oposição
Folha de S. Paulo: FHC diz que é oposição ao governo Bolsonaro
Ex-presidente considera que a gestão atual é de extrema direita e já afeta a imagem do país
Paloma Varón, da Folha de S. Paulo
Presidente do Brasil entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso, fundador e presidente honorário do PSDB, está em Paris, onde participou do diálogo com o sociólogo e seu ex-professor, Alain Touraine. O ex-presidente concedeu entrevista exclusiva à RFI logo antes de entrar na sala, lotada, para debater com o colega, com quem mantém um diálogo que já dura cinco décadas.
No debate intitulado “Ordem contra a democracia?”, organizado pelo Colégio de Estudos Mundiais, da Fundação Casa das Ciências do Homem (FMSH, na sigla em francês) e que teve lugar na Casa da América Latina, em Paris, os dois sociólogos discutiram a crise dos sistemas democráticos ocidentais. Dando continuidade a este ciclo de debates, a Fundação organiza, no dia 31 de janeiro, também na capital francesa, uma conferência intitulada “Brasil: as raízes da vitória da extrema direita”.
Na entrevista para a RFI, FHC, como é conhecido no Brasil, explica por que, mesmo não tendo votado no presidente Jair Bolsonaro e sendo “oposição”, não apoiou Haddad em outubro de 2018. Fala também da crise da democracia brasileira, do fim de um ciclo iniciado com a Constituição de 1988 e de suas expectativas quanto ao novo governo.
No final do evento, membros do coletivo Alerta França-Brasil, criado em Paris em 2016 por ocasião do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, abriram uma faixa em frente à mesa onde aconteceu o debate e chamaram o ex-presidente de “golpista”. Perguntado se tinha se incomodado com o protesto, Cardoso disse que não, pois “estava acostumado”.
A seguir, veja a entrevista:
RFI - O que aconteceu com o Brasil?
FHC - Uma transformação muito grande, porque o sistema político tal como ele foi montado por nós mesmos com a Constituição de 1988 chegou ao fim de um ciclo. Houve uma desmoralização da vida política, houve também um processo de corrupção que corroeu bastante o poder no Brasil e um desencantamento do povo. E o povo reagiu elegendo um candidato que era pouco conhecido, mas que aparecia como se fosse uma ruptura com tudo o que tinha sido feito anteriormente. Não acho que isso signifique o fim da democracia – na França muitas pessoas acreditam que foi –, é mais complexo que isso, é um ciclo que chega ao fim. É preciso refazer o sistema político, recriar confiança nas pessoas. Quem vai ser capaz de fazer isso é a questão.
RFI - Mas se não é o fim da democracia, como alguns pregam, é o sinal de uma crise da democracia?
FHC - Bom, as democracias estão em crise em geral. Onde há democracia representativa, mesmo aqui na França, penso que há um certo desencontro entre a vontade das pessoas e a representação delas na vida política. Então neste sentido sim, porque você tem hoje novas formas de comunicação que são fundamentais, que conectam as pessoas com muito mais velocidade, independentemente das instituições sociais e tudo o mais. Então, neste sentido, é uma transformação. Se a gente chamar de crise, é uma crise. No nosso caso, a gente tem um problema mais sério, que é a desmoralização. Não só uma crise de desajuste das regras democráticas na vida social, mas também de corrupção no próprio poder, que ficou visível, gerando repulsa da população. Há risco para a democracia? Sempre há risco para a democracia. Eu acho que era o Sérgio Buarque de Holanda que dizia que a democracia é uma plantinha tênue, que tem que regar todo dia, tem que molhar para poder vicejar, para florescer. Então eu não vou dizer que não haja sempre o perigo de uma tentativa de autoritarismo. Eu já passei por momentos bem difíceis no Brasil e sei como é isso, mas por enquanto temos bastante liberdade na imprensa, na movimentação social. Vamos ver como o governo vai se posicionar. Eu, pessoalmente, tenho discrepâncias grandes com a visão de alguns setores do governo, mas isso faz parte do jogo, às vezes você ganha e às vezes você perde. Quando as pessoas que ganham querem evitar que haja a mudança de governo, que haja eleições, que haja liberdade de imprensa, aí complica. Aí você tem uma crise mais profunda. Nós não chegamos a este ponto, ao meu ver.
RFI - Em uma entrevista recente, o senhor falou que, se este governo for de extrema direita, seria oposição. Ainda existe esta dúvida se é ou não um governo de extrema direita?
FHC- Não, não tenho dúvidas. Eu seria oposição de qualquer maneira, eu não votei nele. E eu não votei nesse porque tinha um outro candidato [em quem votar], de um outro partido, e também porque eu não concordo com as ideias que ele expressou durante a campanha. Agora isso não me leva a dizer que o governo vá ser um governo que quebre as regras democráticas, isso é outra coisa. Eu discordo da orientação política e acho que o que eu tentei dizer foi o seguinte: na eleição, não houve uma votação de escolha entre esquerda e direita, entre democracia e ditadura. Isso não estava em jogo. O que estava em jogo era esta irritação da população com a corrupção e pela existência de uma violência espraiada no país. Eles queriam ordem. Foi mais em função de simbolizar a ordem e não estar vinculado a processos corruptivos que levou Bolsonaro à eleição. O que não quer dizer que o governo não tenha dentro dele elementos de direita. Tem.
