ONU

Jamil Chade: Em 2021, crise humanitária no planeta será a maior desde a 2ª Guerra Mundial

ONU prevê que 235 milhões de pessoas no mundo serão afetadas por uma crise humanitária. Entidade vai precisar de pelo menos US$ 35 bi para sair ao socorro de milhões de pessoas diante da covid-19, conflitos e mudanças climáticas. Cenário na América do Sul é de tensão social, perda de renda e instabilidade política. Recuperação prevista para economia mundial não será suficiente para impedir que mundo tenha número inédito de pessoas em situação de vulnerabilidade

Se 2020 foi o ano da pandemia, 2021 será o momento de descobrir a dimensão de seu impacto social. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), há um risco real de que a vacina contra a covid-19 chegue apenas para uma parcela rica do planeta e que milhões de pessoas ainda tenham de esperar meses ou anos para serem imunizados. Enquanto isso, a crise humanitária deve se aprofundar e vai atingir um número recorde de 235 milhões de pessoas, exigindo um esforço inédito na história da organização.

A operação de resgate vai precisar de US$ 35 bilhões para sair ao socorro de um verdadeiro exército de famintos, destituídos e abandonados em locais como Síria, Venezuela, Paquistão, Haiti, Afeganistão, Iêmen, Colômbia, Ucrânia e outros países.

Se projeções do FMI, Banco Mundial e de outras instituições apontam para o início da recuperação da economia mundial em 2021, a ONU relembra que a crise de 2020 terá seu impacto prolongado entre os grupos mais vulneráveis e populações que já viviam em uma situação delicada.

"Conflitos, mudanças climáticas e a covid-19 geraram o maior desafio humanitário desde a Segunda Guerra Mundial", alertou o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.

Os dados apontam que o número de pessoas afetadas por crises humanitárias é 40% superior aos dados de 2020. O total é quase três vezes maior que em 2015. No total, 56 países precisarão de ajuda internacional, inclusive o Brasil, para lidar com os venezuelanos na região norte do país.

"Se todos aqueles que precisarem de ajuda humanitária no próximo ano vivessem num país, seria a quinta maior nação do mundo, com uma população de 235 milhões de habitantes", diz a ONU, que espera implementar uma operação para alimentar e dar abrigo para 160 milhões de pessoas em 2021.</p><p>

Num raio-X do planeta publicado nesta terça-feira, a entidade aponta que a vida das pessoas em todos os cantos do mundo foi abalada pelo impacto da pandemia. "Aqueles que já vivem no fio da navalha estão sendo atingidos de forma desproporcionalmente dura pelo aumento dos preços dos alimentos, queda dos rendimentos, programas de vacinação interrompidos e fechamento de escolas", diz.

América do Sul e maior tensão sociopolítica

Um dos focos da atenção internacional é a situação na América do Sul onde, segundo a ONU, "a pandemia secou as economias informais, diminuindo os meios de subsistência e o acesso aos alimentos e aumentando os riscos de proteção".

Para ONU, 2021 "irá sem dúvida exigir uma concentração ainda maior de esforços de resposta humanitária adaptáveis, dados os efeitos a longo prazo da pandemia sobre as várias crises na região".

Citando a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe, o informe prevê que 231 milhões dos 656 milhões de habitantes da região estarão em situação de pobreza no início de 2021. Esse será o pior patamar desde 2005.

"O impacto generalizado das economias deprimidas conduzirá a mais migração, insegurança alimentar e preocupações de saúde e proteção no meio de elevadas vulnerabilidades a riscos naturais, redes de segurança governamentais em tesão e potenciais agravamentos de tensões sócio-políticas profundamente enraizadas", alertou.

Décadas de progressos sociais sob ameaça

"O mundo rico pode agora ver a luz ao fundo do túnel", disse o chefe humanitário da ONU, Mark Lowcock. "O mesmo não se passa nos países mais pobres. A crise da covid-19 mergulhou milhões de pessoas na pobreza e fez disparar as necessidades humanitárias", alertou. "No próximo ano precisaremos de US$ 35 bilhões de dólares para evitar a fome, combater a pobreza, e manter as crianças vacinadas e na escola", disse. "Temos uma escolha clara diante de nós. Podemos deixar que 2021 seja o ano em que 40 anos de progressos sociais serão desfeitos; ou podemos trabalhar em conjunto para garantir que todos encontraremos uma saída para esta pandemia", disse. Para ele, "seria cruel e insensato" da parte dos países ricos "desviar o olhar" diante dessa realidade. "Os problemas locais tornam-se problemas globais, se os deixarmos", disse.

Fome e pobreza em alta

Pelo mundo, um dos aspectos que mais preocupa é a volta do aumento dos índices de fome e de pobreza. "A covid-19 desencadeou a recessão global mais profunda desde a década de 1930", indicou o informe. "A pobreza extrema aumentou pela primeira vez em 22 anos, e o desemprego aumentou dramaticamente. As mulheres e os jovens entre os 15 e os 29 anos que trabalham no setor informal estão sendo os mais atingidos. O fechamento das escolas afetou 91 por cento dos estudantes em todo o mundo", apontou.

Outra constatação é que os conflitos políticos são mais intensos e estão causando um impacto pesado à população civil. "A última década assistiu ao maior número de pessoas deslocadas internamente pelo conflito e pela violência, com muitas presas nesta situação por um período prolongado", diz. "Estima-se que haja 51 milhões de deslocados internos novos e existentes, e o número de refugiados duplicou para 20 milhões", alerta.

Um dos pontos mais preocupantes se refere à fome aguda, que atinge 77 milhões de pessoas em 22 países. "Até ao final de 2020, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda poderá ser de 270 milhões", indica. "Os impactos da pandemia e das alterações climáticas estão afetando seriamente os sistemas alimentares em todo o mundo", diz a ONU. Apenas para lidar com essa realidade, a entidade faz um apelo por US$ 9 bilhões, quase o dobro do que era necessário em 2015.

Mudanças climáticas e pandemia

A avaliação da ONU é de que, uma vez mais, as mudanças climáticas terão um impacto real na vida de milhões de pessoas. Segundo a entidade, os últimos 10 anos foram os mais quentes desde que os registros começaram a ser feitos e, ao mesmo tempo, catástrofes naturais estão exacerbando as vulnerabilidades crônicas em diferentes partes do mundo. Para 2021, esperam-se alterações climáticas adicionais por conta do fenômeno La Niña. Se a situação internacional já não era das mais fáceis, a pandemia da covid-19 ampliou a crise de maneira inédita. "Os surtos de doenças estão aumentando e a pandemia tem dificultado os serviços de saúde essenciais em quase todos os países", diz o raio-x do planeta.

Para a entidade, a realidade é que os avanços sociais conquistados durante décadas estão ameaçados. "Mais de 5 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade enfrentam as ameaças da cólera e da diarreia aguda", diz. "A pandemia pode acabar com 20 anos de progresso na luta contra o HIV, tuberculose e malária, duplicando potencialmente o número de mortes anuais", indica. Cerca de 24 milhões de crianças, adolescentes e jovens estão em risco de não regressar à escola em 2020, incluindo 11 milhões de meninas e mulheres jovens.

Falta de dinheiro

O dilema, segundo a ONU, é como lidar com a crise sanitária e seus desdobramentos diante da falta de recursos. "A crise está longe de ter terminado", diz o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. "Os orçamentos para a ajuda humanitária enfrentam déficits terríveis à medida que o impacto da pandemia global continua a agravar-se", reconhece. Ele pede, porém, que governos mobilizem recursos e e que sejam solidários com as pessoas "na sua hora mais negra de necessidade".

Em 2020, os doadores internacionais deram um montante recorde de US$ 17 bilhões. Mas, como as necessidades estão aumentando, o financiamento continua a ser menos de metade do que a ONU e organizações parceiras pediram.


