opinião
Zander Navarro: O fim da agricultura
Ela será substituída por um empreendimento econômico conduzido por ciência e tecnologia
O título não é sensacionalista nem propõe um exercício especulativo de futurologia. De fato, são dois os principais desenvolvimentos, concretos e de grande envergadura, que apontam o desenlace indicado – uma inédita transformação da agricultura. Um deles é mais geral e o outro diz respeito, especificamente, ao caso brasileiro. Não ocorrem apenas na esfera econômica e financeira, pois também se modifica a estrutura produtiva e tecnológica, gerando consequências sociais, às vezes problemáticas. Uma vez aprofundados e irreversíveis nas duas décadas adiante, sem nenhuma dúvida, são desenvolvimentos que mudarão abissalmente a atividade humana que conhecemos como “agricultura” há pelo menos 10 mil anos. E o Brasil, na iminência de se alçar a maior potência mundial ofertante de alimentos, igualmente observará inevitáveis e sísmicas mudanças em seu mundo rural.
Ainda mais decisiva, se examinada por uma lente cultural, será atividade operada com escassa presença de pessoas, gradualmente diluindo a imaginação da sociedade sobre a vida rural e até mesmo esmaecendo o papel da natureza na produção dos alimentos. Ao contrário de algumas sonhadoras previsões, a distância que vincula a origem rural à mercadoria “alimento” deverá ampliar-se notavelmente na percepção dos indivíduos, também em razão das impressionantes inovações no processamento agroindustrial, capaz de ofertar novos produtos em velocidade crescente. No lastro cultural mais entranhado da sociedade, entre os grandes temas de discussão, esse fato gradualmente fará desaparecer a concretude das regiões rurais, a vida social no campo e até o papel da natureza. Na visão dos cidadãos, o bucolismo dos ambientes “naturais” e suas supostas virtudes serão, assim, separados dos espaços da produção.
O primeiro desses “grandes eventos” já está em curso nos sistemas agroalimentares dos países de capitalismo avançado onde o setor ostenta significativo peso econômico, particularmente nos Estados Unidos. Há uma silenciosa, mas espetacular combinação entre a transformação organizacional e a intensificação tecnológica em andamento na operação econômica que intitulamos “agropecuária”. São inúmeros os vetores que conduzem à mudança, dispensando os agricultores, mas exigindo agora agroadministradores que possam decifrar e coordenar a complexidade que se vai estruturando. Na história do capitalismo, como em outros momentos que condensaram múltiplas inovações, são processos que elevam a produtividade geral, ampliam fortemente a produção e eliminam muitas incertezas (enquanto introduzem novos riscos). Como resultado geral, vem se alterando a própria essência da atividade, fazendo-a totalmente distinta de sua imagem milenar.
Muitos são os campos de inovação que promovem esta revolução. São ações que mobilizam a biociência agrícola, especialmente os avanços na genética molecular, os novos produtos em automação e robótica e, sobretudo, o nascimento de uma “agricultura digital”, reconfigurada a partir de bases de dados e altíssima conectividade. São novas técnicas que tornam exponencial a capacidade dos administradores de otimizar os resultados, maximizando o uso dos recursos disponíveis. Se as manchas dos solos diferem entre si, por exemplo, multiplicando o uso de sensores, qual a combinação de água, fertilizantes e controle de pragas e doenças, além de plantas reconfiguradas por edição genômica, que permitirá obter a máxima produção com a mais alta produtividade final – e, portanto, a melhor rentabilidade possível? As respostas concretas já existem, na produção de alguns países.
Sem detalhes adicionais, inclusive sobre as inovações existentes nas demais partes do sistema agroalimentar, mudam assim a estrutura decisória e o “modelo de negócio” da agropecuária. Imagine-se, como curta ilustração, a pecuária de leite, que caminha para o confinamento de alta intensidade, com um único objetivo: obter a máxima lactação diária, descolando-a totalmente da alimentação obtida no campo. Levada ao extremo, a graciosa imagem dos animais comendo preguiçosamente em pastos verdejantes logo se tornará uma fotografia de tempos sem retorno.
Enfim, afirmado cruamente, trata-se de substituir a velha agricultura das decisões intuitivas do passado por um empreendimento econômico de exigências analíticas imensas e desafiadoras, conduzido obrigatoriamente pela ciência de vários campos disciplinares. São dois mundos opostos, e a velha agricultura começa a fazer parte das memórias passadas. É uma parte da economia que vai sendo convertida em mero “serviço” componente do sistema agroalimentar, como todos os demais que constituem as cadeias produtivas. E até a especificidade de serem os processos vivos os que caracterizam a agricultura é essencialidade que gradualmente se tornará irrelevante, pois a ciência está quase “domando a natureza” no processo produtivo.
O segundo grande desenvolvimento, aqui referido apenas de raspão, nos remete ao que é típico do caso brasileiro, diante desse novo contexto. São quase cataclísmicas as projeções antevistas, pois um terço dos nossos agricultores nem sequer sabe ler e em todas as regiões a maioria dos jovens está preferindo deixar o campo. É majoritária, mas muito pobre a população que vive no Nordeste rural, hoje uma região de fraquíssima expansão da moderna agropecuária. O próximo Censo, adicionalmente, mostrará uma concentração ainda maior da riqueza rural, apontando os vencedores das mudanças.
Por essas e outras razões, incluída a inoperância da ação governamental em face dessas gigantescas transformações, o mundo rural do Brasil também vai sendo radicalmente transformado. Em 2040, quem o comparar com os dias de atuais não acreditará que vive no mesmo país em que nós vivemos.
Fonte: opiniao.estadao.com.br
J. R. Guedes de Oliveira: Honorável poeta Ferreira Gullar
Em princípio de outubro de 2015, no 13º. SALIMP – Salão do Livro de Imperatriz, realizei uma palestra sobre a figura de Ferreira Gullar, enaltecendo os seus valores artísticos e contribuindo com o significativo evento, já que o poeta era filho do Maranhão.
Lembrei a todos da importância desta figura, que leva nome em Imperatriz, no “Teatro Ferreira Gullar”, justa homenagem ao intelectual consagrado, da Academia Brasileira de Letras.
Apresentei, em data show, uma retrospectiva de sua vida, suas andanças, seu exílio, sua enorme produção literária e o seu humanismo irradiante. Uma plateia seleta ouviu-me a recitar seus poemas, entrecortados de sua extensa biografia.
Hoje, dia 4, domingo, logo pela manhã, abro a internet e leio os artigos do “blog” do Gilvan Cavalcanti de Mello – leitura diária, palpitante, importante e sempre atualizada. Fico a apreciar, demoradamente, o artigo do poeta: “Solidariedade”. Entre outras coisas que nos dizem respeito e que cala profundamente, o seu espírito construtivo e de visão universal:
“A sociedade não necessita ser irretorquivelmente igualitária, mesmo porque as pessoas não são iguais. Um perna de pau não deve ganhar o mesmo que o Neymar, nem o Bill Gates o mesmo que ganha um chofer de táxi. E por falar nisso, para que alguém necessita ter a sua disposição milhões e milhões de dólares? Para jantar à troca fora? Se ele investir esse dinheiro numa empresa, criando bem e dando emprego às pessoas, tudo bem. Mas ninguém necessita ter dez automóveis de luxo, vinte casas de campo nem dezenas de amantes. Tais fortunas devem ser divididas com outras classes sociais, investidas na formação cultural e profissional das pessoas menos favorecidas, usadas para subvencionar hospitais e instituições para anteder pessoas idosas e carentes. Sucede que só avançaremos nesta direção se pusermos de lado os preconceitos esquerdistas e direitistas, que fomentam o ódio entre as pessoas. Sabem por que Bill Gates deixou a presidência de sua empresa capitalista para dirigir a entidade beneficente que criou? Porque isso o faz mais feliz, dá sentido à sua vida”.
Pois é. Foi assim que Ferreira Gullar terminou o seu estrondoso artigo, que merece toda a nossa admiração e nosso reconhecimento de seu pensamento e da sua ação.
Lido tudo, anotado e refletido, abro as manchetes e, meu espanto total, somado à tragédia chocante e triste dos chapecoenses: falece, hoje, domingo, Ferreira Gullar, aos 86 anos de idade. Perde o Brasil também um poeta que fez história, que dignificou tudo o quanto escreveu.
Louvo a este poeta de envergadura; louvo a sua cadência de homem das letras; louvo o homem sem medo; louvo, mais ainda, o seu grande brilho que ficará entre nós permanentemente.
Aqui, o seu poema “Traduzir-te”, em homenagem póstuma:
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Luiz Sérgio Henriques: Depois do choque
A era Trump abre a possibilidade de se entenderem variadas forças e personalidades
Passada a primeira onda de choque, permanece impossível discutir política em qualquer canto do mundo sem mencionar o resultado eleitoral norte-americano, impensável há apenas alguns meses. Inútil qualquer consolo, como o de que a candidata democrata terminou à frente no voto popular: as idiossincrasias do sistema estavam dadas desde o começo e era com elas que se devia contar para eleger a contendora que prometia dar seguimento ao legado de Barack Obama e garantir um pouco mais de previsibilidade às coisas do mundo.
A “resistível ascensão” de Donald Trump só pode ser explicada por uma multiplicidade dos fatores. Se nos limitarmos à ideia, não de todo errada, de que ele conseguiu canalizar a raiva dos perdedores da globalização, não ultrapassaremos a fronteira da explicação da política pela economia. O mal-estar na globalização, que ora atinge o centro do sistema, tem dimensões valorativas e existenciais, remete à insegurança diante de uma economia-mundo que aparentemente se movimenta por si só, sem controles adequados ou suficientes.
A fórmula, imaginada para estágios anteriores da mundialização, continua eficaz para indicar sinteticamente o dilema contemporâneo: a economia torna-se crescentemente interdependente e só pode ser entendida em seu conjunto. A política, ao contrário, resta basicamente confinada ao espaço nacional, alimentando com isso perigosas fantasias regressistas. Os esforços de construção de realidades supranacionais, acima das “velhas” nações, ou tomam um rumo torto e demagógico, como no caso da integração latino-americana deste início de século, ou se veem submetidos a tensões fortíssimas, como no caso da integração europeia.
Conhecemos com exatidão o poder explosivo de nacionalismos, fanatismos e rancores a ele associados. Basta cancelar o historicamente curto, mas simbolicamente denso, período de construção e expansão dos Estados de bem-estar social para ver a sucessão de confrontos a que tais nacionalismos deram origem, a ponto de se poder falar, até a derrota do nazi-fascismo, de uma só e ininterrupta guerra civil europeia.
Pois bem, o setor regressivo das elites recorre ao repertório “nacional” de sempre, como se enormes carnificinas pudessem ser “narradas” de forma antes heroica do que bárbara, antes épica do que trágica. Por sua vez, as elites economicamente liberais não conseguem dar alguma resposta crível aos problemas de homens e mulheres comuns. Não conseguem dar uma direção intelectual e moral à integração da parte europeia do mundo: aparecem como tecnocracias distantes da cidadania, insensíveis à penúria dos países periféricos de sua própria área, para não falar da ausência de iniciativas que apaguem a “linha de fogo” que ronda o continente, da África à Ásia.
A atitude de Angela Merkel diante dos refugiados de guerra foi uma breve lufada de ar fresco, logo interrompida pelas dificuldades internas e pelos arreganhos da extrema direita. Apesar disso, Merkel lembrou-nos que conservadores podem perfeitamente elaborar uma versão decente do bem comum. Aos desatentos convém dizer que a presidência Obama, do outro lado do Atlântico, representou o mesmo movimento positivo, reinterpretando a liderança americana como soft power e adequando-a, tanto quanto possível, às novas condições, que registram evidente declínio relativo da força econômica e política de seu país.
Interrompidos ou frustrados tais movimentos, restam de pé basicamente a força, a confrontação, a afirmação bruta do próprio interesse. A política democrática passa a conviver com obstáculos difíceis de superar: desaparece, ou fica gravemente ameaçada, a esfera da argumentação racional e dos interesses legítimos, substituída pela dos mitos irracionais e das ideias anacrônicas de nação, raça, etnia. Em última análise, é daí que vai extrair substância o conjunto diversificado de correntes que costumamos unificar, genericamente, com o termo “populismo”.
Parte considerável da esquerda flertou com aventuras desse tipo. Não é preciso de modo algum ir longe no tempo ou no espaço para identificar líderes e partidos que cultivaram efetivamente (como na Venezuela) ou sobretudo retoricamente (como no Brasil) ambições “antissistema”, como se a cotidiana recriação da vida pudesse prescindir das instituições democráticas formais. E não faltaram teóricos de toda parte – afinal, o mundo é um só, a circulação de ideias é fato corriqueiro da vida globalizada – que não só exaltaram o “populismo” latino-americano, como também o incluíram na limitada pauta de exportações da região, como mercadoria dotada do misterioso dom de reativar a luta de classes e abrir caminho para o socialismo ou certa ideia autoritária de socialismo.
Nessa forma de ver as coisas, os populismos de extrema direita conduziriam ao racismo, à xenofobia e à guerra – o que, diga-se de passagem, está basicamente certo, tanto quanto se pode prever. Os de esquerda, não se sabe bem a razão, conduziriam a resultados distintos – a uma “democracia de alta intensidade”, substantiva e não formal, desdenhosa dos valores “liberais”, que, no entanto, particularmente em nossa região e em nosso país já deviam ser patrimônio adquirido depois das experiências ditatoriais.
A emergência da era Trump, com seus desastres anunciados – os muros materiais e espirituais de contenção, o recuo em temas vitais, como energia e clima, a sintonia com líderes “providenciais” –, abre a possibilidade de entendimento entre forças e personalidades da mais variada inspiração, inclusive uma esquerda majoritariamente renovada. Em outros tempos cultivou-se a ideia do diálogo e do respeito, que nos permitiu atravessar o “deserto do real”, preservando os valores das modernas democracias. Os bárbaros parecem estar de novo às portas, o que reatualiza estratégias semelhantes às que nos levaram a vencê-los antes.
Fonte: estadao.com.br
José de Souza Martins: O preço da perversidade
Um conjunto relativamente extenso de questões está vinculado à inesperada eleição do republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, derrotando no colégio eleitoral Hillary Clinton, democrata, que teve a maioria dos votos populares. Questões relativas ao fato de que estas eleições americanas representaram o ápice de um processo político mundial de redefinição da própria política, de anulação dos sujeitos tradicionais e típicos da concepção de política inaugurada com a Revolução Francesa, da própria concepção de povo. As transformações neste episódio não dizem respeito apenas à sociedade americana e ao capitalismo que ela representa e centraliza.
Na campanha, Trump não falou em nome de uma doutrina política nem mesmo em nome de seu partido. Falou em nome da multidão que não se identifica com os canais históricos de expressão da vontade política. Falou em nome da antipolítica, de um capitalismo que não é o capitalismo da Bolsa, de quem especula e ganha sem trabalhar, mas sim o capitalismo do bolso, de quem só pode ganhar se tiver trabalho. Ainda assim, esses eleitores são os que pensam o trabalho no marco da possibilidade de ascensão social, de negar-se sendo o outro que a sociedade de consumo promete. Trump falava sério. Não é estranho que seu primeiro discurso tenha sido um discurso de teor keynesiano, o trabalho gerador de emprego e renda para reincluir os esquecidos. Um plausível discurso rooseveltiano. Mas há um milenarismo bufo em sua fala populista e nacionalista, que não houve em outros atores bufos da política contemporânea, como Bóris Yeltsin, que demoliu a União Soviética sem propiciar sua superação. Ou como Berlusconi, melancólica expressão da decadência da Itália culta e civilizada.
O voto desta eleição americana foi contra o que representa Wall Street, mas não foi contra o que representa o Tio Patinhas. A personagem decisiva no eleitor decisivo foi, mesmo, a classe média do Pato Donald, com sua frustração e sua ira acumuladas nas várias décadas da globalização que em vários lugares anulou identidades nacionais, aniquilou regras históricas de integração social e de atuação política, que aplainou as fantasias da igualdade jurídica na competição com base na desigualdade econômica. Não há aí nenhuma novidade: sob a máscara da cidadania perfeita a sociedade moderna tem sido a sociedade da iniquidade perfeita, a dos ardis que dizem a cada um o que é não sendo.
As pesquisas eleitorais enganaram os analistas costumeiros munidos de elaboradas técnicas de adivinhação do que vai acontecer. Só o Los Angeles Times, pró-Clinton, associado à Universidade do Sul da Califórnia, acertou, fazendo suas previsões com base em minúcias de mentalidade e de comportamento eleitoral e político, supostamente irrelevantes, que acabariam decisivas no resultado final das eleições. Mais antropologia e sociologia do que ciência política.
Nesse assunto, as ciências sociais se equivocaram ao deixar de lado o que é próprio do homem comum e cotidiano dos tempos atuais. E, ao deixarem de lado em suas análises a extensa categoria de pessoas que nem são ricas nem são pobres, motivadas por carências próprias, abandonadas pelo classificacionismo pseudo-sociológico que conhece por imputação e não por investigação, mais dedutivo do que indutivo, mais para confirmar o supostamente sabido do que para descobrir o não sabido. Deixaram de lado as multidões tolhidas e silenciadas, as vítimas da manipulação política e ideológica para as quais não há lugar no catálogo de anomalias relevantes da sociedade atual. Caso do desemprego, dos favorecimentos falsamente corretivos da pobreza, os recursos de maquiagem dos defeitos e feiuras do mundo contemporâneo. Caíram nas ilusões que inventaram.
Isso tem acontecido também aqui no Brasil, os analistas perdidos mais entre acusar do que explicar, aprisionados pela estreiteza de considerações pouco convincentes sobre direita e neodireita. Não será por aí que proporão a compreensão do que vem acontecendo no País, especialmente desde as manifestações de rua de 2013, até a cassação de Dilma Rousseff e ainda o que virá pela frente. Criaram o artifício do neo-isto, neo-aquilo, que acaba sendo neo-coisa-nenhuma: neoliberalismo, neodireitismo, neoesquerdismo; neopentecostalismo político.
Na verdade, lá e cá, os eleitores destas manifestações eleitorais recentes opuseram-se ao capitalismo da ordem social regulada pelos auxílios, benefícios e favorecimentos aos desvalidos e marginalizados, os sobrantes, desempregados e subempregados, os estrangeiros clandestinos e baratos, à pobreza conveniente e lucrativa.
Ao capitalismo de remendos e curativos, de caridades compreensíveis mas iníquas do ponto de vista dos que sucumbem sob o peso de taxações, de tributações que mantêm bolsas e cotas, à violação do princípio da igualdade e da competição, a isso reage eleitoralmente a vítima. Mandaram o recado: não se corrige perversidades econômicas com injustiças.
Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br
Jose Roberto de Toledo: Pesadelo do PT só começou
Iniciada em 2015, a noite que deu pesadelos aterrorizantes ao PT em 2016 não deve acabar antes de 2018 – com chance de se prolongar ainda mais se os dirigentes petistas não acordarem logo. Cientistas políticos reunidos em seminário da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo na semana passada apresentaram estudos distintos com a mesma conclusão: a bancada de deputados federais do PT deve diminuir significativamente em 2018.
O principal motivo é a redução inaudita de prefeitos e vereadores sofrida pelo partido em 2016. Artigo ainda a ser publicado pelos professores George Avelino e Ciro Biderman confirma, estatisticamente, que há uma forte associação entre a quantidade de prefeitos eleitos por um partido e o número de deputados federais que a mesma legenda elege dois anos depois.
A diferença entre os candidatos que conseguem se eleger para a Câmara daqueles que ficam pelo caminho é que eles obtêm votações expressivas em várias microrregiões do Estado. O jeito de conseguirem isso é garantir o apoio de atores políticos locais que lhes emprestam sua credibilidade nos respectivos municípios. Os principais atores são prefeitos e vereadores, em geral do mesmo partido que ele. Quanto mais apoiadores, mais votos.
O PT terá 60% menos prefeitos a partir de 2017 e governará uma população 85% menor do que governa hoje nos municípios. A derrocada foi consequência de uma votação 60% menor na comparação entre os primeiros turnos de 2012 e 2016: foram 10 milhões de votos a menos para os petistas em quatro anos. Nenhum grande partido brasileiro sofreu uma queda tão abrupta de sua base municipal desde o advento do pluripartidarismo.
“Certamente vai reduzir o número de cabos eleitorais locais relevantes dispostos a apoiar os candidatos do PT. Isso torna as previsões de redução da bancada bem razoáveis”, resume Avelino.
Serão 384 prefeitos a menos para fazer campanha para os atuais 58 deputados federais petistas. Em nenhum Estado eles terão reeleição fácil, mas a tarefa deverá ser ainda mais difícil em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde o partido perdeu proporcionalmente mais prefeitos.
Na eleição para vereador não foi diferente. O professor Jairo Nicolau, da UFRJ, analisou a votação dos petistas candidatos às câmaras municipais, por Estado e porte de município. Em praticamente todos os segmentos analisados o PT regrediu ao patamar de 2000 ou anterior. Em comparação à eleição de 2016, a votação total dos candidatos a vereador petistas caiu à metade.
“O quadro é de uma derrota avassaladora”, resume Nicolau, que prevê: “Como existe uma associação estatística entre o voto para vereador e deputado federal, prevejo, mantidos constantes outros fatores, que a bancada do PT na Câmara dos Deputados volte ao padrão dos anos 1990. Entre 30 e 40 deputados federais.”
Na Câmara de hoje, isso colocaria o PT num patamar entre o PSB (33) e o PR (42). Ou seja, de segunda maior bancada (perde apenas para o PMDB), se tornaria a quinta, sexta ou sétima. Perderia peso nas votações em plenário, o comando de comissões importantes e a relatoria de projetos relevantes. Além disso, em 2020 e 2022 os candidatos do PT teriam direito a menos tempo de propaganda na TV e menos dinheiro do Fundo Partidário.
Se o PT perde, quem ganha? A resposta é menos óbvia do que pode parecer. “Essa redução na bancada do PT provavelmente nāo beneficiará nenhum partido em especial, contribuindo para aumentar a fragmentação partidária”, diz Avelino, da FGV-SP.
Isso já aconteceu em 2016. Os 18 menores partidos pularam de 336 para 508 prefeituras. De 10,5 milhões, passarão a governar 17 milhões de eleitores. Ou seja: a tendência é os próximos presidentes da República terem que administrar uma base de apoio parlamentar cada vez mais fragmentada, volátil e cara.
Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br
Frágil esperança em Caracas
Diálogo entre o chavismo e a oposição é um primeiro passo, mas tem de apresentar resultados concretos
Apesar da esperançosa arrancada no início deste mês, o diálogo entre o Governo e a oposição venezuelana precisa ganhar forma o quanto antes em soluções viáveis e concretas para o complicadíssimo bloqueio institucional que a Venezuela sofre há quase um ano, agravado pela penúria material com que a população é castigada.
Infelizmente, a situação se degradou tanto durante o último ano que as meras declarações de boas intenções não são suficientes. Durante muito tempo Nicolás Maduro se negou não só a entabular qualquer tipo de diálogo com uma oposição que desclassificou sistematicamente como também levou a crise a um extremo perigosíssimo ao não reconhecer a autoridade legítima da Assembleia Nacional, ao torpedear a convocação legal de um referendo revogatório contra si e ao manter injustificadamente dirigentes da oposição na prisão ou sem permissão para sair do país.
Fonte: brasil.elpais.com
Luiz Carlos Azedo: A grande corrente
O fenômeno das eleições municipais tende a se repetir nas eleições de 2018
Como nos oceanos, a política também tem ondas, marés e correntes. Não permanece parada. As ondas são um fenômeno físico que ocorre na superfície das águas, quando se aproximam da costa se dobram e se quebram. Às vezes, podem ganhar grandes dimensões, como ocorre normalmente no Havaí (EUA) e, eventualmente, nas grandes ressacas. Nos tsunamis, são gigantescas, porque são provocadas nas profundezas do oceano pelo deslocamento das placas tectônicas, erupção de vulcões ou terremotos.
As marés são movimentos de avanço e recuo das águas, cuja amplitude é provocada pelas forças gravitacionais do Sol e da Lua. Quanto mais próxima a Lua, maior o movimento de preamar e baixa-mar, duas vezes por dia. Isso ocorre na lua nova e na lua cheia. Já as correntes marítimas são provocadas pelo vento e pela rotação da Terra; por isso, deslocam-se em direções contrárias nos hemisférios Norte, no sentido horário, e Sul, no sentido anti-horário. Foram elas que permitiram os grandes descobrimentos e a globalização do comércio, a partir da chamada Carreira das Índias. Há correntes quentes, que se originam nas regiões tórridas e se dirigem às zonas polares e frias, que se deslocam das zonas polares em direção à zona intertropical da Terra.
Assim como a navegação marítima, na política também é importante distinguir os movimentos das ondas, marés e correntes. Por exemplo, saber se as recentes eleições municipais foram resultado de uma onda ou maré ou apontam a existência de uma grande corrente, que direciona-se para mares nunca antes navegados. Essa dúvida certamente já instiga o pensamento dos cientistas políticos, mas parece que não acontece a mesma coisa com os políticos. Eles tendem a ver o que correu como uma simples maré, que vai e volta num período relativamente curto. Talvez, para os que naufragaram nas urnas, uma grande onda de azar, no máximo um tsunami político. Pode ser que o fenômeno eleitoral seja uma grande corrente que pode arrastar a todos das águas quentes e confortáveis de um balneário para regiões geladas e inóspitas da política, onde a sobrevivência é quase impossível.
O que aconteceu no Brasil nas eleições deste ano tem características muito particulares, marcadas pela Operação Lava-Jato, a recessão e o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Mas pode ser que o fenômeno não seja apenas nacional. Basta olhar para o que acontece com os nossos vizinhos, principalmente, a Argentina e a Venezuela, mas também o Chile e a Colômbia, ou para outros hemisférios, principalmente a Grécia, a Espanha, a Inglaterra e, agora, os Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump. O impasse fiscal dos estados do Ocidente, a crise de representação dos partidos tradicionais, a crise humanitária no Mediterrâneo, a desconstrução do sujeito moderno, a ultrapassagem da sociedade industrial, tudo junto e misturado, colocam em xeque a política tal como a conhecemos no século passado.
No Brasil, se considerarmos que a falta de sintonia entre os nossos grandes atores políticos e a sociedade são um fenômeno isolado, já teremos muitas dores de cabeça sobre o porvir. Mas, se o que ocorrer for parte de uma grande tendência, como as correntes marítimas, podemos supor que o fenômeno das eleições municipais tende a se repetir nas eleições de 2018, ou seja, não haverá refluxo da maré ou bonança após a borrasca. Na verdade, o fenômeno se repetirá numa outra escala, bem maior. Há uma grande corrente arrastando o barco da política para bem longe de onde se pretendia ir.
Entretanto, apesar de todos os indícios, os grandes partidos ainda não se deram conta do que está acontecendo e caminham para as regiões inóspitas por causa disso. Alguns tentam neutralizar a Operação Lava-Jato, como se ela fosse apenas uma grande onda havaiana. Os mais pessimistas, um tsunami. Outros acreditam que podem neutralizar a corrente ressuscitando velhos discursos nacionalistas, como o contra Trump. E ainda os que querem resolver o problema cartelizando a política com uma reforma partidária e eleitoral, sem entender que isso vai apenas aumentar a distância em relação à sociedade.
O problema é que o ambiente de descrença generalizada da sociedade em relação aos partidos e aos políticos não vai se resolver com nada disso, pode até aumentar. É aí que surgirão salvadores da pátria, tecnocratas, populistas de direita, toda uma fauna de candidatos que falarão o que o povo quer ouvir, sem saber como e quando poderão resolver os problemas reais. A política brasileira precisa desesperadamente se reinventar.
Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br
Ferreira Gullar: Fim do comunismo gerou vazio ideológico que precisa ser preenchido
O "Manifesto Comunista", escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, deu início a uma visão crítica do regime capitalista. Assim, mudaria a história humana, para o bem e para o mal, durante o último século e meio.
Para o bem porque pôs à mostra a exploração do trabalho humano, posta em prática pelo capitalismo; para o mal, porque, em nome de uma suposta igualdade, criou um regime autoritário e às vezes cruel.
É verdade, porém, que o regime soviético, por excluir de si a exploração capitalista, acendeu no espírito dos que a repeliam uma utopia que, ali, conforme acreditavam, começava a realizar-se.
A morte de Lênin e a ascensão de Stálin tornaram o regime soviético mais sectário e repressivo, levando à divisão da intelectualidade ocidental de esquerda, quando uma parte dela se tornou trotskista.
De qualquer modo, a imagem da URSS foi favorecida pelo surgimento do nazismo e a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Esse fato obrigou uma aliança dos países capitalistas com o regime stalinista contra a Alemanha de Adolf Hitler. Terminada a guerra, derrotado o nazismo, o conflito ideológico ressurgiu designado como Guerra Fria.
Após o desgaste provocado pelo stalinismo, o marxismo, no campo ideológico, ganhou novo fôlego com a Revolução Cubana, em 1959.
Em vários países latino-americanos, o sonho comunista renasceu com o surgimento de grupos guerrilheiros. A presença de um país comunista a poucos quilômetros do território norte-americano acirrou o conflito ideológico entre as duas potências rivais. Os arsenais nucleares, porém, de um e do outro lado, impediram o conflito armado.
Não obstante, os norte-americanos, temendo o surgimento de outras Cubas na América Latina, acionaram seus recursos políticos e militares para instaurar ditaduras anticomunistas nos países onde o perigo era maior.
Os guerrilheiros foram praticamente todos eliminados pela repressão militar, o que, se por um lado deteve a luta armada, por outro atraiu a solidariedade de grande parte dos latino-americanos, ressentidos com a truculência dos regimes militares. Em função disso, surgiram partidos que, embora atuando na legalidade, continuavam a alimentar o sonho da revolução anti-imperialista.
Sucedeu que, naquele período, o regime soviético –principal potência militar e ideológica do sistema–, começou a dar sinais de mudanças que culminariam em seu colapso.
Esse fato, que teve importância decisiva no processo político-ideológico de quase todos os países, ganha, na América Latina, uma conotação particular: o projeto revolucionário anti-imperialista, que ali surgira, não tinha mais condições de exibir, como objetivo, um regime que fracassara.
É então que nasce o socialismo bolivariano, inventado por Hugo Chávez e que, na verdade, é um tipo novo de populismo e de que seriam outros exemplos os governos dos Kirchner na Argentina, de Evo Morales, na Bolívia, de Rafael Correa, no Equador, e de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil.
Esse populismo chegou a despertar o entusiasmo de setores intelectuais e estudantis, que não aceitam admitir que o sonho da sociedade justa tenha se extinguido. É certo que, em cada um desses países, o populismo adquiriu caráter específico, ainda que, em todos eles, estivessem presentes argumentos ideológicos da exploração dos pobres pelos ricos e da identificação do imperialismo norte-americano como o inimigo principal a ser combatido.
Mas essa pregação político-ideológica não se sustentou por muito tempo –a não ser em setores restritos da população. Do mesmo modo que os próprios governos populistas, que entraram e crise e se acabaram ou estão a caminho de finarem.
É verdade que esse populismo não tinha a riqueza ideológica do marxismo que, sem dúvida, foi a utopia dominante do século 20. Por isso mesmo, o fim do regime comunista provocou um vazio ideológico, que necessita ser preenchido, uma vez que a sociedade humana, sem utopia, torna-se inviável.
‘Trumpeconomics’, um salto no vazio
Programa econômico de Trump coloca em perigo o comércio mundial
O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, apresentou um programa econômico contraditório, mal-alinhavado e construído fundamentalmente sobre as ideias, claramente nocivas para o crescimento econômico norte-americano e mundial, do protecionismo mais arcaico e da negação do multilateralismo. Não surpreende, pois, que hoje muitos economistas — e também mercados e investidores — queiram se proteger por trás do argumento, fraco mas plausível, de que as declarações incendiárias de campanha e as propostas desatinadas tropeçarão em breve no realismo que qualquer ação de governo impõe. A pergunta pertinente é se o isolacionismo hostil defendido pelo candidato Trump é compatível com uma economia globalizada onde o presidente Trump teria que operar.
Existem razões para um otimismo moderado. O protecionismo proposto pelo candidato, suas investidas contra a globalização e suas ameaças de tarifas e barreiras são ideias de difícil execução. Não é possível desvencilhar-se dos acordos econômicos e ambientais firmados pelos EUA, e dentro do Partido Republicano tampouco existe um acordo monolítico sobre essa neurose protecionista que afeta o presidente eleito. Isso embora seja evidente que o instrumento comercial decisivo para a Europa, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), sofrerá importantes atrasos ou um congelamento quase definitivo.
O protecionismo é um grave risco para os EUA, a zona do euro e os países emergentes
A concepção protecionista de Trump multiplica o risco de uma recessão global justamente porque cerceia a raiz de qualquer possibilidade de crescimento do comércio internacional; sem o TTIP, a zona do euro perde um instrumento básico para recuperar taxas de crescimento, emprego e renda do euro. Para os países emergentes, as expectativas são ainda piores: dependendo de cada caso, o protecionismo planejado atrasará suas respectivas recuperações durante trimestres ou até mesmo anos.
Como os interesses das empresas norte-americanas no mundo vão além do fundamentalismo isolacionista do novo presidente, é provável que os lobbies intercedam para mitigar as arestas mais radicais do discurso. Convém contrastar a violenta antiglobalização de Trump com a experiência dos que tomariam as decisões econômicas reais no novo Governo. Os temores fatalistas gerados por programas incendiários talvez sejam mitigados depois, quando se leva em conta que a nova equipe econômica tende mais ao realismo. Ainda que as ameaças lançadas contra Janet Yellen, a presidente do Federal Reserve (o banco central norte-americano), não sinalizem nada positivo.
Washington não pode nem deve romper seus compromissos econômicos internacionais
Os mercados mundiais, no momento, optaram por esperar e ver o que acontece. Após uma reação inicial de temor, os investidores ponderam que as propostas do presidente eleito não são disparatadas quando se leva em conta o crescimento econômico interno, mas são contraditórias. Trump propõe ao mesmo tempo reduzir os impostos — algo que Reagan fez com maus resultados, embora a economia vudutenha atraído seguidores na Europa e, sobretudo, na Espanha — e desenvolver um ambicioso plano de investimento em infraestrutura. Gastar mais dinheiro contando com menos receita implica, de forma imediata, elevar o déficit e o endividamento do país; é muito elevada a probabilidade de que sejam necessárias novos aumentos de impostos no médio prazo. O plano estratégico carece de nuances. Uma aposta no petróleo e no carvão é simplesmente regressiva, pois solapa a criação de postos de trabalho com maior valor agregado nas novas energias.
Há outra consequência previsível: as taxas de juros terão que subir (nova pressão sobre a Fed) e também terá de haver uma apreciação do dólar. Para a Europa, o efeito pode ser uma melhora na competitividade — num mercado mundial não protecionista — e, se a expansão fiscal e monetária consolidar o crescimento americano, um incentivo poderoso para que Bruxelas, Berlim e Frankfurt aceitem finalmente a expansão fiscal.
A trumpconomics parece hoje um perigoso salto no vazio. Rompe a fraca relação do comércio mundial, cujo fortalecimento era uma das esperanças para uma recuperação mais pujante; materializa a ameaça de uma guerra comercial entre as áreas monetárias; quebra o ajuste gradual das taxas de juros dos EUA, tendência que era — e já é — um reconhecimento dos compromissos de Washington com a economia global; expõe o mundo a uma nova recessão e propõe o agravamento da desigualdade nos EUA. Washington não pode nem deve se retirar dos compromissos com o equilíbrio econômico geral e com a arquitetura das instituições multilaterais. Essa é a ameaça iminente que Trump representa.
Fonte: brasil.elpais.com
Cai um muro, ergue-se outro
Há 27 anos os alemães derrubaram o muro de Berlim com as próprias mãos. Nesta quarta, os EUA ergueram outro
Neste dia 9 se completam 27 anos que milhares de alemães derrubaram, com as próprias mãos, o muro que por mais de duas décadas dividiu Berlim entre oriental e ocidental. A marca visível de uma guerra fria que incentivou ditaduras e repressão política pelo mundo. E nesta quarta, justamente quando se comemora o aniversário da queda do muro de Berlim, é eleito nos Estados Unidos um presidente que propõe construir uma nova muralha de mais de 3 mil quilômetros de extensão na fronteira entre os Estados Unidos e o México. O objetivo de Donald Trump é conter a imigração ilegal de latino-americanos. A obra, orçada em cerca de 8 bilhões de dólares, seria paga pelo governo mexicano. Para isso, Trump planeja bloquear a transferência de dinheiro de imigrantes ilegais dos EUA para o México até que o governo do país vizinho concorde em arcar com o custo da obra.
O discurso contra os imigrantes hispânicos ocorre num momento de crise econômica e falta de empregos e rendeu muitos votos da classe média branca ao bilionário norte-americano. Mas entre o discurso radical de campanha e a realidade existe um fosso enorme. Uma distância que, se não for respeitada, colocará o mundo de volta ao seu pior passado. Um confronto não ideológico, como foi o da extinta União Soviética contra os Estados Unidos, mas da perseguição das minorias como fez Hitler com os judeus na Alemanha nazista. É bom lembrar que Trump também defendeu a proibição da entrada de muçulmanos no país, a vigilância das mesquitas pelo serviço de inteligência e o uso da tortura em suspeitos de terrorismo para arrancar confissões de supostos atentados.
Mas até onde Donald Trump está realmente disposto a investir nessa verdadeira guerra interna contra os imigrantes? Até que ponto, por exemplo, ele irá avançar na radicalização contra a colônia latina que hoje representa mais de 55 milhões de pessoas? Convenhamos: não seria prudente para um governo em início de mandato e cercado de desconfiança internacional enfiar a mão nessa cumbuca. Principalmente depois que ele obteve parte dos votos de hispânicos em estados como a Flórida, que acabaram por garantir sua vitória no país. Trata-se de um eleitorado latino conservador e religioso, que não raro é machista, homofóbico e contra o aborto. E, portanto, alinhado com o pensamento do novo presidente.
Por tudo isso, não acredito que Trump irá cumprir a promessa bizarra da construção física de um muro. Mas acho bem plausível que ele, com suas políticas públicas, amplie ainda mais o muro invisível de preconceitos e de exclusão contra os latinos na sociedade norte-americana. Daqui para frente vai ser bem mais difícil para os hispânicos tentarem a vida nos Estados Unidos. E mais difícil ainda para os ilegais permanecerem no país. Mas quem sabe essa não seja a janela que se abre para os latino-americanos começarem um novo sonho em seus próprios países. Agora, gostem ou não, o futuro é aqui nestas outras Américas, Central e do Sul.
Mario Vargas Llosa: O cidadão raivoso
Nos últimos anos proliferam as mobilizações movidas pela raiva dos cidadãos. Algumas são positivas, mas não sempre evoluem na direção adequada
O jornalista alemão Dirk Kurbjuweit, da Der Spiegel, inventou alguns anos atrás a expressão Wutbürger, que significa “cidadão raivoso”, e no The New York Times de 25 de outubro Jochen Bittner publica um interessante artigo em que afirma que a raiva que em certas circunstâncias mobiliza amplos setores de uma sociedade é um fenômeno com duas faces, uma positiva e uma negativa. Segundo ele, sem esses cidadãos raivosos não teria havido progresso, nem seguridade social, nem trabalho remunerado de forma justa, e ainda estaríamos no tempo das satrapias medievais e da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, foi uma epidemia de raiva social que espalhou corpos decapitados pela França do Terror e que, nos nossos dias, acabou levando ao brutal retrocesso que o Brexit significa para o Reino Unido ou que fez com que exista na Alemanha um partido xenófobo, ultranacionalista e antieuropeu –o Alternativa pela Alemanha – que, segundo as pesquisas, conta com o apoio de nada menos do que 18% do eleitorado. Acrescenta, ainda, que o melhor representante do Wutbürger nos Estados Unidos é o inapresentável Donald Trump, além do surpreendente apoio com que ele conta.
Eu gostaria de acrescentar alguns outros exemplos recentes de uma “raiva positiva”, a começar pelo caso do Brasil, a respeito do qual, a meu ver, houve uma interpretação enviesada e falsa da defenestração de Dilma Rousseff da Presidência. Esse fato foi apresentado como uma conspiração da extrema direita para acabar com um Governo progressista e, sobretudo, impedir o retorno de Lula ao poder. Não é nada disso. O que mobilizou vários milhões de brasileiros e os levou a sair para as ruas em manifestações maciças foi a corrupção, um fenômeno que havia contaminado toda a classe política e do qual se beneficiavam igualmente líderes da esquerda e da direita. Ao longo dos últimos meses, foi possível observar como a foice do combate à corrupção se ocupou de colocar na cadeia, igualmente, parlamentares, empresários, dirigentes sindicais e associativos de todos os setores políticos, um fato a partir do qual tudo o que se pode esperar é uma regeneração profunda de uma democracia que a desonestidade e o espírito de lucro haviam infectado até chegar ao ponto de provocar uma bancarrota nacional.
Talvez ainda seja um pouco cedo para comemorar o ocorrido, mas minha impressão é de que, entre ganhos e perdas, a grande mobilização popular no Brasil foi um movimento mais ético do que político e extremamente positivo para o futuro da democracia no gigante latino-americano. É a primeira vez que isso acontece; até agora, as mobilizações populares tinham objetivos políticos –protestar contra os abusos de um Governo e a favor de um partido ou um líder– ou ideológicos –substituir o sistema capitalista pelo socialismo–, mas, neste caso, a mobilização tinha como objetivo não a destruição do sistema legal existente, mas a sua purificação, a erradicação da infecção que o envenenava e que podia acabar com ele. Embora tenha conhecido uma trajetória diferente, não é algo muito distinto daquilo que aconteceu na Espanha: um movimento de jovens atiçados pelos escândalos de uma classe dirigente que causou em muitos a decepção com a democracia e os levou a optar por um remédio pior do que a doença, ou seja, ressuscitar as velhas e fracassadas receitas do estatismo e do coletivismo.
O que mobilizou vários milhões de brasileiros e os levou a sair para as ruas em manifestações maciças foi a corrupção
Outro caso fascinante de “cidadãos raivosos” é o que vive a Venezuela hoje. Em cinco ocasiões, o povo venezuelano teve a possibilidade de se livrar, por meio de eleições livres, do comandante Chávez, um demagogo pitoresco que oferecia “o socialismo do século XXI” como a cura para todos os males do país. A maioria dos venezuelanos, aos quais a ineficiência e a corrupção dos Governos democráticos levaram a se desencantar com a legalidade e a liberdade, acreditou nele. E pagou caro por esse erro. Por sorte, os venezuelanos perceberam isso, retificaram sua visão, e hoje há uma esmagadora maioria de cidadãos –como mostraram as últimas eleições para o Congresso– que pretende consertar aquele equívoco. Infelizmente, já não é tão fácil. A camarilha governante, aliada à nomenclatura militar bastante comprometida com o narcotráfico e à assessoria cubana em questões de segurança, enquistou-se no poder e está disposta a defendê-lo contra ventos e marés. Enquanto o país se afunda na ruína, na fome e na violência, todos os esforços pacíficos da oposição, valendo-se da própria Constituição instaurada pelo regime, para se livrar de Maduro e companhia se veem frustrados por um Governo que ignora as leis e comete os piores abusos –incluindo crimes– para impedi-lo. Ao final, essa maioria de venezuelanos acabará se impondo, é claro, como aconteceu com todas as ditaduras, mas o caminho ficará semeado de vítimas e será muito longo.
Seria o caso de comemorar o fato de que não existem apenas cidadãos raivosos negativos, mas também os positivos, como afirma Jochen Bittner? Minha impressão é de que é preferível erradicar a raiva da vida dos países e procurar fazer com que esta se dê dentro da normalidade e da paz, e que as decisões sejam tomadas por consenso, por meio do convencimento ou do voto. Porque a raiva muda de direção muito rapidamente; de bem-intencionada e criativa, pode passar a ser maligna e destrutiva, caso a direção do movimento popular seja assumida por demagogos, sectários e irresponsáveis. A história latino-americana está impregnada de muita raiva, e, embora esta se justificasse em muitos casos, quase sempre ela se desviou de seus objetivos iniciais e acabou gerando males piores do que os que pretendia remediar. É um tipo de situação que teve uma demonstração explícita com a ditadura militar do general Velasco, no Peru dos anos sessenta e setenta. Diferentemente de outras, ela não foi de direita e sim de esquerda, e implantou soluções socialistas para os grandes problemas nacionais, como o feudalismo rural, a exploração social e a pobreza. A nacionalização das terras não beneficiou em nada os camponeses, mas sim às gangues de burocratas que se dedicaram a saquear as fazendas coletivizadas, e quase todas as fábricas que o regime nacionalizou e confiscou foram à falência, aumentando a pobreza e o desemprego. No fim, foram os próprios camponeses que começaram a privatizar as terras, e os operários das indústrias de farinha de peixe foram os primeiros a pedir que as empresas arruinadas pelo socialismo velasquista voltassem para as mãos da iniciativa privada. Todo esse fracasso teve um efeito positivo: desde então, nenhum partido político no Peru se atreve a propor a estatização e a coletivização como uma panaceia social.
Seria o caso de comemorar o fato de que não existem apenas cidadãos raivosos negativos, mas também os positivos?
Jochen Bittner afirma que a globalização favoreceu, acima de tudo, os grandes banqueiros e empresários, e que isso explica, embora não justifique, o ressurgimento de um nacionalismo exaltado como aquele que transformou a Frente Nacional em um partido com chances de vencer as eleições na França. É muito injusto. A globalização trouxe enormes benefícios para os países mais pobres, que agora, se souberem aproveitá-la, poderão enfrentar o subdesenvolvimento com mais rapidez e melhor do que no passado, como mostram os países asiáticos e os países latino-americanos –caso do Chile, por exemplo– que, ao abrirem suas economias para o mundo, cresceram de forma espetacular nas últimas décadas. Parece-me um erro muito grave acreditar que progresso significa combate à riqueza. Não, o inimigo a ser eliminado é a pobreza, e também, é claro, a riqueza ilícita. A interconexão do mundo graças à lenta dissolução das fronteiras é uma coisa boa para todos, em especial para os pobres. Se ela prosseguir e não se afastar do caminho certo, talvez cheguemos a um mundo em que já não será preciso haver cidadãos raivosos para que as coisas melhorem.
Fonte: brasil.elpais.com
Alberto Aggio: As múltiplas vigências do populismo
Foi Isaiah Berlin que, em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo. Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em punho, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência se tivesse dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar desse imenso déficit analítico, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.
A pré-história do conceito registra que o neologismo nasceu da tradução para o inglês do movimento narodnik na Rússia da segunda metade do século XIX. No mesmo período, ele também seria utilizado, em menor escala, para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no hinterland norte-americano. Depois da Rússia, a América Latina é a “grande pátria do populismo”, escreveu José Aricó. Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser a denominação de um período da sua história.
Como conceito, o populismo resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democrática que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identidade.
O populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas, na América Latina e no mundo. Enquanto governos ou regimes, o populismo orientou sua política para a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O populismo promoveu a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente. Se aprofundarmos essa leitura, a “era do populismo” poderia ser compreendida por meio da categoria gramsciana da “revolução passiva”, abrindo novas perspectivas de interpretação.
Seja como for, o populismo interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo era, no fundo, uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.
A história tratou de questionar essa interpretação. A luta política contra os regimes autoritários, especialmente no Brasil, deslocou o populismo do centro da política latino-americana, recusou a centralidade do Estado e promoveu a autonomia da sociedade civil em sua dinâmica de expansão da cidadania. No plano mundial, a globalização alterou a relação entre política e mercados. Tudo isso parecia enterrar definitivamente o populismo como um constructo ideológico passível de ser mobilizável apenas na “era dos Estados Nacionais”, mas anacrônico no contexto de globalização. Nessas circunstâncias, a política democrática começava a agregar novos valores à “revolução passiva”, agora em registro positivo, invertendo os vetores de sua orientação, com a mudança dirigindo a conservação.
A trajetória do populismo no século XX foi, em certo sentido, democratizadora, ainda que, em geral, avessa ao constitucionalismo e ao liberalismo. Contudo, a partir do início do século XXI, a mesma conjuntura que viu o avanço das amplas liberdades, do pluralismo e da alternância de poder nas democracias latino-americanas recém-saídas do autoritarismo também produziu uma espécie de “revanche do populismo” que, hoje, se expressa na moldura do bolivarianismo. Nela se supõe a emergência de uma forma de política na qual a relação entre governantes e governados abriria passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. O populismo do século XXI busca uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos.
Para Laclau, a razão populista e a razão política são idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. Essa radicalização contraposta à modernidade, avessa ao individuo e sua expressão autônoma, que dá sustentação ao populismo do século XXI, sintetizada por Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, como “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”.
Laclau realiza uma simbiose entre a teoria do populismo e as expectativas decantadas pelo marxismo quanto a uma revolução promotora da unificação, como dissemos acima, entre a razão do povo e a razão política. Por isso, faz sentido ele afirmar que hoje “há um fantasma que assombra a América Latina: esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx é imediatamente reconhecível e pode-se deduzir que Laclau pensa em reservar ao “populismo atual” um lugar idêntico ou semelhante ao que Marx imaginava para o comunismo na Europa dos idos de 1848.
Mas, ao contrário de Laclau, pelo menos até agora, o que se pode anotar é que o populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Hoje, no interior da moldura do bolivarianismo, nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta os direitos humanos, suprime as liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas. Onde a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência é maior.
Alberto Aggio é historiador e professor titular da UNESP
Fonte: revistasera.info