RFI – E de extrema direita?
FHC – De extrema direita. Com visão bastante reacionária, em alguns setores. Agora, isso vai prevalecer? Aí depende, depende do jogo da sociedade, depende da resistência do Parlamento, da imprensa, não é tão simples assim. As pessoas quando ganham, não fazem tudo o que querem. Eu fui presidente eu não fiz tudo o que eu queria. Não se consegue, a sociedade existe. Então eu acho que a oposição precisa sempre existir. Na democracia, é necessário que exista oposição. Agora oposição, ao meu ver, o que não pode é ser destrutiva, no sentido de dizer que tudo o que vai ser feito pelo governo é errado porque vem do governo. Eu não sei, o que fizer errado eu sou contra. O que não tiver errado, por que eu vou ficar contra? Eu digo errado no sentido do bem-estar do povo, do crescimento da economia, da manutenção das regras democráticas. Se houver e quando houver atentado quanto a estas questões, eu acho que quem está na condição deve protestar, deve reagir.
RFI – O senhor acabou de dizer que não votou em Bolsonaro. Por que não declarou voto ou apoiou a Haddad, num momento tão decisivo da História do Brasil?
FHC – Isso é outra coisa, porque eu nunca estive de acordo também com as posições do PT, que levaram à situação, a este descalabro em que nós estamos. Eu me dou com o Haddad, pessoalmente, e não tenho nada contra ele, pelo contrário. Agora, ele botou uma máscara de Lula. Bom, o Lula fez coisas positivas, sem dúvida, mas ao mesmo tempo é responsável pelas transformações negativas ocorridas na vida política brasileira. Então há momentos em que a gente tem que ter noção de que “pô, eu não tô nem cá, nem lá”, não é a minha escolha, eu não sou obrigado a optar. Se houvesse o risco de quebra da democracia, aí sim. Depende da avaliação. Eu avaliei que não, que nós temos capacidade de resistência. Não vi nestes termos. Eu sei que muitas pessoas do PT dizem: “É o fascismo”. Mas eles não conhecem a História. Não tem fascismo, assim como não tem comunismo. Os dois lados têm esta visão um pouco antiquada. Então eu não sou obrigado a fazer uma escolha, eu não estou escolhendo entre a liberdade e a ditadura, entre o fascismo... Bom, também entre o fascismo e o comunismo fica difícil fazer uma escolha.
RFI – Esta questão se deve ao fato de que aqui na França eles estão acostumados a ver os partidos tradicionais fazerem uma frente republicana contra a extrema direita cada vez que ela chega ao segundo turno de uma eleição. E, poucos dias antes do segundo turno no Brasil, eu fui à Assembleia Nacional francesa e falei com deputados de diversos partidos e tendências que não entendiam por que não houve isso no Brasil.
FHC – Eu sei, eu conheço bem a vida francesa. Mas não houve também nenhum esforço, o PT nunca se mostrou aberto neste sentido, então é difícil encontrar razões [para apoiar]. Fizeram tantas coisas erradas, será que o meu voto vai fortalecer estas coisas erradas? Mas também não vou votar naquele em quem eu não acredito. Eu não vi como uma situação de que o novo governo é uma ameaça à democracia. Neste caso, teria de se fazer uma frente democrática. Mas não foi posto assim lá. Foi posto depois ou na hora do desespero da campanha final. Mas não é o que estava em jogo, eram outras questões que estavam em jogo. Talvez eu esteja equivocado, vamos ver daqui a pouco. Se eu estiver é ruim, porque aí vamos ter de lutar pela liberdade. Eu já lutei outras vezes, eu não teria nenhuma dificuldade, ainda mais agora, a esta altura da vida, eu digo o que eu penso. Eu não achei que valesse a pena comprometer minha posição de pensamento por uma candidatura que se dizia progressista, mas que tem em si as marcas do desastre que houve no Brasil: a estagnação da economia, pauperização, não intencionada, mas como consequência de muitos malfeitos e muita corrupção. A corrupção não era pessoal só, mas das instituições, o que é mais grave.
RFI - Esta corrupção das instituições já não existia antes? Não é um caso crônico do Brasil?
FHC - Não, aí é que está a diferença. Você pode dizer que sempre houve corrupção, sempre haverá, aí é outra coisa. Não é isso não: é a organização da corrupção como base de poder. É outra coisa, muito mais grave. Não é corrupção de A, de B ou de C que é má-conduta pessoal, que está errado, mas além disso você tem aqui a corrupção de um sistema que passava pela utilização de empresas públicas para financiar empresas privadas que financiavam partidos de maneira sistemática. Isso é algo muito contra a democracia, contra a liberdade. E eu não posso escolher este lado contra o outro.
RFI - Qual a sua opinião em relação à Operação Lava Jato, o senhor a apoiou?
