OMS
Correio Braziliense: Descontrole do novo coronavírus no Brasil ameaça o mundo, alerta OMS
País chegou, ontem, ao segundo maior número de mortes pela covid-19 em 24h: 1.800, segundo o Conass. Número reforça a preocupação manifestada pelo diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom, que recomenda medidas "agressivas" para tentar conter o avanço do vírus
Sarah Teófilo e Maria Eduarda Cardim, Correio Braziliense
O descontrole na transmissão do novo coronavírus no Brasil já é motivo de preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ontem, o diretor-geral do organismo das Nações Unidas, Tedros Adhanom, afirmou, em resposta à pegunta feita pelo Correio, que a situação do país é uma ameaça para a América Latina e para o mundo. Para reforçar as afirmações do dirigente, de acordo com o Painel Conass Covid-19, elaborado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde –– cujos números são reproduzidos pelo Ministério da Saúde ––, o país chegou ontem às 1.800 mortes em apenas 24h, o segundo maior registro de óbitos de um dia para outro. O total de vidas perdidas é de 262.770 e o de casos da doença, 10.869.227.
De acordo com Adhanom, o Brasil precisa adotar medidas “agressivas” para a contenção do avanço do novo coronavírus, enquanto distribui a vacina à população. “Nós estamos preocupados, mas a preocupação não é apenas com o Brasil. Têm os vizinhos, quase toda América Latina, muitos países. Isso significa que, se o Brasil não for sério, vai continuar afetando todos os vizinhos, e além. Então, isso não é apenas sobre o Brasil, mas também sobre toda a América Latina e além”, explicou.
O diretor-geral da OMS ressaltou que, enquanto em muitos países observou-se uma redução de casos nas últimas seis semanas, no Brasil a tendência foi de aumento. “Acho que o Brasil precisa levar isso muito a sério”, reforçou. Adhanom acrescentou que “a adoção de medidas públicas de saúde em todo o país, de forma agressiva, seria crucial. Sem fazer nada para impactar na transmissão ou suprimir o vírus, não acho que, no Brasil, conseguiremos uma queda. Quero enfatizar isso: a situação é muito séria e estamos muito preocupados. E as medidas públicas que o Brasil adotar precisam ser muito agressivas, enquanto distribui vacinas”, afirmou.
A variante que surgiu no Amazonas é alvo de preocupação da OMS, já que tem mutações que dão ao novo coronavírus vantagens na transmissão. “Nós estamos preocupados sobre a P.1. Ela tem mutações específicas que dão ao vírus vantagens, particularmente na transmissão. Não há dúvida de que ela adicionou à complexidade da situação que o Brasil vive”, salientou o diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da organização, Mike Ryan.
Já a líder técnica de resposta à covid-19, Maria Van Kerkhove, pontuou que, entre as três variantes que estão sendo rastreadas pela OMS, está a amazonense, que, como ressaltou, é associada ao aumento de transmissibilidade. “Se você tem aumento de transmissibilidade, você terá aumento de casos, aumento de pacientes que vão precisar de hospitalizações e aumento daqueles que desenvolvem casos graves. Isso pode ter impacto no sistema de saúde, o que pode ocasionar no aumento de mortes. Vimos isso em outros países”, afirmou.
Sentido oposto
Enquanto a OMS alertava que o Brasil tornou-se uma ameaça ao mundo por causa do descontrole da pandemia e da nova cepa do vírus originária do Amazonas, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comentou que “podemos estar a duas ou três semanas de redução de casos de covid após forte vacinação”. Em evento promovido pela American Society/Council of the Americas, ele destacou que o ritmo da imunização no país não segue a velocidade dos EUA, pois o Brasil contemplou, até o momento, “4% da população”.
“O sistema de saúde está sob stress, mas, no geral, está bem. As pessoas querem vacinação, mas não querem o fechamento da economia”, disse Araújo, alfinetando os governadores que estão adotando restrições de circulação de pessoas e de funcionamento do comércio.
Enquanto o governo nega problemas no processo de vacinação e de esgotamento das UTIs dos sistemas de saúde público e privado dos estados, um total de 1.703 municípios, dentre os quais 23 capitais estaduais, formalizou interesse em compor o consórcio público a ser constituído pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) para comprar diretamente vacinas contra a covid-19. Segundo a entidade, o grupo de cidades interessadas soma mais de 125 milhões de habitantes, o que corresponde a cerca de 60% da população brasileira. As três capitais que, por ora, ficariam ausentes do consórcio são Macapá, Vitória e Natal.
Na última quarta-feira, o presidente da FNP, Jonas Donizette, afirmou que o anúncio do governo federal de que comprará as vacinas da Pfizer e da Janssen não conflita com a construção do consórcio de municípios, já que, segundo ele, o propósito da iniciativa sempre foi estruturar uma ação complementar à do Ministério da Saúde.
“Talvez a adesão maciça dos prefeitos tenha até ajudado o governo a tomar essa decisão. Jamais saberemos se o empurrão foi nosso, mas isso pouco importa”, escreveu o ex-prefeito de Campinas no Twitter. “O que nos interessa, mesmo, é que a vacinação dos brasileiros seja um fato, não uma promessa”.
Donizette relatou, ainda, que, mesmo que o governo federal compre todas as vacinas, o consórcio liderado pela FNP continuará sendo necessário para adquirir medicamentos, insumos e equipamentos “com possibilidade de negociação de preços melhores, poupando recursos públicos”.
Merval Pereira: Caindo pelas tabelas
Por onde quer que se pegue, o Brasil está literalmente descendo a ladeira, caindo pelas tabelas das principais estatísticas internacionais. A começar pelo combate à pandemia da Covid-19, passando por questões internas que nos afastam assustadoramente do mundo ocidental civilizado. Em números absolutos, temos o desonroso segundo lugar no mundo, com mais de 255 mil mortes por Covid-19.
Mesmo quando colocado em termos proporcionais, o número no Brasil fica entre os 30 países mais atingidos dos 178 com mais mortes por Covid-19 para cada 100 mil habitantes. Também na comparação proporcional, houve mais mortos no Brasil do que na Argentina, Alemanha e Rússia. Com relação à vacinação em massa, a estimativa é de que só será alcançada em meados de 2022, segundo a Economist Intelligence Unit.
A plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, indica que o Brasil aplicou, até o momento, 3,97 doses para cada 100 habitantes. O país com a maior taxa de vacinação no mundo é Israel, com 93,5 vacinados para cada 100 habitantes. Não por acaso, o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, faz propaganda na televisão para estimular a vacinação, e o presidente brasileiro usa suas lives na internet para propagar o negacionismo, falar contra o uso de máscaras e sobre os pretensos perigos da vacinação.
Essa calamidade do combate à pandemia no Brasil se refletirá certamente na medição do Índice de Desenvolvimento Humano feito pelo Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud), que avalia a saúde, a educação e o padrão de vida dos países. O Brasil perdeu cinco posições no ranking mundial na última medição, passou do 79º para o 84º lugar entre 189 países. Perdemos também duas posições na América Latina, ficando atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia.
Com relação à educação, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês) registrou em 2019 ligeiro avanço dos estudantes brasileiros, que seguem, no entanto, entre os 20 piores colocados entre as 80 nações avaliadas em Ciências, Matemática e Leitura. Com todos esses resultados, ainda acrescentamos à nossa desdita um Congresso que propõe acabar com a verba obrigatória no Orçamento para Educação e Saúde, e um governo que, ao mesmo tempo que tenta ser admitido na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), desdenha medidas de boa governança exigidas de seus membros, como valorização da democracia e dos direitos humanos, até regras de proteção ao meio ambiente e no combate à corrupção.
Na questão ambiental, retrocedemos 20 anos em dois no governo Bolsonaro. O Brasil, que já sediou congressos fundamentais e teve protagonismo internacional na discussão da proteção ambiental, hoje tornou-se um pária. A batalha contra a corrupção vai sendo gradualmente perdida por decisões jurídicas e parlamentares. Já não há pudor em debater mudanças em temas como nepotismo, improbidade administrativa ou impunidade parlamentar. Ou em defender alterações na Lei de Ficha Limpa.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, anuncia agora uma reforma política “profunda”, que pretende amenizar a legislação de cláusulas de barreira para atuação plena no Congresso dos partidos, acabar com a proibição de coligações nas eleições proporcionais e certamente amenizar as barreiras a candidatos condenados, como estava na versão original da PEC da Impunidade.
Os partidos que não conseguirem atingir as metas em 2022 para a eleição da Câmara perderão pela primeira vez o direito de ter financiamento público, tempo no rádio e televisão de propaganda eleitoral e até mesmo estrutura de gabinete e presença em comissões e na Mesa da Câmara.
Essa é uma tentativa de repetir uma experiência já vivida. As cláusulas de barreira foram aprovadas em 1995, para vigorar dez anos depois. Teoricamente, os partidos teriam tempo suficiente para se organizar. Em 2006, esses mesmos partidos entraram no Supremo Tribunal Federal contra as novas regras, e os ministros acataram os apelos em nome de “defender as minorias”. Chegamos aonde chegamos.
Míriam Leitão: Vida mais curta e outros recuos
Em 2030 ainda se sentirá o efeito da pandemia nas estatísticas brasileiras. As projeções refeitas da população podem registrar de um milhão e meio a três milhões menos brasileiros do que haveria se não tivesse ocorrido a pandemia. A crise sanitária reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em 2,2 anos, segundo cálculos atualizados da demógrafa Ana Amélia Camarano, e isso mexe com todas as outras projeções. Há vários efeitos da pandemia na vida das pessoas. A participação da mulher no mercado de trabalho caiu aos níveis dos anos 1990. A morte dos mais velhos pode impactar fortemente a renda de milhões de famílias.
Há muito tempo os demógrafos calculam o momento em que o número de habitantes do país passará a diminuir anualmente, em vez de aumentar. Cada demógrafo ou instituto faz um cálculo diferente, dependendo das premissas. Mas uma coisa é certa: o encolhimento vai acontecer mais cedo e de forma mais intensa por causa da redução da expectativa de vida que está ocorrendo agora.
— Comparando a projeção que eu fiz em 2018 para a população brasileira com a que faço diante da diminuição da expectativa de vida, concluo que haverá um milhão e meio de brasileiros a menos na população. Na projeção do IBGE, o número pode ser de três milhões de brasileiros a menos. Alguns dados ainda nem se conhece, como a queda da taxa de fecundidade — diz a pesquisadora do Ipea.
Ana Amélia vinha chamando a atenção nos seus artigos e entrevistas para o fenômeno do prolongamento da vida no Brasil, e todas as mudanças decorrentes disso. Os brasileiros vivendo mais mudavam os seus hábitos e isso tem impacto na economia. A demógrafa costuma usar a expressão “os novos velhos” para se referir a pessoas com mais de 60 anos que estão mudando o conceito do que é ser velho:
— A recomendação médica era para a pessoa sair de casa, fazer exercício, encontrar os amigos para ter uma velhice saudável. O mercado de trabalho começava a rever seus conceitos, aceitando pessoas mais velhas. Um mercado de consumo de viagens, turismo e entretenimento se voltava para esse segmento. A pandemia mudou tudo isso.
As pessoas com mais de 60 anos são o alvo principal de um vírus que tem matado no Brasil numa intensidade alarmante. Para permanecer vivos, eles precisam abandonar os bons hábitos:
— Os idosos precisam mesmo se proteger porque 77,6% das mortes ocorrem na faixa com 60 anos ou mais. É justamente o grupo que tem um impacto crescente no consumo de lazer, turismo. Quem ainda estava no mercado de trabalho saiu pelo medo de se contaminar ou foi demitido porque aumentou o preconceito contra os idosos. A pessoa saiu da ideia da “melhor idade” para a do “grupo de risco”.
A população idosa continua sendo a que mais cresce, porque no passado nasceu muita gente, mas ela vai crescer menos. Aumentou para quase oito anos a diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres. A desigualdade de expectativa de vida entre negros e brancos deve aumentar.
— E é a população preta e parda que está mantendo o Brasil funcionando, mesmo no isolamento social — lembra a pesquisadora.
São muitas as consequências e as sequelas desta pandemia. Há a mortalidade indireta. Muitas pessoas não puderam ser tratadas de outras doenças porque os hospitais estavam lotados pela Covid ou porque adiaram exames preventivos. O número de mamografias no SUS, segundo o alerta feito pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, na Globonews, foi menos de 50% em 2020 comparado a 2019.
— O câncer de mama é o que mais mata mulher no Brasil — lembra Ana Amélia.
Existem outras consequências. Há 21 milhões de domicílios nos quais a renda dos idosos é mais da metade da renda da família:
— Nesses domicílios há seis milhões de crianças com menos de 15 anos. Quando morre o idoso, a família não fica apenas órfã, ela fica mais pobre.