Marcelo Godoy: Com Bolsonaro, tropas brasileiras deixam as forças de paz da ONU após 21 anos

Brasil perde projeção do poder nacional e reforça isolamento diplomático do governo, que se compraz em ser pária internacional

Caro leitor,

Na manhã da quarta-feira, dia 2, quando o mestre da fragata Independência executar os toques de apito para o comandante da embarcação, em Beirute, no Líbano, a cerimônia de bordo da Marinha vai marcar o fim de uma era da diplomacia brasileira e de sua Defesa: pela primeira vez em 21 anos o Brasil ficará sem tropa em missões de paz das Nações Unidas.

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Navio fragata Independência, que começa sua viagem de volta ao Brasil no dia 2 Foto: MARINHA DO BRASIL

Desde 2011  o Brasil fazia parte da Unifil, a única força de paz marítima da ONU, responsável pelo patrulhamento das águas territoriais libanesas. A Marinha exercia o comando da missão, que, agora, deve passar para a Alemanha. A Independência foi a última fragata enviada ao Oriente Médio. Ela havia partido, em 8 de março, do Rio, para o Líbano, onde já havia estado em outras duas oportunidades, levando seu helicóptero Super Linx e um grupo de mergulhadores de combate (GruMeC), além de um destacamento de fuzileiros navais. Era o navio capitânia da Unifil quando escapou por pouco da explosão do depósito de nitrato de amônia que devastou a capital libanesa em agosto.

A embarcação, cuja missão era impedir a entrada de armas e materiais ilegais no Líbano, deixará o porto de Bierute no dia 2 e deve chegar ao Brasil em 28 de dezembro. No dia 1.º de janeiro de 2021, o contra-almirante Sergio Renato Berna Salgueirinho passará o comando da força, encerrando assim a participação do País na missão – restarão como capacetes azuis apenas os militares que trabalham como observadores militares em missões individuais, em países como Chipre, Eritreia e Sudão do Sul.

Foi nos anos 1990 que aconteceu a retomada da presença brasileira em forças de paz. Em 1994, duas centenas de paraquedistas brasileiros foram mandados para a Onumoz, a força enviada pela ONU à Moçambique, após o acordo de paz de Roma, entre o governo da Frelimo e a guerrilha da Renamo. Desde 1967, quando se retirara da região de Suez em razão da Guerra dos Seis Dias, o Brasil não participava dessas missões. Então comandante do Contingente Brasileiro em Moçambique (Cobramoz), quando era major, o general Franklimbergue Freitas lembra que a tropa no país africano abriu o caminho na ONU para que a presença do Brasil fosse requisitada em outras oportunidades. "E nós procuramos contribuir com nossa experiência com aqueles que foram para Angola."

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Uma coluna de blindados brasileiros - Cascavel e Urutu - em estrada no centro de Angola durante a ação da Unavem 3 Foto: Arquivo pessoal

A missão seguinte foi justamente em Angola e durou quase três anos, mobilizando 4.485 militares das Forças Armadas e policiais militares. Em 1997, o Brasil ficaria pela última vez sem fazer parte de nenhuma missão de paz. Isso aconteceu por causa da retirada das tropas brasileiras da missão Unavem 3, das Nações Unidas, em Angola, em razão do recomeço da guerra civil entre a guerrilha da Unita e o governo do MPLA. A ausência brasileira duraria pouco mais de dois anos.  

O atual período de 21 anos contínuos de missões com tropas se iniciou em 25 de setembro de 1999, quando o então major Fernando do Carmo Fernandes chegou ao Timor Leste, como oficial de ligação do futuro contingente brasileiro com as tropas australianas. A ação na ilha foi autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, antes da formação propriamente de uma força de paz. Ela devia estabilizar o país, depois de os invasores indonésios – a ocupação do Timor Leste durou 25 anos – terem adotado a política de terra arrasada ao deixar o lugar. Dias depois, 51 homens – um pelotão da Polícia do Exército – desembarcaria em Dili.

Depois do Timor, o País mandou tropas para o Haiti e para o Líbano, como capacetes azuis. Ao todo, 38,2 mil militares brasileiros participaram dessas operações, que não se limitaram ao entorno estratégico do País, compreendido pela América Latina e pela África Ocidental. A presença nessas missões era considerado uma forma de projeção do poder nacional em um momento em que o Itamaraty buscava abrir novos espaços para o Brasil nos organismos internacionais, com reivindicações como a reforma do Conselho de Segurança da ONU a fim de nele obter uma cadeira para o País.

"Havia da parte dos diplomatas e dos militares essa consciência de que essas operações eram complemento indispensável à ação de um país como o nosso, que não tem propriamente poder militar – não somos uma potência nuclear ou convencional", afirmou o embaixador Rubens Ricupero. Diplomatas e militares concordam que a ausência de tropa do País nas forças de paz trará consequências para o Brasil e para suas Forças Armadas.

Na área da Defesa, elas podem afetar a sua modernização por meio da aquisição de experiência e doutrina para o emprego de suas tropas – exemplo disso foi a mudança da logística do Exército brasileiro em operações no exterior depois da experiência do Haiti. Mas não só os militares devem ser sofrer com a retirada. É a própria presença do País no mundo e sua relevância internacional que serão diminuídas.  "A força no Líbano era a única presença significativa brasileira em uma área estratégica importante. Dentro do grande jogo, a única que tínhamos era essa.", afirmou Ricupero.

general Adhemar da Costa Machado Filho, um dos comandantes do contingente brasileiro em Angola, escreveu uma monografia sobre o tema, em 1999, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), no qual afirmava que a participação brasileira nas operações de manutenção da paz proporcionava a "oportunidade de projetar a expressão militar do poder nacional no exterior o que, em última análise, representa um acréscimo da influência do poder nacional no contexto internacional". Passados 21 anos, o general Adhemar mantém sua opinião. "O Brasil tem um perfil que se ajusta muito a essas missões."

O desejo de militares e diplomatas de manutenção de tropas no exterior esbarrou nos gastos. Entre 2004 e 2017, a tropa no Haiti custou R$ 2,6 bilhões aos cofres públicos. De 2011 a 2018, o governo havia colocado R$ 483,5 milhões na Unifil para manter uma fragata, um helicóptero e as tripulações patrulhando as águas do Líbano. Nos últimos anos, gastava-se de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões por ano com o contingente da Marinha no exterior, de acordo com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Ao todo, durante os dez anos de operações, quatro fragatas, uma corveta e um navio de patrulha oceânico passaram pelo Líbano.

“A presença do Brasil nessas forças é uma modalidade muito original de soft power por meio de um poder hard sem os inconvenientes do hard power, da imposição da força, pois ela tem um contexto jurídico, sempre aprovado pelo Conselho de Segurança e dentro da carta das Nações Unidas”, disse Ricupero. Para ele, tratava-se de uma "maneira nobre de projetar esse poder".

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Grupo de intervenção armada do contingente embarcado na fragata União, uma das quatro que participaram da missão no Líbano Foto: Marinha do Brasil

Mesmo que a da força do Líbano estivesse prevista desde agosto de 2019, quando a Marinha anunciou a medida, o retorno da fragata brasileira acontece no momento em que o Brasil aumenta ainda mais seu isolamento internacional, por meio da política levada à cabo pelo chanceler Ernesto Araújo, que disse se comprazer em ser um pária diplomático. Ao mesmo tempo, o chefe do chanceler afirma ter provas de que houve fraude na eleição de Joe Biden – sem apresentá-las –, acusa a China de querer derrubá-lo com o coronavírus e diz que a Europa quer saquear a Amazônia.

Ninguém sabe qual o propósito de Bolsonaro em escalar crises com praticamente todos os maiores parceiros comerciais do Brasil. "É o sinal dos tempos nos retirarmos do último domínio (as forças de paz) em que tínhamos uma presença multilateral." O Itamaraty não se manifestou sobre o tema e não há notícia de que a chancelaria tenha procurado reverter a decisão sobre as forças de paz. "Esse tipo de atitude está em harmonia com a posição do Ernesto Araújo, que é hostil ao multilateralismo e ao que ele chama de globalismo."