FHC – Eu sempre apoiei, mesmo se há exageros. Vou dar um exemplo: um governador do meu partido, do estado de Minas Gerais, foi condenado a 21 anos. O que ele fez? Ele eu não sei se fez, mas algumas pessoas que trabalhavam com ele fizeram um contrato com o governo, que na verdade era para usar dinheiro para a campanha dele. Foi condenado a 21 anos, é um exagero. Como é que você resolve isso? Apelando. Porque a Justiça funciona. Você não pode dizer que há uma perseguição política no Brasil. Há muita gente na política que está sendo condenado, por acusações de corrupção, de mau uso do dinheiro público. Você pode discutir isso na Justiça, pode discutir se a pena é correta. Os juízes da Lava Jato são da primeira instância, depois você recorre à segunda instância e ainda tem o Supremo Tribunal Federal. Então, se todas instâncias dizem que é culpado, o que que eu vou fazer? Ou eu acredito que a Justiça e a democracia existem ou eu faço o quê?
RFI – Voltando ao governo Bolsonaro, já estamos no 14º dia de seu governo, qual a sua avaliação destes primeiros dias? O senhor acha que o fato de o Brasil ter eleito um presidente de extrema direita vai afetar negativamente a imagem do país no exterior e particularmente na França?
FHC – Vamos começar por aí. Afeta. É claro que afeta. A percepção do resto do mundo e particularmente na França é negativa. O governo começou complicado, com a recusa do pacto de imigração, dizer que vai sair da convenção sobre o clima, são posições difíceis de imaginar que o mundo aceite com aplausos. Dentro do governo, tem setores ultraliberais, na parte econômica, setores que são culturalmente atrasados, reacionários, e setores que são fora do mundo, “démodé”.
RFI – E como fazer com que isso funcione? Para que eles se entendam para governar?
FHC – Este é o ponto, é difícil ver. Você vê que, no começo do governo, estão dando muitas cabeçadas, um diz uma coisa, o outro diz outra coisa e tal. Eu sou prudente, eu fui presidente, eu sei que é difícil, não gosto de jogar pedra toda hora e às vezes no começo as pessoas custam a se ajeitar. Mas aí é mais do que isso, são setores muito desencontrados. Eu sou brasileiro em primeiro lugar; o meu partido, para mim, vem depois. Eu quero o bem-estar do povo e tenho uma visão de mundo. Acredito na humanidade, acho que tem valores universais, direitos humanos, essa coisa toda, então eu torço para que não façam erros, não torço para que errem. Deixa ver o que vai acontecer. Mas que estão dando cabeçada, estão.
Blog do PPS: Que movimento boçal este bolsonarismo, meu Deus!
Que o Blog do PPS faz e fará sempre oposição declarada a esse governo boçal do presidente Jair Bolsonaro não deve ser novidade para ninguém, né?
Tanto quanto fizemos oposição aos (des)governos de Lula e Dilma Rousseff, bem como registramos a nossa posição contrária, crítica e equidistante a Bolsonaro e Haddadno 1º e no 2º turno das eleições de 2018.
Estava muito claro para nós que essas duas saídas polarizadas à direita e à esquerda seriam igualmente equivocadas e prejudiciais ao Brasil. Mas se esta foi a decisão da maioria do eleitorado, não há o que se discutir. Assim funciona o estado democrático de direito, e assim seguimos: eles no governo, nós na oposição. Simples assim.
Aqui da trincheira da resistência à burrificação e ao ódio reinante, que tenta reescrever a História de acordo com as narrativas mais convenientes ao bolsonarismo ou ao lulismo, vamos tentar preservar a racionalidade, o equilíbrio e o bom senso. Trazemos hoje a coletânea de alguns bons textos que fazem pensar e dão em boa medida o retrato desse momento insano que o país vive. Leia:
Henry Bugalho: O avesso da verdade
Celso Rocha de Barros: Os Generais
Esquerda x Direita: Bolsonarismo importa dos EUA teoria conspiratória sobre marxismo cultural
Antonio Prata: A milícia de Brancaleone
Jair Bolsonaro: O meme que virou presidente
Enquanto isso, no mundo surreal da política...
O Estado de S. Paulo: PT sinaliza com a volta do radicalismo na gestão Bolsonaro
Os petistas imaginam que o governo de Bolsonaro não vai dar certo, e a estratégia é apostar na autodestruição do adversário
Marcelo de Moraes, O Estado de S.Paulo
A decisão de boicotar a posse de Jair Bolsonaro exibe muito mais do que apenas um comportamento de mau perdedor dos petistas. O movimento do PT, feito de forma estudada, deixa claro que o partido fará sempre oposição radical ao futuro governo. Independentemente da proposta que estiver sob a mesa de votação, os petistas sinalizam que a ordem foi dada: se Bolsonaro apoiar um projeto – qualquer projeto – o PT estará do lado oposto. E isso indica que a aprovação de votações difíceis, como a reforma da Previdência, enfrentará feroz oposição quando forem discutidas.
