Um eventual aumento do gasto com pessoal dos dois órgãos terá que ser compensado pelo corte de outras despesas para que a regra do teto seja cumprida. A questão é que haverá, mais uma vez, aumento de despesa obrigatória, com redução das despesas discricionárias, o que é, justamente, o que o atual governo deseja evitar.
Ribamar Oliveira: LDO proíbe cortar verbas da Educação
Orçamento da União está cada vez mais engessado
Caminhando em direção contrária à política dos “três Ds” formulada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, os deputados e senadores acabam de tornar ainda mais difícil a execução do Orçamento da União pelo governo. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2020, aprovado ontem pelo Congresso Nacional, ampliou de 63 para 88 o número de ações e programas que não podem sofrer contingenciamento em suas dotações.
Os parlamentares fizeram dois movimentos nesta área. Eles excluíram do contingenciamento as despesas com todas as ações vinculadas à função Educação. Ou seja, não serão apenas as dotações do Ministério da Educação que estarão preservadas em 2020, mas todas as numerosas ações na área educacional realizadas por vários ministérios.
A proibição da LDO ocorre depois das fortes reações populares contra o contingenciamento realizado neste ano no Ministério da Educação, que teve suas dotações reduzidas, inicialmente, em R$ 5,8 bilhões. Posteriormente, as verbas foram parcialmente repostas. No fim do mês passado, o governo anunciou o desbloqueio de R$ 1,99 bilhão para o ministério.
Também não serão atingidas pela tesoura do corte, de acordo com a LDO, as verbas destinadas às ações para desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. O Ministério da Ciência e Tecnologia foi um dos mais atingidos pelo contingenciamento neste ano, quando teve suas dotações reduzidas em 42%. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC) teve mais de 80% de seus recursos reduzidos. A LDO proíbe que o mesmo ocorra em 2020.
As pesquisas têm mostrado que a segurança é uma das principais preocupações da população. Talvez em decorrência disso, os parlamentares excluíram dos cortes as dotações destinadas à segurança pública, entendidas as verbas para as polícias federal, rodoviária federal e ferroviária federal e aos órgãos pertencentes ao Plano Nacional de Segurança Pública.
O presidente Jair Bolsonaro poderá vetar a proibição da LDO de contingenciar as dotações das áreas de educação, ciência e tecnologia e segurança pública, mas abrirá, certamente, um debate político em ano eleitoral que os seus aliados provavelmente não estarão dispostos a enfrentar. Por isso, o risco que o presidente corre é ter o seu eventual veto a esta proposta da LDO derrubado pelo plenário do Congresso Nacional.
Em outro movimento, os parlamentares incluíram, pela primeira vez, quase todos os investimentos a serem realizados pelas Forças Armadas na relação de despesas ressalvadas do contingenciamento. Com a LDO em vigor, o governo não poderá cortar, por exemplo, as dotações destinadas à aquisição de aeronaves de caça e sistemas afins, o programa de desenvolvimento de submarinos (Prosub) e o programa nuclear da Marinha (PNM). Até as dotações para a aquisição do blindado Guarani pelo Exército e as verbas para o desenvolvimento do cargueiro tático militar KC-X não poderão sofrer contingenciamento.
Em 2020, a União está proibida de cortar as dotações incluídas no Orçamento para aumento de capital de empresas estatais não dependentes, como a Eletrobras.
Com as mudanças feitas pela LDO, a execução orçamentária ficou mais difícil porque, se houver frustração da receita prevista no Orçamento de 2020 e o governo for obrigado a contingenciar as despesas para cumprir a meta fiscal do ano, não poderá cortar as dotações de mais 15 ações e programas, que passaram a ser classificados como “despesas ressalvadas do contingenciamento”. O universo das despesas passível de corte foi bastante reduzido, dificultando a vida do ministro Guedes e de sua equipe.
O ministro da Economia tem defendido a política dos “3Ds”, ou seja, uma diretriz que prevê desvincular as dotações orçamentárias, desindexar da inflação os benefícios concedidos pelo Estado e desobrigar o governo a realizar gastos. As últimas decisões do Congresso vão em sentido contrário.
Em junho, os parlamentares aprovaram a emenda constitucional 100, que torna um dever da administração executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.
Como o texto ficou confuso, dando margem à interpretação de que o governo teria que executar o Orçamento aprovado mesmo sacrificando a meta fiscal do ano ou o limite fixado para a despesa, os senadores e deputados aprovaram, no fim de setembro, a emenda constitucional 102, que estabelece que o dever da administração é de executar apenas as despesas primárias discricionárias (investimentos e custeio da máquina pública).
Ora, se as despesas discricionárias passaram a ser de execução obrigatória, todo o Orçamento será obrigatório. Pois além dos gastos discricionários, existem os obrigatórios, determinados por dispositivos constitucionais ou por legislações específicas. A emenda 102 determinou, no entanto, que as despesas discricionárias poderão ser contingenciadas para o cumprimento da meta fiscal do ano ou para o cumprimento do teto de gastos.
O país passará a viver, portanto, com nova realidade orçamentária. O Orçamento aprovado pelo Congresso terá, a partir do próximo ano, de ser executado como foi aprovado por deputados e senadores. A margem do Executivo para mudar as programações será muito menor do que no passado. A diferença em relação aos países mais desenvolvidos, no entanto, será que, no Brasil, o Orçamento é por demais engessado, com as despesas anuais sendo definidas não pelo Parlamento, mas por dispositivos constitucionais, por legislações específicas e por outros atos normativos.
O engessamento aumentará ainda mais em 2020, com a decisão dos parlamentares de elevar as despesas ressalvadas do contingenciamento.
Cristiano Romero: As consequências nefastas do populismo
É populista quem promete o que não pode e estoura orçamento
Quando alguém afirma que o Estado brasileiro quebrou, não se trata de exagero. Desde 2014, o setor público consolidado, isto é, as contas da União e dos Estados e municípios registram déficits pelo conceito primário (receitas menos despesas, excluídos os gastos com os juros da dívida pública). Isso significa que, no Brasil, há cinco anos as despesas do Estado superam o total arrecadado com a cobrança de impostos.
Para honrar os gastos, uma vez que a carga tributária equivalente a 33% do Produto Interno Bruto (PIB) não é suficiente, o governo federal é obrigado a ir ao mercado tomar dinheiro emprestado. Em 2014, após série de 15 anos de geração ininterrupta de superávits primários, o setor público fechou o ano com déficit primário de 0,35% do PIB.
Nos anos seguintes, o buraco aumentou para um déficit primário de 1,95% do PIB em 2015, 2,55% em 2016 e 1,81% do PIB em 2017. Neste ano, o rombo volta a crescer - para 2,17% do PIB (cerca de R$ 155,5 bilhões), segundo estimativa do Ministério do Planejamento. A previsão oficial é que, apenas no início da próxima década, o setor público volte a gerar saldo primário positivo em suas contas.
Se não consegue arrecadar o necessário para bancar as despesas previstas nos orçamentos públicos e, por isso, é obrigado a pegar dinheiro no mercado via emissão de títulos públicos, o Estado se endivida. O resultado de cinco anos consecutivos de irresponsabilidade fiscal - produzida pela gestão Dilma Rousseff (de 2011 a maio de 2016) - foi o brutal crescimento da dívida bruta, que saltou de 51,5% para 76,5% do PIB entre dezembro de 2013 e outubro de 2018.
A chamada dívida bruta do governo geral abrange o total dos débitos de responsabilidade do governo federal, dos governos estaduais e dos governos municipais, com o setor privado, o setor público financeiro e o restante do mundo. Como se sabe, a elevação crescente da dívida, além de encarecer o custo da própria dívida, uma vez que os investidores exigem ao longo do tempo prêmios (juros) mais altos para continuar financiando o governo, tem o efeito perverso de reduzir e encarecer o crédito disponível a quem precisa dele - empresas e consumidores.
Quanto maior é a fatia da poupança privada destinada ao financiamento da dívida pública, menor é a poupança que sobra para financiar investimento e, portanto, geração de renda e emprego. Está nessa equação parte da explicação dos juros escorchantes a que são submetidos cidadãos comuns, que necessitam de crédito para comprar imóvel e outros bens, e pequenas e médias empresas, que precisam de dinheiro para financiar o capital de giro e tocar seus negócios - no país das desigualdades, funciona assim: quem menos precisa de dinheiro a custo favorecido, notadamente as grandes empresas e as multinacionais, ambas com acesso a crédito barato no mercado de capitais, é quem mais tem acesso a recursos oficiais subsidiados (do BNDES e outras fontes).
O forte crescimento da dívida pública foi, sem dúvida, o maior retrocesso provocado pelo governo Dilma à política econômica que prevalecia no país desde o primeiro ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. O Brasil levou, grosso modo, 26 anos - de 1982 a 2008 - para superar a chamada "crise da dívida". Foram três décadas com baixíssimo investimento público, falta de recursos para combater a pobreza e outras mazelas sociais, inflação crônica e hiperinflação em boa parte do período, aumento das desigualdades sociais, moratória da dívida externa, calote na dívida interna etc.
Em 2008, depois de dez anos de razoável disciplina fiscal, o país foi sagrado com o selo de bom pagador de dívida (grau de investimento, na linguagem das agências de classificação de risco). Apenas sete anos depois, perdeu o selo, em meio à escalada de gastos que não couberam mais no orçamento - esta é, aliás, a melhor definição de populismo: um governante é populista quando promete à população algo que não possa cumprir ou quando realiza despesas que não cabem dentro do orçamento, para aumentar a popularidade e, assim, fazer prevalecer um projeto de poder.
O custo visível (porque a deterioração fiscal é teimosamente vista por alguns como uma abstração acadêmica) do populismo abraçado por Dilma Rousseff está aí: nos últimos cinco anos, a economia brasileira perdeu mais de 7% do PIB na recessão mais longa de sua história (2014-2016) e nos dois anos seguintes (2017 e 2018) cresce a passos de cágado. Com crise fiscal, não há dinheiro para melhorar a educação e a saúde públicas, enfrentar o grave problema da segurança pública, investir onde o setor privado não tem interesse em investir.
O próximo governo enfrentará o desafio de melhorar esse quadro. Em pouco mais de dois anos, a gestão Michel Temer trabalhou com uma das melhores equipes econômicas de que o país já dispôs, o que permitiu fazer as coisas andarem um bocado em Brasília. Não fosse a perda de força política do presidente em maio do ano passado, o PIB estaria crescendo neste momento a um ritmo mais acelerado.
Os desafios são imensos. Como descreve o documento "Reformas Microfiscais e Rigidez Orçamentária", elaborado pelo Ministério do Planejamento, além da crise fiscal, a explosão do gasto agravou outro problema - o grau de rigidez orçamentária (ver gráfico), que compromete a execução de políticas públicas discricionárias, especialmente, os investimentos e gastos sociais.
Míriam Leitão: Para sair do impasse
Orçamento de 2019 não poderá ser feito enquanto a lei não for alterada, e governo prepara uma série de medidas que ainda serão apresentadas como contrapartida. O governo quer a suspensão da regra de ouro junto com um conjunto de medidas: a possibilidade de usar recursos de superávits passados que estão na conta única, mudar o artigo constitucional que dá aos servidores direito a aumento salarial todo ano, reduzir carga horária e salário de servidor. Para o governo, 2019 é o ano que já começou. Ele tem que preparar o Orçamento e há um impasse.
Quando o ministro Henrique Meirelles fala em adiar a discussão é porque houve forte reação. Mas no governo admite-se que dá para fechar as contas de 2018, mas não dá para fazer o Orçamento do próximo ano. A ideia é apresentar um conjunto de propostas junto com a suspensão da regra de ouro.
Algumas delas: na conta única estão receitas de impostos que tinham destinação específica, não usadas nos anos em que houve superávit. Pela lei, essa receita só pode ser usada naquele objetivo para a qual estava destinada. A Cide, por exemplo, que é para investimento em estradas. O governo quer a liberdade de remanejar esses recursos. Outra mudança é no artigo da Constituição que dá ao funcionário público o direito a reajuste anual. O governo quer não reajustar durante a crise. A terceira medida seria a possibilidade de reduzir horas trabalhadas de servidores de áreas não essenciais para diminuir os salários. O ministro Teori Zavascki morreu antes de julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo sobre isso.
O que se diz no governo é que a crise é maior e mais ampla do que eles estão conseguindo explicar. Admitem que comunicaram mal a ideia de quebrar a regra de ouro, que estabelece que só pode haver aumento de endividamento na mesma proporção dos investimentos. A ideia é reapresentar a proposta junto com outras mudanças constitucionais.
Pela lei, a regra de ouro se cumpre duas vezes: quando o Planejamento faz o Orçamento e o entrega em agosto ao Congresso e, depois, quando o Tesouro prova ao fim do ano que não quebrou a regra. Portanto, o impasse de 2019 é realidade agora. Teria que haver um ajuste que os técnicos calculam entre R$ 180 bilhões e R$ 200 bilhões num ano, 3% do PIB. Um ajuste “impossível”.
O grande risco seria o Congresso se enganar com o curto prazo. De imediato, há notícias boas: o déficit de 2017 ficará menor em R$ 30 bilhões, como eu já escrevi aqui, e em 2018 haverá o repasse de R$ 130 bi do BNDES para o Tesouro, como informou ontem o “Valor”. A confusão é o ano que vem, por isso o que se diz no governo é que as boas notícias de curto prazo têm que ser vistas como uma janela de oportunidade:
— A ideia de que se pode resolver o problema aprovando crédito suplementar, como foi sugerida por alguns economistas, é equivocada. Esse recurso é para ser usado quando uma despesa não prevista aconteceu, uma catástrofe, por exemplo, e o gasto real que o governo terá com uma rubrica é maior do que a orçada. Mas o governo não pode fazer um Orçamento com despesas deliberadamente subestimadas para, no ano seguinte, pedir um crédito suplementar ao Congresso.
Quem olha a série do Banco Central dos resultados do Tesouro vê que o Brasil, de 1991 até 2014, teve apenas um pequeno déficit primário, de 0,25% do PIB em 1997. No começo do segundo mandato do governo Fernando Henrique, ele levou o resultado para superávit através de um aumento de impostos. As receitas líquidas foram de 14% do PIB para 18%. E as despesas subiram de 14% para 16%. Atualmente seria difícil fazer o ajuste através do aumento de carga tributária. Seria impossível também cortar porque a rigidez do Orçamento aumentou em vez de diminuir. Agora é de 92% dos gastos.
— A situação é trágica. O país em 2020 entrará no sétimo ano de superávit. Não se deveria permitir que chegasse nesse ponto, mas chegou. O investimento público da União em 2014 foi 1,4% do PIB. Em 2016 foi 1%, ou, R$ 65 bilhões. Em 2017 deve fechar em 0,6% do PIB, entre R$ 40 bi e R$ 45 bi. Mesmo se fosse a zero não seria suficiente. Hoje para dizer a verdade precisaríamos de um ajuste impossível, de 2% do PIB — admite um alto funcionário da área econômica.
Esse tom dramático se pode ouvir de vários integrantes da equipe. O país chegou num impasse fiscal. Eles dizem que é preciso agir agora para ter Orçamento para 2019, ano em que o governo será outro.