E, assim, é em um governo, como o de Jair Bolsonaro – com um Estado-Maior alojado no Planalto dominando os principais ministérios civis e no qual os militares conseguiram emplacar um projeto de reajuste de salários que preservou a paridade e a integralidade das aposentadorias –, que o abandono das missões de paz punirá, não só os objetivos históricos da diplomacia brasileira, mas também os mais capazes entre os militares, cuja experiência no exterior constituía etapa essencial de sua formação. Em todos os governos há os que fecham os olhos e preferem o dinheiro no bolso, o cargo e os favores dos poderosos. São estes os que causam os desastres nacionais, como os argentinos descobriram nas Malvinas. 


Celso Lafer: ONU, 75 anos

Diplomacia do governo almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional

O multilateralismo e suas instituições têm como função criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados. Resultam das realidades de um mundo finito e interdependente. Respondem à necessidade de lidar com desafios que não estão ao alcance das relações bilaterais e muito menos de ações unilaterais, como pandemias e mudança climática. É o que convém lembrar preliminarmente, afastando desqualificações “globalistas”, ao comemorar os 75 anos da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU representa a presença da figura do terceiro no pluralismo do mundo dos Estados. Há na figura do terceiro um potencial de favorecimento do entendimento, que se revela nos conflitos bilaterais.

Os bons ofícios, a mediação, a arbitragem são exemplos da intercessão do terceiro nas soluções pacíficas de controvérsias.

A diplomacia é uma arte do terceiro, que opera no âmbito internacional no trato da governança da complexidade, negociando, persuadindo, contendo tensões, desdramatizando conflitos.

A ONU é um terceiro. Não é um terceiro acima das partes, um tertius super partes, porque não é um governo mundial. É um tertius inter partes, um terceiro entre as partes, criado pelos Estados e institucionalizado pela Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Tem como função ser uma instância de abrangência universal de interposição e mediação entre Estados. É dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus Estados-membros. É o que confere à ONU a sua identidade internacional. Para cumprir sua função de instância de interposição e intermediação, rege-se pelas normas da sua Carta. Guia-se pela “ideia a realizar” de ser “um centro destinado a harmonizar a ação das nações” para a consecução dos objetivos comuns dos seus propósitos – paz, segurança, relações amistosas e cooperação internacional.

Os propósitos da ONU e suas realizações foram reafirmados na resolução da Assembleia-Geral de 21 de setembro deste ano, que registra o muito que precisa ser feito, apontando que os grandes desafios do presente são interconectados e interdependentes. Por isso só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado e pelo reforço do pilar da cooperação internacional.

Do espaço da ONU tem se valido a diplomacia brasileira no correr das décadas, exercendo com competência a arte diplomática do terceiro para articular, na interação com os Estados que integram a sociedade internacional, a voz própria e os interesses gerais do Brasil na dinâmica do funcionamento do mundo.

O multilateralismo vem propiciando soft power para o nosso país, que agrega substância à diplomacia bilateral brasileira. É o que comprovam os estudos acadêmicos e a experiência dos que viveram “de dentro” a responsabilidade de representar o Brasil em instâncias multilaterais.

É o que não percebem a diplomacia do governo Bolsonaro e a vocação negacionista de seu chanceler Ernesto Araújo, que almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional.

A figura de secretário-geral corporifica a identidade do tertius inter partes. Ele é um agente administrativo, mas também um ator político, proveniente de seu poder de iniciativa que lhe dão a Carta e a prática construída por sucessivos secretários-gerais, cabendo destacar o papel inaugural que teve Dag Hammarskjold.

Ele, aliás, dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a responsabilidade do secretário-geral de promover iniciativas de cooperação que façam da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos grandes problemas internacionais.

Muito tem feito, em condições difíceis, o atual secretário-geral, António Guterres, com criatividade e determinação no exercício de suas funções, para as quais vem mobilizando a opinião pública e a sociedade em prol de um mundo mais sustentável e menos precário.

Concluo lembrando conhecida elaboração de Albert O. Hirschman sobre o papel da voz, da saída e da lealdade na dinâmica da vida de organizações. A lealdade numa instituição equilibra a voz e a saída. A saída pressupõe a existência de alternativas, no caso a alternativa ao multilateralismo e suas instituições, como a ONU. Eu não creio, dada a natureza da realidade internacional, que seja possível conviver com os unilateralismos de um Estado de natureza hobbesiana e sua propensão à guerra de todos contra todos. “Somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”, como observa Hannah Arendt.

Daí a relevância da lealdade à ONU, que é uma característica histórica da diplomacia brasileira.

Quanto à voz, não faz sentido o monólogo da discussão contra, com a qual se compraz a diplomacia de confronto do governo Bolsonaro, mas sim o diálogo de discussão com os outros integrantes da comunidade internacional, tendo como propósito encontrar interesses comuns e compartilháveis, cujos caminhos o secretário Guterres vem desbravando de maneira corajosa e pertinente.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Carlos Melo: Previsível, Bolsonaro é lacuna brasileira no cenário internacional

Na inconstância e no arrebatamento de seu líder, o governo Bolsonaro é previsível e banal. Foge ao modelo de instituições eficientes, capazes de garantir segurança e perspectivas de longo prazo a cidadãos e negócios; não coordena, não conduz, não se antecipa a problemas que, antes, ele os cria.

O esdrúxulo e o voluntarismo são regras consolidadas nas quais pode-se apostar, sem risco. Foi o que se viu no discurso brasileiro na ONU. Novamente, o presidente foi previsível: lavou as mãos em relação à pandemia, vangloriou-se daquilo que não fez, desprezou a ciência. Na questão ambiental, vitimizou-se; grande injustiçado mundial.

Sua “política de tolerância zero ao crime ambiental” foi o ponto mais criativo (e irônico) do discurso.

Voltou a acusar a Venezuela, alvo preferencial de “inimigo externo” – todo regime autoritário precisa de um. Em sua cruzada medieval, denunciou suposta “cristofobia”. Adulou Donald Trump, sapateando sobre as brasas do multilateralismo. Trump exerce enorme fascínio sobre o brasileiro, que o ama e o saúda em continência, com gestos e opiniões clonadas.

Bolsonaro sabe que se Trump for derrotado em novembro, seu governo estará isolado. Por isso, incrementa doses de maior submissão. A troco do quê?

Possivelmente, nem Bolsonaro nem seu chanceler saibam ao certo, pois a reciprocidade de Trump tem sido humilhante para o Brasil. As “bases” aprovam. Mas, agarrar-se a Trump não é solução, mesmo em caso de vitória. No Concerto das Nações, o atrelamento de um país a outro o transforma num garoto de recados, sem importância. Mesmo assim, nada disso é estranho: no caleidoscópio sem lógica do universo bolsonariano, vertigem dá prazer.

✽ Cientista político. Professor do INSPER


O Globo: Bolsonaro diz na ONU que Brasil vive campanha de desinformação sobre Amazônia e Pantanal

Em razão da pandemia de Covid-19, evento é realizado virtualmente pela primeira vez na História; líderes gravaram vídeos

RIO — O presidente Jair Bolsonaro abre, nesta terça, o debate geral da 75ª Assembleia Geral da ONU, realizada virtualmente pela primeira vez em razão da pandemia de Covid-19. O presidente brasileiro dá o pontapé inicial no evento desde 1955, a décima sessão. A honra deve-se não apenas ao fato de o país ter sido o primeiro a aderir à ONU, mas ao papel do então chanceler Oswaldo Aranha na história da organização — ele presidiu a primeira sessão especial da Assembleia e a segunda sessão ordinária, no mesmo ano. Bolsonaro, que participa do evento pela segunda vez, gravou seu discurso na semana passada.

Confira o discurso de Bolsonaro

https://youtu.be/l4K9Tk5z-po

No início de seu discurso de cerca de 15 minutos, o presidente disse que o mundo precisa da verdade para superar seus desafios, chamando atenção para a Covid-19 e lamentando pelas mortes. O presidente disse ainda que havia duas razões para se preocupar, o vírus e o desemprego. Defendendo sua criticada resposta à pandemia, que especialistas afirmam ser anticiência, Bolsonaro chamou atenção para o auxílio emergencial do governo brasileiro para os mais pobres. Bolsonaro destacou ainda o investimento na produção de hidroxicloroquina, droga que pesquisas mostram não ser eficiente para combater a doença.

Amazônia
Bolsonaro disse que o Brasil é vítima de uma campanha de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal, chamando os interesses de antipatrióticos. Destacando a produção agrícola no Brasil, Bolsonaro pôs a culpa das queimadas no meio ambiente e no clima seco, afirmando que focos criminosos são combatidos pelo governo. A política climática do governo brasileiro é alvo de críticas internacionais e poderá ser um empecilho para a assinatura de um acordo entre a União Europeia e o Mercosul, como já indicou o governo francês. Bolsonaro culpou ainda a Venezuela derramamento de óleo na costa do nordeste em 2019.

Comércio
O governo brasileiro disse ainda estar comprometido com os acordos de livre comércio que o Mercosul tenta firmar com a União Europeia, destacando que os tratados possuem importantes cláusulas que "reforçam nosso compromisso com a proteção ambiental". Segundo Bolsonaro, em seu governo, o país finalmente abandona uma tradição protecionista", tendo a abertura comercial como uma ferramenta "indispensável de crescimento e transformação".

Bolsonaro ressaltou ainda o processo de entrada no Brasil da OCDE e ressaltou que, no primeiro ano de seu mandato, concluiu a reforma da Previdência.

Oriente Médio
O presidente Jair Bolsonaro demostrou sua solidariedade ao povo libanês e elogiou o presidente americano, Donald Trump, destacando que a normalização das relações de Israel com os Emirados Árabes e o Bahrain, mediado por Trump, é uma "excelente notícia". Bolsonaro elogiou ainda o Plano de Paz proposto pelo americano para Israel e Palestina, bastante criticado pela comunidade internacional por ser majoritariamente pró-Tel Aviv. Os palestinos descartaram aderir ao plano.

Direitos humanos
Bolsonaro falou ainda sobre a Operação Acolhida, voltada para refugiados venezuelanos. Bolsonaro ressaltou ainda a participação do Brasil em missões de paz, destacando o Suez, Angola, Líbano, e Haiti e disse que o país está comprometido com a paz. Em uma referência indireta à Venezuela, Bolsonaro falou ainda sobre o terrorismo e fez um apelo à comunidade internacional para que se combata o que chamou de cristofobia.

— Repudiamos o terrorismo em todo o mundo. Na América Latina continuamos trabalhamos pela ordem democrática, como base de sustentação indispensável para o progresso econômico que desejamos. A liberdade é o bem maior da liberdade — afirmou o presidente. — O Brasil é um país cristão e conservador e têm na família a sua base. Deus abençoe a todos.

Veja a íntegra do discurso de Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da ONU de 2020:

"Senhor presidente, da Assembleia Geral, Volkan Bozkir; Senhor secretário-geral da ONU, António Guterres, a quem tenho a satisfação de cumprimentar em nossa língua-mãe; Chefes de Estado, de governo e de delegação; Senhoras e senhores, É uma honra abrir esta assembleia com os representantes de nações soberanas, num momento em que o mundo necessita da verdade para superar seus desafios.

A COVID-19 ganhou o centro de todas as atenções ao longo deste ano e, em primeiro lugar, quero lamentar cada morte ocorrida.

Desde o princípio, alertei, em meu País, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade. Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao Presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País.

Como aconteceu em grande parte do mundo, parcela da imprensa brasileira também politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população. Sob o lema “fique em casa” e “a economia a gente vê depois”, quase trouxeram o caos social ao país.

Nosso governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior:

- Concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1000 dólares para 65 milhões de pessoas, o maior

programa de assistência aos mais pobres no Brasil e talvez um dos maiores do mundo;

- Destinou mais de 100 bilhões de dólares para ações de saúde, socorro a pequenas e microempresas, assim como compensou a perda de arrecadação dos estados e municípios;

- Assistiu a mais de 200 mil famílias indígenas com produtos alimentícios e prevenção à COVID;

- Estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença;

- Destinou 400 milhões de dólares para pesquisa, desenvolvimento e produção da vacina de Oxford no Brasil;

Não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de COVID. A pandemia deixa a grande lição de que não podemos depender apenas de umas poucas nações para produção de insumos e meios essenciais para nossa sobrevivência. Somente o insumo da produção de hidroxicloriquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia. Nesta linha, o Brasil está aberto para o desenvolvimento de tecnologia de ponta e inovação, a exemplo da indústria 4.0, da inteligência artificial, nanotecnologia e da tecnologia 5G, com quaisquer parceiros que respeitem nossa soberania, prezem pela liberdade e pela proteção de dados.

No Brasil, apesar da crise mundial, a produção rural não parou. O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado. Nossos caminhoneiros, marítimos, portuários e aeroviários mantiveram ativo todo o fluxo logístico para distribuição interna e exportação.

Nosso agronegócio continua pujante e, acima de tudo, possuindo e respeitando a melhor legislação ambiental do planeta. Mesmo assim, somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal. A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil. Somos líderes em conservação de florestas tropicais. Temos a matriz energética mais limpa e diversificada do mundo.

Mesmo sendo uma das 10 maiores economias do mundo, somos responsáveis por apenas 3% da emissão de carbono.

Garantimos a segurança alimentar a um sexto da população mundial, mesmo preservando 66% de nossa vegetação nativa e usando apenas 27% do nosso território para a pecuária e agricultura, números que nenhum outro país possui.

O Brasil desponta como o maior produtor mundial de alimentos. E, por isso, há tanto interesse em propagar desinformações sobre o nosso meio ambiente. Estamos abertos para o mundo naquilo que melhor temos para oferecer, nossos produtos do campo. Nunca exportamos tanto. O mundo cada vez mais depende do Brasil para se alimentar.

Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas.

Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação. Mantenho minha política de tolerância zero com o crime ambiental.

Juntamente com o Congresso Nacional, buscamos a regularização fundiária, visando identificar os autores desses crimes.

Lembro que a Região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental.

Daí, a dificuldade em combater, não só os focos de incêndio, mas também, a extração ilegal de madeira e a biopirataria. Por isso, estamos ampliando e aperfeiçoando o emprego de tecnologias e aprimorando as operações interagências, contando, inclusive, com a participação das Forças Armadas. O nosso Pantanal, com área maior que muitos países europeus, assim como a Califórnia, sofre dos mesmos problemas. As grandes queimadas são consequências inevitáveis da alta temperatura local, somada ao acúmulo de massa orgânica em decomposição.

A nossa preocupação com o meio ambiente vai além das nossas florestas. Nosso Programa Nacional de Combate ao Lixo no Mar, um dos primeiros a serem lançados no mundo, cria uma estratégia para os nossos 8.500 Km de costa.

Nessa linha, o Brasil se esforçou na COP25 em Madri para regulamentar os artigos do Acordo de Paris que permitiriam o estabelecimento efetivo do mercado de carbono internacional. Infelizmente fomos vencidos pelo protecionismo.

Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle, acarretando severos danos ao meio ambiente e sérios prejuízos nas atividades de pesca e turismo. O Brasil considera importante respeitar a liberdade de navegação estabelecida na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Entretanto, as regras de proteção ambiental devem ser respeitadas e os crimes devem ser apurados com agilidade, para que agressões como a ocorrida contra o Brasil não venham a atingir outros países.

Não é só na preservação ambiental que o país se destaca. No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional pelo compromisso e pela dedicação no apoio prestado aos refugiados venezuelanos, que chegam ao Brasil a partir da fronteira no estado de Roraima.

A Operação Acolhida, encabeçada pelo Ministério da Defesa, recebeu quase 400 mil venezuelanos deslocados devido a grave crise políticoeconômica gerada pela ditadura bolivariana. Com a participação de mais de 4 mil militares, a Força Tarefa LogísticaHumanitária busca acolher, abrigar e interiorizar as famílias que chegam à fronteira.

Como um membro fundador da ONU, o Brasil está comprometido com os princípios basilares da Carta das Nações Unidas: paz e segurança internacional, cooperação entre as nações, respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos. Neste momento em que a organização completa 75 anos temos a oportunidade de renovar nosso compromisso e fidelidade a esses ideais. A paz não pode estar dissociada da segurança. A cooperação entre os povos não pode estar dissociada da liberdade. O Brasil tem os princípios da paz, cooperação e prevalência dos direitos humanos inscritos em sua própria Constituição, e tradicionalmente contribui, na prática, para a consecução desses objetivos.

O Brasil já participou de mais de 50 operações de paz e missões similares, tendo contribuído com mais de 55 mil militares, policiais e civis, com participação marcante em Suez, Angola, Timor Leste, Haiti, Líbano e Congo. O Brasil teve duas militares premiadas pela ONU na Missão da Republica Centro-Africana pelo trabalho contra violência sexual.

Seguimos comprometidos com a conclusão dos acordos comerciais firmados entre o MERCOSUL e a União Europeia e com a Associação Europeia  de Livre Comércio. Esses acordos possuem importantes cláusulas que reforçam nossos compromissos com a proteção ambiental.

Em meu governo, o Brasil, finalmente, abandona uma tradição protecionista e passa a ter na abertura comercial a ferramenta indispensável de crescimento e transformação. 

Reafirmo nosso apoio à reforma da Organização Mundial do Comércio que deve prover disciplinas adaptadas às novas realidades internacionais.

Estamos igualmente próximos do início do processo oficial de acessão do Brasil à OCDE. Por isso, já adotamos as práticas mundiais mais elevadas em todas as áreas, desde a regulação financeira até os domínios da segurança

digital e da proteção ambiental.

No meu primeiro ano de governo, concluímos a reforma da previdência e, recentemente, apresentamos ao Congresso Nacional duas novas reformas: a do sistema tributário e a administrativa. Novos marcos regulatórios em setores-chave, como o saneamento e o gás natural, também estão sendo implementados. Eles atrairão novos investimentos, estimularão a economia e gerarão renda e emprego.

O Brasil foi, em 2019, o quarto maior destino de investimentos diretos em todo o mundo. E, no primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso comprova a confiança do mundo em nosso governo.

O Brasil tem trabalhado para, em coordenação com seus parceiros sulatlânticos, revitalizar a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul. O Brasil está preocupado e repudia o terrorismo em todo o mundo. Na América Latina, continuamos trabalhando pela preservação e promoção da ordem democrática como base de sustentação indispensável para o progresso econômico que desejamos.

A liberdade é o bem maior da humanidade. Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia. Também quero reafirmar minha solidariedade e apoio ao povo do Líbano pelas recentes adversidades sofridas. Cremos que o momento é propício para trabalharmos pela abertura de novos horizontes, muito mais otimistas para o futuro do Oriente Médio. 

Os acordos de paz entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, e entre Israel e o Bahrein, três países amigos do Brasil, com os quais ampliamos imensamente nossas relações durante o meu governo, constitui excelente notícia.

O Brasil saúda também o Plano de Paz e Prosperidade lançado pelo Presidente Donald Trump, com uma visão promissora para, após mais de sete décadas de esforços, retomar o caminho da tão desejada solução do conflito israelense-palestino.

A nova política do Brasil de aproximação simultânea a Israel e aos países árabes converge com essas iniciativas, que finalmente acendem uma luz de esperança para aquela região. O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base.

Deus abençoe a todos!

E o meu muito obrigado!"


Hélio Schwartsman: Bolsonaro e a ONU

Governo atual é prova de que mundo acertou ao não conceder vaga no CS ao Brasil

O governo de Jair Bolsonaro e seus posicionamentos na arena internacional são a prova definitiva de que o mundo acertou ao não conceder ao Brasil um lugar como membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU, organização que completa 75 anos de existência.

Não que tenha havido uma chance clara de galgarmos tal condição. As discussões sobre reforma da ONU dificilmente passarão de discussões. Mas, durante muito tempo, em especial nos governos petistas, conquistar uma vaga permanente foi meta quase obsessiva do Itamaraty, o que, aliás, nos levou a posicionamentos moralmente discutíveis, incluindo a defesa de ditaduras de olho em seus votos.

Os despautérios sobre queimadas e pandemia que Bolsonaro deve proferir hoje em seu discurso de abertura da Assembleia Geral ficam mais ou menos limitados a nos expor ao ridículo, porque não passamos de um membro ordinário da organização Mas, se tivéssemos um papel de maior relevo, aí as inconstâncias e insensatezes de governos brasileiros teriam um impacto negativo mais concreto sobre o mundo. Uma das funções do CS é promover a moderação e limitar a capacidade das grandes potências de fazer o que bem entenderem.

O problema de fundo, que nos inabilita para uma vaga permanente no CS, é que nossa institucionalidade não evoluiu o bastante para diferenciar na prática os interesses estratégicos do Estado brasileiro dos objetivos propagandísticos de governos, que são por definição transitórios.

Pessoalmente, vou até um pouco mais longe e acho que o Brasil deveria abdicar permanentemente de alcançar uma vaga permanente no CS. Ela serviria para inflar o ego de presidentes, ministros e diplomatas, mas não vejo que benefícios traria ao cidadão. Pelo contrário, implicaria mais despesas para os cofres públicos e nos levaria a fazer alguns inimigos no cenário internacional. Não há nada errado em ser uma nação "low profile".


Merval Pereira: Sem explosão

O discurso do presidente Jair Bolsonaro hoje, na abertura da Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), não terá surpresas, pois continuará defendendo suas teses sobre meio ambiente, preservação da Amazônia (na foto), e também sobre a pandemia da Covid-19, mas não será agressivo em relação direta aos críticos dessas mesmas políticas.

A denúncia do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) General Augusto Heleno, na audiência pública do STF para tratar do atraso na aplicação de recursos do Fundo do Clima, de que as críticas de nações estrangeiras sobre a Amazônia têm o objetivo de “prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”, não deve ser a linha do discurso, mesmo porque, segundo o senador Nelsinho Trad, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, “ali não é lugar para essa política”.

O senador diz que tem alertado o Palácio do Planalto para a crítica generalizada que ele ouve de delegações de diversos países europeus sobre nossa política de meio ambiente, e acredita que o presidente Bolsonaro vai aproveitar seu discurso para tentar melhorar a imagem do país no exterior.

Não será um discurso de conciliação, mas uma tentativa de mostrar números e dados que sustentem sua afirmação de que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente, ou que o país se saiu bem na pandemia da Covid-19, tanto na proteção dos mais vulneráveis, quanto na recuperação econômica.

Pelas informações que circulam, a estratégia do governo será não confrontar as nações que criticam o Brasil, a não ser indiretamente, na defesa de seus pontos de vista, que continuarão sendo combatidos por organismos internacionais e ONGs. É uma boa ideia, porém, apresentar seus argumentos sem acusar os outros.

Parece que Bolsonaro já entendeu que precisa conviver com organismos multilaterais, mesmo que não goste do que representam. Por isso nos últimos dias o Brasil apoiou os Estados Unidos no BID, abrindo mão de indicar um candidato ao posto, e em outros organismos interfere nas nomeações.

Mesmo assim, em temas fundamentais como mudança climática, preservação da Amazônia, as posições do Brasil continuarão confrontando a visão majoritária na ONU, que dias atrás debateu uma proposta do relator especial Baskuit Tunkat para que o Conselho de Direitos Humanos enviasse uma equipe para verificar a situação da política ambiental e de direitos humanos.

O governo brasileiro reagiu duramente, embora, dias antes, tenha aprovado igual proposta em relação à Venezuela. Tal proposta não tem viabilidade de ser aprovada, mas sinaliza uma posição crítica dos gestores da ONU ao governo brasileiro.