Se estivessem apenas incomodados com a festa do adversário, bastava aos petistas não aparecer em Brasília. Quem notaria ou ligaria para essa ausência numa festa celebrada por rivais? Mas o PT fez questão de divulgar um comunicado oficial avisando que faria o boicote. Ou seja: era importante marcar esta posição. A ideia é rivalizar e polarizar com Bolsonaro. Se o futuro governo não decolar, o PT estará bem posicionado para tentar voltar ao Planalto. Se Bolsonaro for bem, segue o jogo com o PT buscando maior protagonismo no campo da oposição.
O PT tem seus motivos para agir assim. O partido só teve bom desempenho eleitoral no Nordeste, onde elegeu quatro governadores: Rui Costa (BA), Fátima Bezerra (RN), Wellington Dias (PI) e Camilo Santana (CE). Nos maiores centros, fracassou. Pior: viu crescer o desempenho de outras forças de esquerda, como o PSOL, o PSB e, especialmente, o PDT, liderado por Ciro Gomes. Com Lula preso e fora do Planalto, o PT decidiu partir para uma reinvenção. E esse processo passa necessariamente pela ocupação de espaço de principal força de oposição.
Como os petistas imaginam que o governo de Bolsonaro não vai dar certo, a estratégia é apostar na autodestruição política do adversário e ocupar o espaço de principal alternativa de esquerda. Por isso, até uma simples malcriação antipática, como a do boicote à posse, passa a ser uma decisão estratégica. O PT mira na sua reconstrução interna e externa e parte para a adoção de um radicalismo dentro do Congresso contra Bolsonaro. Só assim, terá alguma chance de estruturar novamente uma campanha presidencial competitiva para buscar a retomada do poder perdido.
Vera Magalhães: Muita espuma ideológica
Sobra retórica e faltam prioridades concretas às vésperas da posse
Desconvite a ditadores de Cuba e Venezuela para a posse, bravatas sobre a revisão das demarcações de terras indígenas, bate-boca com Nicolás Maduro, tititi nos bastidores do Itamaraty, gritaria em torno da tal Escola sem Partido, brigas de hooligans em cerimônias de diplomação em vários Estados.
Algumas das querelas que ocuparam futuros ministros, o próximo presidente da República, diplomatas e os novos (sic) congressistas nas últimas semanas parecem refletir a disputa entre alas de direita e de esquerda em algum grêmio estudantil, e não discussões de um grupo que se prepara para subir a rampa do Palácio do Planalto daqui a menos de dez dias.
Enquanto as alas mais ideologizadas do futuro governo promovem uma versão tosca de reality show com direito a lives nas redes sociais, os dois pilares até aqui sólidos da próxima administração montam times igualmente consistentes para as ambiciosas tarefas que terão pela frente. Mas fica a dúvida: terão Paulo Guedes e Sérgio Moro respaldo do restante do governo e, principalmente, de Jair Bolsonaro, para encaminhar sua pauta com foco, articulação política, prioridade e estratégia diante de tanta espuma que seus colegas e os aliados no Legislativo já deram mostra de que são capazes de produzir?
O segundo escalão do Ministério da Economia é primoroso. Eu, que já questionei a falta de experiência anterior de Paulo Guedes no setor público e sua falta de traquejo verbal para a negociação política, neste caso não tenho reparos: trata-se de uma das equipes mais bem compostas da área econômica nos últimos tempos, aproveitando nomes experimentados e montando uma estrutura que parece altamente capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, o ajuste fiscal necessário e o desejado e tão adiado destravamento do crescimento.
Mas os temas econômicos estão tendo menos atenção de Bolsonaro e seu entorno da articulação política, nas manifestações públicas que fazem, que o besteirol ideológico.
Tome-se a tal cúpula conservadora realizada em Foz do Iguaçu há algumas semanas. Ali se gastou mais saliva discutindo ideologia de gênero, o fantasma da volta do comunismo e outras quimeras do que a necessidade de um ajuste liberal de fato na economia. Mesmo no painel dedicado ao tema, um economista da equipe de transição lacrou ao ensinar como berrar na cara de um esquerdista, e não ao aproveitar o evento para deixar claro à plateia conservadora que ou se faz a reforma da Previdência ou já era.
No Itamaraty, o clima de caça às bruxas às antigas gerações e a pregação de um trumpismo cristão se sobrepõem à montagem de uma estratégia moderna, inteligente e sem maniqueísmo que permita ao Brasil se posicionar num mundo que não deixará de ser multipolar e cuja complexidade geopolítica vai muito, mas muito além do que as tuitadas recheadas de mistificação do futuro chanceler sugerem.
Bolsonaro foi eleito prometendo banir o viés ideológico de esquerda da máquina federal, depois de 13 anos de domínio petista. Eis um bom propósito: o aparelhamento, visível desde os primórdios de Lula, com a ascensão novo-rica de uma casta sindical às delícias do poder, foi a gênese da roubalheira que se viu ao longo dos anos.
Mas substituir a ideologização de esquerda por outra igualmente atrasada, jeca e talvez até interessada em aparelhar tudo que houver pela frente não é, decididamente, o caminho para um País que o mesmo PT quase levou à falência.
Que os lacradores deixem Guedes e Moro trabalhar e que Bolsonaro perceba que é no sucesso desses dois, e não nos likes da turba direitista hidrófoba, que mora suas chances de sucesso a partir de 1.º de janeiro.
A campanha já acabou faz tempo.
Ascânio Seleme: Preparando-se para o melhor
Não vai ser tarefa trivial fazer oposição ao futuro governo Jair Bolsonaro, diz o ex-prefeito de São Paulo e candidato derrotado a presidente Fernando Haddad. A chance de o novo governo ir bem é grande, segundo ele, o que tornará ainda mais desafiador o papel dos partidos de esquerda, como o PT. Fernando Haddad passou os últimos dias dando palestras e conversando com pessoas em Nova York. Numa dessas conversas, o ex-candidato disse que a economia mundial emite sinais de que vai melhorar, o que pode impactar positivamente o Brasil e seu governo a partir do ano que vem.
Outro aspecto importante do governo de Bolsonaro serão as privatizações, já anunciadas pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo próprio presidente eleito. “Eles vão vender ativos, estatais, e vão fazer dinheiro, muito dinheiro”, disse Haddad. Se este dinheiro for bem empregado, o governo certamente apresentará resultados, o que lhe dará inclusive melhores condições de governar com sucesso. “Não podemos dar de barato que o governo Bolsonaro vai fracassar”, disse. Isso significa, em outras palavras, que a oposição terá de encontrar meios de fazer sua mensagem
preponderar, o que não será fácil.
Fernando Haddad insistiu no assunto numa palestra na Columbia University. Ele disse que a oposição não pode torcer para o governo dar errado e com isso ganhar o poder. A melhor coisa do mundo, segundo o ex-candidato, é ganhar de quem está indo bem. “A gente tem que trabalhar com a hipótese de eles darem certo. E de a gente dar mais certo do que eles”, disse na palestra “Brazil Talk”. Haddad tem toda razão. Além dos sinais de melhora da economia global, a perspectiva de um novo ciclo do petróleo injetar energia no setor produtivo brasileiro é muito grande, e lentamente já vem ocorrendo.
Mais importante que isso, contudo, foi o gesto de boa oposição que ele deu ao dizer que não se deve torcer contra o governo que será instalado em janeiro. Fazer política, na sua visão, é um exercício em que se tenta provar ser capaz de governar de maneira mais eficiente e produtiva que o adversário. Isso não significa que Haddad não tema retrocessos políticos durante o governo Bolsonaro. Ele os teme, como disse em Nova York e inúmeras vezes no Brasil, antes e depois da eleição de Bolsonaro. Mas a questão mais relevante agora será o que fazer ao longo dos próximos quatro anos para retomar o poder em 2022.
O exemplo dos Estados Unidos, onde Donald Trump era dado como presidente de um único mandato, é sempre lembrado quando se trata de Bolsonaro. Primeiro, porque o brasileiro tenta se parecer com o líder americano, depois, porque sua campanha foi parecida com a do republicano e, finalmente, em razão da taxa de chance de sucesso de seu governo. Ninguém hoje pode afirmar que Trump não se reelegerá. Ao contrário, suas chances são enormes. E, no Brasil, um cenário como esse tem tudo para ser construído, de acordo com a visão de Haddad.
Cristovam Buarque: Oposição à oposição
O novo governo ainda não tomou posse, e os derrotados tentam se aglutinar para ganhar a próxima eleição, em 2022. Não percebem que, mais do que Bolsonaro vencer a eleição de 2018, a população brasileira disse “não” aos que agora defendem unidade dos derrotados. Querem ganhar o próximo pleito com a mesma postura que apresentaram, com o mesmo discurso e a mesma falta de sintonia com o futuro.
O povo disse não a essas siglas que tentam se aglutinar sem fazer autocrítica, sem entender onde erraram, sem formular alternativas. Parecem acreditar que foi o povo quem errou, escolhendo outro candidato, e propor uma nova chance aos eleitores para acertarem em 2022. Dizem que o único errado é o PT, do qual agora se afastam depois de terem bajulado Lula ao longo de anos. Esquecem que, no primeiro turno, o PT teve mais votos que todos os candidatos das siglas que agora se dizem da esquerda não petista. E insistem na esquerda em nada diferente do que o eleitor repudiou em outubro. Não percebem o apego do povo ao país e seus símbolos, continuam falando para as comparações, de empresários e de trabalhadores, cujas reivindicações asfixiam as finanças públicas. Não entenderam o esgotamento gerencial e fiscal do Estado, nem assumem compromissos com responsabilidade fiscal e estabilidade monetária.
Se quiserem fazer oposição pelo bem do Brasil, esses partidos e líderes precisam começar a fazer oposição a si próprios: entender onde estão errando há décadas, formular uma proposta para o futuro do Brasil, definir como dar coesão e rumo ao país e a sua sociedade, dividida socialmente e improdutiva economicamente. Dizer em que esse caminho é antagônico ao do PT e ao do Bolsonaro e, por isso, oposição aos dois.
A primeira autocrítica seria à política do compadrio de siglas com propósito eleitoreiro, como tentaram durante os dois meses que antecederam o pleito e tentam agora olhando 2022. A segunda é entender que perderam sintonia com os rumos da história; perceber as revoluções que ocorreram no mundo: a globalização e as amarras que provocam na economia nacional; a informática, a robotização e o desemprego estrutural consequente; os limites ecológicos ao crescimento; o aburguesamento dos movimentos sindicais e a miopia e oportunismo dos movimentos sociais; a importância da educação de qualidade igual para todos como o vetor do progresso econômico e social. A terceira é perceber que não se constrói justiça social sobre economia ineficiente; por isso, é preciso respeitar os limites orçamentários, despolitizar regras da economia, zelar pela estabilidade monetária, reconhecer o papel do livre-comércio e a necessidade de reformas que desamarrem o Brasil. Concentrar os propósitos revolucionários na garantia de escola com qualidade igual para todos: os filhos dos trabalhadores na mesma escola que os filhos dos patrões.
Uma oposição consequente deve começar pela autocrítica de seus erros, reconhecendo não ter oferecido uma alternativa progressista e sintonizada com o espírito de nossos tempos. Cada democrata-progressista deve fazer oposição ao que Bolsonaro representar de retrocesso, mas isso não basta: é preciso avançar dizendo que rumo pode oferecer para um Brasil eficiente, justo, sustentável, livre.
Antes de fazer oposição aos vitoriosos, a “exquerda” nostálgica que tenta se aglutinar precisa fazer frente a seu próprio passado derrotado, não apenas por Bolsonaro, mas pela história. Sem isso, chegará em 2022 outra vez sem propostas para o futuro ou dizendo que seu projeto é apenas ser contra o novo governo e o PT ao qual serviram até ontem.
Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica
Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?
Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.
Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.
Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.
Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.
Não se trata de esperar sem fazer nada, nem de assumir a posição fácil de criticar tudo o que o governo faça. A possibilidade de se criar um “centro” não amorfo implica tomar partido com base em valores e na razão.
Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituição. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservação dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservadorismo.
A onda conservadora concentra-se principalmente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidade e sua valorização, que é constitutiva da democracia, embora se recuse a transformar a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferências, sexual ou sobre o que seja, divergentes do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferência religiosa: há que respeitá-la integralmente, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.
A radicalidade de um centro progressista não se limita, contudo, aos aspectos comportamentais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemente com a “nova matriz econômica”?
Sem fundamentalismos desnecessários e mesmo contraproducentes, o “centro progressista e radicalmente democrático” deve incorporar ao seu credo uma visão mais liberal, sem medo de ser tachado de “elitista” ou “direitista”.
Sem cair, por outro lado, na apologia do “individualismo possessivo”, porque o mercado não é a única dimensão da vida nas sociedades contemporâneas. A ideia de que se pode comandá-lo ou regulá-lo com mão de ferro é irrealista. E o realismo não é de direita nem de esquerda, é um requisito para o bom governo. Este, por sua vez, não se resume à adequação eficiente entre meios e fins. É preciso crer numa “utopia, viável”: a da busca de uma sociedade aberta, decente e, portanto, mais igualitária. A sociedade civil, em sua pluralidade de opiniões, tem um papel crítico na construção de tal tipo de utopia.
Num artigo de jornal não cabem demasiadas considerações sobre os valores que poderão dar arrimo a um centro que não se confunda com a fisiologia de “centrões”, nem se perca na vacuidade das indefinições. Mas é preciso deixar no ar a pergunta: que movimentos e partidos poderão materializar o radicalismo de centro?
Comecemos com a autocrítica. Também o PSDB, ainda que vitorioso em Estados expressivos, se desfigurou nas últimas eleições. Será capaz de se remontar? Francamente, não sei. E os demais partidos e movimentos de renovação, que rumos eles tomarão para sobreviver?
Se for o da adesão oportunista ou o da crítica indiscriminada a tudo o que o novo governo fizer, de pouco servirão para a retomada do rumo democrático e progressista. É cedo para apostar. A paciência histórica é boa conselheira e não se confunde com inação. A consolidação de um novo movimento requer desde já a pavimentação de alianças, não só no círculo político, mas principalmente na sociedade, para formar um polo aglutinador da construção de um futuro melhor. E como as eleições de outubro mostraram, não basta ter boas ideias, é preciso que elas circulem nas redes que conectam as pessoas e mobilizam corações e mentes.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República
Mauricio Huertas: Presidente Bolsonaro, conte comigo… na oposição!
Dentro da normalidade democrática, a alternância de poder é salutar. Um aditivo republicano que evita que os políticos se perpetuem nos cargos, com os mesmos vícios, e garante a soberania exercida pelo povo.
Portanto, eleito Jair Bolsonaro pela vontade da maioria do eleitorado brasileiro, dentro das regras da democracia, resta a quem não votou nele nem acredita neste “novo” presidente, como é o meu caso, ser oposição em todos os 1.461 dias do seu governo.
Essa é, inclusive, uma garantia para a manutenção das nossas conquistas e para o bom funcionamento das nossas instituições. Que sigamos vigilantes e mobilizados na luta contra qualquer retrocesso.
Porém, aqui entra um detalhe importante que nos diferencia do tradicional oposicionismo petista, patenteado desde os anos 80: o Brasil precisa de uma oposição responsável, não meramente ideológica ou recomendada pelo marketing estratégico e eleitoreiro de ser “do contra”. Sistemático deve ser o papel fiscalizador da oposição, jamais o “quanto pior, melhor”, o ódio, o revanchismo ou a intransigência.
Para levantar uma situação objetiva, concreta: se houver o encaminhamento correto das reformas estruturais tão necessárias para reorganizar o modelo de gestão do país, entre outras urgências, é preciso debater com seriedade, fazer os ajustes cabíveis e também ajudar a aprová-las. Ou não?
A fiscalização ao governo deve ser diária, permanente, minuciosa e disciplinada, para que os arroubos totalitários demonstrados durante a campanha não tenham sido nada além de bravatas e peças de retórica. Para que nenhum abuso seja cometido. Para que nenhum direito seja suprimido. Para que nada que não esteja previsto constitucionalmente seja imposto, sob qualquer pretexto, sem o devido amparo do estado democrático de direito.
O fato é que só agora vamos saber de verdade quem é o presidente Bolsonaro, pois conhecemos apenas o candidato de um partido fictício (que nesta eleição se tornou o segundo maior do Brasil) e teve limitada a sua presença em raros debates no 1º turno, com pouquíssimo tempo de propaganda oficial e mobilidade cerceada desde o dia 6 de setembro pelo atentado cometido contra ele. O fenômeno, o mito, vai ter que descer do pedestal, arregaçar as mangas e botar os pés no chão.
Chegou a hora, afinal, de descobrir o que tem a oferecer aquele seu tão propalado “posto Ipiranga” para a economia e o desenvolvimento do Brasil. O que ele pretende para a Reforma da Previdência, por exemplo? E para a Educação? Vai continuar com essa bobagem de fundir a Agricultura com o Meio Ambiente, sem entender que muitas vezes terá que mediar interesses antagônicos do agronegócio e da sustentabilidade? Como enfrentará o que chama indevidamente de “coitadismo” de negros, gays, mulheres e índios? Teremos ativistas perseguidos? Liberdades ameaçadas? Minorias desassistidas?
Como o presidente vai se portar diante das exigências formais do cargo? Respeitará a independência e a harmonia dos poderes? Como será a relação com esse Congresso sabidamente conservador, fragmentado e fisiológico? Que tipo de reação terá com uma oposição que se anuncia ruidosa e rigorosa? Como vai se desenrolar a Operação Lava Jato e outras investigações do tipo contra a corrupção envolvendo políticos e partidos, muitos dos quais também vão estar na sua base de sustentação?
Outra coisa importante, que descobriremos com o tempo, é como o governo vai reagir quando essa onda bolsonarista baixar – o que é natural – e o presidente deixar de surfar nesses índices gigantescos e fenomenais de popularidade. Os problemas corriqueiros do dia a dia, as frustrações, a burocracia para ver implantadas as suas ideias. Até que ponto irá a paciência da população que buscou eleger um salvador da Pátria? Cadê as soluções mágicas para a insegurança e o desemprego? Por que segue aumentando a conta de luz, a passagem do ônibus e o preço do feijão no supermercado?
Então é isso, presidente. Parabéns pela sua eleição, mas saiba que a partir de 1º de janeiro de 2019 acaba a festa e começa a cobrança e o trabalho duro. Conte comigo… na oposição! Sempre! Não pretendo dar um dia de trégua na fiscalização. Mas não vou torcer pelo seu insucesso, ao contrário. O Brasil não merece outro governo interrompido pela incompetência, pela irresponsabilidade, pela mediocridade ou pela falta de caráter de seus mandatários.
Vamos testar na prática a sua conhecida truculência. Que tenha ficado para trás, pelo bem de todos. Falo por mim, neste artigo assinado, mas sei que posso estar representando o pensamento de muitos, que por ora se recompõem em partidos reformulados e nos movimentos cívicos, nas redes e nas ruas. Nosso reencontro está marcado para 2022, nas urnas, democraticamente. E que Deus nos proteja dos fantasmas do passado que rondaram a sua eleição e insistem em nos assombrar.
*Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS-SP, diretor executivo da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente
Denis Lerrer Rosenfield: A democracia totalitária bolivariana
Nada do que está hoje acontecendo na Venezuela deveria surpreender. Presenciamos o desenvolvimento lógico-político de instauração do socialismo naquele país, tendo começado com Chávez e encontrado o seu desfecho na abolição da democracia e no assassinato de mais de uma centena de pessoas nas ruas em poucas semanas.
Espanta, contudo, o cinismo de alguns políticos que teimam em dissociar a “democracia” de Chávez da “ditadura” de Maduro, como se fosse possível separar as premissas da conclusão. Neste sentido, o elogio do indefectível Lula a Chávez — quando considerou que aquele país tinha “excesso de democracia” e não falta, acompanhado de apoio financeiro do contribuinte brasileiro através do BNDES — mostrou coerência com sua sustentação do ditador Maduro. O apoio atual do PT a este, com manifestações de sua presidente no Foro de São Paulo, segue uma mesma lógica, cuja única virtude consiste em expor a faceta totalitária do partido.
Qual democracia está em questão: a democracia representativa, com todas suas limitações e contrapesos, ou a democracia totalitária, com sua ilimitação e projeto de destruição do próprio sistema representativo?
A democracia totalitária é um conceito elaborado por um célebre cientista político, J. L. Talmon, em sua obra “Origens da democracia totalitária”. Recorrendo aos filósofos do século XVIII, porém atento ao fenômeno totalitário comunista do século XX, destaca ele o surgimento de uma ideia democrática, fundada na soberania do povo, entendida como guia de uma atividade política que desconhece limites. Em nome da vontade popular, tudo seria possível, inclusive o desrespeito à lei e à Constituição ou, mesmo, a abolição das duas.
Em nosso país, por exemplo, quando políticos de esquerda procuram cancelar os seus crimes, dizendo que as eleições absolvem os que violaram as leis, estão dizendo com isto que processos eleitorais são os únicos capazes de julgar os políticos, por mais criminosos que sejam. Não seriam os tribunais os juízes, mas as eleições, na medida em que seriam expressões da vontade popular. É o mesmo argumento que está sendo utilizando por Lula e os seus apoiadores, forçando de qualquer jeito a sua candidatura, para, uma vez eleito, escapar de qualquer condenação em curso. É a faceta totalitária.
Em sua vertente totalitária, a democracia é reduzida a eleições, como se essas fossem os únicos processos decisórios válidos. Constituição, separação de poderes e respeito às leis são desconsiderados como se não fizessem parte, senão subsidiariamente e aparentemente, do conceito mesmo de democracia. O que fez Chávez?
Conquistou o poder por intermédio de eleições e nele permaneceu através de referendos que o legitimavam. A esquerda latino-americana e a brasileira, em particular, ressaltaram continuamente este aspecto com o intuito de mostrar a reconciliação do socialismo com a democracia. A imagem socialista-totalitária seria coisa do passado.
Uma vez no poder, Chávez começou a enfraquecer, senão a abolir, as instituições representativas. Primeiro, o Judiciário foi manipulado, com a substituição de juízes por ideólogos e militantes que obedeciam às orientações do Líder Máximo. Ministros foram presos por não seguirem a nova linha de conduta. O Supremo, porém, continuou funcionando em sua nova roupagem totalitária, tendo como função referendar as orientações governamentais. A esquerda clamava, então, que as leis estavam sendo respeitadas por decisão da mais Alta Corte do país. A pantomina era total.
Segundo, o Poder Legislativo foi completamente investido pelos “socialistas”, passando a ser um mero referendador das ordens de Chávez. Transferiu a ele, inclusive, o poder de legislar, investindo-o de “leis delegadas”, de tal maneira que, por atos administrativos, poderia editar e promulgar leis.
Assim sendo, concentrou em sua pessoa o poder de julgar, legislar e governar, abolindo, de fato, a separação de poderes. Fingiu respeitar a democracia, pervertendo-a completamente. Na verdade, aproveitou-se de instrumentos democráticos, como eleições, para subverter a democracia. Eis a novidade do “socialismo do século XXI”.
Para bem assegurar o seu poder, tomou conta das Forças Armadas através do seu aparelhamento por oficiais submissos ao novo regime. A ideologia apoderou-se dos militares, obrigados a jurar “socialismo ou morte”. A bem da verdade, o socialismo está levando à morte de jovens nas ruas de Maduro. Não satisfeito, utilizou a expertise totalitária de Fidel Castro e de seu irmão Raúl, importando especialistas cubanos para, com seus serviços de inteligência, fortalecer os laços “socialistas” das Forças Armadas.
Como se não fosse ainda suficiente, pois o controle deveria ser total, lançou mão da criação das milícias bolivarianas, corpo paraestatal, diretamente armado e controlado por ele, tendo como função aterrorizar a população. Seguiu o exemplo das SA de Hitler, disseminando o medo e a violência entre os cidadãos. Ora, são essas mesmas milícias que estão agora, sob a direção de Maduro, assassinando os manifestantes e os opositores venezuelanos.
O que faz Maduro? Segue os ensinamentos de seu mentor. Ele é apenas um novo elo da mesma lógica totalitária. A diferenciação reside em que a violência tornou-se explícita. A farsa de uma Assembleia Constituinte suprime o Poder Legislativo ainda vigente, que tinha se revigorado por eleições ainda permitidas. A população está na miséria, os supermercados estão desabastecidos, o PIB cai vertiginosamente, a inflação está nas alturas, e o novo governante agora o que mais teme é um processo eleitoral, um referendo. Uma vez tendo sido a democracia subvertida, até o véu cai, com eleições não sendo mais necessárias para a conservação do poder.
A democracia representativa está morta. Maduro prestou homenagens a Fidel em sua tumba. Foi coerente com o assassinato que perpetua de manifestantes. Em seus féretros jaz o socialismo.
* Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul