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Vera Magalhães: Campeonato do fim do mundo

“Nesse campeonato do fim do mundo, quando você é muito bem-sucedido, você acrescenta meio grau na temperatura do planeta”, disse, de forma contundente, o escritor e líder indígena Aílton Krenak na última segunda-feira no centro do Roda Viva.

Para ele, é este campeonato que o Brasil, tendo Jair Bolsonaro e Ricardo Salles como técnico e auxiliar, resolveu jogar. E é na condição de líder da tabela desse torneio macabro que o país chega à Cúpula de Líderes pelo Clima, proposta por Joe Biden, que será anfitrião virtual de 40 chefes de Estado a partir desta quinta-feira para marcar a volta dos Estados Unidos à mesa das negociações climáticas, depois de quatro anos de abandono desta agenda por Donald Trump.

Todos os olhos do mundo antes da reunião estão postos sobre o Brasil. Os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia, as queimadas na floresta e também no Pantanal, o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e a reiterada disposição de Bolsonaro de liberar a exploração mineral e de madeira em reservas indígenas, rever demarcações e legalizar terras ocupadas ilegalmente na região amazônica são apenas alguns dos "feitos" pelos quais o presidente brasileiro deverá ser questionado por seus pares.

Embora mantenham a absoluta falta de compreensão a respeito da importância econômica central da agenda climática e ambiental em qualquer fórum global hoje, Bolsonaro e seus auxiliares terão mais uma mostra de sua inadequação para esse debate, pois as cobranças para que se endureça com eles vêm não apenas dos adversários de sempre, como lideranças ambientalistas como Krenak ou a jovem Greta Thunberg, ou artistas como Leonardo di Caprio ou Wagner Moura, mas dos empresários.

Escrevi a esse respeito aqui na coluna na semana passada, e retomo o fio desta meada: Salles só será ameaçado no cargo quando Bolsonaro sentir na pele o risco de mantê-lo, ainda que ele sempre tenha feito exatamente o que o chefe mandou.

Grandes empresas brasileiras sabem o quanto de prejuízo reputacional e de negócios enfrentarão quando se tornar um imperativo para vendas a certificação ambiental de produtos, algo cada vez mais comum. Vale sobretudo para o poderoso agronegócio, até aqui ainda um reduto de apoio ao bolsonarismo, mas que não rasga dinheiro.

A pressão mundial é para que Biden endureça o jogo com o Brasil, não aceitando fazer nenhum acordo com o governo do capitão a não ser que o país reveja sua doutrina ambiental e se comprometa com metas objetivas e mensuráveis de redução de desmatamento e de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.

Bolsonaro ficará ainda mais exposto pelo fato de que os anfitriões querem marcar sua “volta ao jogo” com a assunção de metas ousadas e o anúncio de investimento pesado em conter o aquecimento global, para além da mera retórica.

Sabemos como o presidente brasileiro costuma se comportar em eventos mundiais como a Assembleia Geral da ONU ou o Fórum Econômico Mundial de Davos: como um peixe fora d’água, alguém que sabe que não tem o que dizer para além das quatro linhas das redes sociais e do cercadinho do Alvorada, onde fica seguro na companhia dos seus seguidores fanáticos.

Sem o “amigo" Donald Trump a chancelar o desdém e o discurso negacionista em relação ao Meio Ambiente, Bolsonaro ficará completamente isolado na cúpula. O discurso proferido nesta terça-feira pelo ministro da Defesa, Braga Netto, na linha “a Amazônia é nossa”, mostra que o nacionalismo mofado é a tônica em todas as áreas do Executivo, não só na pasta de Salles. 

Parece ingênua, portanto, qualquer esperança de que o Brasil vá ao encontro munido de novos propósitos para deixar a liderança da peleja do fim do mundo. Só fará isso se levar um cartão vermelho de Biden.


Vinicius Torres Freire: Para onde vai dinheiro das emendas parlamentares, que fazem Bolsonaro dançar miudinho?

Crise do Orçamento tem a ver com podridão do governo e é também problema histórico

Muito se falou de emendas parlamentares nestes dias da novela infame do Orçamento federal. Por que tanto tumulto por causa de um tipo de despesa que não chega a 1,5% do gasto do governo? Para onde vai esse dinheiro? Por que o aumento do valor total das emendas ainda vai manter Jair Bolsonaro com a corda no pescoço?

O comando do Congresso e o governo haviam aprovado um Orçamento em que a despesa superava o que, em tese, é permitido gastar, dado o “teto”. Um motivo do estouro era o aumento da despesa decidida por meio de emendas parlamentares, o que foi possível porque haviam sido subestimados gastos obrigatórios (como benefícios do INSS, por exemplo), resultado de malandragem e inépcia.

Caso Bolsonaro vetasse muita emenda, a retaliação no Congresso seria maior. Depois de dias de intriga, chegou-se a um acordo. Mantém-se parte do dinheiro extra para emendas parlamentares e diminui bem o risco de Bolsonaro e gente do governo serem processados por crime fiscal. O Congresso-centrão e parte do governo reduziram Paulo Guedes a papel ainda mais ridículo.

Uma emenda ao Orçamento é a destinação que um parlamentar, uma comissão, uma bancada estadual ou o relator do Orçamento dão a parte do dinheiro federal. O site Siga do Senado listou 17.825 delas em 2020, das quais 13.764 viram algum dinheiro.

Fora despesas extras com Covid, em 2020 o governo federal gastou R$ 1,5 trilhão. O valor das emendas parlamentares pagas foi de R$ 22 bilhões (o valor das executadas, de obras e serviços concluídos ou em andamento, foi de R$ 35 bilhões). Relativamente, é pouco dinheiro.

Quase 94% da despesa federal é obrigatória: 54% vai para Previdência e benefícios assistenciais, abono salarial, seguro-desemprego. Para salários, cerca de 21%. Etc.

Sobra 6% para a operação de governo (gasto administrativo, bolsa de pesquisa, insumo de hospital, obras etc.). Como os parlamentares avançaram nas emendas, o governo terá de cortar no osso a fim de que tenha dinheiro para funcionar no mínimo básico (haverá talho em obras definidas pelo Executivo, ciência, pesquisa, educação superior etc.). Ainda assim, terá de negociar com o Congresso o destino de algumas emendas. Vai dançar miudinho.

Boa parte do dinheiro das emendas vai para investimento, em geral obras pequenas: estrada, ponte, posto de saúde, casa popular, transporte público, obra contra seca, cadeia, quadra de esporte. De 2017 a 2019, dois terços foram para gastos em saúde. O grosso do resto vai para a Infraestrutura e ministérios que remediam a vida no interior pobre (Desenvolvimento Regional, Cidades, Integração, o nome que tenham). O valor médio da emenda paga em 2020 foi de R$ 1,5 milhão, mas metade delas levou menos de R$ 289 mil.

É ruim? Depende da obra. Mas, como se diz faz décadas, o Orçamento acaba picotado. Sobra pouco para fazer obra grande e de relevância “estrutural”.

As emendas parlamentares levam cada vez mais dinheiro por força do Congresso. Os motivos são complexos. A escassez regional de dinheiro para obras pode ser um deles (muito estado faliu), assim como a redução do financiamento privado de campanha eleitoral (parlamentares precisam de mais obras locais para garantir o mandato). Os parlamentares avançam também porque lidam com governos de escassa legitimidade e sob ameaça de deposição (Michel Temer) ou sem projeto civilizado algum, grosseiramente ineptos e sem coalizão política, como o dos Bolsonaro, que precisam ainda fugir da polícia e têm pânico de impeachment.

A crise do Orçamento resulta da degradação avançada da liderança política, agora em fase de horror e colapso, de depressão econômica e de um gasto público formatado de modo inviável e iníquo. Ainda vai longe.


Ricardo Noblat: Lira ganha batalha do Orçamento, Pacheco perde a da CPI

Governo Bolsonaro compra brigas em muitas frentes

De tanto esticar a corda e bater o pé, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, ganhou a batalha do Orçamento da União para este ano, entregando aos colegas o que havia prometido – bilhões de reais para o pagamento de emendas parlamentares e a construção de obras em seus redutos eleitorais.

Na outra parte do prédio do Congresso onde repousa a cúpula emborcada do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente da Casa, celebra uma vitória de pirro – o adiamento por mais uma semana da instalação da CPI da Covid-19, que ele fez tudo para boicotar, e o governo Bolsonaro também.

Pacheco e o governo tinham motivos diferentes para não querer a CPI. Para o governo, a exposição dos seus muitos erros no combate à pandemia só lhe fará mal em um ano em que ele só colherá más notícias. Para Pacheco, a CPI o retira por 90 dias ou mais do centro do palco da política nacional, e isso doeria em qualquer um.

O eclipse mesmo que temporário será um tremendo incômodo para Pacheco, logo no momento em que seu nome começa a circular em rodas de partidos como uma boa aposta para disputar a eleição presidencial do próximo ano. Pacheco nega que será candidato. Mas nem Lula admite ainda que será.

Só obrigado pelo Supremo Tribunal Federal foi que Pacheco concordou com a criação da CPI. Pensava mais em si, no seu protagonismo ameaçado do que em simplesmente em ajudar ao governo. A esse faltou coordenação política para evitá-la. É o que sempre lhe falta. Amargará tristes meses pela frente.

Quanto mais Pacheco e o governo retardem a instalação da CPI, quanto mais o governo mobilizar seus devotos para atacá-la nas redes sociais, mais despertará a atenção em torno do que será descoberto por lá ou confirmado. O governo não teve força sequer para emplacar aliados na presidência ou na relatoria da CPI.

O presidente será o senador Omar Aziz (PSD-AM), tido como um político independente. Mesmo que não seja tão independente assim, ele representa o Estado que mais sofreu até aqui com a pandemia e aspira a governá-lo outra vez a partir de 2022. Pessoas morreram asfixiadas por falta de oxigênio no Amazonas.

Renan Calheiros (MDB-AL) será o relator, cargo tão ou mais importante do que o do presidente. Os bolsonaristas têm poupado Aziz e batido duro em Renan. A trajetória política de Renan mostra que quanto mais ele apanha, mais resiste à pancadaria e cresce. É cascudo, como se diz, e ai de quem duvidar.

O governo compra brigas em muitas frentes ao mesmo tempo. Quer mudar, por exemplo, a composição do Tribunal de Contas da União que lhe é desfavorável. Acenou para o ministro Raimundo Carreiro com uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. O ex-presidente José Sarney convenceu-o a não aceitar.

Sarney é do MDB de Renan. Ou melhor: Renan é do MDB de Sarney. Os dois fazem oposição a Bolsonaro e cultivam boas relações com Lula. O MDB irá de Lula se ele for candidato à vaga de Bolsonaro, ou irá com um candidato que o centro direita ainda não tem. Mas com Bolsonaro não haverá negócio.

Os Evangelhos, segundo Jair Messsias Bolsonaro

O pregador dos jardins do Palácio da Alvorada

A Bíblia não é o forte de Jair Bolsonaro. De resto, quase nada é o forte de quem nunca leu um livro. Talvez por isso, Bolsonaro enrolou-se ao citar a Bíblia em uma das pregações diárias que faz aos seus devotos nos jardins do Palácio da Alvorada.

Dessa vez, entre os devotos, havia um pastor evangélico e um padre da Igreja Católica que na ocasião rezou por ele e o abençoou. Os dois foram depois embora sem entender o que o presidente quis dizer quando a certa altura de sua pregação afirmou:

– Tem uma passagem bíblica quando Jesus dividiu o pão. Depois ele deu uma desaparecidinha, né?. Daí o povo foi atrás. Foi atrás para quê? Para mais benefícios pessoais. Fizeram a ligação com o PT dando bolsa isso, bolsa aquilo? É o ser humano que tá aí.

Se consultasse pelo menos a Wikipédia antes de falar, Bolsonaro ficaria sabendo que “A divisão dos pães e peixes” é o termo utilizado nos Evangelhos para referir-se a dois milagres de Jesus. No primeiro, ele teria alimentado 5 mil pessoas, no segundo 4 mil.

Não há relato de uma “desaparecidinha” depois dos milagres. Quanto a irem atrás de Jesus, as pessoas buscavam conforto espiritual e ensinamentos de um profeta que se dizia filho de Deus, não “benefícios pessoais” como pão e peixe de graça.

Daí porque ficou difícil para os que escutaram Bolsonaro fazer qualquer ligação com programas do tipo Bolsa Família, do PT. Quanto ao que ele disse sobre “é o ser humano que tá aí”, desmereceu os mais pobres que carecem de ajuda para sobreviver.

Dos pobres, Bolsonaro quer votos, apertos de mão, fotos e distância segura.


Felipe Salto: O governo não viu as emendas do Orçamento virarem um monstrengo?

Executivo precisa cumprir o teto, aumentar emendas e obras, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais, mas equação não fecha

A Hidra é um monstro grego que, ao ter a cabeça decepada, ganha duas novas. A gestão das contas públicas transformou o arcabouço fiscal num monstrengo difícil de driblar. O projeto de lei (PLN) n.º 2 altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021 para: a) retirar gastos da meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros); e b) aumentar a possibilidade de ajuste dos gastos discricionários (não obrigatórios).

A primeira mudança autoriza gastos por fora da meta legal. O Pronampe (ajuda a empresas), o BEm (medida para manter empregos) e a saúde (restritas ao combate à covid-19) são excluídos da meta de déficit primário. Independentemente da manobra contábil, a dívida será afetada. A alternativa, mais transparente, seria alterar a meta. 

A segunda inovação restringe as alterações orçamentárias ao cumprimento do teto de gastos. Isto é, se as despesas sujeitas ao teto superarem o limite, contingenciamentos terão de ser feitos. No limite, a medida poderá autorizar contenções de emendas aumentadas no processo orçamentário.

Além disso, exclui-se o gasto com custeio da máquina das prioridades de execução. Essa despesa, que é parte da discricionária do Executivo, tem tratamento diferenciado na LDO por corresponder a gastos essenciais ao Estado. O PLN 2 tira a blindagem para permitir cortes maiores nesse grupo. Aumentaria o risco de shutdown.

As emendas de relator-geral (incluídas demandas de parlamentares e do próprio Executivo incluídas) totalizam R$ 29 bilhões. Se forem vetados, no dia 22, cerca de R$ 10 a 12 bilhões, como discutido pela imprensa, e a tesoura do Executivo trouxer mais R$ 9 bilhões das próprias despesas discricionárias (algo como 10%), o corte total ficaria em cerca de R$ 20 bilhões.

Ocorre que esse valor não evitaria o estouro do teto de gastos. A IFI mostrou que o limite seria rompido em R$ 31,9 bilhões, dados os gastos discricionários inflados, no Orçamento, e as projeções da instituição para as despesas obrigatórias – mais realistas que as do Orçamento.

As emendas de relator-geral só podem ser cortadas se retiradas pelo próprio relator (aliás, um ofício foi enviado ao Executivo nesse sentido) ou por meio do veto presidencial. Mas o PLN 2 manda que todas as alterações orçamentárias sejam limitadas pelo teto. 

Ora, se o veto presidencial incidir sobre apenas R$ 10 a 12 bilhões e isso for insuficiente para resolver o problema do teto, outros gastos terão de ser cortados. Os obrigatórios têm de ser executados, os discricionários do Executivo já teriam sido reduzidos e as emendas individuais e de bancada só podem ser contingenciadas proporcionalmente à redução das discricionárias do Executivo. 

Restaria contingenciar mais um pedaço das emendas de relator. A equação não fecha: cumprir o teto, aumentar emendas, contemplar obras de certas áreas do Executivo, garantir dinheiro para Previdência e para benefícios sociais. O governo não viu o monstrengo se materializar?

*Diretor Executivo da IFI


José Roberto Mendonça de Barros: A novela do Orçamento

A questão do Orçamento é só mais um passo no sistema de enfraquecimento do Executivo

A frase é antiga, mas apropriada a esta situação: quando pensamos que já vimos de tudo, algo ainda mais inusitado ocorre. Digo isso a propósito do que se transformou a LOA para 2021.

Jamais havia acontecido uma demora de tal magnitude na aprovação da mais importante lei econômica de qualquer país. Como se sabe, no final do ano passado as lideranças políticas decidiram não votar o Orçamento para não criar problemas nas manobras que antecederam a eleição das mesas da Câmara e do Senado, que só ocorreriam em fevereiro deste ano. Foi o que aconteceu e os trabalhos legislativos a respeito só avançaram a partir de março.

Embora apenas isso já fosse complicado, as discussões, muito tensas, acabaram por produzir e aprovar uma peça orçamentária absolutamente equivocada, possivelmente contendo ilegalidades, e impossível de ser executada. Em resumo, as despesas obrigatórias foram grosseiramente subestimadas para que um volume sem precedentes de emendas parlamentares fosse incluído no Orçamento. Além disso, parâmetros conhecidos, como o valor do salário mínimo vigente, não foram levados em consideração, e ainda há outras impropriedades. 

Aprovada a lei, criou-se outra dificuldade: a área econômica passou a argumentar que a sanção sem vetos do Orçamento poderia levar a um crime de responsabilidade, enquanto que as lideranças parlamentares, especialmente as da Câmara, argumentavam que tudo que estava consignado na lei foi discutido e aprovado pelos representantes do Executivo, não abrindo mão da sua aprovação sem vetos. 

Daí o impasse criado, pois o governo rachou entre ministros favoráveis aos gastos e a área econômica e, de outro lado, a área parlamentar que, enquanto este artigo está sendo escrito, insiste na aprovação da lei tal como está. 

Temos aqui, portanto, quatro grandes problemas de uma única vez:

– Abriu-se um grave problema político, pois o Executivo, muito fragilizado, não consegue decidir se veta parcialmente a LOA ou se a sanciona e, em seguida, envia um projeto de lei para fazer os consertos necessários, como pedem as lideranças legislativas. Enfrentar o Legislativo pode custar caro.

– Por outro lado, sancionar o Orçamento e corrigi-lo com um projeto de lei pode resultar em ajustar os gastos obrigatórios ao real e, ao mesmo tempo, acabar por expandir largamente os gastos totais e os déficits, o que a área econômica não deseja. 

– Existe um problema orçamentário concreto, pois, na ausência de uma grande correção nos excessos praticados no Legislativo, o governo poderá ter enormes dificuldades e se inviabilizar no dia a dia por escassez absoluta de recursos em muitas áreas (apenas a título de exemplo, os recursos para o crédito da agricultura familiar, o Pronaf, foram zerados e os recursos para o Plano de Safra foram cortados pela metade).

– Finalmente, existe um grande problema fiscal, ou seja, mesmo que legalizados os excessos de gastos, via créditos extraordinários, ou alguma variante do chamado Orçamento de Guerra, esses terão efeitos deletérios sobre o crescimento da dívida e as expectativas dos agentes econômicos. E boa parte dessas despesas se destina a projetos paroquiais, sem maior relevância social ou econômica.

O que mais chama a atenção é o gigantesco grau de incompetência dos dois Poderes que gerou o monstrengo do Orçamento. O populismo desenfreado, a absoluta falta de coordenação no Executivo e o enfraquecimento crescente do ministro da Economia, Paulo Guedes, se somaram à falta de competência dos líderes do Legislativo. Dizer, como dizem estes, que tudo foi combinado com o Executivo não resolve a questão, pois não transforma um absurdo numa coisa razoável. Tem-se a impressão de que nenhuma das partes acaba por avaliar o volume de problemas que está sendo criado. 

A questão do Orçamento e suas consequências políticas representam apenas um passo a mais no sistemático enfraquecimento do Executivo. A incapacidade de lidar com a pandemia está contaminando e derrubando as perspectivas de crescimento, que se espraiam para o ano que vem. Todos os analistas têm reduzido as projeções de crescimento para este ano e para 2022.

O governo está esfarelando e fazendo água por todos os lados.

ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS


Malu Gaspar: Jair Bolsonaro, um presidente imunizado contra a CPI da Covid

O requerimento para a criação de uma CPI da Covid-19, protocolado no Senado no início de fevereiro, deixou há muito de ser um pedido de investigação para ser um termômetro que afere as chances de sobrevivência política do presidente da República. Aos olhos de hoje, os líderes da Câmara e do Senado parecem ter concluído que Bolsonaro, que esteve na UTI, já pode ser politicamente desentubado.

O requerimento tem a assinatura de 31 senadores, mais do que as 27 exigidas, e o objeto da investigação é definido: “apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados” nos primeiros meses de 2021.

Nessas circunstâncias, o regimento do Senado diz que o pedido deve ser lido em plenário e a CPI, instalada imediatamente. Mas Pacheco, eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, está há dois meses produzindo desculpas para não fazê-lo. A última foi expressa num documento enviado ontem pelo Senado ao Supremo Tribunal Federal, em resposta a uma ação de parlamentares pedindo a instalação da comissão.

Diz que a CPI poderia ter “efeito inverso ao desejado”, produzindo “desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis”. Menciona, ainda, um eventual “apagão das canetas”, em que os gestores públicos deixariam de tomar decisões urgentes por medo de punição.

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Causa espécie o argumento de que não se deva apurar responsabilidades por uma tragédia sanitária para não causar medo em gestores públicos. Crises são momentos desafiadores, mas não podem ser consideradas salvo-conduto para desvios que causam mortes.

Além disso, acreditar que, depois do colapso no Amazonas e da omissão do governo federal na obtenção de vacinas, será uma CPI que dilapidará a confiança do brasileiro nas autoridades públicas soa tão falso como a promessa milagrosa de cura oferecida pela cloroquina.

Outra coisa que se ouve muito no Congresso é que “uma CPI desviaria o foco”, que deve ser voltado para a obtenção de vacinas. É fato que a pressão dos senadores removeu do cargo o chanceler Ernesto Araújo. É verdade também que o discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira, ameaçando o governo com “remédios amargos” e até fatais (como uma CPI), causou paúra em Bolsonaro.

Depois disso, ele abriu negociações para comprar a Sputnik V. Mas é difícil entender como uma CPI com 11 de 81 senadores poderia causar mais tumulto que os conflitos promovidos pelo próprio presidente da República.

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A questão, aí, parece ser quem se quereria proteger do tumulto. Com a naturalidade de quem entendeu que o que estava em jogo era a ocupação de espaços na máquina pública, e não a confiança da população, Bolsonaro pagou a fatura. Cedeu a cabeça de Araújo ao Senado e entregou um ministério dentro do Palácio do Planalto à Câmara, nomeando para a Secretaria de Governo uma afilhada de Lira, a deputada Flávia Arruda.

No dia seguinte, o presidente da Câmara foi ao Planalto se reunir com o ministro da Saúde e saiu com discurso de líder de governo, desafiando as informações de prefeitos e governadores sobre a vacinação. “Por que o Brasil distribuiu 34 milhões de doses de vacinas e nós só temos 18 milhões de doses aplicadas? Não acho que seja possível que nenhum governador e nenhum prefeito não esteja vacinando.”

De um dia para outro, o remédio amargo virou água com açúcar.

Na Câmara, o foco de Lira passou a ser atender os empresários bolsonaristas Luciano Hang e Carlos Wizard, que reivindicavam mudanças na lei que permitiu a compra de imunizantes pelo setor privado.

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O texto aprovado em março mandava as empresas doarem as doses compradas ao SUS até que fossem vacinados todos os brasileiros do grupo de risco para a Covid-19. Só depois elas poderiam imunizar seus funcionários, entregando ao SUS uma dose para cada empregado vacinado.

Para atender Hang e Wizard, Lira aprovou, em regime de urgência, o fim da obrigação de esperar a vacinação dos grupos prioritários — o que rendeu ao projeto o apelido de “fura-fila”.

E Bolsonaro, de novo à vontade, voltou a defender remédios sem eficácia, visitou sem máscara bairros populares nos arredores de Brasília e falou contra medidas de isolamento social. No dia seguinte, o Brasil ultrapassou a marca de 4.000 mortes por dia pela Covid-19.

No ofício ao STF, Pacheco afirma que a população “reclama a priorização de soluções, e não a busca de culpados”. A julgar pelos últimos lances, o Congresso não está preocupado em encontrar nem uma, nem outra.

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Merval Pereira: LSN, incompatível com a democracia

Assim como chegou a vez de extinguir a Lei de Imprensa promulgada na ditadura militar, graças à ação, em 2009, do então deputado federal Miro Teixeira, jornalista e advogado, parece ter chegado ao fim a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer colocar em votação um pedido de urgência para a análise de um projeto de lei que revisa integralmente a LSN. As mesmas razões se impõem hoje. Conforme argumentou na ocasião Miro Teixeira, a Lei de Imprensa imposta pela ditadura militar continha dispositivos incompatíveis com o Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988, como a prisão de jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.

Com sua revogação, as questões envolvendo notícias ou comentários têm nos Códigos Civil e Penal sua resolução. Também a Lei de Segurança Nacional (LSN) tem servido de base para diversas ações do atual governo contra seus opositores, jornalistas e cidadãos em geral. Dados oficiais mostram que, nos últimos 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, mais do que em qualquer período dos últimos 20 anos, quando foi usada 155 vezes.

O artigo 26, que considera crime “caluniar o Presidente da República, o do Senado federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, é o mais usado para coagir os críticos do governo. O projeto de lei na Câmara pretende alterá-lo para considerar crime apenas atentados contra a integridade física de autoridades, cuja pena pode chegar a 30 anos em caso de morte.

Uma dificuldade, ou um constrangimento, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a LSN é que ele a vem utilizando em inquéritos sobre os ataques desferidos contra o próprio Supremo, nas manifestações antidemocráticas acontecidas e na prisão do deputado Daniel Silveira.

Existe, porém, uma explicação jurídica para isso: a lei está em vigor até que seja extinta. Também a Lei de Imprensa era usada para processar jornalistas ou exigir direito de resposta, até ser revogada. Por isso mesmo, deve ser extinta. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de ações no Supremo que pedem que a LSN seja revogada, deu cinco dias para que o Ministério da Justiça justifique o uso da lei contra os que supostamente ofenderam o presidente da República.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional precisa de uma revisão, ou mesmo revogação completa, para sanar as “inconstitucionalidades variadas”. Ele falou em seminário virtual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, considerando a LSN “uma obsessão mais com a segurança do Estado do que com a institucionalização da democracia e com o exercício pleno da cidadania”.

Ao afirmar que a LSN não se coaduna com a atualidade da sociedade brasileira, o ministro Barroso está entrando numa questão jurídica que vem sendo debatida desde a promulgação da Constituição de 1988: a recepção das leis anteriores. O jurista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal e advogado de presos políticos, que atuou na Constituinte como assessor, defende desde sua tese de 1994, com que foi aprovado como professor titular da Universidade Federal Fluminense, que, como definiu o jurista austríaco Hans Kelsen, as leis incompatíveis com o espírito de uma nova Constituição não são “recepcionadas”por ela, e considera que a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma delas e deveria ser tratada não apenas como inconstitucional, mas “ilegal”.

Para ele, “há um direito novo que o pacto político alargou e que a Constituição refletiu. Os novos preceitos constitucionais permitem uma outra leitura do direito, um novo impulso em que as regras velhas se vestem com novas roupagens para ser aceitas na festa da democracia”.


Míriam Leitão: Escolhas erradas no pior da crise

Há algo profundamente errado no Orçamento, além de todos os números desencontrados. Os erros são crassos, de todos os lados, e reveladores. Mas a principal falha é que o governo e o Congresso juntos fizeram uma peça em completo divórcio com o país. Os brasileiros estão morrendo, as emergências são dramáticas na saúde e na educação, mas o Orçamento garantiu verba para submarino nuclear e corvetas dos militares, encheu os bolsos dos parlamentares de emendas, reservou verba para os palanques de Bolsonaro. É a prova, mais uma, de um governo alheio a tudo o que é de fato urgente neste pavoroso momento brasileiro.

Mesmo se houvesse mais dinheiro para o Ministério da Educação, o risco é o uso errado. O ministro Milton Ribeiro saiu da sua inexistência para ir ao Congresso defender a medieval educação domiciliar, com a socialização das crianças sendo feita nas igrejas, e as verbas para programas essenciais foram cortados. O autor da lei da compra de vacinas pelas empresas queria passar o custo para todos os brasileiros. O deputado Hildo Rocha (MDB-MA), autor da lei que autoriza o fura-fila na vacinação, queria incluir um dispositivo permitindo que os empresários descontassem no Imposto de Renda Pessoa Jurídica. Diante das críticas, recolheu sua péssima ideia. Mas é um sinal da distorção na escolha das prioridades dos poderes no Brasil. O ministro Kassio Nunes Marques, ao expedir sua liminar permitindo os cultos no meio desta carnificina que virou o Brasil, mostrou que também o Judiciário pode ser colhido por essa falta de noção que atingiu os poderes no Brasil. Como perguntou o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, em que planeta estão os negacionistas?

O Orçamento é parte dessa mesma confusão de prioridades. Quem entra no emaranhado dos números vê muita coisa errada nos detalhes, de parte do Executivo e do Legislativo. Ninguém pode dizer que não viu a grande lambança das contas públicas. No blog ontem contei que houve pedalada para frente e pedalada para trás. O governo superestimou despesa, o relator subestimou. No caso dos gastos da Previdência, o projeto de lei orçamentária previa R$ 712 bilhões. Isso é, segundo técnicos, pelo menos R$ 7 bilhões a mais do que o valor que pode ser projetado. O valor correto seria em torno de R$ 705 bilhões. Mas o relator Márcio Bittar (MDB-AC) fez algo ainda pior, ele subestimou despesa obrigatória e colocou no seu relatório R$ 698 bilhões. O governo fez o cálculo do aumento da despesa vegetativa, mas não considerou os ganhos da reforma da Previdência. Isso é um dos detalhes desse emaranhado numérico. Isso é só um exemplo da torre de babel que se tornou esse Orçamento do ano, com comprovações explícitas de erros de parte a parte.

Em cada escolha, o que se vê é o retrato de um governo com distorção da realidade. O Censo pode até não ser feito neste ano e ficar para 2022. Há uma discussão entre especialistas se faz agora ou no próximo ano com mais segurança. Mas o que é mais importante é se dar conta de que o governo vem estrangulando o IBGE desde 2019. O previsto inicialmente eram R$ 3,4 bilhões, o Ministério da Economia mandou cortar R$ 1 bilhão. A então presidente do IBGE aceitou e reduziu os questionários. Depois cortou mais R$ 400 milhões e agora acabou praticamente com a dotação. O atual governo briga com números e não vê relevância em estatística. E o Censo será fundamental para trazer os dados com os quais reconstruiremos as políticas públicas.

Neste momento aumentou espantosamente a insegurança alimentar no Brasil. E o governo só neste quarto mês do ano está depositando nas contas digitais da Caixa o auxílio emergencial. Em dezembro, estava claro que seria necessária uma nova rodada do auxílio, mas o Ministério da Economia fez avaliação errada de conjuntura. Achou que o país estava retomando o crescimento, quando estava entrando em nova onda de contágio e mortes.

Depois que consertarem todas as contas do Orçamento da União, com vetos em emendas e um projeto restaurando as despesas obrigatórias, quando resolverem todos os conflitos com as leis fiscais do país, sobrará a questão mais importante: no Brasil, executivo e legislativo erram dramaticamente ao definir que prioridades o país deve ter no meio da maior crise em um século.


Adriana Fernandes: Crise do Orçamento deixou mágoas na relação entre Congresso e governo

Independentemente do tamanho do acerto do presidente Jair Bolsonaro com o comando do Congresso para a saída do impasse sobre as emendas parlamentares do Orçamento de 2021, a crise política já deixou mágoas e feridas abertas na relação entre o Senado e a Câmara e também com o governo.

As cicatrizes poderão ser maiores ou menores a depender da forma como o presidente vai bater o martelo. Bolsonaro tem prazo até dia 22 para sancionar o Orçamento. De hoje até lá, parece uma eternidade.

Foi assim em 2020, quando impasse orçamentário semelhante se instalou na República, no momento em que a pandemia da covid-19 mostrava a sua cara no Brasil. A diferença é que agora Senado e Câmara estão divididos. Lideranças já avisaram que o rancor é grande no Senado com Paulo Guedes pela postura que consideram errática do ministro da Economia em relação ao acordo feito pelo governo para acomodar o aumento das emendas parlamentares com cortes de despesas obrigatórias.

O Senado ficou com a imagem chamuscada porque não cumpriu o acordo das emendas e aumentou a parcela para obras de interesse dos senadores. Será, portanto, o mais atingido pelo desfecho da crise, que ainda não está fechado e terá de passar pelo arbítrio do presidente Bolsonaro. Por sua vez, a Câmara vai ficar com o que já tinha negociado antes da votação. É para isso que o presidente da Casa, Arthur Lira, luta e sobe o tom: garantir o mesmo valor das emendas parlamentares para os deputados que já estava acertado. Nenhum centavo a mais ou a menos.

A crise causa frisson e explica o vaivém de rumores que têm surgido no mercado com o processo “estica a corda” do Centrão. É o jogo de pressão funcionando.

No mercado financeiro, enquanto reunião sobre Orçamento acontecia em Brasília, a especulação que corria era de que, se não houvesse acordo, Guedes poderia cair. Quem não gosta do ministro da Economia pega carona na crise para desgastá-lo ainda mais.

Enquanto a corda estica, o recado que vem sendo transmitido pelos líderes é que haverá maior dificuldade para aprovação dos projetos de interesse da área econômica. Muitos falam em retaliação a Guedes que na visão deles trava o acordo.

Um aperitivo já foi dado pelo Senado que colocou na pauta de votação projeto que permite às empresas cortarem jornada e salário dos funcionários ou suspenderem contratos neste ano, nos mesmos moldes do programa adotado em 2020, o BEm.

Na hesitação do governo sobre como bancar o BEm em alinhamento às regras fiscais, o Senado foi lá e cravou uma no governo, que no mesmo dia saiu do muro e mandou projeto para alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e abrir caminho ao financiamento do BEm por meio de créditos extraordinários e sem compensação de aumento de arrecadação ou mais corte de despesa.

O recado político do Congresso, que tem chegado até empresários e banqueiros, é o de que haverá distensão política com uma saída honrosa para a crise do Orçamento e que o tamanho das emendas não será o que foi aprovado.

Mas esse mesmo PIB, que fica cobrando publicamente as reformas, já sabe que não terá mais nenhuma aprovada. Ninguém tem expectativa de reforma nem sonha mais com elas.

Por outro lado, o recado transmitido por empresários a interlocutores do governo é que pare de meter os pés pelas mãos (ou seja, de fazer besteira) para chegar até o ano que vem, quando haverá folga orçamentária pela correção do teto de gastos pela inflação mais alta.

“Não regredir mais” virou o ponto mais alto do sarrafo das cobranças dos empresários junto com mais vacina e melhoria das relações diplomáticas. São oito meses até o fim do ano. Depois é só eleição e nada mais.

Guedes tenta evitar a decretação de calamidade (tema da última coluna) e quer administrar a edição de novos créditos extraordinários de medidas de combate ao impacto da pandemia na base do conta-gotas para controlar a expansão dos gastos.

E o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, trabalha para comunicar o dilema orçamentário apontado pelo Copom como risco adicional para a inflação que pode levar a uma alta maior dos juros, como apontado por ele em entrevista ao Estadão publicada no domingo.

Guedes e Campos Neto estariam com Bolsonaro nesta quarta-feira em jantar com empresários. Tentativa do governo de estancar a sangria que faz com que o presidente esteja perdendo apoio na parcela do PIB brasileiro que o ajudou na sua eleição em 2018.


Marcus Pestana: Nada é tão ruim que não possa piorar

A democracia moderna nasceu nos escombros do feudalismo para dar vazão ao nascente capitalismo. A monarquia absolutista, as barreiras comerciais, a fragmentação territorial eram obstáculos à expansão da livre iniciativa que demandava liberdade para que empresários, trabalhadores e consumidores se movimentassem livres e descentralizadamente no mercado. Na Inglaterra, na França e nos EUA moldou-se a democracia, com o Estado laico e liberal, eleições livres, separação dos poderes e partidos políticos como instrumentos de disputa política. Ao sistema político caberia arbitrar os conflitos e apontar os rumos.

No Brasil, temos uma democracia consolidada, mas jovem. Períodos democráticos são raros: apenas o interregno de 1945 a 1964 e a Nova República, de 1985 a 2021, podem ser caracterizados como ciclos democráticos. O Estado sempre foi forte e a sociedade frágil. O populismo, o caudilhismo, o autoritarismo, o personalismo tiveram presença central na história política brasileira.

Agora, em plena crise que se abateu sobre nós – sanitária, econômica, política e social, bastou o Ministro Edson Fachin devolver a elegibilidade ao ex-presidente Lula, para fervilhar no mundo político uma absurda antecipação da sucessão presidencial, dentro da camisa de força maniqueísta da polarização dos extremos. À sociedade não interessa, neste momento, a candidatura de ninguém. As pessoas estão preocupadas com vacina, emprego, sobrevivência e auxílio emergencial.

Descobri cedo a distância entre modelos ideais e a política real. Se dependesse de mim e das minhas convicções, já teríamos um sistema parlamentarista baseado no voto distrital misto proporcional e um quadro partidário consistente e racional. Nada mais distante de nossa realidade.

O presidencialismo americano se organiza em torno de dois grandes partidos – democratas e republicanos. Na Assembleia Nacional Francesa, há a presença de 15 partidos políticos, mas o “A República em Marcha”, do Presidente Emmanuel Macron, ocupa 303 das 577 cadeiras, garantindo estabilidade e governabilidade. O Congresso espanhol tem 16 partidos, mas a dinâmica política gira em torno de 4 grandes partidos (PSOE, PP, Vox, Podemos). Na Itália, a mesma coisa, as colunas vertebrais são o Movimento 5 Estrelas, Liga Norte, PD e Força Itália. Não é diferente em Portugal, com o PS e o PSD dominando a cena.

Aqui no Brasil, a situação é sui generis. São 24 partidos representados no Congresso, sendo que o próprio Presidente da República está sem partido e a fragmentação é total. Os dois maiores partidos na Câmara dos Deputados, PSL e PT, têm pouco mais de 50 cadeiras num total de 513. Qualquer governo terá imensa dificuldade de formar maioria sólida e estável.

Mas, nada é tão ruim que não possa piorar. O parlamentarismo já levou duas lavadas nos plebiscitos de 1962 e 1993. Fui o autor da PEC do voto distrital misto na reforma de 2015, que precisava de 307 votos e só teve 99. Salvamos dois avanços: a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais, o que a longo prazo, esperamos racionalizar o quadro partidário brasileiro e sua representação.

Não é que o “Centrão” começou a se movimentar para acabar com esses dois pequenos avanços já em 2022 e retrocedermos à situação anterior. Como disse Tom Jobim, definitivamente “O Brasil não é para principiantes”.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)          


Adriana Fernandes: É o fim da linha daqui para frente da agenda econômica

PEC foi última chance para Guedes aprovar cortes permanentes de gastos

PEC do auxílio emergencial aprovada esta semana pelo Congresso foi a última chance real do ministro Paulo Guedes de aprovar medidas de corte de despesas permanentes até o término do governo Jair Bolsonaro.

É fim de linha daqui para frente nesse campo da agenda econômica. A equipe de Guedes optou e brigou até o último momento para amarrar a concessão do auxílio a um conjunto de medidas que desse um norte para a trajetória das contas públicas nos próximos anos.

Não ganhou tudo. Nem perdeu todo o pacote, como disse o próprio presidente Jair Bolsonaro a Guedes para justificar a sua atuação na linha de frente para desidratar os gatilhos, que são as medidas fiscais a serem acionadas no futuro para o controle de despesas. Acabou sendo liberada a progressão automática nas carreiras, permitindo aumento nos salários.

Bolsonaro subiu no muro se equilibrando entre a base eleitoral e a (falsa) narrativa de responsabilidade fiscal que ele abraça toda vez que o mercado financeiro entra em turbulência com alta do dólar, dos juros e queda da Bolsa. O saldo final poderia ter sido o auxílio sem as tais contrapartidas fiscais, que o ministro colocou na mesa de negociação num jogo de tudo ou nada. Não foi 8 nem 80.

Como o cenário pior (de fatiamento da PEC) não se concretizou, o Ministério da Economia comemora e monta agora uma força-tarefa para mostrar que foi aprovada uma “boa PEC”, com a derrubada de vários destaques retirando todos os gatilhos.

Num ambiente de traições dentro do próprio governo, os integrantes da equipe econômica partiram para a negociação direta no Congresso nos dias da votação, entre eles, Roberto Campos Neto. O presidente do Banco Central foi vítima até mesmo de fake news de que estaria de acordo com a blindagem aos servidores das Forças militares. Teve de ir a campo para desmentir e apoiar a PEC com os gatilhos.

Agora, eles trabalham para dar luz aos ganhos da PEC, mostrar o que “ninguém está vendo”: o resto da PEC. A narrativa é que o texto aprovado muda toda a trajetória de despesas, como aconteceu com a reforma da Previdência, aprovada no primeiro ano do governo. Assim como a Previdência, a PEC fiscal não promove a queda das despesas, mas desacelera.

Como muitos economistas mostraram, porém, não há redução de despesas obrigatórias para já, uma vez que as contrapartidas se transformaram em expectativa de melhoria da despesa futura. O teto de gastos também continuará pressionando o Orçamento, uma vez que não houve abertura de espaço nas despesas obrigatórias, como se esperava no início da discussão da PEC.

As condições aprovadas no texto só garantem o acionamento dos gatilhos entre 2024 e 2025, preservando 2022 (ano de eleições) de medidas mais duras. O reforço do programa Bolsa Família, outro problema para os políticos, tudo indica estará resolvido no segundo semestre com a “economia” que será feita durante o pagamento das parcelas do novo auxílio emergencial.

Após a votação da PEC, a equipe econômica quer partir com tudo para a reforma administrativa como prioridade da agenda. Mas a proposta não afeta os servidores atuais e tampouco terá foco de corte de gastos. Restará ampliar a linha de defesa para evitar aumento de gastos e perda de arrecadação num ambiente contaminado pela disputa eleitoral. No jogo, vai ter de trabalhar na retranca para os gastos não explodirem nem ter perda de arrecadação com mais benesses.

Para as lideranças, o Congresso fez a sua parte aprovando a PEC. Está todo mundo exausto desse debate e querendo virar a página. A antecipação das eleições de 2022 é a principal razão para a pauta de ajuste fiscal minguar entre os governistas, que querem reforçar o “cheque” ao presidente para ganhar a eleição.

Guedes e o seu discurso de ajuste em nada ajudam nesse caminho. A articulação do presidente durante a votação ampliou ainda mais o divórcio do Palácio do Planalto com as medidas da política econômica do início do governo.

Daí que, à boca pequena, no mundo político de Brasília, o que se fala, desde as eleições para as presidências da Câmara e do Senado, é que o Centrão “daria” a Guedes a aprovação de mais “uma ou duas reformas” antes da sua saída do governo, que estaria contratada pelo próprio presidente. É provável que essa espada no pescoço do ministro fique pairando no ar para ele ceder e ceder cada vez mais.


Monica de Bolle: Uma proposta para ressuscitar o auxílio emergencial

O mínimo de humanidade que precisamos resgatar é o senso de empatia com as dezenas de milhões de pessoas atingidas que precisam trezentos reais para ontem

De acordo com um estudo recente de pesquisadores da Universidade de São Paulo liderado pela economista Laura Carvalho, o auxílio emergencial impediu que a economia brasileira sofresse retração de dois dígitos em 2020. Muitos de nós já havíamos aventado que isso aconteceria antes mesmo de sua adoção. Segundo o estudo, os efeitos do auxílio emergencial foram canalizados de várias maneiras, em particular devido ao apoio ao consumo e à consequente sustentação da arrecadação.

Conforme escrevi ao longo de vários meses para veículos distintos, era mesmo de se esperar que o auxílio, assim como os programas de renda básica, tivesse esse efeito. Afinal, trata-se de um programa de transferência direta de renda para a população mais pobre, que, por ter menor renda, tende a consumir parcela bem mais elevada do que recebe quando comparada à população mais rica. A razão é óbvia: ricos podem poupar, enquanto os mais pobres não dispõem desse privilégio, tendo de atender às suas necessidades imediatas de subsistência. Em razão disso, o deslocamento de recursos para os mais pobres tem maior capacidade de sustentar setores diversos, evitando mergulhos recessivos mais profundos. Mas essa não é a principal defesa para a reinstituição do auxílio emergencial.

Como já escrevi nesse espaço, o Brasil atravessa o momento mais crítico da pandemia de covid-19, o que significa que estamos muito piores agora do que no início da pandemia. Os sistemas de saúde em diferentes localidades estão sobrecarregados e as pessoas já não têm qualquer tolerância às medidas sanitárias mais restritivas – na verdade, não mostram tolerância sequer com o uso de máscaras para proteger a si e aos outros. O comportamento é compreensível. Há sensação de fadiga em relação à pandemia, lideranças políticas falharam em dar às pessoas o devido senso de alarme, o Presidente da República jamais perdeu oportunidades de minimizar os riscos relacionados à doença e à disseminação do vírus, não houve campanha nacional de informação. Por mais que o comportamento de muitos nos deixe aturdidos, indignados até, muitos estão mal informados e há pessoas que simplesmente não têm alternativa que não seja a de se expor, sobretudo após o término prematuro do auxílio emergencial em dezembro do ano passado. O grande problema é que agora temos novas variantes perigosas do vírus em circulação, duas delas surgidas no Brasil.

Desde que o auxílio emergencial acabou, a pobreza aumentou e dezenas de milhões de pessoas ou não têm o que comer, ou enfrentam situação extrema de insegurança alimentar. No contexto de uma pandemia que tende a se agravar, como é o brasileiro, essa situação é insustentável. Não à toa o governo, após ter dito em diversas ocasiões que não reconsideraria a adoção do auxílio emergencial, parece se preparar para lançar alguma proposta. Como de costume, não há nada de concreto, apenas a situação de urgência. Como de costume, Paulo Guedes prefere lançar balões de ensaio para sentir os humores do mercado financeiro enquanto mais de 80 pessoas padecem de covid-19 por minuto em todo o país.

Um recente balão de ensaio foi a proposta de reerguer o auxílio emergencial por um valor menor do que os 300 reais que vigoraram ao final de 2020 e por tempo limitadíssimo: um par de meses, quiçá três, não mais. A “proposta” viria acompanhada de alguma contrapartida, pois, pela lógica do ministro da Economia e de seus assessores, não se pode aumentar despesas sem que sejam cortados outros gastos. Surgiu, portanto, a ideia contraditória de um auxílio emergencial condicionado. Ora, por definição, qualquer coisa que seja condicionada a outra perde o caráter emergencial, já que a condicionante teria de ser aprovada conjuntamente. O balão de ensaio de Guedes, ou um deles ao menos, previa que a condicionante fosse a PEC Emergencial. Vejam, Proposta de Emenda Constitucional: algo exigente do ponto de vista jurídico-formal e das negociações, ou seja, que exige tempo para que se costurem as adesões no Congresso e para que sejam feitas as análises de sua real constitucionalidade. É claro que tal proposta esvazia por completo a razão de ser de um auxílio emergencial.

O que fazer, então? Penso que o ideal, considerando as altas inflacionárias em 2020, seria retornar ao valor original do benefício, isto é, 600 reais. Mas,temo que, se os grupos da sociedade que tanto lutaram pelo auxílio no ano passado se mobilizem em torno desse valor, tenham de abrir mão do prazo de vigência do programa como contrapartida. E o prazo de vigência do auxílio é de extrema importância pela situação de calamidade que vivemos, o atraso da vacinação, as variantes perigosas disseminadas e a perspectiva de que a pandemia esteja muito longe de acabar – inclusive, já escrevi nesse espaço que transitaremos de uma pandemia aguda para outra crônica. Portanto, minha proposta é a manutenção do valor do benefício em 300 reais, alcançando o mesmo número de pessoas de 2020, isto é, pouco mais de 70 milhões, até o fim do ano. Se esse programa tivesse início em março, custaria nesse ano cerca de 220 bilhões de reais.

Um bom programa emergencial de transferência de renda não pode acabar de súbito: é necessária uma regra de transição

Contudo, há mais. O auxílio não pode terminar abruptamente, como ocorreu no ano passado. O fim abrupto é um choque profundo nos orçamentos familiares, na capacidade de subsistência das pessoas. Um bom programa emergencial de transferência de renda não pode acabar de súbito: é necessária uma regra de transição. Penso ser razoável uma regra de transição de seis meses a partir da data de término do programa, reduzindo gradualmente o benefício. Esse modelo de auxílio emergencial teria, assim, um custo fiscal ainda em 2022.

Como financiá-lo? Com emissão de dívida. Vou repetir: com emissão de dívida. Trata-se de um programa emergencial, que não nos permite o luxo de buscarmos recursos em reformas como a tributária, que demoraria a ser negociada, mesmo com elevações pontuais de impostos, que exigem negociações. Põe-se de pé o auxílio, emite-se dívida para financiá-lo. Mais à frente instituímos os impostos progressivos, particularmente sobre lucros e dividendos, para dar conta dos desequilíbrios fiscais. Repito: estamos falando de uma emergência, não de uma situação normal. Emergência requer pressa. E é preciso lembrar do que disse no início dessa coluna: uma parte do auxílio se autofinancia. O auxílio gera consumo, que gera arrecadação. Vimos isso em 2020, já temos a experiência.

Precisamos de condicionalidades? Tudo o que não precisamos é de condicionalidades. O auxílio emergencial é incondicional por seu caráter de urgência. O mínimo de humanidade que precisamos resgatar é o senso de empatia com as dezenas de milhões de pessoas que precisam desses trezentos reais para ontem. Insistamos para que se resgate um pouco de decência na política pública.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.