E ainda encolheu o mercado de trabalho para a mulher:
— A participação da mulher no mercado de trabalho voltou aos níveis dos anos 1990. Muitas tiveram que deixar o emprego para cuidar dos filhos, outras foram demitidas, as mulheres trabalham muito nos serviços e no comércio. Houve queda forte também no número de vagas para empregadas domésticas.
Depois da pandemia haverá muito trabalho para combater todos os efeitos desta tragédia que vivemos.
Carlos Andreazza: Um modo de privatizar
O Parlamento esteve paralisado — por mais de semana — em decorrência do caso Daniel Silveira; escada para que Arthur Lira pusesse em marcha o trator que pretendeu alargar a câmara de blindagem que distingue a casta política brasileira. Afinal, a PEC da Impunidade não prosperaria. Mas foi a agenda legislativa do Brasil — ainda sem Orçamento para 2021, ainda sem solução para a volta do auxílio emergencial — na semana em que o país bateu o recorde de mortos pela peste em um só dia.
Nada mais se moveu no Congresso, desde a prisão do deputado, senão a tentativa corporativista de subverter o princípio da imunidade parlamentar para que crimes como o de Silveira — contra a ordem democrática — restassem autorizados. O Parlamento, à cata de escudar seus investigados por corrupção, quase aceitou dar guarida à fábrica de conflitos que ataca a própria democracia representativa. Exemplo perfeito do que produz a sociedade entre bolsonarismo e Centrão. Exemplo também de por que a natureza — para o golpismo — da base social que elegeu Bolsonaro contamina e interdita qualquer pauta reformista.
Avalie-se a constituição da persona do presidente e do fenômeno reacionário que encarna — exercício que mostra como sempre foi improvável crer que um seu governo pudesse reformar o Estado. Um sujeito cuja ignorância econômica forjou-se na segunda metade da década de 1970; péssimo militar cujos rudimentos sobre economia beberam do fetiche de um Brasil Grande induzido pelo governo central.
O apego ao tamanho da superfície estatal aumentaria com a chegada a Brasília. No curso de três décadas, Bolsonaro — aboletado nas bordas fartas (aquelas recheadas de catupiry) da pizza do establishment — se estabeleceria como bem-sucedido líder classista, agente contra qualquer esboço de diminuição do território em que ergueu frutífera (sim, laranjas) empresa familiar.
Um tipo que, para acrescentar complexidade ao reformismo impossível, tornou-se competitivo nacionalmente ao incorporar a demanda de ressentimentos variados contra o sistema de que sempre foi parte, eleito presidente associado a (e dependente de) um ímpeto por ruptura institucional, movimento desestabilizador em essência, que tem personificação em Daniel Silveira e efeito materializado na revolução dos caminhoneiros que travou o país em 2018.
Um presidente — com cabeça de sub-Geisel, que, agora desde o Planalto, orienta-se em função dos interesses dos mesmos grupos de pressão (armados, não raro amotinados) de quando era vereador — que é o próprio núcleo provedor da instabilidade avessa ao mais mínimo programa de reformas do Estado. Isso, claro, se houvesse projetos para reformar o Estado. Não há. Porque a Bolsonaro se juntou — para compor este raro espetáculo de estelionato eleitoral — um ministro da Economia incompetente como gestor público e que, politicamente autoritário, apaixonou-se pelo populista autocrata que o chefe é. Reformas?
Não se iluda mais, amigo liberal. Daqui até 2022, com algumas migalhas para as viúvas de um Guedes de fantasia, a parceria entre iguais — Bolsonaro e Lira — trabalhará por proteção e reeleição; o que significará mais Estado, contida na ideia de proteção a defesa das mamas em que os presidentes da República e da Câmara engordam há décadas. (Mas você pode acreditar que os estudos modais para a capitalização da Eletrobras avançarão celeremente até que a operação esteja pronta, a ser realizada à véspera ou no próprio ano eleitoral.)
Veja-se a maneira como vai humilhada a tal PEC Emergencial, prioridade de Paulo Palestra. Um projeto que se tentou requentar socado como contrapartida à retomada do auxílio; transformado, porém, numa frondosa árvore de jabutis perversos, a ponto de se haver condicionado a retomada urgente do auxílio ao fim dos pisos constitucionais para Saúde e Educação. Uma aberração. Que não prosperará — felizmente. Mas de cujo impasse se insinua, tocado pela pressa, o improviso. Tem método. O bolsonarismo depende de volubilidades.
O ciclo da fortuna bolsonarista, beneficiado e acelerado pela peste, consiste em prolongar — pela inação calculada — a circulação do vírus, provocar o caos (pela falta de vacinação em massa), atribuir responsabilidades a inimigos artificiais (governadores) e colher créditos extraordinários, para os gastos populistas que financiarão 2022, liberados pela urgência em enfrentar problemas deliberadamente gerados pelo governo Bolsonaro.
Porque o auxílio voltará — sempre se soube, mesmo quando se apregoava a mentira de que o vírus cedia, e a economia se recuperava em V. E a PEC Emergencial avançará, tudo indica, como síntese do liberalismo do amanhã de Guedes; minguando no Senado até resultar num corpo de compensações fiscais desprovidas de impacto imediato. Isso se o auxílio não regressar sem o estabelecimento de qualquer resposta fiscal — nem mesmo as empurradas ao futuro. A pandemia — que é sustentada no Brasil — desculpa e justifica. Reaja-se.
É o que querem Bolsonaro e seus parceiros do Centrão: um cheque especial, à margem do teto de gastos, para investir em popularidade e apaniguados — e que se dane a dívida pública. O minion Guedes topa. O presidente informa que as privatizações devem ficar para 2023. Não mente. A autocracia é um modo de privatizar. Guedes fica. Sabe bem ao que serve.
Andrea Jubé: A pandemia pela cartilha do coronel
Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid
O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.
Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.
Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.
Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”
De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.
O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.
Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.
A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.
No Brasil, a perda de centenas de milhares de vidas, vítimas da covid-19, não despertou empatia em segmentos da classe política nem em segmentos da população. As aglomerações em bares e outros locais públicos, e festas clandestinas, ocorrem à luz do dia. Políticos e populares ainda resistem à adesão aos cuidados mais comezinhos, como uso de máscaras e distanciamento social.
Um dos papéis das autoridades na pandemia deveria ser a conscientização dos brasileiros quanto à relevância de seguir os protocolos sanitários para coibir a disseminação do vírus.
A pandemia está em escalada galopante, mas os números não assustam. Um ano depois, chegamos ao pior momento da pandemia, com uma média móvel de 1.208 mortes diárias. São cinco Boeings caindo por dia, pela metáfora do neurocientista Miguel Nicolelis.
Contabilizamos mais de 10 milhões de contaminados, e mais de 255 mil óbitos. É como se enterrássemos de uma vez a população de uma cidade inteira do tamanho de São Carlos (SP), ou Foz do Iguaçu (PR), sem direito a velório. As UTIs estão lotadas em todos os Estados.
O comportamento dos políticos que se omitem, ou que propagam discurso negacionista, estimula a conduta de uma parcela de brasileiros que resiste a encarar a pandemia.
Ontem a doutora Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista da Rede D’or, alertou em entrevista à “Globonews” que estamos à beira de um colapso nacional. Ela atribuiu o quadro dramático também a uma parcela de brasileiros que se esbaldou no carnaval em festas clandestinas, favorecendo o contágio.
Na quinta-feira, quando o Brasil atingiu um recorde de mortes por covid-19 (1.582), o presidente Jair Bolsonaro criticou, sem base científica, o uso de máscaras, em um comportamento que estimula seus seguidores a imitá-lo.
Ontem o correspondente no Brasil do “The Washington Post” alertou que a tragédia em curso no Brasil pode ter “implicações globais”. Ele afirmou que se o Brasil não controlar o vírus, vai se transformar no “maior laboratório aberto do mundo para o vírus sofrer mutação”, favorecendo a “disseminação de variantes mais letais e infecciosas”.
Em outra frente, governadores e políticos independentes, ou da oposição, buscam saídas para driblar a lentidão do Programa Nacional de Imunização, e também para cobrar responsabilidade das autoridades que podem ser acusadas de negligência.
Mais da metade dos governadores enfrentam a ira de empresários, de seus opositores e de segmentos da população por adotarem “lockdown” ou medidas restritivas, como toque de recolher, no esforço de conter o vírus. Ontem o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu imediato “lockdown” nos Estados com mais de 85% de ocupação de leitos, e de um toque de recolher nacional.
Sob ataque de Bolsonaro, hoje os governadores reúnem-se em Brasília com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na base eleitoral de Lira, em Arapiraca, segunda cidade mais importante de Alagoas, causou comoção na semana passada a morte de uma enfermeira vítima da covid-19. Ela se recusou a tomar a dose da Coronavac, a que tinha direito por ser profissional de saúde, por duvidar da comprovação científica do imunizante, embora autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Lira perdeu a oportunidade de se manifestar para condenar a disseminação de “fake news”, mazela que contribuiu, pelo menos lateralmente, para a morte de sua conterrânea, quiçá eleitora.
Diante dessa conjuntura, no Senado, alguns parlamentares voltam a carga contra o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana para pressioná-lo a instalar a CPI da covid.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que os fatos mais recentes sobre a pandemia “precipitam a instalação da CPI”. Ele cita, por exemplo, o depoimento modificado do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, à Polícia Federal; o embate do presidente com os governadores; a persistência do discurso negacionista.
O Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real têm em comum a falta de empatia pelo semelhante, ou seja, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, de compartilhar a dor do outro. Mas, ao contrário do personagem, também falta a alguns políticos uma dose de pragmatismo para que se movimentem para salvar seus eleitores. A Justiça Eleitoral não instala urnas no cemitério.
Ricardo Noblat: Quem desconhece o passado é incapaz de enxergar o futuro
Que país é o Brasil?
Que país é este onde a Independência foi proclamada por um estrangeiro e a República por um general monarquista? Onde um presidente se suicida para não ser deposto, outro renuncia na esperança de voltar nos braços do povo e não volta, e um terceiro baixa ao hospital 24 horas antes de tomar posse e morre?
Que país é este onde militares cancelam a democracia a pretexto de defendê-la, implantam uma ditadura que dura 21 anos, expulsam do Exército um capitão que planejara atentados a bomba a quartéis, e depois de marginalizá-lo por décadas o ajudam a se eleger presidente da República, a governar e a comandá-los?
Que país é este onde a maior parte do povo, ou parte expressiva dele, ameaçada de morte por um vírus há mais de ano, dá ouvidos e poderá em breve dar seus votos para reeleger um presidente que só faz mentir desde que assumiu o cargo, e que prefere sacrificar vidas a reconhecer e corrigir a tempo os erros que comete?
Que país é este onde a assaz louvada maior operação de combate à corrupção jamais vista no mundo desmorona à luz da descoberta de que seus condutores violaram princípios do Direito aprendidos nos bancos escolares e ultrapassaram limites impostos pelas leis que tinham a obrigação de respeitar com o máximo rigor?
Este país é o nosso, que se dizia antigamente o país do futuro, há séculos dividido entre os poucos ricos e os milhões de pobres, entre os brancos que ocupam os postos mais elevados na órbita dos poderes e os pretos contados que conseguem chegar lá, entre os que toleram o intolerável e os que a ele resistem a duras penas.
Joel Pinheiro da Fonseca: Cercear extremismos desonestos faz bem ao debate público
Sem um chão comum na verdade objetiva, discussão na sociedade perde sua razão de ser
As empresas de redes sociais, bem como os Estados nacionais, têm tomado medidas que na prática limitam o debate público. Negacionismo, cloroquina, desejo de matar ministros; tudo isso vem sendo cerceado. Devemos nos preocupar pela liberdade de expressões tolhida?
A ciência, e o pensamento humano de maneira geral, precisa do contraditório para progredir. A defesa de hipóteses minoritárias, teses ousadas e mesmo dissidentes é benéfica para o conhecimento. Por vezes, a posição minoritária pode estar certa. Mesmo quando errada, pode ter alguns elementos corretos, ter identificado falhas reais na tese dominante. E, mesmo quando a tese majoritária está correta, a necessidade de defendê-la fortalece os argumentos a seu favor.
Uma das características da real discussão de ideias é que ela se dá longe da pressão popular. Seu objetivo é a verdade (nunca plenamente alcançada), e não a popularidade, o dinheiro ou o poder. Ela se dá prioritariamente entre especialistas e outros interlocutores já familiarizados com a fronteira do conhecimento. Esses são sempre poucos, ao contrário do grande público, incapaz de acompanhar o estado atual da discussão.
Muito diferente dessa discussão abstrata é o debate público, que visa persuadir milhões. Aqui, a força da argumentação pura vale menos do que a habilidade retórica de tocar os sentimentos dos leitores e espectadores.E ele está quase sempre ligado às decisões práticas que a sociedade tomará e que trarão impactos reais.O debate público também ganha com a divergência. É no exercício da discussão que as pessoas aprendem a pensar melhor. E como vivemos numa democracia, é o entendimento imperfeito do público que balizará as decisões da gestão pública.
Ele não se presta, contudo, a resolver divergências intelectuais. A opinião da maioria é um péssimo juiz da verdade de qualquer tese minimamente complexa. Assim, trazer a esse público teses dissidentes incapazes de se sustentar perante especialistas, munidas apenas de artifícios retóricos para promover a adesão sentimental da maioria, é uma prática desonesta.
Não há problema nenhum em se fazer um estudo acadêmico sobre a eficácia da cloroquina ou do uso de máscaras no combate à Covid, caso algum pesquisador julgue-o relevante.
Agora, defender aguerridamente a cloroquina ou atacar as máscaras nas redes sociais e em jornais de grande circulação é desonesto e prejudicial.
Se os principais participantes do debate público não se comprometem a se pautar pelo estado atual da discussão entre especialistas, criam mundos paralelos de desinformação.
O único resultado possível é a polarização da sociedade em grupos cada vez mais incapazes de se comunicar. O conhecimento se perde em meio aos ruídos da política.
No plano do conhecimento, da discussão ideias, a liberdade deve ser total. E não há necessidade alguma de chegarmos a consenso; podemos passar a eternidade discordando, sempre com argumentos melhores, com enorme prazer nessa empreitada.
No plano do debate público, contudo, decisões concretas impactarão a todos nós.
A desonestidade é sempre ruim, mas em momentos de calamidade, nos quais uma crença equivocada pode levar a milhares de mortes, torna-se intolerável. O próprio debate público, sem um chão comum na verdade objetiva, perde sua razão de ser. O cerceamento do extremismo desonesto é bem-vindo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
O Estado de S. Paulo: Grupo da OMS publica 'forte recomendação' contra uso de hidroxicloroquina na prevenção à covid-19
Painel de especialistas divulga posição nesta segunda como parte de nova diretriz que analisa eficácia de medicamentos. Estudos não mostraram efeitos sobre morte ou internações e apontam riscos de efeitos adversos
Marco Antônio Carvalho, O Estado de S.Paulo
Um painel de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou nesta segunda-feira, 1º, uma recomendação contrária ao uso da hidroxicloroquina como método de prevenção para a covid-19. Eles dizem que os estudos não mostraram efeitos significativos sobre mortes ou internações e apontaram riscos de efeitos adversos provocados pela substância. O presidente Jair Bolsonaro defendeu o uso do remédio ao longo da pandemia, embora várias pesquisas tenham mostrado que ele não tem eficácia contra o vírus.
A nova recomendação é de autoria do Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes (GDG, na sigla em inglês) da OMS. Os especialistas dizem que a “forte recomendação” é baseada em evidências de alta certeza obtidas em seis estudos randomizados e controlados com 6 mil participantes.
“A evidência de alta certeza mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo em mortes e admissões em hospitais, enquanto evidência de certeza moderada mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo sobre infecções confirmadas em laboratório e provavelmente aumenta o risco de efeitos adversos”, declarou a OMS em nota à imprensa.
O grupo, diz a organização, considera que a droga não tem mais prioridade para pesquisa e que os recursos devem ser usados para avaliar outras drogas mais promissoras na prevenção contra o vírus. “Essa diretriz se aplica a todos que não têm covid-19, independentemente da exposição a uma pessoa com a infecção”, reforçou.
A recomendação desta segunda é a primeira versão de uma diretriz voltada a medicamentos capazes de prevenir a doença. O objetivo da OMS é promover orientação confiável sobre a gestão da covid e ajudar médicos a tomarem melhores decisões para seus pacientes. A diretriz poderá ser atualizada diante de evidências. Novas recomendações serão acrescentadas no momento em que estudos de relevância se tornarem disponíveis.
A cloroquina e a hidroxicloroquina integram orientação oficial emitida pelo Ministério da Saúde no ano passado, com recomendação voltada a casos leves, moderados e graves. Neste ano, um aplicativo da pasta chegou a sugerir os remédios até a bebês, e foi retirado do ar. O Estadão mostrou que as prefeituras que receberam a doação do ministério agora querem devolver os medicamentos sem eficácia.
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Jamil Chade: Sem controle, Brasil caminha para superar EUA e gera preocupação mundial
O crescimento no número de casos no Brasil, a incapacidade de o governo de implementar medidas para frear o vírus e os temores de que a variante brasileira comece a se espalhar acendem um alerta global.
Em reuniões fechadas da OMS (Organização Mundial da Saúde), a situação brasileira é tida como "preocupante" e projeções já apontam que, se não houver uma mudança profunda na forma de o Brasil lidar com a crise, o mês de março poderá terminar com o país superando os EUA em número de novas infecções e, eventualmente, em termos de mortes diárias.
No que se refere aos números totais desde o início da crise há um ano, o território americano continua sendo o mais atingido, com 28,2 milhões de casos de pessoas infectadas, seguido por 11,1 milhões na Índia e 10,5 milhões no Brasil.
Depois de seis semanas de queda no número de novos casos globais, a OMS indicou que a semana passada viu um novo aumento nas infecções em quatro das seis regiões do mundo. Mas a curva começa a sofrer uma transformação e o Brasil surge como um dos focos de maior alerta, não apenas pelo comportamento do vírus, mas também pela insistência das autoridades em negar a necessidade romper as cadeias de transmissão.
Em meados de dezembro, os americanos registravam 1,6 milhão de novos casos por semana, contra 326 mil no Brasil. Nos últimos sete dias, de acordo com as contas da OMS, foram 471 mil novos casos nos EUA, contra 378 mil no Brasil. Nesse ritmo, as cidades brasileiras poderão ocupar o primeiro lugar em poucas semanas. Hoje, a população americana supera a marca de 331 milhões de pessoas, contra 211 milhões no Brasil.
Em termos de mortes, os americanos superavam a média de 18 mil novos mortes por semana em dezembro de 2020, contra 5.200 no Brasil. Nos últimos sete dias, os dados mostraram uma tendência inversa. Nos EUA, foram 14 mil novos óbitos, contra 8.200 no Brasil.
As disparidades em termos de vacinação também contribuem para uma virada nesses números. Nos EUA, já são mais de 50 milhões de pessoas que se beneficiaram da campanha de imunização, contra menos de 7 milhões no Brasil. Para as próximas semanas, o acesso a novas vacinas também é delicado.
Em negociações, farmacêuticas têm alertado que o governo que fizer um pedido de fornecimento neste momento receberá doses apenas no segundo semestre do ano, na melhor das hipóteses. Quanto às vacinas da Covax, a aliança mundial, o Brasil receberá 9,1 milhões de doses até junho, bem abaixo dos 14 milhões que o Ministério da Saúde havia anunciado em fevereiro.
Na última sexta-feira, o chefe de operações da OMS, Mike Ryan, abandonou sua tradicional diplomacia para alertar que o Brasil vivia uma "tragédia" e que a situação deveria servir de lição ao mundo de que não há como relaxar medidas de controle.
Mas sua fala também evidenciou uma crítica velada ao governo federal. Ao destacar os esforços feitos no Brasil, ele aplaudiu os cientistas do país e os governadores de estados, sem qualquer referência ao Ministério da Saúde ou ao Palácio do Planalto.
Os comentários geraram um mal-estar entre membros do governo brasileiro. No passado, falas da OMS levaram as autoridades nacionais a disparar cartas ao organismo para se defender.
Diplomacia esgotada?
Por meses, a ordem interna na OMS era a de evitar qualquer crítica contra o governo brasileiro, já que o objetivo principal era ajudar o país a superar a crise, oferecendo auxílio técnico, orientação e mesmo materiais.
A coluna apurou que, no auge das críticas de Bolsonaro contra a OMS no primeiro semestre de 2020, a agência mantinha um trabalho no país, sem fazer qualquer tipo de declarações ou alarde. Em troca de um acesso às cidades brasileiras, a opção da agência era a de manter silêncio e não rebater os ataques do presidente.
Bolsonaro, o louco
Dentro das agências internacionais, porém, uma parcela dos técnicos começa a alertar que a estratégia não tem dado resultados. Bolsonaro passou a ser tratado como "louco", enquanto se multiplicam cartas e denúncias da sociedade civil, parlamentares, indígenas, religioso e ex-ministros pedindo uma reação internacional.
A resposta brasileira também está sendo alvo de uma investigação por parte de um grupo independente, montado pela OMS para avaliar como diferentes governos e ela mesmo deram resposta para a crise. O resultado do inquérito deve ser publicado em maio.
O Ministério da Saúde recebeu um questionário sobre a estratégia adotada no Brasil e tudo o que foi feito, desde janeiro de 2020. Todos os governos membros da OMS foram consultados. Mas, segundo a coluna apurou, as respostas dos países como o maior número de casos vão servir para que o comitê avalie por qual motivo alguns governos conseguiram frear a crise, enquanto outros não tiveram o mesmo sucesso.
Variante brasileira preocupa
Enquanto os resultados da enquete não são publicados, em reuniões técnicas com cientistas e pesquisadores de diferentes partes do mundo, a situação brasileira passou a ser incontornável, principalmente quando o assunto é o fortalecimento da circulação de variantes do vírus no país.</p><p>A constatação é de que existe um "apagão" de dados do Brasil sobre a circulação de novas variantes pelo território nacional e uma forte suspeita de que não há controle sobre quem sai do país infectado ou não.
A situação gerou um temor ainda maior depois que estudos indicaram que a variante predominante em Manaus mantinha uma carga viral várias vezes superior à cepa original.
Denominada oficialmente como variante P1, a mutação foi primeiro identificada no Japão, em viajantes brasileiros. Hoje, ela já está presente em quase 30 países e o número cresce a cada semana.
Em seu último informe semanal, a OMS deixou claro que o vírus é predominante em Manaus e em parte da região norte do brasileiro. "Podemos estar no início do caos", afirmou uma delas, na condição de anonimato.
Na Europa, a situação brasileira também é alvo de uma atenção total, com autoridades em capitais como Paris e Madri instruídas a reforçar o controle sobre qualquer passageiro que tenha passado pelo Brasil.
Neste fim de semana, o governo britânico confirmou a existência da variante brasileira em pelo menos seis pessoas diferentes. Mas a crise para a imagem do país ficou ainda mais aguda depois que as autoridades sanitárias em Londres lançaram uma "caçada" para localizar o indivíduo que não preencheu um formulário de registro de teste ou que não recebeu seu resultado.
Uma das suspeitas pode ser uma pessoa que estava no voo LX318, da companhia Swiss e que deixou São Paulo para Zurique, no dia 10 de fevereiro. Depois de passar pela Suíça, a pessoa embarcou em um segundo voo para Londres.
Se a falta de informação sobre o passageiro levou a oposição britânica a criticar o governo em Londres, ela também despertou um segundo aspecto: a incapacidade do Brasil de saber onde está o vírus e quem está embarcando em seus aeroportos em direção a outras partes do mundo.
"Isso pode significar que a desconfiança em relação ao Brasil vai se aprofundar", alertou um representante britânico, que pediu para não ser identificado.
Jamil Chade: Com só 10 países recebendo 75% das vacinas, fracasso moral vem em elevadas doses
Enquanto fazem discursos humanistas pelos salões virtuais da diplomacia, governos colocam limites às exportações de imunizantes contra a covid-19. E se eles estivessem do outro lado da fronteira?
Na semana passada, as Bolsas de valores de todo o mundo foram informadas que, em 2020, a empresa AstraZeneca obteve um faturamento de 27 bilhões de dólares e dobrou seu lucro em comparação ao ano de 2019. Há poucos dias, pelos jornais financeiros, a constatação era de que a Pfizer previa que as vendas com sua vacina contra a covid-19 gerariam uma receita de 15 bilhões de dólares.
Pelas redes sociais, proliferam selfies de famílias sinceramente felizes e emocionadas que brindam a chegada da vacina aos braços de avós e avôs repletos de planos. O abraço tão humano que nos fez falta durante meses parece cada vez mais próximo. O abraço que, na falta de palavras, substitui um dicionário inteiro de amor.
Esse abraço, porém, corre o risco de ser um privilégio de apenas uma porção da humanidade. Basta um mergulho nos números de distribuição das vacinas para entender que a ideia de um planeta comum é ainda um sonho distante de uma utopia necessária.
Um total de 181 milhões de doses da vacina já foi distribuído pelo mundo. Uma conquista, sem dúvida. Pela primeira vez na história, o desenvolvimento de uma vacina foi realizado enquanto entidades internacionais erguiam um mecanismo para garantir que erros do passado não fossem repetidos. Ou seja: que a inovação e que a ciência pudessem chegar a todos. E não a uma minoria no planeta.
Nos bastidores, especialistas e representantes de governos mais pobres arregaçaram as mangas para preparar a distribuição nesses locais onde falta energia elétrica, estradas e água. Tudo isso aconteceu.
Mas ficou faltando algo fundamental: solidariedade, limitada a discursos diplomáticos e fechada em cofres acumulados em armazéns em poucos países do mundo.
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O assunto da distribuição de vacinas levou o Conselho de Segurança da ONU a realizar uma reunião de emergência nesta quarta-feira, pois a paz mundial está em jogo.
Mas o fracasso moral vem em elevadas doses. Apenas 10 países receberam o equivalente a 75% desses imunizantes —20% desse total apenas nos EUA.
Outros 130 países ainda vivem a expectativa da primeira dose, com uma fila que já soma 2,5 bilhões de pessoas. No atual ritmo, o mundo apenas conseguirá vacinar 70% da população do planeta e atingir uma imunidade de rebanho em quatro anos e nove meses.
Para que o mecanismo de distribuição funcione e que a disparidade seja alvo de uma transformação profunda, o mundo precisa de 27 bilhões de dólares em 2021. O valor é elevado. Mas não passa de uma fração dos 11 trilhões de dólares injetados pelos governos para salvar suas economias durante a pandemia.
Entre 2008 e 2009, apenas o Tesouro americano destinou 204 bilhões de dólares para salvar os bancos do país. Apenas o JPMorgan Chase & Co recebeu o equivalente ao que o mundo precisa hoje para garantir a vacina para bilhões de pessoas. Mas, no caso dos bancos, a aprovação dos recursos foi garantida. Afinal, o que estava sendo salvo era o sistema financeiro, e não meras vidas.
Também descobrimos, nesses primeiros meses da vacinação, que o sigilo de contratos é mais importante que a transparência com recursos públicos.
Em debates acalorados entre governos, ouvimos de diplomatas que a propriedade intelectual continua vigente, mesmo diante de corpos que se acumulam, e que a quebra do monopólio para a produção global da vacina não é um caminho racional.
Fomos confrontados com governos que, enquanto fazem discursos humanistas pelos salões virtuais da diplomacia, optam por colocar limites às exportações das vacinas.
Fico me perguntando: e se eles estivessem do outro lado da fronteira, o que fariam? E se não fossem eles os donos do monopólio sobre a vacina?
Enfim, como será que definem o que é a humanidade?
Eça de Queirós decifrou a fronteira dessa noção em um de seus textos reunidos em “Cartas familiares e bilhetes de Paris”. Ele nos lembra que essa humanidade “consiste especialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro”. “Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente distanciando também em relação ao seu sentimento, de sorte que aos mais remotos já quase os não distingue da natureza inanimada”, escreveu no final do século XIX.
Mas, hoje, qual seria exatamente o nosso bairro? Diante de um vírus que usou os mesmos canais da globalização virtuosa para chegar a todo o planeta, essa fronteira de quem faz parte da humanidade ou não foi borrada dos mapas. A era do mundo infinito da mentalidade vigente na realidade de Eça de Queiroz chegou ao fim, se é que um dia existiu.
Para que eu sobreviva, meu inimigo precisa ser vacinado. Para que a rica cidade de Genebra esteja segura, Uagadugu precisa receber vacinas. Para que patroas durmam protegidas de uma eventual nova variante do vírus, aquelas senhoras que passam noites acordadas cuidado de seus filhos precisam estar vacinadas.
A realidade é que a vacina fez o planeta tirar uma selfie. Mas a imagem refletida é de uma sociedade disforme, injusta e egoísta.
Hoje, Charles Darwin está sendo sacudido. Não exatamente por criacionistas rejeitados até pelo Vaticano ou terraplanistas que despencaram do abismo intelectual. Mas por um imperativo moral de que o futuro de uma sociedade não pode ser deixada à sobrevivência do mais apto e nem às regras cruas e cruéis do mercado.
O vírus —e agora a vacina— revelam o que o membro da resistência francesa na II Guerra Mundial, Jean Bruller, já havia constatado. “A humanidade não é um estado a que se ascenda. É uma dignidade que se conquista.”
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Demétrio Magnoli: Biden tem oportunidade de converter vacina em bem público global
Presidente dos EUA tem oportunidade de converter vacina em bem público global
George W. Bush será sempre lembrado pelo desastre humano e geopolítico que provocou com a guerra no Iraque. Contudo, uma iniciativa singular do ex-presidente salvou algo como 17 milhões de vidas: o Pepfar (Plano Presidencial Emergencial para Assistência à Aids). Joe Biden tem a oportunidade de se inspirar no plano de Bush para liderar a imunização global contra a Covid-19.
O Pepfar nasceu em maio de 2003, à sombra da invasão do Iraque, que começara dois meses antes. Sob a coordenação do Departamento de Estado, o programa direcionou, de lá para cá, mais de US$ 85 bilhões para os países foco e para o Fundo Global de Combate à Aids. A lúgubre curva de mortes por Aids na África Subsaariana começou a ser achatada graças aos recursos e à assistência técnica providenciados pelos EUA. O modelo do Pepfar oferece a melhor resposta americana à "geopolítica vacinal" chinesa.
Segundo estimativas do Duke Global Health Institute, os países ricos, que abrigam 16% da população mundial, contrataram 60% das vacinas prometidas até agora. A iniciativa Covax, da OMS, destinada a prover imunização global, prevê a entrega, até junho, de apenas 140 milhões de doses para a África, onde vive 1,3 bilhão de pessoas. A célere vacinação da população mundial é um imperativo moral. Mas é, igualmente, a única ferramenta capaz de domar a pandemia, reduzindo as probabilidades de surgimento de incontáveis mutações do vírus pela persistência prolongada dos contágios. "Ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo", explica o slogan da Covax.
O triunfo do nacionalismo vacinal teria efeito bumerangue, castigando tanto os países pobres quanto os ricos. A União Europeia, apesar da insistência na retórica da solidariedade global, não parece preocupada com isso. A Comissão Europeia tenta ocultar seu atraso na imunização com ataques despropositados à AstraZeneca, única farmacêutica que distribui vacinas a preço de custo, e com a ameaça de bloquear a exportação de doses produzidas no seu território. Sob Trump, os EUA agiram ainda pior, abandonando a OMS e negando-se a contribuir com o financiamento da Covax.
A China opera no vácuo gerado pelo nacionalismo hipócrita de americanos e europeus. O governo chinês definiu suas vacinas como bens públicos globais e lançou-se a uma diplomacia da imunização, estratégia seguida também pela Índia. Contudo, os discursos humanitários chineses e indianos mal escondem a cuidadosa seleção dos países beneficiários, que obedece a nítidas prioridades de política externa.
Biden promete patrocinar, ainda em 2021, uma "cúpula das democracias". O conceito, em estágio inicial de formulação, inscreve-se na moldura da rivalidade global entre EUA e China. Seria uma articulação diplomática destinada a contrapor os valores das democracias representativas ao sistema de poder totalitário. A ideia enfrenta uma coleção de dificuldades práticas. Mas, para além delas, como superar a percepção de que o conclave de democracias ricas forma o mapa completo das nações privilegiadas pelo acesso preferencial às vacinas?
Os EUA só podem triunfar na "guerra de valores" se conseguirem provar que a democracia funciona melhor que a tirania, especialmente quando o mundo enfrenta uma dramática emergência sanitária. A superpotência injeta nos seus cidadãos vacinas de alta tecnologia, baseadas em mRNA, que tem elevada eficácia e cuja fabricação é mais simples e rápida. Estima-se que, com meros US$ 4 bilhões e uma rede de parcerias público-privadas, o governo americano poderia instalar capacidades produtivas suficientes para imunizar a população mundial no horizonte de um ano.
Os chineses dizem que a vacina deve ser um bem público global. Biden tem a oportunidade de converter essa visão em realidade. É bem melhor que reunir os acumuladores de vacinas numa redoma sanitizada.
Míriam Leitão: Erros e omissões na crise do Amapá
O caso do Amapá é resultado de uma sucessão de erros de diversos órgãos. A infraestrutura é totalmente insuficiente, a distribuidora é estadual, mas desde 2015 é controlada pela Eletrobras. Em Brasília, há um jogo de empurra entre a Aneel e o ONS sobre quem deveria ter agido para evitar esse cenário. Ele era previsível, porque há um ano um dos três transformadores do estado estava quebrado. A companhia de transmissão foi comprada por um fundo abutre, que pouco entende do assunto. O Ministério das Minas e Energia aceitou ser parte de um teatro para o presidente Bolsonaro faturar politicamente.
O estado é conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN) por apenas uma rede de transmissão com três transformadores. Com o quebrado, sobraram dois. A empresa diz que um raio caiu sobre um, que queimou o outro. Ontem, no entanto, a defesa civil emitiu um laudo negando essa hipótese. Não havia guarnição do Corpo de Bombeiros na subestação para atuar imediatamente. O risco era previsível. Ninguém agiu preventivamente, nem o ONS, nem a Aneel nem o Ministério das Minas e Energia. A empresa estadual de distribuição opera em regime jurídico precário, ou seja, sua concessão chegou ao fim e foi prorrogada provisoriamente. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, está preocupado com o irmão, que concorre à prefeitura de Macapá.
O governo federal demorou a agir. Para se ter uma ideia, quando o Amapá já estava às escuras há três dias, o presidente Jair Bolsonaro pegou um voo na direção oposta. Foi ao Paraná para inaugurar uma pequena central hidrelétrica, que nada tem a ver com a crise. Na segunda, Bolsonaro tentou faturar politicamente. Postou que 76% da energia no estado já havia sido restabelecida. Era falso. Havia um fornecimento intermitente, com rodízio entre as regiões, e há queixas de que as áreas mais ricas estão sendo beneficiadas.
Pior foi o vídeo que Bolsonaro postou. Nele, o ministro Bento Albuquerque aparece abraçado a duas pessoas. Uma mulher fala seguidamente em Deus, compara Bolsonaro a Moisés e diz que a energia está restabelecida. O ministro completa: “Parabéns presidente Bolsonaro, estou aqui com os seus filhos”. Mistura explosiva: a luz não estava normalizada ao contrário do que o vídeo fazia crer, o ministro de área técnica reforçava a exploração demagógica da pobreza, e tudo isso usando o nome de Deus. Qualquer evento, por mais trágico ou penoso que seja, está sempre sendo usado nesta abusiva propaganda eleitoral totalmente fora de época, para 2022.
O sistema elétrico brasileiro é dividido em três tipos de empresas: as geradoras, que produzem a energia, as transmissoras, que levam energia por todo o país, e as distribuidoras, que fazem a conexão com o consumidor final. O problema aconteceu na transmissão, com o incêndio na subestação que receberia a energia do sistema e repassaria à distribuidora estadual.
— A maior responsabilidade pela crise é da empresa transmissora, que era de um grupo espanhol, Isolux, que faliu. Foi comprado por um fundo abutre, que pouco entende do setor elétrico. Mas o que espanta é que em Brasília os órgãos reguladores não fizeram nada com a quebra do primeiro transformador. Se um estivesse funcionando, não haveria o caos que estamos vendo— explicou um especialista do setor.
O consumo de energia no Amapá é baixo, cerca de 250 MWmédios, porque a população é pequena, cerca de 850 mil habitantes. O problema não é falta de energia, mas a infraestrutura precária do setor elétrico no estado, que concentrou os riscos em uma única subestação.
A Aneel baixou portaria na semana passada autorizando a Eletronorte a contratar energia extra, mas os técnicos não sabem como essa energia chegará no curtíssimo prazo. Geradores a óleo diesel têm sido enviados à região. A agência, como sempre, repassou a conta não aos responsáveis pelo problema, mas aos consumidores do país, pendurando mais esse encargo na conta de luz.
A crise está sendo usada para vários lobbies. Tem o que culpa a privatização. Só que venda de empresa com boa regulação já resolveu muito problema no passado. Há quem defenda que tem que construir gasoduto, há quem queira a construção de nova linha de transmissão. Não seria melhor, em vez de obras caras, pensar num sistema mais autônomo para locais muito distantes dos grandes centros consumidores? Apesar dos ganhos com o SIN, há também muitas vulnerabilidades. Um investimento em geração distribuída com energia renovável poderia dar mais segurança a quem importa: os consumidores.