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Vera Magalhães: Estranho no ninho

João Doria Jr. é candidato a presidente da República desde 2018, talvez antes. Quando decidiu adentrar a política, o hoje governador de São Paulo traçou uma rota rápida que o levaria, no curto intervalo de seis anos, ao Palácio do Planalto. Até aqui, os passos deram certo. Mas agora o campeonato será jogado numa outra liga, bem mais dura.

A primeira mostra de que o jogo é bruto veio nos primeiros meses após a eleição. Logo depois do Bolsodoria, o tucano passou a ser hostilizado pelo presidente, pelos filhos e pelo entorno radicalizado.

A razão é simples: o bolsonarismo só pensa na reeleição, e a ordem é aniquilar no nascedouro qualquer potencial adversário. Nesta quinta-feira, a milícia virtual do presidente, deputados federais à frente, começou a alvejar ninguém menos que a empresária Luiza Trajano, por ver nela uma potencial candidata, graças a sua campanha pela vacinação imediata de todos os brasileiros. O jogo é bruto.

Doria não é alguém conhecido exatamente pela calma nem por seguir os ritos da política, que incluem muito diálogo antes das ações. Na segunda-feira, foi anfitrião de um jantar que reuniu figurões tucanos, em que o cardápio servido foi a ideia de que ele assumisse o comando da sigla de entrada, sua candidatura presidencial como prato principal e uma nova tentativa de expulsar Aécio Neves de sobremesa.

Caiu como um tijolo no estômago de parte dos presentes, sobretudo nas bancadas de deputados e senadores, que ato contínuo decidiram manter Bruno Araújo na presidência da legenda e lançar o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, como alternativa a Doria internamente.

A surpresa foi que Leite topou o jogo e não ficou no muro, poleiro de predileção dos tucanos desde sempre. Surge, então, o estranho no ninho com que Doria não contava. Ao menos não agora.

Aliados do paulista dizem que o seu objetivo com o jantar da segunda-feira era instar o partido a adotar uma postura firme de oposição a Bolsonaro, e não antecipar a própria candidatura.

Será mesmo? Dados os porta-vozes da ideia (o ex-ministro Antonio Imbassahy e o deputado federal paulista Samuel Moreira, ambos ligadíssimos a ele), ninguém acredita que o script não tenha sido previamente organizado pelo meticuloso Doria.

O tiro saiu pela culatra, mas ainda assim é temerário apostar que ele vá deixar a sigla só porque apareceu um oponente. Doria sempre repete que é “filho das prévias”, numa alusão aos dois processos seletivos internos que venceu, mesmo sem ser versado nas liturgias da política partidária.

Leite, por sua vez, saiu de vez a campo. Além da frase de alta octanagem política que cunhou, ao afirmar que não misturou seu nome ao de Bolsonaro (um tiro no Bolsodoria), aceitou a convocação de deputados e senadores e vai rodar o país. Em entrevista que fizemos com ele ontem na CBN, assumiu a candidatura sem tergiversar e se disse preparado para os ataques que receberá (já está recebendo, corrigiu) dos gabinetes do ódio bolsonaristas.

Se os dois levarem adiante a disposição de se candidatar, o PSDB pode ter primárias pela primeira vez em sua história. Mesmo com guerras internas no passado, algumas com direito a dedo no olho, sempre prevaleceu um arranjo de cúpulas que evitou esse tipo de escolha.

Dada a deterioração programática e o desgaste político do PSDB desde que Aécio Neves enfiou o partido no pântano do JBS Gate, e desde que Geraldo Alckmin foi reduzido a nanico em 2018, uma disputa poderia oxigenar e dar algum rumo a uma sigla que virou coadjuvante apagada no cenário nacional.

Isso depende, no entanto, de que quem perder aceite a derrota, e de que a contenda não se dê em níveis bolsonarescos. É o que vamos começar a assistir a partir de já, porque essa campanha também já começou.


Sergio Fausto: O realismo oportunista do Centrão e a distopia bolsonarista

Violência, boçalidade e patrimonialismo têm um passado vistoso. Terão futuro promissor?

O saldo da primeira metade da Presidência de Jair Bolsonaro é muito ruim. Mas pior do que os resultados é o espírito que preside à gestão do governo em seu conjunto. A sua marca é o ânimo destrutivo.

Nada é mais simbólico desse fato do que a genuína paixão do presidente pelas armas. Bolsonaro banaliza a vida (“a morte é o destino de todos nós”), dá de ombros para as vítimas da covid-19 (“eu não sou coveiro”) e duvida dos benefícios da vacina (“se virar jacaré, não vem reclamar”), mas não esconde seu entusiasmo com o grande aumento do número de armas nas mãos da população civil, objetivo que vem perseguindo desde o início de seu mandato. Segundo reportagem do jornal O Globo publicada em 31 de janeiro, já são mais de 1 milhão de armas, um aumento de 65% em comparação com 2018.

A paixão pelas armas é correspondida pelo desprezo à cultura, outro traço de Bolsonaro, visível nas escolhas feitas por ele para essa área em seu governo. O elo que une a paixão pelas armas e o desprezo pela cultura é a intolerância, pois a cultura reclama pluralidade e valorização da diferença. “Quando ouço falar em cultura, puxo o meu revólver”, diz um personagem da peça Schlageter, do dramaturgo e poeta nazista Hanns Johst, escrita em 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder. Bolsonaro não é nazista, mas compartilha com o personagem a mesma ojeriza à transgressão criativa, que é própria da criação cultural.

O uso do polegar e do indicador para simular uma arma é a marca registrada do presidente. Do gesto derivam dois discursos, que não são exatamente iguais, mas convergem no enaltecimento de virtudes viris. Um deles apela ao instinto de autodefesa do cidadão amedrontado: defenda-se você mesmo, pois o Estado não é capaz de fazê-lo (por suposta culpa da “turma dos direitos humanos”, que amarraria as mãos da polícia). O outro aponta para o uso da violência contra adversários políticos. No início deste mês ele mais uma vez voltou a bater nessa tecla ao anunciar novos decretos para facilitar a compra de armas: “Eu não tenho medo do povo armado, me sinto muito bem ao lado de um povo armado, isso evita que o governante se torne um ditador”.

O alvo real da suposta preocupação democrática do presidente não é, obviamente, ele próprio, mas os seus adversários. Não há como esquecer a reunião ministerial de 22 de abril, em que, alterado, disse que “um povo armado” não acataria as medidas de restrição ao comércio adotadas por prefeitos e governadores.

A distopia bolsonarista projeta na tela do imaginário nacional uma espécie de faroeste caboclo, protagonizado por homens rudes, incultos e indomáveis, um mundo onde a saliva cedeu definitivamente lugar à pólvora e no qual manda quem tem a maior pistola.

A referência do presidente não é Adam Smith e A Riqueza das Nações. Não é a mão invisível do mercado que faz Bolsonaro sonhar à noite e despertar com energia na manhã seguinte para desincumbir-se do seu ofício do presidente. Uma economia de mercado requer uma rede complexa de instituições que regule, contenha, sem sufocar, o espírito animal dos empreendedores. Supõe regras estáveis e agentes estatais “neutros” com capacidade jurídica e operacional para fazê-las valer. Exige também o reconhecimento da ciência como parâmetro fundamental da ação reguladora do Estado, a começar pelas questões elementares do que é ou não nocivo à saúde humana. Exige ainda, como ensina Smith na Teoria dos Sentimentos Morais, uma ética da solidariedade, baseada na empatia. Nada disso é compatível com a distopia do “povo armado” e do “negacionismo científico”. Só se for para um liberalismo de fancaria, mero véu para encobrir interesses mesquinhos e grandes preconceitos.

A distopia bolsonarista é também inconciliável com a ordem e o progresso, lema de inspiração positivista inscrito em nossa bandeira com o advento da República e no espírito das Forças Armadas desde então. Não pode haver ordem sem monopólio estatal da violência exercido por forças armadas e policiais regidas pelos princípios da hierarquia e da disciplina e, no Estado Democrático de Direito, submetidas ao império de direitos e garantias individuais. E não pode haver progresso sem reconhecimento da importância da ciência para o desenvolvimento econômico e social. O que já era uma verdade inquestionável no século 19, quando o positivismo desembarcou no Brasil e fez escola entre os militares, é hoje ainda mais verdadeiro.

A distopia bolsonarista não é inconciliável, porém, com a realidade de um Estado patrimonialista, tomado pelos interesses de corporações e clientelas políticas e gerenciado por profissionais da intermediação política cujo principal propósito é maximizar o poder e a renda que a intermediação lhes permite extrair. O impulso destrutivo do bolsonarismo e o oportunismo do Centrão podem se acomodar mutuamente, à custa do que resta de republicano no Estado brasileiro.

A violência, a boçalidade e o patrimonialismo têm um passado vistoso no país. Terão um futuro promissor?

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP


Juan Arias: 'Divide e reina', a estratégia diabólica de Bolsonaro

O presidente conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as instituições. No Congresso e no Supremo, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais

A estratégia do “divide e reina” remonta ao Império Romano e a frase é atribuída ao imperador Júlio César. Foi também usada pelo cristianismo e atribuída a Satanás, o rei da discórdia e da divisão. Também foi adaptada às guerras e guerrilhas modernas e até mesmo às democracias, para ganhar eleições. Trata-se de criar confusão para confundir e dividir a sociedade enquanto o déspota se fortalece.

Essa tem sido a tática de Bolsonaro, tanto na campanha eleitoral como agora no Governo. Se Satanás é visto como o rei da mentira, Bolsonaro é o melhor expoente das fake news, da mentira sistemática para confundir e desconcertar a população.

Bolsonaro confundiu a sociedade e a dividiu com suas ambiguidades na gestão da pandemia, primeiro minimizando-a, depois aconselhando medicamentos que a ciência e a medicina consideram ineficazes e até perigosos.

Dividiu novamente a sociedade sobre a importância da vacina, criando uma corrente contra ela. Com isso, adiou a aquisição do imunizante, politizando-o. Fomos um dos últimos países a iniciar o processo de vacinação, a única possibilidade de combater a propagação da covid-19 e suas variantes cada vez mais contagiosas. E assim ele dividiu a sociedade.

Mentiu descaradamente, jogando por terra todas as promessas feitas durante a campanha eleitoral contra a velha política e contra a corrupção que agora está exposta em sua própria família. Ele se tornou assim o maior cruzado na guerra para encerrar a luta pela moralidade político-empresarial.

E talvez sua estratégia de dividir para reinar tenha ficado mais clara nas eleições para a presidência da Câmara e do Senado. Bolsonaro conseguiu impor seus candidatos, mas à custa de dividir e pôr em confronto os partidos, que saíram desgastados da batalha.

Foi uma jogada que fortaleceu seu poder ao mesmo tempo em que frustrou a possibilidade de criar uma frente ampla que poderia derrotá-lo nas eleições presidenciais. Sua tática deu bons resultados para ele, pois os partidos saíram da luta enfraquecidos e estão como baratas tontas tentando, por enquanto em vão, recolher os escombros da batalha perdida.

E ainda tem mais. Bolsonaro também conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as outras instituições, que parecem cada dia mais divididas e confusas. No Congresso, no Supremo Tribunal Federal e na Justiça, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais.

Tem sido sua tática diabólica ir contaminando as instituições e a sociedade, aproveitando-se disso para escapar das dezenas de pedidos de impeachment contra si que dormem no Congresso.

Enquanto as forças democráticas não entenderem a política de Bolsonaro de dividir para reinar, acabarão se devorando ao passo que o déspota e golpista vai ficando mais robusto, dando de presente bilhões em dinheiro público para comprá-las e tê-las a seus pés.

Será necessário ver como a sua política de colocar uns contra os outros no melhor estilo de sua política negacionista e de desorientar a sociedade terá consequências na recuperação econômica de um país que ele próprio disse que está quebrado e onde as intrigas políticas criadas pelo presidente aumentam cada vez mais a pobreza e até a miséria.

Isso faz com que a imagem do Brasil esteja no seu pior momento em décadas, segundo revelou um estudo realizado pela Curado Consultoria Associados, especializada em gestão de imagem, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. O estudo analisou as informações sobre o Brasil que saíram nas sete publicações consideradas os mais influentes do mundo: The New York Times e The Washington Post. dos Estados Unidos, The Guardian e The Economist da Inglaterra, Le Monde da França, Der Spiegel, da Alemanha e El País global, da Espanha.

O resultado do levantamento é devastador. Dos 1.179 textos publicados ao longo de 2020, 92% foram negativos, e isso significa que o Brasil vive uma “crise de reputação”. O estudo destaca que o Governo Bolsonaro tem sido “incompetente e vulnerável”.

O que mais contribuiu para a criação dessa imagem negativa foi, segundo a referida pesquisa, a forma desastrosa com que Bolsonaro conduziu a crise da pandemia, sua política suicida de destruição da Amazônia, a crise econômica que tornou ainda mais aguda a já grave desigualdade social no país e uma política externa desastrosa.

A imagem positiva de que o Brasil desfrutou durante décadas no mundo não excluía suas feridas ainda abertas, como o racismo, a violência e a pobreza. O que acontecia é que o Brasil sempre soube projetar o melhor do país, seus valores mais ancestrais e sua parte lúdica. E não só futebol e Carnaval, mas também sua multicultura, a música popular, com a particularidade do samba e da bossa nova, cujos grandes artistas conquistaram o mundo. E com isso tudo, o caráter acolhedor do brasileiro com os estrangeiros.

Ainda hoje em São Paulo, a maior cidade da América Latina, convivem em paz pessoas de mais de 100 nacionalidades. Lembro-me de que nas viagens que fiz pelo mundo, na companhia de correspondentes de vários países, os mais bem recebidos sempre eram os brasileiros. Recordo-me da expressão de simpatia com que eram recebidos: “Ah, brasileiros!”

Não há dúvida de que muito da imagem de simpatia de que o Brasil desfrutava se devia à sua magnífica política de relações exteriores. Seus ministros sempre foram figuras de grande prestígio e preparo intelectual, e enviavam pelo mundo como embaixadores pessoas de grande empatia e capazes de vender os aspectos mais positivos do país.

De fato, a diplomacia brasileira sempre foi considerada uma das melhores do mundo.

E agora? Passamos para o outro extremo com um ministro de Relações Exteriores que sempre cria problemas com os outros países e que esteve à ponto de azedar gravemente as relações com as grandes potências mundiais, ao mesmo tempo em que fazia de Trump seu ídolo pessoal. E quando o então presidente dos Estados Unidos perdeu as eleições, o Brasil foi o último país do G20 a parabenizar o vencedor Joe Biden, enquanto Bolsonaro continuava a defender que Trump havia vencido as eleições.

Tudo isso e mais a desastrosa política para a educação e o desprezo pela cultura, humilhando artistas e intelectuais, criaram no exterior uma política de rejeição do Brasil que pode ter custos muito sérios, afastando os empresários estrangeiros de investir no país.

E é sabido que quando um país começa a ser visto no exterior em contínua crise política e de valores, precisará de muitos anos para recuperar sua face positiva e atraente.

Tudo isso vai destruindo internacionalmente a imagem positiva do país do futuro de que o Brasil desfrutava.

Nada na política está separado da prosperidade econômica e das relações positivas com as outras nações. O resultado é sempre a perda não só de prestígio, mas também de credibilidade internacional que não pode deixar de afetar sua política econômica, empobrecendo ainda mais o país.

Hoje, em um mundo globalizado e conectado a todo instante, não cabem mais nem as muralhas da China nem os muros entre o México e os Estados Unidos nem a ressurreição das fronteiras europeias.

O mundo está mudando com tal velocidade que tentar se fechar em sua casca como o Governo fascista de Bolsonaro tenta fazer é ficar fora da história.

Até os conceitos de tempo e espaço estão mudando no mundo. Dentro de pouco tempo será possível viajar do Brasil para a Europa ou EUA em 20 minutos. Um empresário de São Paulo poderá tomar o café da manhã em casa, ir a Londres dar uma palestra e voltar para almoçar com a família. E não se trata de ficção científica, mas de uma realidade que já está em experimentação.

Por tudo isso, pretender que o Brasil, quinto maior país do mundo, permaneça fechado, envenenando suas relações com o restante do planeta em prol de uma política petrificada e empobrecida, é querer voltar às cavernas.

Para recuperar o prestígio perdido, o Brasil merece algo mais do que essa política destrutiva e negacionista.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


Raul Jungmann: Biden e a Amazônia

Um dos primeiros atos do Presidente Joe Biden significou uma reviravolta profunda no posicionamento dos Estados Unidos frente à crise climática e, por tabela, na relação com o Brasil e a Amazônia. Me refiro a “Executive Order in Climate Change Policy”, que contém três inovações maiores, dentre outras.

Em primeiro lugar, a alocação do tema “crise climática” à Defesa e Segurança Nacional dos EUA, revelando um senso de urgência e importância estratégica globalmente inequívocas e inéditas. Em segundo, a coordenação de todo o governo – ministérios, fundações, universidades e agências, em articulação com o setor privado, para dar respostas conjuntas ao desafio do clima.

Em terceiro lugar, a citação da Amazônia, a necessidade da sua preservação, com destaque e prioridade sobre as demais regiões. Essa diretiva, partindo de uma nação endereçada a outra nação soberana, tem um claro viés colonialista e é inaceitável.

Não desconhecemos que a Amazônia é um dos 14 hotspots mundiais, com reflexos no clima de todo o planeta. E que, em tempos de globalização e interconexão ambientais, temos que reconhecer a necessidade de alinharmos a soberania e integridade nacional aos requerimentos da crise climática.

Mas, daí a aceitar que intenções e projetos alheios, por melhores que sejam, desconsiderem a tutela indeclinável do Brasil sobre o seu território, vai uma distância insuperável.

Idêntica abordagem encontra-se em outros dois textos recentes, endereçados à administração Biden: o “Amazon Protection Plan”, subscrito por ex-negociadores-chefe dos EUA sobre o clima, e as “Recomendations on Brazil to President Biden and the New Administration”, de lavra de uma centena de acadêmicos, brasileiros e americanos.

Sem dúvida, o “plano”, terá mais peso que as “recomendações”, dado os que os assinam, e também pelo fato que o segundo contém bons insights, mas também erros grosseiros.

Em novembro teremos a COP 26 em Glasgow, Escócia e, antes, o Presidente Biden pretende realizar duas cúpulas para debater a crise climática. Uma com chefes de estado de todos os países e outra com as principais economias. Já a União Europeia/UE, irá exigir, para fechar o acordo com o Mercosul, um compromisso nosso com as cláusulas ambientais do acordo.

Por ora, não estão no radar nem a securitização, nem sanções pela questão ambiental na Amazônia, e a disposição dos EUA e da UE é de colaborar conosco. Mas, não tenhamos dúvidas, o cumprimento dos acordos e resultados concretos serão cobrados.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Monica de Bolle: A face econômica da necropolítica

Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central

Foram mais de 1.000 mortos por dia por causa da Covid-19 no Brasil, segundo a média móvel de sete dias. Apenas no dia 9 de fevereiro foram quase 2 mil mortes em 24 horas. Duas mil mortes em 24 horas são mais de 80 mortes por hora, o que equivale a mais de uma morte por minuto. Como números num papel não dão a experiência do tempo, convido o leitor a parar o que estiver fazendo agora e olhar o ponteiro dos segundos de um relógio, ou acionar o alarme do telefone. Deixe passar 60 segundos e pense: “Aqui, agora, enquanto eu nada faço além de esperar o tempo passar, mais de uma pessoa morreu de Covid no país”.

Agora, considere: hoje (ontem) é dia 12 de fevereiro e seria sexta-feira de Carnaval. Desde 31 de dezembro não temos auxílio emergencial ou orçamento para a Saúde. Mas temos discussão no Congresso sobre a autonomia do Banco Central.Sei que há muitos indignados no Brasil. Sei também que, de modo geral, as pessoas no Brasil não têm o costume de olhar para o que está acontecendo no resto do mundo. Mas se o fizessem constatariam que o Brasil é dos únicos países que, em meio a uma severa crise humanitária, com variantes perigosas do vírus circulando em seu espaço, coloca em pauta tema arcano de política monetária como se prioritário fosse. 

Como se isso não bastasse, tem o único governo que, neste momento, tenta enfraquecer sua própria economia “argentinizando-se”. Explico. Paulo Guedes e sua equipe querem que contas bancárias possam ser abertas em dólar no Brasil, instituindo um sistema bimonetário. É uma história com desfecho conhecido. Foi desse modo exato que teve início o processo de dolarização da economia argentina, há mais de 40 anos. De lá para cá, o país sofreu inúmeras crises econômicas, várias delas, se não todas, decorrentes da vulnerabilidade provocada por ter um sistema bimonetário. 

Não há qualquer benefício na dolarização parcial que supere seus riscos. Quando a economia de um país passa a ser dependente de uma moeda que ele não é capaz de emitir, escancara as portas para a vulnerabilidade externa e para a volatilidade cambial. Trata-se de medida com alto potencial destrutivo, conforme testemunhei em meus anos de Fundo Monetário Internacional, onde trabalhei na crise da Argentina de 2001 e na crise do Uruguai de 2002. É imensurável a estupidez guediana.

O mais inquietante é que estejamos perdendo tempo com isso enquanto morre gente. Lidamos diuturnamente com pautas arcaicas, de um tipo de prática econômica que padeceu no mundo inteiro. Trata-se não mais de uma economia do sacrifício, mas de uma economia sacrificial. O mundo ruma para moldar a economia a desafios de saúde pública e meio ambiente. O mundo se orienta, pouco a pouco, para o que se tem chamado de economia do cuidado. Esse reposicionamento inclui países como China, Rússia e Índia, ou seja, países que hoje têm condições de vacinar boa parte dos emergentes e dos mais pobres. O Brasil poderia ser parte desse rol, se a orientação da política pública de Bolsonaro fosse o cuidado, não a destruição. Mas dá-se o contrário, e é importante que isso esteja claro.

O bolsonarismo se apresenta como uma necropolítica com desdobramentos na área ambiental, na Segurança Pública, na Saúde, na Educação e na Economia.

Ele atua para a construção de um país em que os que já eram tratados como seres humanos “inferiores”, dada nossa estrutura colonialista, passem a ser tratados como não cidadãos e não humanos. Constituição? Que Constituição? A existência da Carta Magna não importa para tipos como Paulo Guedes. Caso importasse, ele não teria tido a audácia de falar em Estado mínimo. Afinal, o tamanho do Estado foi pactuado pela sociedade e inscrito na Constituição, que é como se faz em uma democracia. O Brasil já não parece uma democracia. Pior, o que é triste não é sequer a constatação, mas o fato de que ela tenha se tornado banal. Ela é hoje tão banal que há quem insista em separar Bolsonaro de Guedes, talvez por preguiça, talvez por desconhecimento, talvez por falta de compreensão.

O bolsonarismo e sua necropolítica contam com isso. Contam com a não percepção, com a definição equivocada de que se trata de uma ideologia. O bolsonarismo não é uma ideologia, é um mecanismo de destruição e perseguição por meio da comunicação. Ele opera nas construções que as pessoas fazem de circunstâncias, para separar o que não é separável e relativizar aquilo que não é relativizável.

Imagino Guedes. Imagino os apoiadores de Guedes. Imagino os que vocalizam e os que calam. Imagino-os na Sapucaí. Imagino-os cantando: “Diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais cruel que eu?”.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


O Estado de S. Paulo: Nas Forças Armadas, dinheiro público pagou de lombo de bacalhau a uísque 12 anos

Em representação à PGR, deputados detalham gastos de militares com alimentação e bebida

André Borges, O Estado de S.Paulo

O cardápio de iguarias consumidas pelas Forças Armadas não se limitou à aquisição de milhares de quilos de picanha e garrafas de cerveja ao longo de 2020. Os dados oficiais mostram que a dieta verde oliva também incluiu, no ano passado, a compra de itens como milhares de quilos de lombo de bacalhau – lombo, não o peixe desfiado, que é bem mais em conta –, além de uísques 12 anos e garrafas de conhaque.

As novas informações reunidas pelos deputados do PSB serão anexadas à representação que o partido fez à Procuradoria-Geral da República (PGR), para pedir esclarecimentos sobre os gastos alimentares das Forças Armadas, os quais incluíram a compra de mais de 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas.

Os dados oficiais, obtidos a partir de informações que são repassadas pelos próprios militares ao Painel de Preços do Ministério da Economia, mostram que, no ano passado, foram aprovados processos de compra de 140 mil quilos de lombo de bacalhau, além de outros 9,7 mil quilos de filé do peixe salgado.

Em uma das compras registradas pelos militares, consta um pedido homologado pelo Comando da Aeronáutica, para aquisição de 500 quilos de lombo de bacalhau, em que o preço de referência usado pelo órgão público foi de nada menos que R$ 150 o quilo. Esses pedidos, uma vez homologados, ficam à disposição dos órgãos, para que façam suas compras com os fornecedores aprovados.

Muitos copos de uísques e conhaques também foram brindados com o uso do dinheiro público. O 38.º Batalhão de Infantaria, por exemplo, comprou dez garrafas do uísque Ballantine’s, mas desde que fosse com 12 anos de envelhecimento. O preço da garrafa proposto foi de R$ 144,13.

Já o Comando da Marinha preferiu adquirir 15 garrafas de Johnnie Walker, também com 12 anos de envelhecimento, o chamado “Black Label”. O valor que se dispôs a pagar para cada unidade foi de R$ 164,18.

Conhaques mais populares também entraram na lista do Batalhão Naval da Marinha. Em setembro do ano passado, o órgão aprovou o registro para compra de até 660 garrafas de conhaque das marcas “Presidente” e “Palhinha”, com preço unitário proposto de R$ 27,06.

“É um poço sem fundo. Quanto mais investigamos, mais absurdos e irregularidades encontramos. Se não bastasse o governo comprar picanha e cerveja, ainda tem o corte mais caro do bacalhau, uísque e conhaque e com indícios de superfaturamento”, diz o deputado Elias Vaz de Andrade (PSB-GO), que está entre aqueles que assinam a representação enviada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para que investigue os gastos militares. “Além da PGR, eu e mais nove deputados do PSB vamos levar essas informações ao Tribunal de Contas da União. Também estamos discutindo propor a instalação da CPI das compras do governo na Câmara Federal.”

Defesa

A reportagem questionou o Ministério da Defesa sobre cada uma das novas informações. A pasta, no entanto, não se manifestou sobre esses dados até a conclusão desta reportagem. Na quinta-feira, por meio de nota, o ministério afirmou que “reitera seu compromisso com a transparência e a seriedade com o interesse e a administração dos bens públicos” e que “eventuais irregularidades são apuradas com rigor”.

Segundo o Ministério da Defesa, “existe sempre uma significativa diferença entre processos de licitação e a compra efetivamente realizada, cuja efetiva aquisição é concretizada conforme a real necessidade da administração”.

Assim, “é imprescindível que se faça essa segmentação adequada, quando se faz a totalização dos valores, interpretação e principalmente a divulgação pública destes dados, de modo a evitar a desinformação”, afirma o ministério.

De acordo com a pasta, “apresentar valores totais de processos licitatórios homologados como sendo valores efetivamente gastos constitui grave equívoco”, afirma a nota, referindo-se aos dados incluídos na representação. No documento apresentado à PGR, entretanto, os deputados exibem dados detalhados com a identificação da compra realizada e seu referido fornecedor.

Elias Vaz afirmou que se trata de processos já concluídos e com fornecedores escolhidos pelos militares. “Estamos denunciando esses processos licitatórios. Essas empresas tiveram suas propostas aprovadas, por esses valores. Há processos de compra concluídos e, inclusive, já efetivamente pagos. Todos eles foram homologados pelas Forças Armadas”, disse o deputado.

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Proposta de ajuste com corte de renúncias e benefícios fiscais é papo furado e não muda o cenário de restrição do teto de gasto

É papo furado hoje qualquer proposta de ajuste fiscal com corte de renúncias e benefícios fiscais. Esse tipo de medida não avança no Congresso porque implica em aumento de carga tributária para os setores e empresas que perderem os benefícios.

O próprio presidente Jair Bolsonaro para fustigar o governador de São PauloJoão Doria, seu adversário político, vem avisando a todo momento que, no seu governo, não haverá aumento de impostos.

Para elevar a arrecadação em 2021, o governador de São Paulo conseguiu aprovar um corte nas renúncias do ICMS, mas teve que recuar da medida parcialmente diante da ameaça de "tratoraço" de agricultores e pecuaristas. A tesoura nos incentivos do ICMS tinha alcançado medicamentos e alimentos com aumento de preços justamente em tempos de dificuldade econômica com a covid-19. Bolsonaro também deu provas que não vai cortar incentivos tributários do IRPF para a classe média. 

A confiar na fala do presidente, esquece quem acha que Bolsonaro vai repetir a fórmula em Brasília. Mas bastou o ministro da EconomiaPaulo Guedes, dizer que, para apertar o botão da renovação do auxílio emergencial, precisará da contrapartida de medidas de sacrifício com ajuste nas despesas, que os diversionistas de plantão tiraram da gaveta a mesma ladainha salvadora: cortar benefícios fiscais e taxar os mais ricos. Se o Congresso conseguiu rejeitar até mesmo a mudança na tributação de fundos investimentos exclusivos dos super-ricos (proposta totalmente justificável), imagina se vai ter coragem para o resto!  

É o caminho para não sair nada, como se viu em 2020. Os que falam dessas medidas como salvadoras (diga-se de passagem, elas são muito importantes) nem tocam no ponto muito relevante: o aumento de arrecadação não muda o cenário de restrição do teto de gasto, que é um limite fiscal do lado da despesa. Não basta, portanto, botar dinheiro no caixa. Mas os desavisados, ingênuos ou oportunistas de plantão repetem o mesmo discurso.

A versão desidratada da PEC emergencial do senador Márcio Bittar caminhava por esse caminho do corte de renúncias sem atacar as despesas obrigatórias. Esse modelo Paulo Guedes não apoia e quer mudar agora em 2021 numa nova proposta.

Armadilha

O ministro e os palacianos enxergam como “armadilha” para o governo o risco de o aumento de preços, com a elevação da carga tributária por causa do fim dos benefícios e isenções, ir para na conta do presidente. Como aconteceu com Doria, que teve que recuar e até hoje enfrenta desgaste político junto aos empresários. Mesmo depois de voltar atrás em alguns produtos, os setores que ficaram de fora continuam fazendo pressão.  

O raciocínio do ministro é o de que a renúncia é alta porque é também fictícia. De um lado um contencioso tributário de mais R$ 2 trilhões e de outro, as renúncias (conhecidas no jargão econômico como gastos tributários) de R$ 307 bilhões por ano, que na avaliação dele, as empresas não iriam mesmo pagar devido ao sistema caótico.

A resistência em acabar com as renúncias está também no centro do debate da própria reforma tributária. As propostas que estão no Congresso acabam com boa parte delas e, é claro, vão provocar aumento de preços para muitos produtos no rearranjo entre o que setores que pagam mais e menos tributos.

Os candidatos prometeram entregar a reforma tributária no primeiro trimestre. Não vão. Não precisa nem ser futurólogo para prever. Até mesmo pelos próprios acordos negociados para se elegeram.

Há acordos de bastidores fechados também no Senado e na Câmara para a reforma administrativa passar bem mais desidratada daquela que chegou ao Congresso pelas mãos de Guedes e que já estava com menor alcance do texto que foi inicialmente encaminhado ao Palácio do Planalto.

Favorito na eleição à presidência da Câmara, o deputado Arthur Lira diz que a reforma administrativa será discutida e votada ainda no primeiro trimestre deste ano com aperfeiçoamentos. A pergunta é: qual reforma?

Se ganhar a eleição, Lira pode mudar o relator da reforma tributária, atualmente na mão do colega de partido, o PP, o deputado Aguinaldo Ribeiro, aliado do presidente Rodrigo Maia. Esse é assunto mais comentado na semana nos meios tributários porque implicaria num redirecionamento da força da PEC 45 de reforma tributária, do líder Baleia Rossi, durante a gestão de Rodrigo Maia. 

Quem parece estar muito bem cotado para ser relator é o deputado Marcelo Ramos, do Amazonas, que foi o presidente da comissão especial de reforma da Previdência na Câmara. Até outra proposta de reforma tributária, a PEC 128, do deputado Luiz Miranda (DEM-DF) passou a receber atenção. Isso porque o nome de Mirada foi sugerido por parlamentares do DF para substituir Aguinaldo.

Enquanto a reforma não anda, o presidente do STFLuiz Fux, montou esse mês um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça para diagnosticar os problemas do contencioso tributário no Brasil. Para esse grupo, não adianta ficar falando de reforma tributária tendo R$ 2,4 trilhões de tributo federais para cobrar. Isso também tem que ser atacado.

No meio das negociações de políticas tensas e que vão dar o tom da agenda econômica nos próximos dois anos, o assunto que virou discussão nacional foi o gasto de R$ 1,8 bilhão com alimentação do governo federal, revelado pelo portal Metrópoles. A fatura de R$ 15 milhões com a compra de leite condensado virou meme porque todos sabem que o doce tem a preferência do presidente na hora do lanche com o pão francês.

O que mais chama atenção, porém, é o gasto de R$ 2 milhões em chicletes. Muitos se perguntam por que os contribuintes deveriam  pagar para esse tipo de consumo? 

A coincidência do dia foi que, enquanto o cardápio de compras de alimentos do governo era assunto nas redes sociais, o ministro Guedes pedia sacrifícios da população com medidas duras de corte de gastos. Nunca se falou tanto nesse País em gastos como agora. Que a indignação de hoje com o leite condensado, chiclete e afins sirva para aprofundar o debate. De cara, esses gastos indicam que tem gordura para queimar no Orçamento do governo.


‘Desenvolvimento econômico não é prioridade de Bolsonaro’, diz José Luis Oreiro

Professor da UnB observa que não há qualquer projeto consistente para a reconstrução da indústria nacional, em artigo na revista Política Democrática Online

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) José Luis Oreiro diz que “o governo Bolsonaro não tem semelhança alguma com o pensamento desenvolvimentista”. “Trata-se de um governo sem rumo ou norte na política econômica cuja agenda de ‘reformas’ tem por objetivo destruir o Estado Brasileiro e sua capacidade de ser agente indutor do processo de desenvolvimento econômico”, afirma, em artigo na revista Política Democrática Online de outubro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. De acordo com Oreiro, as obras de infraestrutura que a ala militar do governo deseja realizar estão centradas na construção de ferrovias para facilitar o escoamento da produção de produtos primários para a exportação, ou seja, irão apenas reforçar o caráter periférico e, portanto, dependente da economia brasileira.

“Não há qualquer projeto minimamente consistente para a reconstrução da indústria nacional, a qual teve sua participação no emprego e no PIB da economia brasileira prematuramente reduzida nos governos tucanos e petistas”, lamenta o professor da UnB. “O tratamento que o atual governo dá a área de ciência e tecnologia mostra, de forma didática, que o desenvolvimento econômico não é prioridade”, critica ele.

O desenvolvimentismo, explica Oreiro, é um sistema de pensamento econômico surgido na América Latina a partir do famoso Manifesto Latino Americano, escrito por Raul Prebish, por ocasião da primeira reunião da CEPAL, em 1949, em Havana. “A ideia fundamental por trás do Manifesto é que a divisão internacional do trabalho entre países exportadores de produtos primários (a periferia) e os países exportadores de produtos manufaturados (o centro) gerava padrão de desenvolvimento desigual entre os países”, explica ele.

Isso porque, segundo o autor do artigo da revista Política Democrática Online, os produtos primários apresentavam tendência secular de queda, revertida apenas temporariamente durante os dois conflitos mundiais, ao passo que os produtos manufaturados mantinham seus preços mais ou menos estáveis ao longo do tempo. “Essa deterioração dos termos de troca impunha restrição externa ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, os quais incorriam regularmente em elevado endividamento externo e crise do balanço de pagamentos”, diz o professor.

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Adriana Fernandes: Coragem para cortar

Há quatro anos, o corte de renúncias fiscais vai e volta do debate econômico, absolutamente sem sucesso

O corte linear das renúncias fiscais concedidas pelo governo voltou à mesa na discussão das medidas de ajuste fiscal para 2021. Com o pouco tempo até o final do ano para decisões difíceis e impopulares, não se fala mais em mexer em apenas um ou outro grupo de isenções e benefícios tributários, mas passar a tesoura em todas elas ao mesmo tempo e na mesma proporção: algo em torno de 12% a 15%.

O alvo passou a ser todas as renúncias para engordar os cofres da União e abrir espaço para novas despesas sem piorar o déficit público. Essa medida se somaria também à discussão de corte das emendas parlamentares e outras ações do lado das despesas para o financiamento do novo programa de transferência de renda aos mais pobres e de investimentos. Frentes de dificílima execução.

O diagnóstico político é que dessa forma é mais fácil vencer as resistências daqueles setores, empresas e pessoas físicas que vão perder com a retirada dos benefícios e incentivos. Um movimento mais rápido e palatável para angariar apoio no Congresso.

Ainda que esteja no topo da agenda econômica do momento, é complicado colocar na conta como uma medida que tem chances reais de avançar em tão pouco tempo. Será preciso um esforço concentrado de convencimento das lideranças. Com a crise da pandemia, ninguém quer ver ser a sua carga tributária aumentar.

Há pelo menos quatro anos, o corte de renúncias vai e volta do debate econômico de Brasília, absolutamente sem sucesso. Tem sido quase um mantra o discurso de autoridades, políticos e economistas de que é preciso reduzir renúncias, pois o País não aguenta mais bancar patamar tão elevado, de 4% do PIB, de perda de arrecadação.

Nos últimos anos, para cada tentativa de aumento de gastos, o tema ressurge como medida compensatória. Mas na hora H não anda. Essa defesa tem sido muito mais da boca para fora.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 prometia um avanço: o envio de medidas para o atingimento da meta de reduzir os benefícios tributários para 2% do PIB em 10 anos. Nada aconteceu. Pelo contrário, apenas uma lista foi enviada ao Congresso sob sigilo e sem nenhum efeito prático.

Os Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, que propuseram cortes de renúncias para diminuir o déficit em 2021, estão enfrentando fortes resistências. É tão difícil mexer nesse vespeiro que a menção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de que o Simples precisa ser revisto que a acendeu a luz vermelha das micro e pequenas para o risco. É que a desoneração das empresas pelo regime tributário diferenciado é incluído no cálculo da Receita como renúncia, uma briga antiga do Sebrae com o Fisco. Se a tesoura for linear, o Simples também será atingido num momento em que as micro e pequenas empresas alegam grandes perdas com a pandemia.

Para atropelar o debate, o presidente Jair Bolsonaro acabou de assinar um decreto tornando permanente em 8% o benefício fiscal a concentrados de refrigerante produzidos na Zona Franca de Manaus e que favorece grandes fabricantes, como a Coca-Cola e Ambev.

A redução do benefício havia sido adotada no governo Temer para compensar perdas de arrecadação com medidas voltadas para atender os caminhoneiros, que pararam o País. Foi a única medida de corte de renúncias. Agora, o benefício volta de forma permanente (embora não no mesmo patamar da época que foi reduzido) justamente quando se discute a revisão das renúncias. É mais uma decisão do presidente contrária ao ajuste fiscal.

Um olhar rápido sobre as grandes renúncias em 2021 dá a dimensão da encrenca. A lisa é longo e chata, mas a coluna faz questão de descrevê-la para mostrar a realidade: Simples (R$ 74,3 bilhões); rendimentos isentos e não tributáveis do IRPF (R$ 33,5 bilhões); agricultura e agroindústria (R$ 32,6 bilhões); entidades sem fins lucrativos e imunes (R$ 29,2 bilhões); Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio (R$ 24,2 bilhões); deduções do IRPF (R$ 22,1 bilhões); medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos (R$ 14,4 bilhões), benefícios do trabalhador (R$ 14,3 bilhões); desenvolvimento regional (R$ 11,8 bilhões); poupança e títulos de crédito - setor imobiliário e do agronegócio (R$ 6,8 bilhões); setor automotivo (R$ 5,9 bilhões); e embarcações e aeronaves (R$ 4,5 bilhões). São números fresquinhos que constam na proposta de orçamento de 2021.

Quem vai ter coragem de cortar? Essa guerra será feroz.


Marcus Pestana: Orçamento, tributos e renda mínima

A Lei Orçamentária é peça central na democracia. Busca ordenar a aplicação dos recursos coletados pelo governo junto à sociedade na forma de tributos, e explicitar de forma transparente o perfil do gasto governamental.

Para quem não se alinha a perspectivas demagógicas há a consciência de que o orçamento não é um saco sem fundo. Há a famosa, e às vezes frustrante para muitos governantes, restrição orçamentária. A sociedade admite certo nível de carga tributária sancionada politicamente e sabemos que ela no Brasil já é alta. E se as receitas são finitas, as despesas não podem ser ilimitadas.

Isto impõe inevitavelmente um conflito distributivo embutido no orçamento. Ao se destinar muito a salários e previdência, sobra menos para as políticas de educação. Se gasto muito com incentivos e subsídios fiscais, os recursos disponíveis para a saúde e a segurança serão menores. E assim por diante. Governar é fazer escolhas. E não adianta apelar para palavras mágicas como “vontade política”. Déficits e endividamento irresponsáveis são irmãos gêmeos da inflação, da fuga de investimentos e de juros altos.

A situação fiscal já era gravíssima no quadro herdado do Governo Dilma. Em função disso, como âncora de credibilidade, o Congresso Nacional aprovou o teto de gastos, no Governo Temer. Com a eclosão da pandemia, situação absolutamente extraordinária, foi necessário ampliar os gastos à custa da elevação da dívida pública. Agora, a realidade bate à porta. Precisamos ampliar gastos com o SUS e mantermos abertos os mais de dez mil leitos de UTI criados para enfrentar o coronavírus. Necessitamos equacionar as questões da renda mínima e da desoneração da folha. E o dinheiro é curto, o equilíbrio fiscal essencial e é grave a situação do déficit e da dívida.

O ex-presidente Fernando Henrique sempre afirma que o mais importante é o governante oferecer um rumo ao país. E isto está faltando. Não há um plano global e concatenado para atacar toda esta complexa situação. Ao contrário as propostas surgem e somem de forma desordenada e errática. Em um momento fala-se na volta da CPMF, imposto de baixa qualidade, regressivo e cumulativo, rejeitado pela população e pelo Congresso Nacional. Recentemente, o governo anunciou o financiamento do “Renda Cidadão” com recursos do FUNDEB, o que é um absurdo porque só a educação pode dar resposta definitiva à pobreza e a miséria, e com a postergação do pagamento dos precatórios, que muitos interpretaram como uma “pedalada fiscal” contra o teto de gasto.

De onde viriam então os recursos? Dá trabalho, mas não há escolha. É fundamental uma reforma tributária que não só simplifique nosso sistema, mas também corrija graves distorções com as faixas mais ricas da população pagando proporcionalmente muito menos impostos que a classe média e os mais pobres. Além de um corte progressivo e firme de incentivos e subsídios fiscais de eficácia questionável. É essencial uma reforma administrativa com efeitos imediatos que combata privilégios e desperdícios, dando mais eficiência ao governo. E uma parte do ajuste inevitavelmente teria que vir do crescimento econômico, totalmente possível, se houver uma estratégia global e articulada, clara e crível.

Como disse o filósofo romano Sêneca: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Fernando Gabeira: Dinheiro, não, um certo rumo

Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionalismo

Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentramos apenas nos números.

Na verdade, o que se discute agora é basicamente a ajuda emergencial até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.

Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessários, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.

Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamente a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.

Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequências.

Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernização digital. Isso define investimentos e repercute até nas decisões tributárias, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáticas numa época de aquecimento global.

Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizado. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmente passará outro tão promissor nas próximas décadas.

Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficial da racionalização. O único objetivo parece ser a simplificação, que já é algo importantíssimo para o crescimento. Mas crescer para onde? E como crescer?

Tradicionalmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.

No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aquecimento global transformou o carbono neutralizado numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemente, tinha o sonho de transformar o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferência de Bretton Woods.

Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transformar de discussão burocrática em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.

Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.

Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessado no destino da região.

Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?

Teoricamente, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.

Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerados hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferência de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizações e personalidades. Neste encontro foi definido que a diversidade cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversidade.

É esse quadro complexo de biossociodiversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessante antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietantes. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadamente a região. Por que essa redundância? No passado fizemos um investimento gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrumento até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilidade de coletar e compartilhar dados.

Enfim, todas essas dúvidas são pertinentes para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassar o teto do funcionalismo público. Isso é tão desapontador que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram.


Afonso Benites: Paulo Guedes tenta dar as cartas do orçamento enquanto é fritado por Bolsonaro

Críticas públicas do presidente colocam na parede seu último superministro enquanto Governo discute futuro dos programas sociais. Defesa deve capturar recursos que eram do MEC

Se não bastasse a dificuldade em se elaborar uma peça orçamentária que atenda aos interesses de grupos quase antagônicos, como os técnicos liberais do Governo e os políticos do Centrão, o ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a ser alvo de uma escalada de críticas vindas de seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A razão da fritura pública foram suas propostas para atender a uma ordem suprema, a de extinguir o programa Bolsa Família, uma marca dos anos do PT, criando o Renda Brasil com um valor de 300 reais mensais para até 20 milhões de famílias. Um aumento de quase 58% no valor destinado para os beneficiários. Tudo isso enquanto o Governo tem que decidir, de maneira intrinsecamente relacionada, que futuro dará ao auxílio emergencial da pandemia, cuja última parcela de 600 reais a 67 milhões de brasileiros começou a ser paga nesta sexta-feira.

Guedes diz que o limite do reajuste seria de 190 reais para 247 reais. E que para isso ocorrer, seria necessário acabar com o abono salarial para quem receber até dois salários mínimos, programa que beneficia 21 milhões de trabalhadores; extinguir o programa Farmácia Popular, que atende 50 milhões de brasileiros com remédios grátis ou subsidiados; deixar de pagar o seguro defeso para 400.000 pescadores e criar um novo imposto sobre movimentações financeiras de 0,2%, similar à malfadada CPMF. Na quarta-feira, Bolsonaro disse que as discussões sobre a criação do Renda Brasil estavam suspensas. “A proposta que a equipe econômica apareceu para mim não será enviada ao Parlamento, não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos.”

O presidente deu três dias para Guedes levar uma nova proposta. O prazo encerra-se neste fim de semana. Na segunda-feira, acaba o período para a apresentação da peça orçamentária de 2021 no Congresso Nacional. Se seguir a tradição, Guedes deverá entregar a proposta em mãos para o presidente do Legislativo, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ocorre que os senadores estão descontentes com o ministro, desde que ele disse que o senado tinha cometido um “crime contra o país” ao tentarem derrubar um veto presidencial que impedia reajuste salarial ao funcionalismo público no próximo ano.

O que se espera é um documento que contemple muito a Defesa e pouco outras áreas. Entre parlamentares há a expectativa de que os recursos da Defesa saltem de 73 bilhões de reais para 108 bilhões de reais. Enquanto que da Educação sofra uma redução de 103,1 bilhões de reais para 102,9 bilhões de reais.

“Há um déficit muito grande na área militar. Mas estamos em um momento de pós-pandemia, de pós-guerra. É uma discussão que temos de fazer com eles. Mas não é o momento de agradar os militares. É hora de todo mundo dar a sua contribuição”, ponderou o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). Líder do DEM, esse parlamentar será o presidente da Comissão Mista de Orçamento que ainda será instalada para se debater as finanças de 2021.

Pelo que chegou aos parlamentares, parte dos recursos que engrossaria os cofres das Forças Armadas seria transferida da Educação para a criação de escolas cívico-militares. Algo que não é bem avaliado por especialistas do setor. “É trocar o certo pelo duvidoso. Do ponto de vista educacional, não se tem evidência da efetividade deste gasto. Não está provado que é melhor investir em escolas cívico-militar do que em escola de tempo integral ou qualquer outra iniciativa que conhecemos”, diz Felipe Poyares, assessor de relações governamentais da ONG Todos Pela Educação.

De superministro a enfraquecido

A fritura de Guedes segue um roteiro já visto anteriormente. É parecido com o que ocorreu com seu outro “superministro”, o ex-juiz Sergio Moro, que se demitiu da Justiça por uma suposta tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal, ou com Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido da Saúde por discordar da postura negacionista do mandatário no enfrentamento da pandemia. A sequência é mais ou menos essa. Bolsonaro primeiro dá demonstrações de apoio quase inconteste ao seu assessor. Depois passa a fazer pequenas críticas. Em dado momento, intensifica esses ataques ―Guedes está neste estágio. A próxima etapa afirma que não lhe deixam governar ou que os resultados não foram o esperado. Por fim, demite ou vê seu ministro pedir demissão.

A gestão financeira de Guedes também esteve no centro de uma disputa política que ganhou os holofotes nesta sexta-feira, quando o Ministério do Meio Ambiente, comandado por Ricardo Salles, comunicou que suspenderia todas as operações de combate às chamas nas florestas brasileiras por falta de dinheiro. A pasta alegou que o Ministério da Economia de Guedes bloqueara a verba para o enfrentamento dos incêndios. Mas o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, acusou Salles de ter se “precipitado” e negou que faltassem verbas. Horas depois, a Ministério do meio Ambiente recuou do anúncio e disse que manteria as operações.

Apesar de não haver a segurança de que Paulo Guedes deixará o Governo, Bolsonaro já começou a receber sugestões de nomes para assumir o caixa da União. Os mais cotados, em caso de queda, são o ministro do Desenvolvimento Social, Rogério Marinho, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

Marinho é um ex-deputado federal pelo PSDB do Rio Grande do Norte. Ele relatou a reforma trabalhista durante o Governo Michel Temer. Sem conseguir se reeleger nas eleições de 2018, tornou-se secretário especial da Previdência e Trabalho no Governo Bolsonaro, um dos braços do Ministério da Economia. Foi o responsável por articular a aprovação da reforma da Previdência no ano passado. Era um dos principais aliados de Guedes até o início deste ano, quando passou a defender mais investimentos públicos para incentivar a economia. Acabou sendo promovido para o Desenvolvimento Regional, que tem como principal função definir onde serão construídas novas obras de infraestrutura de saneamento básico, moradias populares e de logística.

A favor de Marinho pesa o apoio da classe política, que o enxerga como um representante do Parlamento no Governo. Contra uma eventual nomeação de Marinho estão os técnicos que entendem que ele deveria se focar mais na economia do que na política. Ele pretende concorrer ao Governo do Rio Grande do Norte em 2022.

Já Campos Neto seria o substituto ideal para acalmar o mercado financeiro. Apesar de enfraquecido por Bolsonaro, Guedes ainda tem apoio dos investidores, por entenderem que o ministro tem a intenção de incentivar as privatizações de parte das estatais e aprovar as reformas administrativa e tributária. Campos Neto é economista e trabalhou por 18 anos no banco Santander. É defensor da autonomia do Banco Central.