Nada indica, porém, que o presidente Bolsonaro leve para seu discurso um embate direto, embora a defesa de suas posições represente uma resposta a essas críticas. Outro ponto relevante de seu discurso deve ser a defesa da atuação de seu governo no combate à pandemia da Covid-19, refutando acusações de que teria provocado um genocídio ao não atuar com firmeza logo no início da pandemia.

O discurso de Bolsonaro será afetado pela discussão interna sobre a visita do Secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a Roraima, fronteira com a Venezuela, para atacar a ditadura de Maduro.

Um manifesto de ex-chanceleres brasileiros apóia o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, na crítica à visita do secretário americano, que foi mesmo completamente absurda. O Brasil aceitou fazer parte de uma manobra política dos EUA contra um país vizinho, às vésperas da eleição presidencial americana. Não importa que não se concorde com a Venezuela, e até ache que ela é uma ditadura, mas não se pode autorizar o território nacional para, militar ou politicamente, atacá-la.

Há quem tema que o presidente Bolsonaro use seu discurso para mandar apoio à reeleição do presidente Trump.


Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro na ONU

Desde que assumiu o poder, o governo brasileiro é alvo permanente de críticas de artistas, intelectuais, personalidades, empresários e governos engajados na causa ambientalista

Qualquer que seja a narrativa do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da ONU, hoje, em Nova York, a política externa brasileira será sempre um prolongamento da nossa política interna. Por isso mesmo, pode ser que a sua narrativa caia completamente no vazio, se insistir na retórica de que somos o país que melhor cuida do meio ambiente no mundo, ou provocar mais ojeriza internacional ao governo atual, caso adote o discurso do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República.

Ontem, em audiência pública no Supremo Tribunal Federal(STF) sobre a aplicação dos recursos do Fundo do Clima, paralisado desde 2019, Augusto Heleno fez um discurso alarmista: “Não podemos admitir e incentivar que nações, entidades e personalidades estrangeiras, sem passado que lhes dê autoridade moral para nos criticar, tenham sucesso no seu objetivo principal, obviamente oculto, mas evidente para os não inocentes, que é prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”, disse.

Bolsonaro falará por videoconferência, numa oportunidade privilegiada, que existe desde 1947, sem que nenhuma norma escrita nos estatutos da ONU, criada em 1945, no imediato pós-guerra, assim determine. Há três versões para que isso ocorra: a primeira é de que resultou de o Brasil se inscrever primeiro nas sessões de 1949, 1950 e 1951; a segunda, de que teria sido o reconhecimento pelo papel do chanceler Oswaldo Aranha, que presidiu a Assembleia Geral Especial que criou o Estado de Israel, em 1947; a terceira, de que seria um prêmio de consolação, por termos ficado de fora do Conselho de Segurança da ONU.

Somente nos anos de 1984 e 1985 a regra foi quebrada, pelo presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. O general João Batista Figueiredo, durante o regime militar, foi o primeiro presidente brasileiro a falar na ONU, em 1982, para anunciar a abertura política que resultou na perda do poder pelos militares; até então, a tarefa cabia ao chanceler. A presidente Dilma Rousseff, em 2011, foi a primeira mulher a abrir a Assembleia-Geral.

Amazônia
A Amazônia deverá ser um dos temas da fala de Bolsonaro. Esse discurso de defesa da Amazônia pode ser bom para coesionar sua base ideológica e mobilizar o espírito patriótico militares brasileiros, porque o nacionalismo sempre sensibiliza esses segmentos; porém, para a imagem do Brasil no mundo e, principalmente, a captação de investimentos, será um fiasco. A retórica chauvinista em relação à Amazônia sensibiliza a opinião pública mundial com sinal trocado: a ideia-força é de que a região é o pulmão do mundo, e de que a humanidade corre perigo por causa do aquecimento global.

Negacionista ao extremo, Bolsonaro é visto no mundo como um governante exótico, que se equipara aos governantes mais reacionários e folclóricos do planeta. Desde que assumiu o poder, por causa de sua política ambiental, é alvo permanente de críticas de artistas, intelectuais, personalidades, empresários e governos engajados na causa ambientalista. Surpreenderia a todos se fizesse uma autocrítica, demitisse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e resgatasse o prestígio dos órgãos de pesquisa, controle e fiscalização ambiental. Mas essa não é a sua política.

Por causa das queimadas na Amazônia e no Pantanal, uma tragédia ecológica, as críticas dentro e fora do país se intensificaram. Foi fatal para a credibilidade do discurso do governo a declaração do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que aproveitaria a pandemia da covid-19 para “passar a boiada”, em plena reunião ministerial, cujo vídeo foi divulgado por ordem judicial. Desde então, a pressão de países europeus e grupos empresariais sobre o governo brasileiro tem aumentado. O pouco compromisso do governo brasileiro com o meio ambiente é um entrave à efetivação do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia.

Nesse aspecto, o depoimento de Augusto Heleno no Supremo não ajudou. Quem se posicionou corretamente foi o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ): “O artigo 225 do texto constitucional não deixa espaço para dúvidas: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Portanto, aqueles que ocupam mandatos ou cargos públicos não têm a opção de negligenciar essa obrigação, extensivamente detalhada na própria Constituição, imposta ao poder público e à sociedade. Ela se traduz em verbos como preservar, proteger, restaurar e educar.”

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-na-onu/

El País: América Latina viverá a recessão 'mais abrupta da história', alerta Cepal

Comissão da ONU alerta que não haverá reativação da economia sem controle do coronavírus e propõe renda básica emergencial como uma das soluções para construir um Estado de bem-estar na região

A reativação econômica da América Latina terá que esperar. Um novo relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) adverte que, se a curva de contágios da covid-19 não for achatada o quanto antes, as consequências serão devastadoras. A região registra 4,5 milhões de casos positivos da doença e quase 190.000 mortes, além de problemas como a taxa de informalidade trabalhista superior a 50%, desemprego, pobreza, desigualdade e sistemas de saúde frágeis. Em um cenário semelhante, qualquer hipótese de recuperação é especulativa. “No plano social e econômico, a pandemia desatou uma inédita crise econômica e social e, se não forem tomadas medidas urgentes, poderia se transformar em uma crise alimentar e humanitária”, adverte o documento, apresentado pela comissão nesta quinta-feira na sua sede, em Santiago, através de videoconferência.

O panorama econômico descrito pela Cepal e pela OPAS para a América Latina é desolador. A recessão provocada pela pandemia “é a mais abrupta da história”, com uma queda média superior a 9% nos PIBs nacionais em 2020. Os demais indicadores acompanharão o desmoronamento: o desemprego chegará a 13,5%, a pobreza subirá sete pontos, indo a 37,3%, e a desigualdade se agravará ainda mais, com uma alta de 4,9 pontos no índice de Gini. “Os altos graus de desigualdade acompanhados de elevados níveis pobreza, informalidade, desproteção social e limitado acesso à saúde oportuna e de qualidade explicam os altos custos sociais que a pandemia está tendo na região”, diz o relatório.

As fragilidades estruturais golpeiam com mais força os mais pobres, que não podem destinar recursos próprios a custear gastos extraordinários em saúde, ao mesmo tempo em que sua renda se ressente da paralisia econômica. A Cepal calcula que 95 milhões de pessoas devem pagar gastos de saúde do seu próprio bolso, e que pelo menos 12 milhões ficarão ainda mais pobres devido a estes desembolsos. A urgência deve deixar claras as prioridades. A secretária-executiva da Cepal, Alicia Bárcena, adverte que “não há dilema entre saúde ou economia, porque o primeiro é a saúde”.

pandemia expôs a fragilidade dos sistemas públicos de saúde, resultado de anos de baixo investimento: 4% do PIB, contra 6% recomendados pela OMS. “A covid-19 evidenciou fragilidades dos sistemas de saúde da América Latina. São sistemas de saúde segmentados e fragmentados”, diz Bárcena. A situação é tão grave que a diretora da OPAS, Carissa Etienne, diz que a região pode “perder em alguns meses vários anos de avanços no âmbito da saúde”. “Enfrentamos um desafio sem precedentes. É necessário criar condições econômicas e sanitárias para que não deixemos ninguém para trás”, diz.

A Cepal ensaia modelos de solução, baseados no apoio público aos setores mais vulneráveis. “Precisamos mudar nosso modelo de desenvolvimento, nosso paradigma, torná-lo mais sustentável e habitável”, diz Bárcena. “O grande desafio”, acrescenta, “é que haja um novo pacto para construir um Estado de bem-estar com políticas sociais de ampla cobertura. Por exemplo, as mulheres que estão a cargo dos cuidados deveriam receber uma renda básica, porque o que estão fazendo é um serviço à sociedade”. Entre as políticas de Estado necessárias para rebater os efeitos dela crise, a Cepal propõe uma renda básica emergencial, um bônus contra a fome e planos de proteção do setor produtivo, além da consolidação de sistemas universais de proteção social e a adoção de políticas fiscais progressivas.


Jamil Chade: Cruzada ultraconservadora do Brasil na ONU

Após se aliar a Arábia Saudita contra inclusão de educação sexual em resolução, delegação brasileira veta expressão "saúde reprodutiva" em texto contra ablação, isolando país

Huba Yousef, de 28 anos, sofreu mutilação digital na infância na Somália e, por isso, tem partos dolorosos.
Huba Yousef, de 28 anos, sofreu mutilação digital na infância na Somália e, por isso, tem partos dolorosos. J. M. LÓPEZ

É um mergulho ideológico sem precedentes na diplomacia brasileira. O Governo de Jair Bolsonaro, que já havia se aliado a países ultraconservadores como a Arábia Saudita para vetar a inclusão do termo “educação sexual” em uma resolução na ONU contra a discriminação de mulheres e meninas, agora se opõe a citar “saúde sexual e reprodutiva” num texto proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina. Ainda que o Governo brasileiro defenda lutar contra esse flagelo que atinge cerca de 3 milhões de meninas por ano, a conduta do Itamaraty vem sendo a de pedir a exclusão de qualquer referência ao acesso das mulheres à “saúde sexual e reprodutiva”. O temor da nova ultraconservadora representação do Brasil é que, no futuro, a expressão seja usada para justificar práticas de aborto. Os autores dos textos negam qualquer relação com a interrupção da gravidez e apontam que, no caso da mutilação, tal acesso pode significar a diferença entre a vida e a morte dessas mulheres.

O posicionamento do Governo brasileiro gerou a incompreensão de diplomatas estrangeiros e foi recebido com choque pelas demais delegações. Em Brasília, na sede do Itamaraty, as orientações dadas pela cúpula do ministério também causaram indignação dos próprios funcionários na capital federal. A conduta também vem isolando o Brasil na América Latina, já que o Itamaraty agora é visto como retrógrado pelos países africanos e como bárbaro pelos Governos europeus. O Governo do esquerdista Antonio Manoel López Obrador, do México, por exemplo, chegou a propor a garantia de direitos à saúde sexual para essas meninas submetidas à ablação genital, numa direção diametralmente oposta ao que os diplomatas brasileiros vem sugerindo.

O episódio que turva o debate da resolução contra a mutilação genital, prevista para ir a voto na semana que vem no Conselho de Direitos Humanos da ONU, está longe de ser inédito. A guinada ultraconservadora do Governo brasileiro vem sendo aplicada em diversas reuniões e propostas sob debate nas Nações Unidas. O Itamaraty passou a traduzir em sua política externa uma visão em que só existe o sexo biológico e que não existiria consenso sobre o acesso à saúde sexual e reprodutiva. Termos como “gênero” e “identidade” já tinham também sido questionados.

No entanto, o que surpreendeu os demais países é que, nesse caso, todos os estudos apontam para a importância do tema da saúde sexual e reprodutiva justamente no combate à mutilação genital, que é o corte ou a remoção deliberada de parte da genitália feminina externa —frequentemente lábios vaginais e o clitóris.

Segundo a OMS, 200 milhões de meninas e mulheres vivem em países que praticam a mutilação. A maioria das vítimas tem entre zero e 15 anos de idade e a prática é considerada violação de direitos humanos. Concentrada em países africanos e do Oriente Médio, estima-se que a mutilação poderia atingir 3 milhões de meninas por ano. A agência de Saúde das Nações Unidas explica que a mutilação é “visa assegurar a virgindade pré-matrimonial e a fidelidade conjugal”. “Em muitas comunidades acredita-se que a mutilação reduz a libido de uma mulher e, portanto, ajuda a resistir a atos sexuais extraconjugais”, segue a OMS .

Para a agência e para especialistas, o acesso de mulheres à saúde sexual e reprodutiva, a que o Brasil se opõe, é um importante instrumento para garantir o direito dessas meninas. Num estudo realizado em 2017, a Escola de Medicina Tropical de Liverpool indicou que “aumentar a saúde sexual e reprodutiva de mulheres afetadas pela mutilação só será possível se tomadores de decisão colocaram isso como prioridade”. Entidades como aInternational Planned Parenthood Federation (IPPF) defendem que acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutivos seja garantido a todas as mulheres que são submetidas a tal prática.

Contra a educação sexual

A indignação com a guinada da diplomacia brasileira já havia aparecido nos últimos dias. Numa resolução que propõe uma luta contra a discriminação contra mulheres, o Itamaraty também levantou sua placa para dizer que não estava de acordo com termos. O veto brasileiro, neste caso, foi apoiado por Governos ultraconservadores e acusados de violação aos direitos das mulheres. A mesma posição do Itamaraty foi adotada por Arábia Saudita, Catar, Bahrein, Iraque, Paquistão e Iraque. Já todos os ocidentais saíram em apoio ao projeto, proposto pelo México.

No caso da resolução sobre discriminação, o trecho sob disputa cita a garantia de acesso universal à educação sexual. Assim como nos demais casos, o Governo Bolsonaro não explicou o motivo de seu posicionamento.

O projeto toca em assuntos como a necessidade de “eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas”. A meta é a de reforçar a luta pela igualdade de gênero como um dos objetivos das metas de 2030. O texto também deve ir à votação na semana que vem.

Não é a única mudança no projeto solicitada pelo Brasil. Um outro trecho que o Governo quer sua exclusão completa reconheceria que “a gama completa de informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva inclui planejamento familiar, métodos seguros e eficazes de contracepção moderna, anticoncepção de emergência, programas de prevenção da gravidez adolescente, assistência à saúde materna, tais como assistência qualificada ao parto e assistência obstétrica de emergência, incluindo parteiras para serviços de maternidade, assistência perinatal, aborto seguro onde não seja contra a legislação nacional, assistência pós-aborto e prevenção e tratamento de infecções do trato reprodutivo, infecções sexualmente transmissíveis, HIV e cânceres reprodutivos”.

A pressão dos Governos islâmicos e o Brasil, porém, não convenceu os autores do projeto a aceitar sua retirada do rascunho do projeto. Ao tomar a palavra, o Governo do México afirmou que seria “difícil” excluir o parágrafo inteiro e alertou que retirar o capítulo de saúde e acesso à saúde reprodutiva minaria o centro da resolução, que é lutar contra a discriminação sofrida por mulheres e meninas.

O impasse entre o bloco ultraconservador e o restante dos Governos deve levar o projeto a ser alvo de intensas negociações nos bastidores até a semana que vem. Num outro trecho do projeto, o Governo brasileiro ainda fez um pedido para que seja reconhecido o papel de entidades religiosas na formulação de políticas públicas para a defesa das mulheres e da igualdade de gênero.

Num outro trecho, o Brasil apoiou Afeganistão e Nigéria ao questionar uma referência no texto a “outros fatores de identidade”. A postura do Itamaraty de aproximação aos Governos mais conservadores tem sido alvo de polêmicas dentro da ONU, que considerava o Brasil como um dos aliados tradicionais no avanço dos direitos das mulheres.

A atitude do governo brasileiro voltou a surpreender ativistas de direitos humanos. “O Brasil mais uma vez dá um vexame internacional e se firma no grupo de países que adotam as posturas mais retrógradas nas discussões sobre gênero nas Nações Unidas”, afirmou Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos. “A postura do órgão não condiz com as políticas adotadas no Brasil há anos e com os compromissos internacionais assumidos pelo país em matéria de gênero e direitos sexuais e reprodutivos”, disse.

Durante a reunião na semana passada para apresentar seus vetos, o Governo brasileiro tomou a palavra e explicou que tais termos “geram controvérsias”. O Governo também insistiu que “rejeita a prática do aborto como um método contraceptivo. “Planejamento familiar é um assunto de liberdade do casal e o Estado é responsável por prestar recursos a esse direito, sem coerção”, completou.


Jamil Chade: Em carta ao G-20, ONU fala em risco de pandemia "apocalíptica"

Numa carta enviada ao presidente Jair Bolsonaro e aos demais líderes do G-20 na segunda-feira (23), o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, apela para que as maiores economias do mundo se unam para dar uma resposta à crise gerada pelo coronavírus e que saiam ao resgate dos países mais pobres do mundo.

Caso contrário, o documento obtido pela coluna alerta para o risco de que o mundo seja atingido por uma "pandemia de proporções apocalípticas".

O G-20 irá manter uma reunião extraordinária nesta semana, ainda que encontros entre ministros tenham demonstrado a dificuldade do grupo em achar um plano comum.

Segundo Guterres, o mundo espera do G-20 "uma ação decisiva". Em sua avaliação, mesmo os países ricos enfrentam desafios e o impacto sócio-econômica será profundo.

O chefe da ONU também fala abertamente em uma recessão e indica que o Covid 19 vai exigir uma "resposta como nunca antes". "Um plano de guerra em termos de crise humana", disse na carta.

Para ele, o G-20 tem a oportunidade de demonstrar "solidariedade" com o mundo, especialmente com os mais vulneráveis.

Guterres divide a resposta em diferentes etapas. A primeira delas é de saúde, com uma cooperação capaz de "suprimir o vírus". Mas, para que isso ocorra, o vírus precisara derrotado em todas as partes do mundo.

Nos últimos dias, o governo americano tem usado o vírus para atacar a China, aprofundando a crise internacional. Para Guterres, o momento é de união e de cooperação para testar pessoas com sintomas e isola-los, fazer avançar a ciência e lidar com restrições de movimentos.

A ONU também pede coordenação para garantir que suprimentos médicos possam continuar a circular pelo mundo, que os governos se comprometam a não barrar a exportação de equipamentos e remédios e que os locais mais necessitados sejam auxiliados. Guterres também defende que países em desenvolvimento tenham acesso a recursos para dar uma resposta aos bilhões de habitantes nessa região do mundo.

"Qualquer coisa que não atenda esse compromisso poderia levar a uma pandemia de proporções apocalípticas afetando a todos nós", escreveu o secretário-geral.

Ele também pede que as sanções impostas sobre países sejam suspensas para permitir o acesso a alimentos e remédios.

Estímulo
Guterres também pede que governos adotem planos de estímulo para minimizar os impactos sociais. Segundo ele, a crise vai ser medida em "trilhões de dólares" e o G-20 terá de injectar recursos de mais de 10% do PIB mundial.

Ele também pede que regras fiscais sejam ignoradas. "Estamos em um período sem precedentes", disse.

Para ele, não há uma crise bancária e, portanto, a ajuda terá de ser focada em pessoas e famílias. Algumas ações neste sentido têm sido adotadas. Mas ele aponta que não são suficientes.

"Peço aos líderes do G-20 que considerem um pacote urgente de grande escala de trilhões de dólares", disse. O dinheiro precisa chegar às pequenas empresas, trabalhadores e famílias. Isso inclui perdão de dívidas, incentivos fiscais, queda de taxa de juros, crédito e apoio a salários.

Em sua avaliação, o G-20 também precisa estabelecer um pacote para ajudar os países mais pobres, inclusive para que possa se proteger. Sua tese é de que se o vírus se proliferar nas áreas mais pobres do mundo, a possibilidade de o erradicar fica afastada.

Nesta quarta-feira, Guterres ainda lançará um apelo global para que um resgate humanitário seja estabelecido.

Outro apelo do chefe da ONU aos líderes do G-20 se refere ao modelo de recuperação a ser adotado. Para ele, a economia mundial precisa criar uma estratégia de desenvolvimento mais inclusiva e sustentável.

"A crise atual é um lembrete do destino comum da humanidade e da necessidade de investimentos para reduzir os riscos catastróficos de uma pandemia", disse. Para ele, uma resposta devem envolver investimentos em saúde pública e redes de proteção.

"A crise financeira de 2008 demonstrou que os países com sistemas de proteção social robustos foram os que menos sofreram e se recuperaram mais rapidamente de seu impacto", disse.

"Estou convencido de que só a coordenação internacional pode evitar o pior cenário possível. Uma mensagem unificada de ação concertada dos líderes do G-20 é agora mais do que nunca necessária", completou.


António Guterres: Juntos venceremos o vírus

Pandemia evidencia interligação da família humana

A convulsão causada pela Covid-19 sente-se por todo o lado. Sei que muitos estão ansiosos, preocupados e confusos. É perfeitamente normal. Estamos enfrentando uma ameaça inédita à nossa saúde. O vírus está se propagando, o perigo aumenta e os nossos sistemas de saúde, economias e rotinas estão sendo postos à prova severamente.

Os mais vulneráveis são mais afetados, particularmente idosos e aqueles com histórico clínico de risco, os que não têm acesso a cuidados de saúde de confiança, os que vivem em situação ou no limiar da pobreza.

Os efeitos sociais e econômicos adversos, resultantes da combinação da pandemia com a desaceleração econômica, irão nos afetar durante alguns meses. No entanto, a propagação do vírus atingirá um pico. As nossas economias irão se recuperar. Até lá, devemos atuar em conjunto para desacelerar a sua disseminação e cuidarmos uns dos outros.

É tempo de prudência, não de pânico. De ciência, não de estigma. De fatos, não de medo.

Apesar de classificada como pandemia, a situação é controlável. Podemos diminuir as transmissões, prevenir infecções e salvar vidas. Para tal, será necessária a adoção de ações pessoais, nacionais e internacionais, nunca antes implementadas.

A Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação. Como?

Implementando estratégias eficazes de contenção, ativando e reforçando sistemas de resposta a emergências, aumentando significativamente a capacidade de testar e tratar os pacientes, preparando os hospitais, garantindo que tenham espaço, recursos e pessoal, e implementando procedimentos médicos que salvam vidas. Todos nós temos, também, a responsabilidade de seguir os conselhos médicos e de adotar comportamentos simples e práticos, recomendados pelas autoridades de saúde.

Para além de constituir uma crise de saúde pública, o vírus está infectando também a economia mundial. Os mercados financeiros foram assolados pela incerteza. As cadeias globais de abastecimento foram perturbadas. O investimento e o consumo caíram, constituindo um risco real e crescente de uma recessão global. Os economistas das Nações Unidas estimam que o vírus poderá custar, pelo menos, US$ 1 bilhão neste ano —ou até bem mais.

Nenhum país poderá enfrentar isso sozinho. Mais do que nunca, os governos devem cooperar para revitalizar as economias, expandir o investimento público, promover o comércio e assegurar apoio às pessoas e comunidades mais afetadas pela doença ou mais vulneráveis aos seus impactos econômicos negativos —incluindo as mulheres, que muitas vezes suportam um peso desproporcional na prestação de cuidados.

Uma pandemia evidencia a interligação da nossa família humana. Impedir a propagação da Covid-19 é uma responsabilidade que deve ser partilhada por todos. As Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estão totalmente mobilizadas. Como parte da nossa família humana, estamos trabalhando 24 horas por dia com os governos, propondo diretrizes internacionais, ajudando o mundo a ultrapassar esta ameaça.

Estamos juntos, e juntos venceremos o vírus.

*António Guterres, Secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas)