Operação Mãos Limpas
Luiz Sérgio Henriques: Democratas de esquerda – a hora e a vez?
A esquerda brasileira gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus
O quadro partidário em ruínas e o destino incerto de tantos personagens de primeiro plano tornam particularmente opaca a cena pública a pouco mais de um ano de eleições gerais. Não há muitos termos de comparação para nossas agruras e a referência inevitável para este nó aparentemente insolúvel entre questões judiciais e questões políticas continua a ser a Operação Mãos Limpas, italiana, na década final do século passado (na foto, Antonio di Pietro, o procurador da República encarregado do caso).
Diferentemente do caso brasileiro, em que partidos frouxamente organizados conduziram a transição e dominaram o poder central até 2002, a Primeira República Italiana, que nasceu no segundo pós-guerra, era uma República de partidos de massa, dois dos quais se tornaram reconhecidos até fora do país: a Democracia Cristã (DC) e o Partido Comunista (PCI). Ambos portavam visões de mundo comunitaristas, não necessariamente antagônicas, admiravelmente retratadas na arte culta ou popular. Para dar um exemplo divertido, foram tempos de Don Camillo e Peppone, o pároco e o prefeito comunista – criaturas de Giovannino Guareschi – que se comportavam expressivamente ora como adversários, ora como aliados.
Positivamente, aquela República fez nascer a Itália moderna; negativamente, reduziu-se muitas vezes, segundo os críticos, a uma “partidocracia”, em que cargos e nomeações, em toda a estrutura do Estado, se dividiam segundo regras bizantinas de filiação partidária. Sempre no poder, a DC e seus aliados de centro ou centro-esquerda; eternamente na oposição, o PCI – uma disposição que se tornaria disfuncional em razão, precisamente, do veto que os condicionamentos da guerra fria impunham à alternância.
A Mãos Limpas levou à implosão daquele sistema bloqueado: dois partidos tradicionalíssimos, a DC e o Partido Socialista, entre outros menores, foram tragados na grande crise. Forza Italia, a agremiação berlusconiana, e os separatistas da Liga Norte dariam voz à nova direita. O PCI continuaria o processo de reconstrução que o levaria muito além do comunismo de origem. E na margem a galáxia ultraesquerdista, a praticar “rachas” e cisões, seu esporte preferido.
Começada de forma casual, a Lava Jato terá topado, progressivamente, com um esboço de “sistema de poder” à italiana, estruturado não só a partir de nossa maior empresa pública, mas, pelo que se vê, espalhado por fundos de pensão, bancos e demais órgãos públicos. As regras de repartição saíram do âmbito artesanal: não se tratava mais de dar, ao sabor de pressões momentâneas, “diretorias que furam poços e acham petróleo” para este ou aquele personagem folclórico, mas de criar máquinas eleitorais poderosas e alianças parlamentares imbatíveis, roçando a unanimidade.
Não se pode dizer, de forma alguma, que o mecanismo fosse inteiramente inédito, salvo na proporção que passou a assumir. Mudanças quantitativas, como se diz, acarretam saltos de qualidade e no auge de sua vigência o mecanismo pareceu capaz de autorreprodução: mal se descobriam feitos e malfeitos que deram vida ao “mensalão”, surgiram indícios de algo mais grave a envolver empresas públicas e privadas numa escala que nos assusta ainda agora.
Alguém poderá lembrar que Sérgio Motta, um dos ministros mais fortes do primeiro governo FHC, certa vez vaticinou um domínio de 20 anos para consolidar as reformas liberais de então. A lembrança é cabível, mas não de todo pertinente: essa espécie de reforma é normalmente impopular, independentemente das justificativas que possa ter, e costuma minar as bases de sustentação de qualquer governo. E, ainda mais importante, os tucanos, como de resto seus aliados do antigo PFL ou do PMDB, eram partidos à moda antiga, fortes eleitoralmente, mas com pouca ou nenhuma vida orgânica ou elaboração autônoma. A adesão que obtinham, no mais das vezes, era de tipo passivo; salvo na implantação da nova moeda e em algumas outras situações, não entusiasmavam nem mobilizavam seus eleitores ao longo do tempo. Não lhes davam argumentos para a boa luta cotidiana, em meio às pessoas comuns.
Uma forte assimetria, ao contrário, caracterizou o sistema de poder petista. Longe de ser um partido comunista, especialmente se considerado o conjunto de fins (realizáveis ou irrealizáveis) que caracterizava esse tipo de partido, o PT sempre trouxe em si algo dos velhos PCs: a centralização, a disciplina e, ai de nós, o culto do chefe, não raro imantado dos dotes de messianismo e infalibilidade. Em contato com tradicionais “partidos de Estado”, que a ele se aliaram a partir do segundo mandato de Lula, o PT pôde exercer por alguns anos, quase sem contestação, seus pendores hegemonistas e seus vezos de cooptação. De fato, o “franciscano” toma lá dá cá atingiu o estado da arte, muito além dos desvios – intoleráveis! – de caixa 2 eleitoral e “sobras de campanha” que sempre atingiram os amorfos partidos brasileiros.
As democracias estão sob ataque por toda parte. Inútil buscar situações exemplares ou receitas definidas. Os partidos, em particular, veem-se assediados por “não políticos”, que estimulam a vaga populista contra a “casta” e disso se beneficiam – até porque, reconheçamos, há muito de “casta” no comportamento político convencional. Os italianos não estão fora do abalo sísmico que varre o mundo. Contudo, sem contar flutuações conjunturais, apontaram um caminho promissor ao tentarem associar num só “partido democrático” os reformistas egressos do comunismo e do catolicismo social.
A esquerda brasileira até agora não contou com tal sabedoria. Gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus. Reduz-se à defesa de seu chefe único e se fecha ao aggiornamento. Parece não ver que é necessário resgatar a si mesma – consciente de que “esquerda” é hoje um conceito desonrado – e contribuir para a missão comum de renovar a política, o Estado e, não por último, a sociedade brasileira.
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.
Luiz Carlos Azedo: Os delatores
As gravações em vídeo do depoimento de Marcelo Odebrecht na Operação Lava-Jato, e de outros executivos da empresa, inclusive o de seu pai, Emílio, são avassaladoras
São inevitáveis as comparações entre a Operação Mãos Limpas, na Itália, e a Operação Lava-Jato aqui no Brasil, quando nada, porque o juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, é um estudioso da investigação que liquidou com toda a elite política italiana e contribuiu para o desaparecimento dos principais partidos daquele país. Agora, a delação premiada de Marcelo Odebrecht, ex-presidente da maior empreiteira do país, parece ter se inspirado na colaboração do mafioso Tommaso Buscetta, o principal “arrependido” da Operação Mãos Limpas.
Buscetta era conhecido como Dom Masino. Preso em 23 de outubro de 1983, em São Paulo, teve a extradição decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ao saber que voltaria para a Itália, tentou até se matar; no dia 15 de julho de 1984, ao desembarcar na Itália, porém, aceitou contar tudo o que sabia. Entregou os clãs mafiosos e seus aliados políticos, entre os quais Giulio Andreotti, várias vezes primeiro-ministro. A reação da máfia italiana foi feroz, chegando a matar o juiz Giovanni Falcone, em 1992, dois de seus filhos e mais 20 parentes.
A operação teve como consequências o fim da chamada Primeira República e a extinção de partidos políticos. Houve 2.993 mandados de prisão; 6.059 pessoas foram investigadas, sendo 872 empresários, 1.978 administradores e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros; e 12 suicídios. Em 1986, Buscetta foi extraditado para os Estados Unidos, onde recebeu nova identidade e proteção do programa federal de testemunhas. Morreu aos 71 anos, no ano 2000, de leucemia e câncer ósseo.
Ao contrário de Buscetta, que nasceu pobre, fez carreira na máfia de Palermo e foi um eterno fugitivo — viveu na Argentina, México, Estados Unidos e Brasil —, Marcelo Odebrecht nasceu em berço de ouro. Herdeiro de uma dinastia de empreiteiros, é neto de Norberto Odebrecht, que fundou o grupo em 1944, e filho de Emílio Odebrecht, que presidiu a companhia até 2001 e voltou ao cargo depois de sua prisão. Era considerado um dos homens de negócios mais bem formados e influentes do país.
Sob seu comando, a Odebrecht chegou a faturar R$ 100 bilhões. Liderou a consolidação da Braskem, a construção de grandes hidrelétricas e a internacionalização da empresa, que operava em 21 países, incluindo Cuba e Venezuela, onde o grupo atua com apoio financeiro do BNDES. Sua fortuna pessoal chegou a R$ 15 bilhões, ou seja, era um dos 10 homens mais ricos do país. Ontem a Justiça liberou as gravações em vídeo do depoimento de Marcelo Odebrecht na Operação Lava-Jato, e de outros executivos da empresa, inclusive o de seu pai, Emílio. São avassaladoras.
A delação revela o comportamento mafioso da maior empresa de construção do país, suas relações incestuosas com os políticos e como a empresa garantia sua influência em concorrências e licitações. Sua delação premiada ameaça implodir o sistema partidário, pois atinge praticamente toda a elite política do país. Muitos citados nas delações não serão condenados ou presos, por falta de provas ou prescrição de punibilidade, mas ficarão com uma mancha em suas carreiras difícil de apagar, com exceção dos que forem inocentados pela Justiça. Entretanto, dificilmente isso ocorrerá antes das eleições para quem tem direito a foro privilegiado.
Carbonizado
Não é o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas eleitorais em relação às eleições de 2018 e responderá a acusações que podem liquidar sua candidatura, além de levá-lo à prisão, em primeira instância, pois será julgado por Sérgio Moro. O ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, mandou abrir inquéritos contra o petista para investigar diversos fatos. Destacam-se as tratativas com a Odebrecht para edição da MP 703/15, que estabelece acordos de leniência com empresas infratoras; as planilhas de pagamentos do setor de operações estruturadas para a Conta Amigo, supostamente destinada a Lula, cujos administradores seriam os ex-ministros da Fazenda Antônio Palocci e Guido Mantega, o Italiano e Pós-Italiano, respectivamente; repasses de recursos para a campanha eleitoral do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, em troca da concessão de CID (Certificado de Incentivo ao Desenvolvimento); e aprovação de leis favoráveis à companhia.
Fachin determinou também a investigação da suposta participação de Lula na criação da empresa Sete Brasil, uma parceria com a Petrobras, e no esquema de repartição da propina oriunda dos contratos da empresa com a estatal; do tráfico de influência a favor da empresa junto ao governo de Angola; do custeio de despesas de reformas do sítio de Atibaia, em São Paulo; da aquisição de imóveis para uso pessoal e a instalação do Instituto Lula, além do pagamento de palestras; do pagamento do marqueteiro João Santana, nas campanhas de Lula (2006) e da ex-presidente Dilma Rousseff (2010 e 2014); e da intermediação das relações da Odebrecht com a ex-presidente Dilma Rousseff, em troca do favorecimento a um dos filhos do ex-presidente da República.
O relatório de Fachin desconstrói a narrativa de que o ex-presidente da República é vítima de perseguição por parte do juiz federal Sérgio Moro, pois o ministro relator da Lava-Jato também mandou investigar os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Fernando Collor (PTB), José Sarney(PMDB) e Dilma Rousseff (PT).