ongs
RPD || Gloria Alvarez: Compartilhar. Um ato de cidadania
O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo
Da noite para o dia, milhões de brasileiros que diariamente trabalhavam para, naquele dia, ter o que comer em casa ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego. A chegada da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado. Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas. No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. Agora, nem pensar. A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa “pessoa que não existe” fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus.
Na comunidade onde esse típico nordestino acariocado mora, instalou-se o medo. As entidades que distribuíam cestas básicas cerraram as portas. As faxinas que sua mulher fazia foram desmarcadas e a hora de pagar o aluguel do quartinho se aproximava, ao passo que os sacos de arroz e de feijão murchavam. E a recomendação geral era “não sair de casa”. Como? Ficar sem comida? Aumentar a dívida na vendinha? Como pagar depois? Esse cidadão brasileiro, invisível, não viu outra saída.
A primeira fagulha de luz no fim do túnel chegou com uma cesta básica entregue por quem menos esperava: o “empresário” que fornecia as balas e os biscoitos para ele vender. Claro que na cesta havia muita bala e biscoito. Mas também açúcar, feijão e arroz. Emocionado, agradeceu,
Logo depois, uma das clientes da mulher ligou pedindo sua conta bancária (como se ela tivesse...). Queria depositar a diária, apesar de a faxina não ter sido feita. Benza Deus!
A escola das crianças, fechada, sem aulas, mandou aviso: distribuiria para os pais o estoque de alimentos destinados à merenda dos alunos antes que o prazo de validade vencesse.
O líder comunitário comunicou que o movimento Ação da Cidadania (fundado pelo sociólogo Herbert de Souza) estava recolhendo nos restaurantes estoque de alimentos in natura, que em breve também venceriam, e entregando para as associações distribuírem nas comunidades do Rio de Janeiro.
Nosso personagem começou a sentir alguma mudança. Será? Pensou esperançoso.
Os especialistas não parecem ver, ainda, essa tão esperada mudança na cultura de doação do brasileiro. E como seria bem-vinda para ajudar esses cidadãos invisíveis a tomarem rumo e acertarem o passo no caminho de um reconhecimento social... Ora justificam que a crise econômica e a política deixaram o brasileiro desconfiado ao escolher uma causa para contribuir. Ora argumentam que é uma questão de educação, que deve vir de casa e da escola. “O brasileiro não considera a doação como um ato de cidadania”. Alegam também que não há estímulo governamental para aumentar as doações. Esses espasmos de solidariedade nos momentos de crises são previstos por esses técnicos que dirigem associações e organizações sem fins lucrativos (ONGs). A prática que têm no dia a dia, tentando reverter a vida de inúmeros cidadãos invisíveis, embasa tais opiniões.
Apontam, no entanto, que estimular a cultura de doação seria um dos grandes passos para fortalecer a sociedade civil. Algumas iniciativas criativas germinam e trabalham para promover essa mudança no conceito de solidariedade. O Arredondar (arredondar.org.br), por exemplo, desde 2011 adota as microdoações, geradas a partir do troco no varejo. De centavo em centavo, já arrecadaram quase R$ 5 milhões através de 23 milhões de doações. No portfólio da entidade estão catalogadas mais de 80 ONGs certificadas, que são beneficiadas.
O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que estamos vivendo com o coronavírus, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem. Elas atuam fiscalizando o comportamento do Estado, dão voz às populações e complementam a ação das políticas públicas. Nesses momentos a credibilidade, a capacidade e a organização para receber e distribuir doações mobilizam a solidariedade. Um exemplo foi o sucesso que a Comunitas (www.comunitas.org) alcançou ao levantar R$ 4,2 milhões para doar 60 respiradores para hospitais públicos de São Paulo e ainda mais R$ 23,5 milhões e mais 345 respiradores. O link https://emergenciacovid19.gife.org.br registrava R$ 1.037.862.747,00, no dia 08/04. Era o total parcial do levantamento feito pela campanha Emergência Covid-19, através de institutos, fundações e empresas.
Ações solidárias espontâneas brotaram também de março para cá. Dois restaurantes do Recife se revezam no fornecimento gratuito de almoço para os profissionais de saúde. Na marmita, um bilhete intitulado “Um sincero obrigado”. Inúmeros professores promovem aulas gratuitas de ginástica, de inglês, artesanato, gastronomia, administração de finanças e palestras. Médicos se oferecem nos prédios onde moram e na vizinhança para “avaliar situações de gastroenterites, hipertensão e outras doenças, para renovar receitas de remédios de uso contínuo e orientar sobre sintomas de urgências”. Jovens colocam avisos nos elevadores e os distribuem pelas mídias sociais (www.vizinhodobem.com.br) oferecendo-se para atender a idosos que precisem de compras de mercado ou farmácia.
Na situação em que vivemos, com uma pandemia que está matando dezenas de milhares de habitantes do planeta e esfacelando todas as economias mundiais, só há uma esperança para quem, hoje, se sente como “pessoa que não existe”: uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva. Como? Deixando de querer só para si e conseguindo enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível.
César Felício: Terceiro setor na mira
ONGs temem monitoramento criado por Bolsonaro
O alerta máximo foi acionado no terceiro setor. Existe apreensão em relação ao governo federal entre organizações não governamentais, desde as mais alinhadas com bandeiras tradicionalmente da esquerda até as bancadas pelo sistema financeiro.
Nos próximos dias caberá ao ministro da secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, desarmar o confronto que está montado com as entidades da sociedade civil ou levá-las a uma espécie de oposição ao Palácio do Planalto. A polêmica está no inciso II do artigo 5º da Medida Provisória 870, de 1º de janeiro. É a MP inaugural do governo Bolsonaro, que determinou as atribuições dos ministros palacianos. Trata-se de um dispositivo de uma única frase: estabelece que cabe à Secretaria de Governo "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional".
Para um grupo de 47 ONGs que solicitou imediatamente uma audiência a Santos Cruz, a MP abre espaço para uma espiral intervencionista. "Para resguardar o espaço cívico brasileiro, o que deveria ser garantido no momento é exatamente o contrário. É assegurar mecanismos para a sociedade civil sem fins lucrativos monitorar e acompanhar as atividades e ações do governo", disse a cientista política Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, centro de estudos especializado em políticas de segurança pública e sobre drogas.
O Igarapé recebe recursos dos governos do Canadá, Noruega, Reino Unido e da Fundação Open Society, do investidor de origem húngara George Soros. O magnata ganhou notoriedade por especular contra a libra esterlina, nos anos 90, mas usa boa parte de seu patrimônio para financiar instituições progressistas e liberais. Mais recentemente, foi forçado a encerrar suas atividades na Hungria por se sentir ameaçado por um antigo auxiliar, o atual primeiro-ministro Viktor Órban, uma das referências ideológicas de Bolsonaro e dos primeiros chefes de Estado a cumprimentá-lo após a posse, dia 1º de janeiro.
O modo como Órban encaminhou seu país para uma vertente autoritária já é objeto de uma literatura vasta na ciência política internacional. Um de seus métodos é o de agir contra instituições e entidades que vigiam o Poder. Ele interferiu no Ministério Público, na Corte Constitucional, mudou as regras eleitorais, sufocou as empresas de mídia e, por fim, criou uma norma que permite ao governo banir ONGs que sejam consideradas uma ameaça à segurança nacional.
Ilona, neta de húngaros, ressalta que Santos Cruz, militar com presença destacada em missões internacionais, conhece bem o terceiro setor e tem o perfil de uma pessoa aberta ao diálogo. O temor não é direcionado a ele, mas ao contexto maior que o governo Bolsonaro pode significar. "O populismo em si representa um risco. Na Hungria, Rússia e Polônia houve restrições do espaço da sociedade para divergir", diz a ativista.
No limite, as entidades ameaçam judicializar a questão, caso a supervisão, coordenação, monitoramento e acompanhamento do governo signifique intervenção. "Dentro da Constituição você tem dispositivos que asseguram a manifestação da sociedade de forma autônoma e livre, desde que respeitadas as regras e princípios legais", disse a diretora executiva do Centro de Liderança Pública (CLP), Luana Tavares. O CLP capacita lideranças públicas e recebe apoio do BTG Pactual, B3 e Credit Suisse, entre outros. Luana faz referência claro a três incisos do artigo 5º da Constituição, aquele trata de direitos e garantias individuais e que é cláusula pétrea. São os que permitem a liberdade de associação e que vedam a interferência estatal.
Pode-se argumentar que a medida tomada por Bolsonaro significaria zelo com o uso de recursos públicos, mas o argumento é duvidoso. Atuam no Brasil cerca de 800 mil organizações não governamentais. Destas, cerca de 10 mil recebem recursos do governo federal ou dos estaduais, em sua maioria para programas nas áreas de saúde e educação. Estão sob escrutínio de diversos órgãos de controle. "O que todos devem se perguntar é porque isto aparece agora?", indaga o cientista social Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese. A entidade mantém contratos e convênios com o poder público, a quem presta serviços.
A pergunta do dirigente do departamento intersindical de estatística é retórica. Todos imaginam o que motiva o cuidado do governo em acompanhar de perto estas entidades. A autopreservação é um instinto natural e a tendência de monitorar quem o monitora sobressai em governos que não primam pela formação de consensos.
Está claro nas últimas duas décadas, pelo menos, que a representatividade social dos partidos está em queda e entidades da sociedade civil ganharam peso no debate político. É um fenômeno que não pode ser superestimado - ONGs não derrubaram governos e nem elegeram presidentes - mas que ajuda a entender por que se abriu espaço para a vitória de um político como Jair Bolsonaro.
A ameaça concreta à base de apoio de um grupo político que concentra o poder não está no meio partidário. Não será o PT, cuja presidente, a senadora Gleisi Hoffmann viaja a Caracas para render homenagens a um ditador como Maduro, que desgastará neste instante a Bolsonaro. E nem Ciro Gomes com suas entrevistas. Antes pelo contrário, antagonizar estas forças tende a vitaminá-lo. Trata-se de um jogo jogado.
Villas Bôas
Passa o comando do Exército hoje o general Eduardo Villas Bôas. Afora o destemor com que enfrentou doença grave, ele ficará marcado por representar um ponto de inflexão. Por 20 anos não se conheceu o som da voz dos comandantes da Força, na algaravia do debate político. Em entrevista há dois meses, ao jornal "Folha de S.Paulo", o general relatou como se esforçou em ter o que chamou de "domínio da narrativa", frente à pressão crescente, muito estimulada por militares da reserva, para que os generais entrassem no jogo político, o que terminou por acontecer. O general alertou: o ativismo dentro dos quartéis é "um risco sério". Saber se o próximo comandante, Edson Pujol, pisará no freio ou no acelerador, ou deixará o carro descer a ladeira no embalo, será essencial para a democracia.