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O animal não tem a ver com a varíola dos macacos | Imagem: Fahroni/Shutterstock

Revista online | Monkeypox reacende alertas sobre estigma e homofobia

Especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)

Em 1983, os primeiros casos de Aids no Brasil foram estampados em manchetes de jornais na linha do que marcou as primeiras décadas da epidemia. No início, após o maior número de diagnósticos entre homens que faziam sexo com homens, noticiários divulgaram os casos como “peste gay”, “câncer gay” e “gay compromise syndrome”, o que discriminou homens gays, apontados como “grupo de risco”.

Quase quarenta anos depois, as memórias sobre a desinformação e os estigmas do início da epidemia de Aids voltam à tona diante da mais recente emergência de saúde pública de importância internacional: o vírus monkeypox. Antes restrita a alguns países africanos, a doença infecciosa causada por ele começa a se disseminar pelo planeta. Já são mais de 41 mil casos e 12 mortes em 96 países, incluindo o Brasil. A maioria deles está nos Estados Unidos.

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A doença não é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST). No entanto, a alta prevalência entre homens que fazem sexo com homens nos primeiros diagnósticos voltou a motivar manifestações de autoridades que chegaram a aconselhar a redução do número de parceiros sexuais para esse grupo, no Brasil e no mundo.

Recentemente, o próprio diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que uma forma de se proteger do vírus monkeypox seria homossexuais masculinos reduzirem o número de parceiros, apesar de depois ter demonstrado preocupação com o estigma. Ele também declarou que a doença constitui uma emergência de saúde pública de importância internacional.

Professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e que pesquisou a história da Aids no Brasil, a historiadora Dilene Raimundo do Nascimento disse que pronunciamentos nessa linha podem reforçar a discriminação contra homossexuais homens. Além disso, segundo ela, esse discurso ajuda a disseminar a crença de que outros grupos estão imunes à monkeypox. 

“Todos viram o que aconteceu com o HIV/Aids, como foi difícil lidar com isso para as autoridades sanitárias, para a população em geral e particularmente os próprios afetados pelo vírus. Isso não pode se repetir de forma alguma”, alertou Dilene. Ela é autora do livro As Pestes do século 20: tuberculose e Aids no Brasil, uma história comparada, da Editora Fiocruz.

Veja, a seguir, galeria de imagens sobre monkeypox:

Infectologista analisa vírus da varíola dos macacos | Imagem: FOTOGRIN/Shutterstock
Novo vírus | Imagem: editada/Shutterstock
Qualquer pessoa pode contrair varíola dos macacos | Foto: Berkay Ataseven/Shutterstock
Lesões corporais são sintomas da varíola dos macacos | Foto: Marina Demidiuk/Shutterstock
Profissional da saúde trajado contra doença | Foto: Graeme Kennedy/shutterstock
Crianças são afetadas pela varíola dos macacos | Foto: Irina Starikova3432/Shutterstock
Profissional da saúde de braços cruzados | Foto: eldar nurkovic/Shutterstock
Vacina contra a varíola dos macacos esta sendo produzida? | Foto: Tharlys Fabricio/Shutterstock
O animal não tem a ver com a varíola dos macacos | Imagem: Fahroni/Shutterstock
Infectologista analisa vírus da varíola dos macacos
Novo vírus
Qualquer pessoa pode contrair varíola dos macacos
Lesões corporais são sintomas da varíola dos macacos
Profissional da saúde trajado contra doença
Crianças são afetadas pela varíola dos macacos
Profissional da saúde de braços cruzados
Vacina contra a varíola dos macacos esta sendo produzida?
O animal não tem a ver com a varíola dos macacos
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Infectologista analisa vírus da varíola dos macacos
Novo vírus
Qualquer pessoa pode contrair varíola dos macacos
Lesões corporais são sintomas da varíola dos macacos
Profissional da saúde trajado contra doença
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Vacina contra a varíola dos macacos esta sendo produzida?
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Discriminação

Em meados dos anos 1990, a Aids ainda estava na agenda das autoridades de saúde como uma doença de homossexuais. Pessoas conhecidas nacionalmente, como o sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho, que era HIV-positivo por conta da hemofilia e presidiu a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), contribuíram muito na luta contra discriminação. Apenas em 1995, começaram a ser feitos cartazes sobre o HIV para mulheres, por exemplo.

O infectologista Bruno Ishigami afirmou que é preciso ter cautela. “O HIV mostrou isso para a gente de forma bem ruim, quando a gente disse lá atrás, que era uma doença exclusiva de gays, de gente que era promíscua. A gente criou estigmas que existem até hoje", lembrou ele. “Não gosto do discurso 'pare de transar com muitas pessoas'. Isso nunca funcionou com o HIV e não é hoje que vai funcionar com a monkeypox", acrescentou, ressaltando que aposta na conscientização das pessoas.

Em sua página de perguntas e respostas sobre o vírus monkeypox, a OMS condenou a estigmatização de grupos de pessoas que ocorre via mensagens online. "Vimos mensagens estigmatizando certos grupos de pessoas em torno desse surto de varíola. Queremos deixar bem claro que isso não está certo”, disse o texto.

“Em primeiro lugar, qualquer pessoa que tenha contato físico próximo de qualquer tipo com alguém que tenha varíola está em risco, independentemente de quem seja, o que faça, com quem tenha relações sexuais ou qualquer outro fator. Em segundo lugar, estigmatizar as pessoas por causa de uma doença é inaceitável. É provável que o estigma só piore as coisas e nos impeça de acabar com esse surto o mais rápido possível”, acrescentou a OMS.

Vulnerabilidade

Segundo a historiadora da Fiocruz, uma forma de informar a população de forma responsável é lembrar que homens que fazem sexo com homens podem eventualmente fazer sexo com mulheres. “As pessoas não estão isoladas. Elas se relacionam de uma forma ou de outra. Qualquer pessoa pode estar suscetível a se contaminar com o vírus da monkeypox, independentemente de sua orientação sexual”, asseverou Dilene.

“É preciso fazer um trabalho de formiguinha, disseminando esse entendimento de que as pessoas se interrelacionam e que, nesse relacionamento, as transmissões podem acontecer. Qualquer tentativa de minimizar ou desconstruir preconceitos e discriminação tem de mostrar que as pessoas não vivem em um casulo, as pessoas não vivem apenas dentro de um grupo. As pessoas vivem em sociedade. Espero que essa discriminação de que homens que fazem sexo com homens são os mais suscetíveis à monkeypox seja rapidamente eliminada”, ressaltou a pesquisadora.

Sintomas e transmissão

Os principais sintomas da doença são lesões na pele, febre, dor no corpo e dor de cabeça. Podem ocorrer lesões genitais e no ânus. Os sintomas costumam durar de duas a quatro semanas. A doença pode evoluir para um quadro mais grave em grupos mais vulneráveis, como crianças e pessoas com imunidade reduzida.

A transmissão ocorre principalmente pelo contato direto com pessoas infectadas, principalmente pelo contato direto com pessoas infectadas: pele a pele, fluídos corporais e feridas infecciosas, assim como por meio de contato prolongado com secreções respiratórias. A possibilidade de transmissão sexual do vírus ainda está sendo investigada pelos cientistas. Macacos não fazem parte do ciclo da doença. 

A principal recomendação da OMS é evitar contato direto com pessoas que apresentem sintomas ou tenham confirmação da doença, incluindo beijo, abraço e relação sexual; Também é indicado uso de máscaras de proteção facial e higienização das mãos de forma correta e com frequência. Pessoas com quadro suspeito devem procurar imediatamente serviços de saúde.

Estigma até no nome...

Da mesma família dos vírus responsáveis pelas varíolas humana e bovina, o monkeypox foi descoberto em 1958, quando pesquisadores investigaram um surto infeccioso em primatas oriundos da África que estavam sendo estudados na Dinamarca, país localizado na região da Escandinávia, no norte da Europa.

No entanto, pouco tempo depois, os cientistas verificaram que os macacos não participavam da dinâmica da infecção como animais reservatórios do vírus e que também eram afetados pelo patógeno, assim como outros mamíferos. Ainda não se sabe com exatidão as espécies reservatórias do monkeypox, nem como sua circulação é mantida na natureza.

O primeiro caso da doença em humanos foi registrado em 1970 na República Democrática do Congo. A partir de maio deste ano, houve uma rápida dispersão em países onde a infecção não costumava ocorrer, incluindo o Brasil.

Em uma tentativa de evitar estigma e preconceito contra os indivíduos infectados e maus tratos contra os animais, cientistas orientam denominar a doença no Brasil exclusivamente como “monkeypox” (mesmo nome do vírus), já que o surto atual não tem relação com primatas. Somente esse termo tem sido adotado pelo Ministério da Saúde, em conformidade com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O nome monkeypox também é utilizado na Classificação Internacional de Doenças (CID-10). “Todo esse movimento tem o intuito de se evitar desvio dos focos de vigilância e más ações contra os animais", explica a vice-diretora de Serviços de Referência, Coleções Biológicas e Ambulatórios do Laboratório de Enterovírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), responsável por analisar, Maria de Lourdes Oliveira.

Em todo o mundo, vários cientistas já manifestaram a necessidade de um nome para a doença e para o vírus que não seja discriminatório nem estigmatizante. Por isso, diante do apelo da comunidade médica internacional, há a expectativa de que o comitê consultivo da OMS realize a mudança na nomenclatura.

Alertas semelhantes ocorreram nos casos da covid-19 e influenza A H1N1. Para evitar preconceitos e estigmas, a OMS reclassificou os nomes das doenças. No primeiro e mais recente caso buscou-se não atrelar a doença ao país de origem dos casos. No segundo exemplo, o consenso foi para dissociar o nome da gripe ao do animal, que não estava diretamente relacionado com contágio naquele momento.

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Jamil Chade: A reinvenção do futuro

Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu o que pode ter sido um último sinal de alerta

Jamil Chade / El País

“Roma, lá fora, é uma cidade muito triste. Noite após noite, o país dorme desolado com a contagem, ainda às centenas, dos mortos, as cenas de terror se repetem nos hospitais”. O comentário é parte de um texto da escritora brasileira, Juliana Monteiro, radicada com sua família na capital italiana. Ela escrevia e descrevia o auge do primeiro confinamento vivido pela Itália, país que foi o primeiro epicentro da pandemia da covid-19 na Europa. “Que triste tantos italianos enterrando seus avós, aqui, onde são tão amados”, constatou, ainda nos primeiros meses de 2020.

O que a escritora de uma sensibilidade ímpar presenciava de seu balcão não era apenas uma impressão da dor que atravessava um continente. Mais de um ano depois daquele primeiro lockdown, dados confirmam o que ela sentia: a pandemia gerou a maior queda de expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial.

A pesquisa, realizada pela Leverhulme Centre for Demographic Science, de Oxford, analisou dados de mortalidade em 29 países, incluindo Europa, EUA e Chile. Desse total, 27 deles registraram uma queda na expectativa de vida em 2020, numa escala que borrou o progresso objetivo durante anos na questão da mortalidade.

O que esses números revelam, no fundo, é uma enorme transformação na sociedade. Jamais, em épocas de paz, as mortes atingiram tais dimensões em economias ricas. A fome no mundo continua a matar mais que a covid-19. Mas, cinicamente, europeus consideravam essa outra pandemia como um problema distante e que, portanto, não merecia manchetes. E nem uma solução.

O que a pandemia revelou é que nada é inevitável, nem o futuro. Se as mortes atingiram níveis desconhecidos nesses países, algo parecido ocorreu com a taxa de natalidade. Os mais otimistas acreditavam que haveria um aumento de nascimentos nove meses depois do primeiro lockdown. Mas os números revelaram exatamente o oposto. Uma pesquisa na França e Alemanha em meados do ano passado indicou que 50% dos casais adiariam gravidezes.

Nos EUA, os números de queda começaram a aparecer de forma importante a partir de dezembro de 2020, nove meses depois da eclosão da crise. Segundo o CDC, a queda foi de 8% nos nascimentos no último mês do ano passado, uma tendência mantida em janeiro e fevereiro. Na Itália, a queda foi ainda maior, de 21%, contra 20% de redução na Espanha para o mês de dezembro. Já a França teve dezembro e janeiro com índices de natalidade mais baixos em 20 anos.


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Não apenas a vida foi suspensa. Alianças foram desfeitas e a quantidade de casamentos que chegaram ao final explodiu. Só no Reino Unido entre julho e outubro de 2020, o escritório de advocacia Stewarts registrou um aumento de 122% em reuniões com indivíduos iniciando consultas sobre possíveis divórcios.

Agora, com as vacinas para uma classe privilegiada, os planos podem voltar a ser feitos. Tanto na Europa como nos EUA, os primeiros sinais literalmente de vida também começam a aparecer, com a volta de casais em busca de filhos. Ou pelo menos voltando a falar sobre o assunto. O Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica na Alemanha constata, por exemplo, que a busca no Google por termos relativos à gravidez deu um salto nas últimas semanas.

Mas para milhões de famílias mais pobres ou em luto, o futuro terá de ser reinventado. Mesmo na rica Europa, a era pós-pandemia também aponta que ninguém sairá ileso. Nas clínicas e hospitais, a onda de pacientes de covid-19 começa a ser substituída por outra: a de pessoas com sinais de depressão, stress e casos psiquiátricos.

Perguntas existenciais também ecoam pelas estruturas do poder nos corredores das grandes capitais. Como, apesar de toda nossa tecnologia e peso econômico, permitimos que tantos mortos se acumulassem? E o que garante a soberania: respiradores ou helicópteros militares de última geração? Até que ponto podemos comemorar um dia da independência e aplaudir um desfile militar enquanto nosso sistema de saúde não atende sua própria população?

O futuro também exigirá lidar com um prejuízo de 13 trilhões de dólares deixado pela pandemia. Mas de quem cobrar quando a obscenidade da desigualdade foi escancarada?

Nas entidades internacionais, os cálculos confirmam que a crise sanitária abalou 30 anos de progresso no índice de desenvolvimento humanos e que o planeta contará, ao final do ano, com um exército de 318 milhões de novos miseráveis.

Quem tinha oxigênio conseguiu evitar um colapso social. A UE, por exemplo, destinou 2,3 trilhões de euros em medidas de apoio para garantir a liquidez das economias. Isso impediu uma onda de falências e, de fato, os números de empresas fechadas foi o menor desde 1999. De acordo com a UE, sem esse dinheiro, 25% de todas as empresas do bloco teriam fechado suas portas ao final de 2020, após exaurir seus caixas.

Mas essa aparente estabilidade pode não durar. No mercado, o temor é de que “empresas zombis” - que de fato não tinham mais atividade - comecem a fechar. “Muitas insolvências foram adiadas, e não impedidas”, alertou a francesa Coface SA, uma empresa de seguro de crédito.

A tendência de austeridade deve marcar também outros setores. Das 1.600 discotecas existentes na França, 100 nunca voltarão a abrir suas portas, com milhares de postos de trabalho fechados. E milhares de beijos que talvez nunca ocorram.

Se há uma lição que a pandemia deixa ao mundo é de que o modelo está esgotado, inclusive moralmente. Ou como explicar que, em plena pandemia, bilionários façam viagens pornográficas ao espaço? Há algo de podre quando países ricos começam a pensar em jogar fora 100 milhões de vacinas que vencerão em dezembro, enquanto os pobres não sabem nem sequer quando vão receber a primeira dose.

Numa catástrofe ética, o planeta recupera sua lógica colonial mais crua. Desta vez com vacinas. Fábricas de imunizantes na África passaram meses sendo obrigadas a fornecer doses para os países ricos, enquanto a população do continente implorava por doses.

Mais de seis meses após o início da vacinação, economias ricas tinham obtido 61 vezes mais doses que os países mais pobres. Neste mês, 300 milhões de vacinas estarão sentadas em depósitos na Europa e EUA, sem saber como serão usadas.

Alguns deixarão explícita a indignação diante dessa realidade. Outros guardarão segredos impublicáveis sobre a crise que definiu uma geração. Um grupo ainda lutará para impedir a ruptura de um status quo que os garante fortunas e privilégios.

Mas, para todos, a era do mundo infinito acabou de vez. O futuro que muitos imaginavam que existia se provou insustentável, insuficiente e intolerável.

A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu – ou optou por ignorar - o que pode ter sido o último sinal de alerta antes de uma crise climática e social de proporções inéditas.

Nosso único presente é a reinvenção do futuro. Retornar ao passado é suicida. Num planeta mais quente, mais improvável, mais hostil e mais desigual, reimaginar o que será da sociedade e da coexistência não é uma opção. Mas um ato de sobrevivência.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-28/a-reinvencao-do-futuro.html


Evandro Milet: O rei da confusão sem máscara em um domingo no parque

O estilo sabe-com-quem-está-falando continua atuante e o negacionismo do uso de máscara e distanciamento social continua ajudando a propagar o vírus

Evandro Milet / A Gazeta

O senhor está sem máscara. Aqui no Parque Manolo Cabral (também conhecido como Parque da Petrobras em Vitória) a regra exige o uso de máscara, avisava educadamente o funcionário a um senhor com a mulher, a filha e netinho no carrinho(todos sem máscara) em um belo domingo de sol ao meio-dia.

Isso é uma imbecilidade desse prefeito do PT, isso é coisa do PT, coisa de comunista, gritava o senhor. Não vou colocar máscara e quero ver o macho que vai me tirar daqui.

Desculpe, dizia o funcionário, mas meu papel é fazer cumprir o que é determinado.

Não vou colocar e está errado. Eu sou médico do Ministério da Saúde, continuava o senhor em altos brados.

A sua mulher rapidamente se afastou, certamente envergonhada, em direção à saída, enquanto a gritaria continuava. Ele foi atrás dela, chamando para voltar, sem sucesso.

Regra é regra, disse ela, incomodada e continuou indo embora enquanto ele andando mais rápido a alcançou com a filha e o carrinho.
Passaram por mim, já calados, sem máscara, em direção a um almoço em algum lugar, segundo o que ouvi enquanto, de máscara, eu continuava minha caminhada.

Várias conclusões se pode tirar do episódio. O estilo sabe-com-quem-está-falando continua atuante e o negacionismo do uso de máscara e distanciamento social continua ajudando a propagar o vírus. Até hoje o Governo Federal não lançou uma campanha incentivando as atitudes que o mundo inteiro adotou sobre isso, até porque o governante principal discorda, como o senhor do parque, e nem dá o exemplo.

Certamente teríamos menos milhares de mortos a essa altura, mesmo que não se fizesse lockdown, como muitos outros países fizeram com sucesso.

O episódio serve também para esclarecer porque as pesquisas de opinião para Presidente em 2022 apresentam uma diferença significativa entre o percentual de apoio masculino ao candidato incumbente e o apoio feminino, muito menor. A truculência é um hábito mais popular no universo masculino.

Outra conclusão é a ignorância ideológica que, aliás, grassa nos sites negacionistas. O Prefeito Pazolini, de Vitória, não tem nada a ver com PT. Nesses sites, quem não apoiar as teses negacionistas é de esquerda, comprado pela China e partidário de Cuba e Venezuela. Teorias da conspiração populares ali ignoram a realidade, como um delírio paranoico estacionado em 1989, antes da queda do muro de Berlim.

As pessoas ali se autodenominam conservadores, porém o conservadorismo moderno foi movimento surgido na Inglaterra para se contrapor às práticas da Revolução Francesa. Significa basicamente evoluir preservando as instituições democráticas. A democracia tem mecanismos de pesos e contrapesos para corrigir eventuais excessos dos poderes ao longo do tempo. Não se pode chamar de conservador quem defende intervenção militar, fechamento do Congresso ou do STF embora, surpreendentemente, digam que lutam pela democracia. Serão apenas golpistas.

Interessante observar que Brasil e Venezuela são os únicos países da América do Sul onde existe ainda um movimento envolvendo militares na política. Onde políticos fazem romaria aos quartéis para perguntar se vai haver golpe. Onde tanques fumacentos tentam meter medo nas instituições democráticas.

Não estamos em boa companhia. Porém, tranquilizador é ver o Presidente usando máscara e ouvindo discurso de defesa das instituições proferido pelo Comandante do Exército na sua presença. Menos mal. Melhor obedecer as regras para passear no parque.

Fonte: A Gazeta
https://www.agazeta.com.br/colunas/evandro-milet/o-rei-da-confusao-sem-mascara-em-um-domingo-no-parque-0921


Estudo aponta queda da eficácia de vacinas dentro de 6 meses

Pesquisa britânica mostra que proteção do imunizante da Pfizer contra covid caiu para 74% e da AstraZeneca, para 67%

DW Brasil

Uma pesquisa realizada no Reino Unido com base nos resultados de exames PCR de mais de um milhão de pessoas que haviam recebido as duas doses das vacinas da Pfizer-Biontech ou da AstraZeneca trouxe novas evidências sobre a redução da eficácia dos imunizantes contra a covid-19 ao longo do tempo.

A proteção da vacina da Pfizer-Biontech contra uma infecção caiu de 88% um mês após a imunização completa para 74% após cinco ou seis meses, e a proteção da AstraZeneca caiu de 77% para 67% após quatro ou cinco meses, segundo o estudo.

O resultado se soma a outras pesquisas já realizadas que apontam redução da eficácia das vacinas ao longo do tempo, e esquenta o debate sobre a necessidade de aplicar uma terceira dose de imunizante em quem já recebeu as duas doses enquanto muitas pessoas no mundo ainda nem receberam a primeira.

A pesquisa foi liderada pelo professor Tim Spector, do King's College de Londres, e feita com dados do aplicativo de pesquisa epidemiológica Zoe Covid. Spector afirmou à BBC que uma redução da proteção ao longo do tempo dos imunizantes já era esperada e não é um motivo para não se vacinar.

"As vacinas ainda fornecem altos níveis de proteção para a maioria da população, especialmente contra a variante delta, então ainda precisamos do maior número possível de pessoas para sermos totalmente imunizados", disse.

A Public Health England, agência de saúde pública do governo britânico, estima que a campanha de vacinação na Inglaterra evitou 84,6 mil mortes e 23 milhões de infecções até o momento.

Pesquisa mostrou queda da eficácia das vacinas contra a variante Delta após três meses de imunização completa. Foto: Miva Filho/SES-PE

Queda de eficácia contra a delta

Outro estudo britânico, realizado pela Universidade de Oxford e publicado na semana passada, a partir dos resultados de exames PCR de quase 400 mil adultos, já havia identificado queda da eficácia de ambas as vacinas contra a variante delta após três meses da imunização completa.

A pesquisa apontou que a eficácia da vacina da Pfizer-Biontech em infecções pela variante delta caiu de 94%, 14 dias após a segunda dose, para 78% após três meses, enquanto a eficácia da AstraZeneca caiu de 69% para 61% no mesmo período.

Esses resultados, em conexão com indícios de que a variante delta pode infectar pessoas vacinadas, que por sua vez podem transmitir o vírus, reforçam a perspectiva de que a imunidade coletiva contra o coronavírus será inalcançável.

Nesse cenário, a população irá conviver com o vírus e o combate à covid-19 não será resolvido como o sarampo, para o qual a vacina funciona por toda a vida. Mas as vacinas serão importantes para que as pessoas infectadas desenvolvam, em sua maioria, sintomas mais suaves da doença.



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Projeção de alta nas internações

Spector, do King's College de Londres, estima que o nível de proteção nos idosos e nos trabalhadores do setor de saúde na Inglaterra, que tomaram a vacina primeiro, pode cair para menos de 50% até dezembro, quando começa o inverno no hemisfério norte, e afirma que doses de reforço serão necessárias para parte da população.

Se a taxa de infeção continuar alta, incentivada pela variante delta e o relaxamento de restrições, "esse cenário pode significar alta nas internações hospitalares e mortes", afirmou.

Ele ressalta que nem todos precisariam da terceira dose, e que aqueles que já foram infectados pela covid-19, se curaram e receberam a vacina podem ter um "reforço natural" equivalente a ter tomado três doses.

"Tudo precisará ser gerenciado com muito mais cuidado do que apenas dar [a terceira dose] para todo mundo, o que seria um grande desperdício e eticamente duvidoso considerando os recursos que temos. Precisamos pensar em uma abordagem mais focada do que da última vez", afirmou.

Desigualdade na vacinação mundial

A Organização Mundial de Saúde vem criticando os países que decidiram iniciar a aplicação da terceira dose, enquanto não há consenso científico sobre quem precisaria do reforço e muitas nações ainda não conseguiram nem aplicar a primeira dose na maior parte de sua população.

Em 13 de agosto, o o americano Seth Berkley, diretor executivo da Gavi Alliance – que promove a distribuição de vacinas para países mais pobres –, e o professor britânico Andrew Pollard, do grupo de vacinas da Universidade de Oxford, afirmaram que um número ainda maior de pessoas em todo o mundo morrerá se os países desenvolvidos ignorarem suas "responsabilidades com o resto da humanidade".

"Este é um momento fundamental para os tomadores de decisões", afirmaram. Na avaliação de ambos, a adoção da medida nos países mais ricos poderá enviar um sinal para todo o mundo de que a terceira dose é, de fato, necessária. Segundo eles, isso poderá fazer com que muitas doses de vacina fiquem fora do sistema, levando à morte de um número maior de pessoas que sequer tiveram a chance de receber a primeira dose.

Marcelo Queiroga: A partir de 15 de setembro será iniciada a aplicação de uma dose de reforço da vacina da Pfizer-Biontech nas pessoas com mais de 80 anos ou imunossuprimidas. Foto: Walterson Rosa/MS

Brasil anuncia terceira dose

Mesmo após o apelo da OMS, diversos países decidiram ir adiante com os planos de começar a aplicar uma terceira dose em parte de sua população já em setembro, inclusive o Brasil, devido a preocupações com o avanço da variante delta.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou nesta terça-feira que a partir de 15 de setembro será iniciada a aplicação de uma dose de reforço da vacina da Pfizer-Biontech nas pessoas com mais de 80 anos ou imunossuprimidas que tomaram a segunda dose da vacina há pelo menos seis meses. Nessa data, o governo espera que toda a população maior de 18 anos já tenha recebido pelo menos a primeira dose da vacina.

Alemanha e a França já anunciaram a terceira dose para os mais idosos e vulneráveis, enquanto Israel começou a administrar a terceira dose em pessoas com mais de 50 anos.

Os Estados Unidos autorizaram a dose reforço para cidadãos que têm o sistema imunológico debilitado, o que equivale a 3% de sua população.  E o Uruguai anunciou que oferecerá uma terceira dose da Pfizer-Biontech a quem tomou a Coronavac.

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/estudo-aponta-queda-da-efic%C3%A1cia-de-vacinas-dentro-de-6-meses/a-58980546


Maria Cristina Fernandes: Pesquisa desmonta tese de que governos autoritários responderam melhor à pandemia

Se China, Vietnã e Hong Kong propagandearam a eficiência do autoritarismo no combate à pandemia, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Noruega contrapuseram a importância da transparência e da prestação de contas da democracia contra o vírus. A uma França que centralizou a resposta ao vírus, se opuseram Estados Unidos e Brasil, onde o federalismo mostrou-se resiliente no contraponto à inoperância de governos centrais de veleidades autoritárias.

Qual desenho institucional, finalmente, responde melhor à pandemia? Guiados por esta pergunta, um grupo de 67 pesquisadores, coordenados por Scott Greer e Elizabeth King (Universidade de Michigan), Elize Massard da Fonseca (FGV-SP) e André Peralta-Santos (Escola Nacional de Saúde Pública de Lisboa), acaba de lançar um compêndio de 663 páginas “Coronavirus politics”, (“A política do coronavírus”, ainda sem edição em português mas com livre acesso em www.fulcrum.org/concern/monographs/jq085n03q).

Os pesquisadores, que começaram a trabalhar junto com o vírus, em março de 2020, cobriram a primeira fase da pandemia, até setembro de 2020, quando as políticas públicas se resumiam a intervenções não farmacêuticas (campanhas de higiene, equipamentos de proteção individual, respiradores, isolamento social, testes, rastreamento e auxílios monetários). Ao contrário do atual momento, de segunda onda em alguns países e terceira em outros, quando a busca pela vacina é decorrente de um esforço majoritariamente dos governos centrais, a primeira etapa da doença foi marcada, fortemente, por embates entre instâncias locais e nacionais.

Um dos achados mais importantes do livro é o de que os governos locais, historicamente achatados pelas políticas de contenção fiscal no mundo inteiro, atuaram como contraponto ou, como prefere nominar Luísa Arantes, uma das autoras do capítulo sobre o Brasil, como um “back-up” a governos centrais inoperantes. É bem verdade que não de maneira uniforme. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos.

Num extremo esteve o Maranhão, estrito em suas políticas de isolamento e ativo na compra de equipamentos de proteção e de respiradores, e no outro, Santa Catarina, que, ao abandonar precocemente o isolamento social, viu o número de casos mais do que duplicar em menos de uma semana. O federalismo se mostrou vivo com ou sem viés partidário. Se o Maranhão do governador Flávio Dino (PCdoB) deu uma das piores votações ao presidente da República, Santa Catarina sufragou, junto com o governador Carlos Moisés (PSL), um dos melhores desempenhos de Jair Bolsonaro. Dino, porém, esteve do mesmo lado, no cabo de guerra da pandemia, de governadores aliados de Bolsonaro, como o de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).

Nos Estados Unidos, se a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, enfrentou a Casa Branca com sua política estrita de isolamento, a governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem, nada fez para impedir que cerca de meio milhão de motociclistas se reunisse em uma festa no condado de Sturgis, em agosto de 2020, numa das maiores aglomerações mundiais da primeira fase da pandemia. Mais do que o viés democrata de Whitmer ou republicano de Noem, foi decisiva a determinação em atender a população, como foi o caso do governador republicano Mike DeWine, de Ohio, que fechou escolas por três semanas e proibiu aglomerações.

Os governos locais também ganharam fôlego com a pressão crescente por uma descentralização da gestão da saúde. Na Itália, país que alarmou o mundo para a devastação da pandemia, 100 mil médicos promoveram um abaixo-assinado por uma descentralização territorial da prestação de serviços públicos de saúde. Em Milão, os profissionais promoveram um protesto contra a deterioração de suas condições de trabalho dirigido a um governo local que, inicialmente, resistiu ao isolamento social.

Os governantes locais que ganharam condições de se contrapor às instâncias nacionais de poder na adoção de medidas de isolamento o fizeram porque, em grande parte, dispuseram de políticas de complementação de renda, regionais e nacionais, além de repasses federais que lhes permitiram restringir atividades econômicas que geram receita para a manutenção dos serviços públicos.

Estados Unidos, Índia e Brasil, diz Elize Massard, são exemplos claros de que subvenção social só funciona se houver uma política de saúde e esta vai muito além de uma infraestrutura hospitalar. Estados Unidos e o Brasil tinham, respectivamente, de acordo com o índice de segurança global de saúde (GHSI), da Universidade Johns Hopkins, o mais bem preparado sistema de saúde do mundo e da América Latina para responder a pandemias. E ambos fracassaram porque tiveram, no comando político nacional, presidentes negacionistas. Os Estados Unidos somavam 23% dos mortos em todo o mundo em agosto de 2020, apesar de ter apenas 4% da população mundial. O Brasil, apesar de abrigar 2,7% dos habitantes do planeta, tinha 33% das vítimas da covid-19 em março de 2021.

Apesar de subfinanciado, o NHS, sistema público de saúde britânico inspirador do SUS brasileiro, fez com que o Reino Unido pontuasse em segundo lugar mundial na gestão de sistemas de saúde responsivos a pandemias, segundo o GHSI. Isso até o coronavírus, quando o Reino Unido teve uma das piores taxas de mortalidade, depois da Espanha. Só foi salvo pela vacina. Nem os testes massificados, que só perderam para a China, foram capazes de neutralizar o atraso das medidas de isolamento social que marcaram a primeira fase do combate à pandemia no governo Boris Johnson. As mortes poderiam ter sido reduzidas pela metade se o lockdown de março de 2020 tivesse acontecido uma semana antes.

As falhas também atravessaram o Canal da Mancha. A França cometeu dois erros capitais no início da pandemia. O de apostar na cloroquina, durante dois meses, até maio de 2020, e de ter demorado na aquisição de equipamentos de proteção individual. O cochilo se deveu à decisão tomada durante a epidemia de H1N1, em 2009, quando o governo, alarmado, comprou € 1 bilhão em EPIs para enfrentar uma doença que “só” matou 342 pessoas no país.

Superados esses erros, o governo centralizou a resposta à pandemia e contou com um sistema de saúde que passou por duas décadas de reforma. Ainda assim, só deu conta porque gastou muito para manter o isolamento social, levando a população de rua para residências temporárias e abrindo os hospitais públicos para imigrantes ilegais. Calcula-se que a França tenha destinado 31% do seu Produto Interno Bruto em medidas de compensação social e econômica e gastos na saúde. Os EUA, cujo primeiro pacote aprovado pelo Congresso foi o maior da história, gastaram 18% do PIB.

O fôlego fiscal em todo o continente só foi possível porque a União Europeia ativou a cláusula geral de escape, em abril de 2020, para não cumprir a meta de déficit fiscal. Reproduziu o que os autores chamam de “momento hamiltoniano”, quando o governo americano, por inspiração do então secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, assumiu as dívidas de guerra dos Estados depois da guerra da independência. A desigualdade na resposta à pandemia no continente foi decorrente das gestões locais. Portugal, a exemplo da França, saiu-se melhor que a Espanha e a Itália porque centralizou a reação. Já Áustria e Suíça coordenaram melhor seus Estados federados do que a Alemanha, cuja governança federativa foi conturbada pela disputa interna em torno da sucessão de Angela Merkel.

Se na Europa a negligência com migrantes foi relativizada em função da segurança sanitária, o mesmo não aconteceu na China. Neste país, as políticas compensatórias não os englobaram. Estima-se que na China haja 290 milhões de migrantes que não usufruem do sistema previdenciário estatal porque trabalham fora de seus locais de registro. Houve uma política deliberada de manter os migrantes ilegais longe dos centros urbanos.

Nas semanas que antecedem a virada do ano lunar, que em 2020 caiu no dia 25 de janeiro, os chineses deixam suas casas e visitam seus familiares. Mesmo já alertadas de que o vírus estava disseminado na província de Hubei, as autoridades permitiram que as pessoas viajassem a partir do dia 7 de janeiro. No dia 23 foi decretada uma quarentena draconiana. Ao impedir que os chineses voltassem para suas casas nos grandes centros urbanos, tentou-se evitar que as estruturas hospitalares ficassem sobrecarregadas. Isso não impediu que hospitais de Hubei rejeitassem pacientes. A província tem 4% da população do país e 1% dos leitos.

O pouco que se sabe do combate inicial à covid-19 na China se deve à diplomacia da Organização Mundial de Saúde, que, sob o preço da acusação de sinofilia, manteve canal aberto com autoridades chinesas. Foi isso que permitiu à OMS monitorar minimamente o desenvolvimento inicial da doença na China.

O comportamento das autoridades chinesas não foi uma regra na Ásia. No Vietnã, por exemplo, o país pobre e populoso de melhor resposta contra o vírus, a transparência era uma das únicas armas possíveis. O Vietnã busca pontuação em rankings mundiais de governança para colher benefícios diplomáticos e atrair investimentos estrangeiros. As outras armas, num país sem um sistema de saúde robusto, foi o fechamento de fronteira, quarentena para visitantes em instalações militares, multa para quem a desrespeita e rastreamento. O país deixou de ter transmissão comunitária em julho de 2020.

Se até aqui o estudo das instituições foi marcado por seus reflexos na estabilidade democrática e econômica, a pandemia indica uma inflexão em busca de desenhos institucionais que demonstrem eficiência na reação a emergências sanitárias. O desempenho do Brasil e dos Estados Unidos na primeira fase da pandemia demonstra que muitas dessas instituições são vulneráveis ao poder de maus líderes. A próxima parada do grupo de pesquisadores é a resposta global à vacina, quando o desempenho desses dois países se bifurca e isola o Brasil.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/eu-e/coluna/maria-cristina-fernandes-pesquisa-desmonta-tese-de-que-governos-autoritarios-responderam-melhor-a-pandemia.ghtml


O Globo: Ministério da Saúde encomendou manual para ‘tratamento precoce’

Leandro Prazeres, O Globo

BRASÍLIA — O Ministério da Saúde encomendou, em novembro do ano passado, à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) a produção de um manual para o suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19. Por indicação da pasta, o escolhido para fazer o manual foi o médico Ricardo Zimerman, conhecido nas redes sociais por ser a favor do uso de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19. Ele participou da equipe de profissionais que foi mandada para Manaus em janeiro deste ano pelo governo federal, durante o caos na área da Saúde no Amazonas.

Leia: Após recusa de 14 estados, governo Bolsonaro concentrou envio de cloroquina a aliados

O manual, que nunca foi divulgado, vai na contramão de pesquisas e até da própria Organização Mundial de Saúde (OMS), à qual a Opas é ligada. O texto recomenda abertamente o uso de cloroquina, ivermectina e azitromicina em pacientes com Covid-19. As informações constam de documentos sobre a contratação aos quais o GLOBO teve acesso.

A aposta do governo no chamado “tratamento precoce” é um dos pontos que são alvo da CPI da Covid no Senado. O pedido para a contratação do manual foi feito pelo secretário de Ciência e Tecnologia, Inovações e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, Helio Angotti Neto. No dia 9 de novembro do ano passado, ele enviou um ofício à representante da Opas no Brasil, Socorro Gross, pedindo que a organização fizesse a contratação de uma consultoria técnica para a elaboração de três produtos, entre eles um manual de orientações sobre a aplicação do suposto tratamento precoce para a Covid-19.

A Opas acatou o pedido e deu início à contratação de Ricardo Zimerman. O valor do contrato com o médico é de R$ 30 mil. Zimerman é conhecido por suas postagens favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, sua ligação com parlamentares governistas, e por defender veementemente o uso de drogas como cloroquina contra a Covid-19.

Apesar de ter sido aceita pela cúpula da Opas, a contratação do médico causou desconforto entre funcionários da entidade. O manual foi entregue tanto à Opas quanto ao Ministério da Saúde em janeiro deste ano. Com 87 páginas, o manual produzido pelo médico recomenda abertamente o uso de cloroquina e hidroxicloroquina e também defende o uso da ivermectina e azitromicina no “tratamento precoce” da Covid-19. Os quatro medicamentos fazem parte do chamado “kit covid” enviado pelo Ministério da Saúde a estados e municípios. Em seu manual, Zimerman propõe uma série de combinações de drogas para o “tratamento precoce” da Covid-19. Há casos em que ele recomenda o uso de uma mistura contendo sulfato de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, dutasterida e bromexina.

Zimerman também recomenda o uso de um método de diagnóstico clínico baseado em uma pontuação para determinar se um paciente tem ou não Covid-19. Normalmente, o diagnóstico para a doença só é confirmado por meio de exames como o sorológico ou o RT-PCR.

O método defendido por Zimerman é o mesmo utilizado no aplicativo TrateCov, que chegou a ser liberado pelo Ministério da Saúde em janeiro deste ano, mas foi retirado do ar após críticas de entidades médicas. O aplicativo fazia recomendações sobre medicamentos a serem tomados em caso de sintomas de Covid-19. Atualmente, o Ministério da Saúde é investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) em razão do TrateCov.

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A contratação do médico pró-cloroquina pela Opas aconteceu a partir de novembro. Na época, porém, as evidências científicas divulgadas pela OMS eram contra o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina no tratamento da Covid-19. Em 30 de outubro, a própria Opas divulgou uma revisão de estudos realizados em todo o mundo que apontava que o uso de cloroquina e hidroxicloroquina não mostrava benefícios na redução das taxas de mortalidade, tempo de internação ou necessidade de intubação.

Procurado, o Ministério da Saúde disse que “procede constante levantamento de evidências científicas” e que pode contar com o “aporte de consultores externos ad hoc para eventuais avaliações de expertise técnica”. Quanto ao critério de escolha de Zimerman, o ministério não se manifestou. A Opas, por sua vez, disse que se “resguarda o direito de manter a privacidade das pessoas contratadas para fazer parte de sua equipe e daquelas que prestam serviços pontuais”. Zimerman foi procurado por telefone e por mensagens de texto, mas, até o fechamento desta edição, não respondeu aos contatos e bloqueou o contato com seu celular.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/brasil/ministerio-da-saude-encomendou-manual-para-tratamento-precoce-25020918


Fernando Gabeira: Pandemia e lição de casa

Já estamos um pouco cansados de falar da pandemia. Quem caiu, quem não caiu, amigo entubado, amigo extubado, CoronaVac, AstraZeneca, vozes abafadas pelas máscaras, CPIs, mentiras e gravações.

Mas a Humanidade tem de enfrentar seus erros e fazer a lição de casa, pois, nas condições de crise ambiental, novas pandemias podem nos atacar.

Um passo importante foi a comissão especial criada pela OMS, que divulgou seu relatório. Nele, o grupo liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark aponta os erros da própria OMS, que perdeu um mês antes de decretar a emergência.

Governos locais — com seu negacionismo, isso conhecemos bem —também foram responsáveis por políticas destruidoras.

Em outras palavras, a tragédia que o mundo vive hoje poderia ter sido evitada. Comissões internacionais como essa são importantes para despertar uma nova consciência. No final da década dos 60, o Clube de Roma publicou um relatório de personalidades políticas alertando para a produção e o consumo insustentáveis. Isso foi um marco.

No meu entender, existe uma lição implícita na pandemia, já absorvida no século XIX por Humboldt. Ao escalar a montanha do vulcão Chimborazo, ele compreendeu algo que já estava amadurecendo em seu pensamento: os elementos da natureza são interligados, ela é uma rede viva e, portanto, vulnerável.

Lição semelhante pode ser transplantada para a política internacional num caso de pandemia. Estamos todos no mesmo barco. Ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem a salvo.

Daí meu apoio à quebra das patentes, mesmo sabendo que o efeito imediato da medida não é tão promissor quanto a distribuição de vacinas por países que têm mais do que necessitam para vacinar sua população.

Essa noção de interdependência deve ser levada também para o plano interno, em que, sem solidariedade, dificilmente atravessaremos a crise.

O governo brasileiro fez tudo errado. Negou a pandemia, resistiu à vacina e contribuiu para que tivéssemos um número absurdo de mortes.

Como se não bastasse isso, o desmatamento na Amazônia atinge números recordes, o Congresso acaba com as leis que definem o licenciamento ambiental.

O processo de destruição da natureza será mais acentuado no Brasil, sem falar no aumento da pobreza, por remarmos contra a corrente mundial que defende a sustentabilidade.

O governo e o Congresso não respeitam o alerta sobre uma exploração sustentável da natureza. E muito menos os conselhos para preservar vidas durante uma pandemia.

Simultaneamente, portanto, criam as bases de uma nova pandemia e estabelecem a política negacionista de um sacrifício humano ainda maior.

A única esperança, se isso merece o nome de esperança, é que não conseguirão destruir tudo nem matar todos os brasileiros até 2022.

É simples: ou deixam o poder, ou acabam com o Brasil.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/pandemia-e-licao-de-casa.html


O Estado de S. Paulo: Para os EUA, descontrole da pandemia no Brasil e variante ameaçam o mundo

Autoridades da saúde e do governo americano estão em estado de alerta e afirmam que nenhum país estará seguro enquanto a disseminação do coronavírus continuar a crescer, pelo risco de surgirem novas variantes, mais transmissíveis e também agressivas

Beatriz Bulla* e Giovana Girardi, O Estado de S. Paulo
*Correspondente em Washington

Uma ameaça para o mundo. É assim que a imprensa americana retrata a atual situação da pandemia de coronavírus no Brasil, ecoando a preocupação de cientistas, autoridades da área de saúde e do governo americano sobre os efeitos do descontrole da propagação de uma nova variante do Sars-CoV-2 no País.

Nos EUA, a população já discute quando a vida poderá voltar ao normal, diante da aceleração do ritmo de vacinação e da indicação de que até o fim de maio o país terá doses de imunizante para todos. Depois de um ano como epicentro da pandemia, os EUA agora veem uma luz no fim do túnel e a ameaça do lado de fora. Mais especificamente no Brasil.

“Há uma sensação de alarme sobre a natureza não controlada da pandemia no Brasil e o ritmo lento da vacinação – especialmente agora que o Brasil é a fonte de uma nova e preocupante variante da covid-19”, afirma Anya Prusia, do Brazil Institute do Centro de Estudos Wilson Center, em Washington. “A atenção aqui está voltada para a disseminação dessa cepa mais contagiosa, a P.1, que se originou em Manaus.” 

Os primeiros dois casos da variante P.1 foram registrados nos EUA em janeiro, horas depois de o presidente Joe Biden revogar uma decisão de Donald Trump e recolocar a restrição de viagens do Brasil aos EUA.

Duas pessoas que estiveram no Brasil foram diagnosticadas com a nova cepa em Minnesota. Até agora, os EUA registraram 13 casos da mutação, em ao menos sete Estados. Mas ainda não há transmissão comunitária, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mas não foi a chegada nos EUA da cepa de Manaus que alarmou os americanos e sim a recente situação da pandemia no Brasil, que tem batido recorde de mortes. “Enquanto a pandemia continuar a crescer, ninguém estará a salvo”, disse o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, em coletiva de imprensa.

Em pronunciamentos e entrevistas recentes, o principal infectologista do governo americano, Anthony Fauci, tem ressaltado que a cepa P.1 está associada a uma maior transmissibilidade e à preocupação de que a mutação possa interromper a imunidade induzida naturalmente e pela vacina.

Há cerca de um mês, Fauci afirmou que isso preocupa os americanos, que não devem derrubar tão cedo o bloqueio de passageiros que estiveram no Brasil. Nesta semana, ele voltou ao tema. “O Brasil está numa situação muito difícil. A melhor coisa é vacinar o maior número de pessoas o mais rápido possível”, disse Fauci, que chegou a dizer que os EUA poderiam ajudar os brasileiros.

O ritmo de vacinação nacional, porém, não anima. O Washington Post descreveu a vacinação brasileira como um processo de “escassez e atrasos”, enquanto o The New York Times reporta uma vacinação lenta e sem sinalização de melhora.

“O país atingiu o pior momento. Surgiram variantes que parecem mais mortais para pessoas saudáveis, e os cientistas documentaram coinfecção por múltiplas variantes”, escreveu Kevin Ivers, vice-presidente da consultoria americana DCI Group, em relatório. “A preocupação é que a disseminação acelere essas coinfecções no Brasil e leve a uma explosão de novas variantes mais agressivas.”

A situação brasileira foi definida pelo Washington Post, no dia 4, como “terreno fértil” para outras variantes. O risco foi mencionado também por cientistas, como Bill Hanage, epidemiologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard (leia a entrevista aqui).

Nas redes sociais, o também epidemiologista e economista da área da saúde Eric Feigl-Ding, membro da Federação de Cientistas Americanos, postou que o Brasil precisa da ajuda de líderes estrangeiros. “A epidemia descontrolada do Brasil será uma ameaça ao mundo, mas ainda não é muito tarde”, disse ao Estadão. “Mas é preciso ter sequenciamento genético, controle de fronteiras, quarentenas e testagem em massa.”

Para a epidemiologista brasileira Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, com base em Washington, se o Brasil não for capaz de controlar a situação, os bloqueios de viajantes devem se intensificar. 

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, que nos últimos dias ganhou espaço em jornais estrangeiros pedindo uma pressão de outras nações sobre o Brasil, chama a atenção para a “geopolítica da pandemia”. “É a diplomacia do século 21. Já tem países trocando mercadorias por vacinas”, afirmou. “Se o fluxo ficar desimpedido, a doença desse país vai migrar para os outros.”

Falta de liderança

Na imprensa e entre analistas americanos, Jair Bolsonaro é o presidente que propaga desinformação, é cético sobre a vacina e está em choque com governadores. “Como aconteceu com Trump, o vácuo de liderança de Bolsonaro deu ao vírus abertura para se espalhar”, disse o Washington Post. Um dia antes, o The New York Times colocou a preocupação com o Brasil em sua capa.

A crise no País já chamou a atenção no ano passado, com as imagens de cemitérios lotados em Manaus e São Paulo. Desta vez, a preocupação é diferente, porque o que acontece no Brasil, segundo os americanos, pode colocar em xeque os avanços do resto do mundo.

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Marco Aurélio Nogueira: A pandemia, o futuro, a vida que flui

A época atual é de perplexidade, que ofusca o futuro e idealiza o passado. Com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida, incrementando ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. A pandemia do coronavírus agravou um quadro que já era dramático. Partindo desse pressuposto, o artigo procura refletir sobre algumas vias alternativas, que recuperem o diálogo, a cooperação e a solidariedade em escala global, valorizando ao mesmo tempo a democracia e o reformismo incremental

Decifrar o futuro sempre assustou e excitou os humanos. Da mítica Esfinge de Tebas, com seu enigma que exigia um esforço de autoconhecimento e de reflexão sobre os passos da humanidade (a criança, o adulto, o idoso), ao Iluminismo, com sua aposta no racionalismo como motor do progresso, o futuro fixou-se como imagem de desafio, promessa e possibilidade. Prevalecendo a razão, decifrado o enigma, o passado seria ultrapassado inapelavelmente, levando consigo um cortejo de perversidades acumuladas, sofrimentos ingentes e vidas desperdiçadas.

Utópicos variados floresceram, idealizando construções que conteriam em si a felicidade e a harmonia futura. Mas tarde, com o predomínio crescente da ciência e da técnica, defensores do progresso técnico e econômico inexorável e futurólogos se multiplicaram, convictos da capacidade que teriam de antecipar o que se teria pela frente. Com os avanços obtidos após a Segunda Guerra Mundial -- o Estado de Bem-Estar, o aumento de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento da ciência aplicada nas áreas decisivas da saúde e do saneamento, os direitos sociais --, anunciou-se uma era de confiança no futuro.

Chegamos assim às últimas décadas do século XX, quando o aparato institucional, sociopolítico e cultural erguido no pós-guerra começou a ser abalado por uma combinação de fatores explosivos: crescimento das demandas dos cidadãos, aumento do custo das operações estatais, crise fiscal, mercado todo-poderoso, rápida evolução tecnológica, problemas de governabilidade, passagem de uma estrutura produtiva assentada na indústria metalomecânica para uma estrutura fundada na “economia da informação”, desemprego estrutural, expansão das redes de comunicação.

Deu-se então uma reversão das expectativas. Foram postas em xeque as promessas da modernização e do progresso. As ciências humanas e a filosofia ingressaram em uma fase dedicada ao mapeamento das modificações sofridas pelo moderno. Pós-modernidade, modernidade líquida, segunda modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade tornaram-se expressões de uso generalizado, sobre uma base consensual de que a realidade se tornara muito mais difícil de ser conhecida. Formou-se assim um paradoxo: quando tudo parecia estar sob controle -- da natureza e do tempo à sociedade, dos corpos às mentes -- eis que uma névoa espessa desaba sobre o mundo, vedando-o ao conhecimento crítico e travando a imaginação sobre o futuro. As utopias cederam lugar às distopias e às “retrotopias”, utopias regressistas, que olham para trás e celebram a nostalgia dos tempos passados.

Leio em Bauman: “O caminho do futuro assemelha-se estranhamente a um percurso de corrupção e degeneração. O caminho reverso, direcionado para o passado, transforma-se assim em um itinerário de purificação dos danos que o futuro produziu toda vez que se fez presente”. As esperanças de melhoramento fogem de um futuro que assusta, buscam refúgio em um passado idealizado em que se confiaria. “Tal reviravolta transforma o futuro, de um habitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em uma casa de pesadelos”. (Bauman, 2017: 16).

Na base dessa inflexão repousa o fato de que, com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida. Incrementou ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. O mundo enveredou por uma etapa que realiza in totum aquilo que em seus primórdios foi utilizado para definir a condição moderna: “estar em movimento”, mudar compulsivamente, agir para confrontar e transformar o mundo, tornando-o diferente.

Aceleração

Como enfatizou Hartmut Rosa, as sociedades tornam-se modernas quando ganham “estabilização dinâmica”, ou seja, quando ficam “sistematicamente dispostas ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (Rosa, 2019: XI). Além de se racionalizarem, ganharem diversificação e se individualizarem, as sociedades modernas são atravessadas pela aceleração de processos, sensações e acontecimentos. Tal vetor torna-se sempre mais um princípio

básico da vida moderna, que comprime o tempo e suspende os momentos de fruição, nos quais deveria ocorrer alguma possibilidade de “desaceleração” e de repouso do guerreiro.

Hartmut Rosa explorou como esse processo ativado pela compulsão produtivista implica perdas existenciais, mal-estares e aflições (estresse, exaustão, burnout, falta de tempo, pressa permanente, depressão). A sensação de que o progresso técnico (a informatização) dilataria o tempo livre e agregaria mais horas de fruição à vida cotidiana é questionada em termos práticos pela constatação de que o tempo se tornou uma variável fora de controle.

Rosa segue uma trilha também frequentada por outros autores. Byung-Chul Han, por exemplo, constata que “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho”. Seus habitantes não são mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos”. Inerente a ela é a produção recorrente de transtornos e paralisias hiperativas. “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, de certo modo seres de “almas consumidas”. Os transtornos que nela se reproduzem expressam “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. Refletem uma “humanidade que está em guerra consigo mesma”, que vive sob o império do cansaço, do esgotamento, do excesso (de estímulos, informações, impulsos), que fragmenta e destrói a atenção. (Han, 2015).

A aceleração produz efeitos nos distintos planos da vida. Afeta o modo como se pensa, se estuda, se ensina e se aprende. O modo como se trabalha e se descansa, o lazer e a fruição cultural, os relacionamentos e os afetos. Põe em xeque os sistemas, o Estado, a família, a escola e as organizações da sociedade civil. Dificulta a compreensão da realidade e a ação sobre ela. Mundializa o mundo, mas provoca separações e desigualdades que freiam a formação de uma comunidade de destino internacional. Suspende, assim, a elaboração de visões sistemáticas do futuro e de projetos de sociedade.

Essa alteração do ritmo existencial combina-se com o fato de que, na modernidade tardia, os indivíduos desejam “dispor do mundo” livremente, tratá-lo como inesgotável, pronto para ser explorado e submetido. Essa tendência está inscrita desde sempre em nossa relação com o mundo, mas alcança nova radicalidade no século XXI, graças às possibilidades técnicas oferecidas pela digitalização e pelas restrições político-econômicas da extensão e da otimização do capitalismo financeiro e da competição desenfreada. Os humanos deparam-se, assim, com um mundo que se lhes aparece como uma sucessão de “pontos de agressão”, objetos que precisam ser conhecidos, conquistados, dominados, utilizados. A “vida”, portanto, torna-se uma luta que jamais pode ser interrompida. Turbinada pelos mecanismos do mercado e pelas ofertas várias do processo sociocultural, a

dinâmica vital termina por gerar frustrações seriais, raiva, medo e insatisfação, assim como comportamentos políticos fundados na violência e na agressão.

Na modernidade tardia, observa Hartmut Rosa, o “mundo da vida” torna-se cada vez mais indisponível, opaco e incerto. “Em consequência, a indisponibilidade retorna à vida concreta, mas modificada e angustiante, como uma espécie de monstro que teria se criado a si mesmo”. (Rosa, 2020). O programa moderno de extensão do acesso ao mundo, que transformou o mundo em um amontoado de “pontos de agressão”, produz assim, de duas formas concomitantes, “o medo do mutismo do mundo e da perda do mundo”. Se "tudo está disponível", o mundo não tem mais nada a nos dizer e “onde ele se tornou indisponível de uma nova maneira, não podemos mais entendê-lo porque ele não é mais alcançável”.

Com a “estabilização dinâmica” das sociedades modernas e os problemas dela derivados, processa-se uma mudança na percepção cultural. Crescer passa a significa mais risco e ameaça, às pessoas, às sociedades, ao Estado, à natureza. Ao futuro. Deixa de ser um valor inquestionável, ainda que não seja abandonado como vetor econômico. Estreitam-se as margens de manobra dos governos e dos sistemas políticos, que deixam de produzir resultados satisfatórios.

Grupos e indivíduos defrontam-se com a realidade estrutural da modernidade atual: “o que sustenta o jogo do crescimento não é a vontade de obter ainda mais, mas o medo de ter cada vez menos”. Grupos e indivíduos sentem-se “estruturalmente constrangidos (a partir de fora) e culturalmente empurrados (a partir de dentro) para fazer do mundo o ponto de agressão”, para converter o mundo em algo a ser conhecido, explorado, consumido, dominado. Não é difícil imaginar a repercussão explosiva e perturbadora desse processo quando ele atinge seu ápice. A sensação de um mundo indisponível invade o plano político, onde é processada de modo discursivo e reforçada pela dinâmica incontrolável da mídia e das redes sociais, “que desencadeiam em pouquíssimo tempo ondas de indignação - ou de entusiasmo -- insuspeitáveis e com consequências gigantescas, ondas cujos fluxos e refluxos são tão imprevisíveis e incontroláveis quanto suas interações”. (Rosa, 2020)

Basta girar o periscópio para constatar que não há lugar na Terra que esteja a exibir coesão, harmonia e satisfação. A fragmentação, o sentimento de impotência, a frustração, a raiva, os estados depressivos espalham-se como fogo pelas mais diferentes sociedades. A “crise” torna-se assim abrangente: põe em xeque o modo de vida moderno, o padrão de desenvolvimento, o modo como se dispõe do mundo, como ele é ocupado, utilizado, explorado. Edgar Morin fala em “megacrise” e em “poli-crises” para acentuar precisamente essa dimensão complexa e universal, em um processo que aproxima e afasta, unifica e separa: “A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, emaranhadas, entre as quais estão a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais, que são, elas mesmas, produtoras da crise da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue chegar à humanidade”. (Morin, 2011).

Faltam lideranças que se disponham a pensar o futuro, praticando uma política inovadora e de civilidade, voltada para a solidariedade e a qualidade de vida, que ficam na dependência de “resistências colaborativas” e “oásis de fraternidade” (Morin) de pequena escala. A política sofre para falar com os cidadãos, deixa-se enredar nos mecanismos do poder e nas manobrar eleitorais. Afasta-se quando deveria se aproximar. “A nossa é uma era de crise permanente dos instrumentos para resolver problemas”, escreveu Bauman. O poder se separou da política, ficando solto e fora de controle. Em decorrência, as instituições ficam mais impotentes e mais submetidas aos técnicos. Os governos querem se agarrar ao terreno nacional, mas são pressionados pelo supranacional. A condição cosmopolita (a interdependência, as interações) não conta com uma consciência cosmopolita que a direcione e regule. O mundo global não conta com uma política global. Sem política, não se completa a formação de uma opinião pública global e de uma consciência de que os problemas são globais. (Bauman, 2017: 262).

Já estamos em processo de metamorfose: uma metamorfose “abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas, está acontecendo de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”. Ela “ocorre em segundos, com uma velocidade verdadeiramente inconcebível; em consequência, está ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas também instituições”. É por isso que ela escapa da conceituação vigente da teoria social e leva as pessoas a terem a impressão de que o mundo está louco. (Beck, 2018, p. 79).

O tempo veloz e a política

Quem governa e exerce poder vale-se da lentidão: precisa dela para respirar, fazer cálculos e decidir. Em boa medida, o governante poderoso pretende prolongar o passado, aquilo que existe. As oposições e os cidadãos têm pressa: desejam para hoje tudo o que tem sido postergado e tudo a que aspiram. Querem antecipar o futuro. A lentidão precisa ser modulada com sabedoria e capacidade de comunicação persuasiva. Se for excessiva, pode fazer com que oportunidades de avanço se percam e apoios sejam desperdiçados, levando a que não se consiga governar os ambientes. A antecipação apressada do futuro, por sua vez, pode ser feita de forma voluntarista, em nome da vontade de mudar, perdendo de vista as determinações fundamentais e as possibilidades concretas de mudança.

Hoje, a velocidade dos fatos aumenta na mesma proporção em que cresce a complexidade social (a diferenciação, a individualização, a fragmentação, o desentendimento) e acelera-se a inovação tecnológica, sobretudo a que afeta a comunicação e a informação, internet à frente. Quanto mais tribos, nichos e redes, maior é o volume de fatos e mais veloz é a sucessão deles. Dadas as interações e as trocas amplificadas, fatos passam a significar também versões e interpretações. Narrativas proliferam.

O resultado é um agregado que se movimenta sozinho, sem que encontre um centro gerador claro e preciso. O bólido gira em alta velocidade, como slides que deslizam rapidamente em um carrossel, sem que os espectadores tenham tempo de assimilá-los. Como decorrência, verdade e mentira se misturam, palpites e opiniões caem sobre a população como uma tempestade de raios, a mídia é onipresente. Forma-se uma névoa densa, que ajuda a rebaixar a qualidade das “narrativas” individuais, coletivas, governamentais ou patrocinadas por organizações. Vozes se espalham em tom de “verdade categórica”, impulsionadas por postagens e boatos espalhados por aplicativos, bots ou empresas especializadas.

Fatos se sucedem com rapidez inusitada, movidos por expectativas inflacionadas, ódios e ressentimentos à flor da pele, notícias e informações multiplicadas, discursos, debates e falas incessantes, uma cacofonia inesgotável. Há movimentos de luta, reivindicação e protesto os mais variados, condizentes com uma época que fez dos direitos humanos e das postulações identitárias um de seus signos mais fortes. Mas os avanços por eles obtidos tardam para socializar seus efeitos. A desigualdade se reproduz e chega a se expandir, misturada com discriminações várias e preconceitos que se repõem. A vida cotidiana, como sempre, mostra-se dura e pouco flexível, sobretudo para os marginalizados, os que se deparam com empregos que escasseiam e salários que declinam. Para os jovens, que sofrem para encontrar seu lugar no mundo.

Tudo incide sobre o espaço em que atuam os políticos, com seus partidos e suas agendas, e no qual se organizam as escolhas dos eleitores e as decisões dos governantes. A política, em si mesma, é revolvida de cima a baixo, com a crise despontando em cada curva do caminho, ora sob a forma do questionamento da representação, ora sob a colocação em xeque da ideia mesma de democracia, ora problematizando a figura dos políticos, ora fomentando versões de populismo. A esquerda enfrenta dificuldades para se renovar e se repor, a extrema-direita ressurge com virulência e agressividade.

No plano do pensamento, o cenário célere e mutante desafia os analistas, obrigando-os a checar mais fontes, a incluir mais ângulos de observação e a atravessar uma muralha de interpretações que complicam a relação “normal” entre essência e aparência. As análises tornam-se mais tentativas, refugiam-se no academicismo típico da hipermodernidade, movido a citações e referências e pouco atento à dimensão pública do

trabalho reflexivo. Exige-se sempre mais a incorporação de formas de pensar próximas da dialética e da teoria da complexidade, capazes de considerar que espaços dispostos em redes costumam gerar modalidades permanentes de “caos estável” (Beck), que se reproduzem e se refazem, até mesmo quando se estabilizam.

Sobredeterminando tudo isso, há a ação da época histórica. O capitalismo globalizado ganhou alento e seguiu seu curso, alheio a controles, crises e regulações. A turbulência econômica passou a ser personagem usual no mundo. O fundamentalismo foi reforçado, ganhando agora a companhia de nacionalistas xenófobos e demagogos, a democracia representativa tornou-se sensível demais às transformações que sacodem a vida cotidiana, a cultura de esquerda não conheceu o necessário revigoramento, o mundo do trabalho se desorganizou, a robótica, a inteligência artificial movida a algoritmos, os celulares e a informatização generalizada redesenharam o modo com os humanos vivem, pensam e fazem coisas.

O cenário não se fixa, parece sempre em movimento, mesmo quando se repõe. O analista que se proponha a interagir com tal cenário deve tentar captar o essencial do slide disposto pelo carrossel enlouquecido, sem perder de vista aquilo que vem em seguida e se projeta no horizonte. Precisa ser rápido sem ser apressado.

A velocidade está intimamente associada ao ritmo das mudanças. Há mudanças rápidas, outras precisam de tempos longos para amadurecer. Há épocas velozes e épocas em que a vida nem parece mudar, sociedades que navegam com as ondas e outras que mal conseguem sair do lugar. Em nossa época, muda-se tanto que a mudança ficou fora de controle. Sabemos que ela já está aí, mas não podemos dosá-la, nem direcioná-la. Mesmo assim, vivemos todos querendo mudar mais e no menor intervalo de tempo, somos praticamente subsumidos pela fascinação do novo, do que virá amanhã.

A velocidade com que o “novo” substituirá o “velho” intriga, até mesmo por não poder ser projetada. Há modulações e determinações a serem consideradas. A repentina subida da temperatura política e social pode tanto desencadear mudanças não previstas quanto bloquear outras já delineadas. Pode também desorganizar de tal forma o quadro existente que a complicação se torna inevitável, fazendo crescer enganos e ilusões. “Explosões” são sempre risco e surpresa: fascinam, geram temor, excitam esperanças, alteram humores, disposições e resistências.

O “novo” – um sistema, uma sociedade, um partido, uma elite política, uma cultura, um comportamento – não brota somente por causa de iniciativas políticas. Atos de vontade são importantes, mas não podem tudo. Não basta existir disposição, empenho e dedicação para que o “velho” seja deslocado. Ele está enraizado em terrenos muitas vezes arados pelo tempo secular, funciona como referência essencial para condutas, hábitos e pensamentos. Somente a ingenuidade política e o desconhecimento dos ritmos da história

podem relativizar “o peso que as gerações mortas têm sobre o cérebro dos vivos”, como escreveu Marx no 18 Brumário. A resistência à mudança, extenso e conhecido capítulo dos estudos sociais, não se apoia exclusivamente em interesses prejudicados, mas obtém a maior parte de sua força precisamente do “velho” que repousa entranhado nas bases da vida coletiva. Recusa-se a mudança por temor a ela, por não se saber direito o que fazer se aquilo que é conhecido deixar de existir, porque não se consegue visualizar o futuro.

Reformas complexas como são as da educação, da saúde e da previdência – os sistemas básicos de proteção social – requerem tempo para serem gestadas com um mínimo de consenso e executadas com sustentabilidade. Os cidadãos, porém, querem respostas imediatas. Os efeitos e os resultados do reformismo não são imediatos, fazem-se sentir ao longo de décadas. Enfrentam bloqueios e oposições, seja porque afetam interesses constituídos, seja porque se deparam com hábitos cristalizados, que não podem ser substituídos de um dia para outro.

Mudanças sistêmicas, que mexem com organizações e instituições, com modos de agir, pensar e sentir, não têm como ocorrer de chofre, abruptamente. Tentativas nesse sentido costumam dar errado. Justamente porque são complexas, tais mudanças vêm a conta-gotas: vencem quando são incrementais e economizam rupturas bruscas. São alterações moleculares, muitas vezes microscópicas e silenciosas, que, com o tempo, tendem a se acumular e a metamorfosear o organismo social como um todo.

O incrementalismo persegue a mudança segura, processual, blindada contra retrocessos. É uma perspectiva que valoriza a negociação e o acúmulo de forças, requerendo, por isso, a presença em cena de sujeitos políticos qualificados, dispostos a fazer “sacrifícios” e a se distanciar dos aplausos fáceis das multidões. Qualificados para resgatar a confiança perdida das pessoas, mobilizando-as para que assimilem as pressões mais disruptivas, reúnam-se e produzam consensos É uma perspectiva que requer maiores doses de inteligência política, sofisticação intelectual, paciência, bem como daquilo que os gregos chamavam de phrónesis, prudência. O incrementalismo só é sábio quando se ajusta ao tempo e à “alma” das sociedades, quando encontra um “organismo” que saiba dominar a arte do governo e se ponha na perspectiva de valorização do Estado democrático e republicano, aprofundando os pactos básicos de convivência e a formação de novos alinhamentos políticos e intelectuais.

Olhar para frente

Mas não há somente destroços e derrotas. Há crises por todos os lados, mas também estão postas as condições de possibilidade de um reformismo de esquerda que dignifique a igualdade e a democracia política. Não estamos retrocedendo.

A ambivalência é parte integrante dos processos atuais. Crises são simultaneamente risco e oportunidade. É o que leva Morin a afirmar que a globalização constitui ao mesmo tempo o pior e o melhor da humanidade. O pior decorre de seu ímpeto destrutivo, de sua adesão a um padrão de desenvolvimento desconectado das economias reais, de sua capacidade de produzir catástrofes em cadeia, que atiram comunidades inteiras no abismo da incerteza e da insegurança, ou seja, a possibilidade de autodestruição da humanidade.

Mas a globalização também abre espaços para o melhor da humanidade. “Pela primeira vez na história humana, as condições para que se ultrapasse uma história feita de guerras, na qual as potências de morte foram reforçadas a ponto de permitir agora um suicídio global da humanidade”. Agora, aumentou a interdependência de cada um e de todos, nações, comunidades, indivíduos, no planeta Terra, “multiplicam-se simbioses e misturas culturais em todas as áreas, as diversidades resistem apesar dos processos de homogeneização que tendem a destruí-las”. Ameaças mortais e problemas fundamentais terminam, assim, por criar uma “comunidade de destino para toda a humanidade”. Em suma, a globalização produziu a “infra-textura de uma sociedade-mundo”, a partir da qual podemos “ver a Terra como pátria sem que isso negue as pátrias existentes, mas, pelo contrário, englobando-as e protegendo-as”. (Morin, 2011).

É evidente que a consciência dos perigos ainda é fraca e dispersa, a consciência de uma comunidade de destino permanece deficiente, a própria globalização, com suas ambivalências, impede a formação da sociedade mundial cujas bases ela cria sem cessar. Há contradições de todo tipo, que opõem, por exemplo, as soberanias nacionais e a necessidade de autoridades supranacionais que consigam lidar com os problemas vitais do planeta. Mas a sorte de algum modo está lançada, os espaços estão se abrindo. Do que se necessita é de uma mudança de via, uma metamorfose.

Quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, observa Morin, ou ele se degrada e se desintegra, ou “revela-se capaz de criar um metassistema que o capacite para lidar com os problemas: ele se metamorfoseia”. Regeneram-se assim suas capacidades criadoras. “A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. Preserva sua radicalidade inovadora, mas a vincula à conservação (da vida, das culturas, dos legados do pensamento e da sabedoria da humanidade). Não há como prever suas modalidades e suas formas: toda mudança de escala leva a um surgimento criativo”. O que sabemos é que, para avançar em direção à metamorfose, é necessário mudar de via. “Mas se parece possível inverter certos caminhos, corrigir certos males, ainda assim não é possível frear a invasão técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre”.

Nada está dado de antemão. Não é simples. É preciso ir além da denúncia e das declarações de intenção. Começar a construir alternativas e formar novas consciências. Reproblematizar, repensar, recomeçar. Conectar o que está disperso e separado. Explorar o que há de “efervescência criativa” pelo mundo. Completar uma metamorfose que já está em curso.

A situação atual está assentada sobre problemas de difícil solução, que são ampliados pela disrupção tecnológica e se projetam no tempo e causam aquela “sensação de desorientação e catástrofe iminente” registrada por Harari (2018). Mas há ferramentas disponíveis, a ciência mostra sua pujança e não é de se descartar que os povos do mundo consigam conter a onda de xenofobia, isolacionismo e desconfiança que hoje varre o sistema internacional. Pelos riscos gravíssimos que produz, a desunião global é uma ameaça que tem como ser compreendida e neutralizada.

Pandemia

É evidente que esse quadro não favorece o reconhecimento do futuro como promessa e possibilidade, nem sequer como desafio ou esperança: ele simplesmente cancela o futuro, apaga-o das conjecturas. O “projeto” passa a ser administrar o presente, torná-lo maleável a ponto de permitir que todos possam continuar a se mover com celeridade para tentar alcançar alguma estabilidade pessoal ou grupal ilusória.

O ano de 2020 acrescentou nova camada à já espessa neblina que distorce a visão do presente e encobre o futuro. Em poucos meses, foi como se os povos do mundo se deparassem com a fragilidade do humano e a insuficiência dos sistemas de proteção social e de cuidados com a saúde.

Parte expressiva disso deveu-se à irrupção catastrófica do coronavírus, que estava nos cálculos mas não era esperada. A humanidade se deparou com um processo de adoecimento e de mortes sequenciais que dramatizou os meandros de seus piores pesadelos, embora estivesse delineado por pesquisadores e estudiosos há tempo. A banalização dos efeitos perversos da vida atual, a dificuldade de aceitar e compreender as transformações estruturais em curso -- o modo do capitalismo se reproduzir na era digital --, ao lado da emergência de “narrativas” anticientíficas impulsionadas por lideranças políticas e intelectuais da nova extrema-direita, fizeram com que uma onda de brutalidade e ignorância se instalasse entre os humanos, comprometendo as respostas coletivas ao Covid-19.

Não foi a primeira pandemia da história recente, como sabemos bem. A gripe espanhola (1920) dizimou em larga escala. Deu-se o mesmo com a AIDS, síndrome que se espalhou a partir de 1985 ativada pelos fluídos do amor e do sangue. Houve as epidemias de Sars (2003) e de Mers (2012), igualmente provocadas por tipos de coronavírus. O surto de ebola foi grave na África.

Em 2020, todos os filmes de horror foram reprisados, as distopias ganharam destaque na imaginação popular, combinadas com doses-extra de incerteza e insegurança, derivadas das circunstâncias em que se passou a viver: o capitalismo digital, a invasão tecnológica, a reestruturação produtiva, a desorganização das classes e grupos sociais, a individualização crescente, as novas formas de emprego, a crise do trabalho, da política, da democracia. Tudo, no fundo, foi sendo articulado de modo a formar um único pacote, que, nos primeiros momentos, não tinha como ser decodificado e traduzido em termos de vida prática. O ano transcorreu na escuridão reflexiva.

As ameaças não se restringem ao vírus, por mais que sua disseminação tenha agravado a situação e exposto as fragilidades globais. A onda autoritária-populista, de base nacionalista, manteve-se em ação, desafiando as democracias instituídas e roubando dos cidadãos parte de um imaginário composto de tolerância, respeito e defesa dos direitos humanos, confiança na ciência, solidariedade e proteção.

A brutalidade gestual, verbal, procedimental, a falta de serenidade e compostura, a grosseria e a arrogância, invadiram os ambientes em geral, indiferentes a classes, grupos, gêneros, religiões e etnias. Os esforços de cooperação internacional e de articulação entre países – como a União Europeia, o Mercosul ou o BRICS – não avançaram, com o Brexit pondo em xeque a principal delas, na Europa. Os partidos democráticos perderam propulsão e muitos cidadãos viraram as costas para a política, numa inflexão “antipolítica” que terminou por convergir com o populismo em expansão. As políticas econômicas (as políticas públicas em geral) entregaram-se a uma ideia de austeridade indiferente à necessidade de reduzir as desigualdades e de prover os serviços de que necessitam as populações. A crise climática completou um quadro de gravidade extraordinária. Incêndios florestais, aquecimento global, águas marítimas em elevação, pessoas desalojadas por enchentes e desastres ecológicos, compõem um cenário de desolação e temor.

A pandemia trouxe mais problemas consigo. Agudizou a crise econômica e, com ela, agravou o desemprego e fez com que mais 130 milhões passassem a viver em extrema pobreza. Se em 2018 a proporção da população mundial vivendo em situação de extrema pobreza (menos de US$ 1,90 por dia) era de 8,6% (cerca de 650 milhões de pessoas), entre 2020 e 2021essa proporção chegará a 8,8%. A projeção foi feita em novembro de 2020 pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujo secretário- geral, Mukhisa Kituyi, observou: “O vírus se beneficiou das interconexões e fragilidades derivadas da globalização, transformando uma crise sanitária em um choque econômico global que atingiu principalmente os mais vulneráveis”. Ele também destacou: “A covid-19 causou dor e alterou o curso da história, mas pode ser um catalisador para uma mudança necessária”, contribuindo para que se reformem as redes globais de produção e se reinicie a cooperação multilateral.

O fato é que a pandemia produziu impactos generalizados na vida prática, na política e no pensamento. O léxico se modificou, passou a dar destaque a termos que antes frequentavam os ambientes especializados: risco, incerteza, insegurança, instabilidade, turbulência, imprevisibilidade. Evidenciou-se que não há como traduzir o mundo real com abordagens fracionadas e hiperespecializadas, que brotam automaticamente das apostas cegas que a hipermodernidade faz no “prometeísmo da ciência, da razão, do racionalismo, da racionalidade, da racionalização”, fazendo com que a inteligência se afaste das determinações fundamentais e dos esforços de totalização complexa. (Carvalho, 2017: 76-77).

Particularmente nas ciências da sociedade, ganhou impulso a teoria da complexidade, seja na versão mais tradicional (a dialética da totalização), seja na versão de Edgar Morin, que trabalha com novos entendimentos da relação tempo/espaço, refuta a linearidade e valoriza a ambiguidade e a ambivalência, abrindo-se para uma compreensão mais abrangente das tensões entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, separação e reunião. Morin também insiste no valor da ciência e na necessidade de que ela se ligue aos saberes vários (mítico-imaginários) fornecidos pelas artes e ao trabalho de cooperação e solidariedade entre os próprios cientistas.

A pandemia não explica tudo, por certo. Mas fornece um excepcional posto de observação para que se compreenda melhor que as dores atuais são múltiplas e estão enraizadas nas estruturas da modernidade, hoje abaladas pela disruptiva revolução tecnológica que impõe uma nova formação social (a sociedade do conhecimento) e implode as diferentes práticas, as ideias, os modelos de organização, o Estado, as empresas, o trabalho, o ensino, a produção de conhecimentos.

A política recebe o impacto de todo esse processo. Mergulha numa crise que afeta os institutos de representação, os partidos e o próprio funcionamento da democracia. Os governos passam a governar menos e com mais dificuldades. A insatisfação social cresce e impulsiona reações variadas, que ajudam a alimentar a contestação e os movimentos de extrema-direita.

Os sinais de alerta têm sido constantes. Eles indicam com clareza que há de se retomar o empenho pela democratização, seja no plano da conduta governamental, seja em termos institucionais mais amplos, seja no plano dos relacionamentos sociais. Mais que isso: será preciso encontrar outro caminho, que consubstancie uma alternativa real ao modo como a humanidade tem vivido a vida. Não há como seguir em frente mediante a clonagem de modelos pré-existentes, o prolongamento de um padrão de desenvolvimento que produz sempre mais subdesenvolvimento, a reverberação de nacionalismos mais patrióticos ou menos, o desprezo pela ciência e pela natureza, a desconsideração de que a experiência humana é una e está radicalmente mundializada. Ou nos projetamos como integrantes de uma comunidade global de destino, ou ficaremos travados, às voltas com problemas que não conseguimos resolver.

Como acentuou Harari, “hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”. Nos últimos anos, acrescenta, “políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”. (Harari, 2020).

A saída não está em “desglobalizar” o mundo ou em fechar fronteiras: em vez de segregação, isolacionismo e medo dos “outros”, a solução passa por mais cooperação.

Vida que flui

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país como o Brasil, em que a distância social já é em si mesmo obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos dispensáveis e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento: hibernação. O vírus proliferou, mesmo assim. Faltaram políticas claras, os sistemas de saúde mostraram deficiências, a população não aceitou as recomendações com facilidade. A surpresa com a agressividade da doença somou-se à surpresa com o aparecimento insidioso de um patógeno invisível que colocou a humanidade de joelhos. A perplexidade foi inevitável: numa era de revolução tecnológica intensiva, de transformações biotecnológicas profundas, como foi possível que os humanos tenham deixado que uma crise em seus ecossistemas se instalasse e ajudasse sobremaneira a facilitar a disseminação de vírus e bactérias que simplesmente não conseguem ser controlados? Como aceitar que o coronavírus avance e mate numa época em que a ciência é fulgurante e os conhecimentos estão disseminados, de braços dados com a “inteligência artificial” e a engenharia genética?

É importante lembrar que houve respostas imediatas. Em pouco tempo, os pesquisadores conseguiram sequenciar o genoma do vírus, criaram testes confiáveis para detectar pessoas infectadas e avançaram na elaboração de vacinas. Os profissionais da saúde se desdobraram para manter ativos os sistemas sanitários. Medicamentos foram testados e aperfeiçoados. Mas o número de mortes e doentes continuou a crescer.

O mundo teve então de se fechar sobre si mesmo: tornar-se menos disponível, ser menos consumido e explorado. A vida digital se sobrepôs à vida presencial e em poucos meses a humanidade ingressou em outra etapa.

Nela, foi preciso descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver. Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia.

Valorizar-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família, das salas de cinema. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o teletrabalho, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

A situação levou a uma espécie de introspecção coletiva, na qual se alojaram os “demônios internos” de cada um, os medos e a preocupação existencial. A perplexidade se instalou de forma plena, arrastando consigo paradigmas explicativos, convicções e certezas. A pandemia exacerbou a desconexão existente entre o pensamento crítico e a realidade fática, entre o pessoal e o global.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. Não foram os chineses, nem o “globalismo”. Não se trata de “culpa”, mas do efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética. Da falta de solidariedade e fraternidade entre povos e pessoas.

Divergências, antagonismos, conflitos e contradições são parte da vida, e são também complementares às tendências de união e associação. Na rota de valorização de ambiguidades e ambivalência, sempre explorada por Morin, há que se “resistir à crueldade de tudo aquilo que é predador”, para com isso defender as “múltiplas solidariedades que são uma característica essencial da vida”. Ganhos consistentes de consciência planetária passam pelo reconhecimento dos paradoxos da mundialização, assim como requerem “o reconhecimento de nossa humanidade comum e o respeito das diferenças”. (Morin, 2019: 21, 40).

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que ainda não perdemos.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

Há impactos evidentes: questionar tudo, mudar a rota, repensar o desenvolvimento, melhorar a formulação de políticas públicas, produzir consensos. Em particular no mundo da ciência, cresce a percepção de que o avanço depende do trabalho múltiplo e articulado de vários setores da sociedade e do Estado. Cooperação, articulação, coordenação. Entre gestores, pesquisadores, formadores de opinião, jornalistas, cidadãos. A comunicação pública torna-se vital. Dentro e fora de cada sociedade nacional: fortalecer as agências multilaterais, em especial as de perfil técnico, como a OMS, que se tornam estratégicas.

Será preciso pensar, também, no processamento das informações e no debate público. Os temas que estão na agenda são controversos, causam medo, desconfiança e reações irracionais. A desinformação agrava a polarização das opiniões, até porque dificulta a compreensão do que é verdade e do que é mentira. Nesse quadro, somente o diálogo permanente entre os agentes da sociedade pode produzir algum resultado. Toda opinião conta, mas será preciso levar na devida conta as evidências científicas.

O mundo impactado pela epidemia reverbera no movimento democrático. Impõe a ele a revisão de convicções e modos de atuação, a redução da ênfase nas identidades singulares e a valorização do que aproxima. Mais unidade na diversidade, mais diálogo e respeito pelas diferenças. Mais substância, menos adjetivações. Digerir derrotas e ressentimentos políticos, partir para a construção de novos patamares de atuação, fazendo o que não foi feito quando a situação era mais favorável. Em uma palavra: buscar a união e a articulação dos democratas, recurso básico para que se possa administrar a situação corrente e planejar minimamente o futuro. O diálogo e a cooperação serão os principais antídotos contra o acirramento das polarizações e da política do pior.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios que devem ser considerados com atenção por ativistas, intelectuais, políticos e governantes. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, defesa dos direitos sociais, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável: tudo isso precisará prevalecer como diretrizes a serem seguidas. A coesão e a pressão dos democratas serão fundamentais para que as coisas caminhem nessa direção.

*Marco Aurélio Nogueira é cientista politico, professor titular da UNESP, tradutor e colaborador do jornal O Estado de São Paulo.

Referências

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HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam  líderes  à  humanidade. Tradução de Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

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ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Tradução Rafael H. Silveira. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

ROSA, Hartmut. Rendre le monde indisponible. Paris: La Découverte, 2020.


Alon Feuerwerker: O ano dos balões de ensaio

A situação do governo Jair Bolsonaro, especialmente dele próprio, é contraditória. De um lado, o governismo venceu as eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e ergueu um muro contra tentativas de impeachment. Também ganhou no Senado, o que completa o desenho favorável à aprovação das propostas centrais da equipe econômica. Desde que negociadas, claro, no Congresso Nacional. Mas isso é do jogo.

Ainda pelo lado favorável a Bolsonaro, todas as pesquisas apontam sua liderança na corrida presidencial para 2022, posição sustentada no cerca de um terço do eleitorado que, por enquanto, segue firme com ele. Isso o coloca facilmente no segundo turno. Para completar, o presidente parece ter sobre os mecanismos de Estado capazes de desestabilizá-lo uma ascendência bem maior que os dois antecessores imediatos.

Na outra face da moeda, Bolsonaro enfrenta problemas. O grau de liberdade para o presidente ser ele mesmo diminuiu. Diz a sabedoria filosófica que quando alguém transforma a realidade ela também modifica quem a transformou. Os partidos do dito centrão hoje são de fato governo e protegem o presidente. Porém este também passa a depender mais deles. Até aí, nada de muito novo no Brasil. Mas talvez para Bolsonaro seja novidade.

Outro complicador é o contra-ataque do Supremo Tribunal Federal, facilitado pelo passo em falso do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). O potencial campo político antibolsonarista pode estar dividido nas ambições para 2022, mas anda coeso no apoio a iniciativas do STF que criem constrangimentos ao comandante do Planalto. Igualmente a esmagadora maioria da imprensa. É uma verdadeira frente ampla.

A resultante das forças no momento indica que nem a oposição tem músculos para retirar Bolsonaro da cadeira, nem este terá espaço e terreno livre para ganhar muita tração neste resto de primeiro mandato. Daí a tendência a se manter uma guerra de posição relativamente prolongada. A não ser, naturalmente, que sobrevenha o fato novo. Mas sempre repito por aqui que o imprevisível é muito difícil de prever.

E tem a pandemia. Até o momento, ela talvez tenha contido a capacidade de o presidente ampliar o mercado eleitoral dele, mas não corroeu significativamente sua fatia. E o que ele possa ter perdido com o divórcio da Lava-Jato ganhou a partir da operação do orçamento federal. Vamos ver como evolui. Se a vacinação contra a Covid-19 andar, é provável o cenário continuar meio congelado. Se der chabu, aí o voo de Bolsonaro enfrentará fortes turbulências.

A vacinação vai no Brasil mais ou menos em linha com a maior parte do mundo. Tudo meio devagar, desde que algumas potências reservaram para elas o grosso dos imunizantes nesta primeira etapa. Mas por aqui somou-se a isso a subestimação presidencial da necessidade de vacinar. Se o cronograma não andar conforme o projetado vai introduzir um forte elemento de instabilidade.

E o termômetro para medir a coisa será sempre a popularidade presidencial. Se baixar muito, os políticos ficarão tentados a pensar em alternativas imediatas. 

Se a eleição de 2022 fosse hoje o presidente provavelmente iria ao segundo turno e teria grande dificuldade para fechar a fatura. Pelas pressões em favor de uma frente ampla na reta final, dada a progressiva convergência dos opositores em torno da vontade de impedir a continuidade do capitão. Decorre também daí a briga de foice do outro lado. Pois o cenário atual faz do potencial adversário de Bolsonaro na reta final um nome bem forte, qualquer que seja ele. É um bolo apetitoso demais.

Por isso, é ilusão imaginar a sedimentação rápida do cenário para 2022. A hora é de testar as águas. E o que não falta são balões de ensaio. 2021 será o ano deles.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Cristovam Buarque: Insanidade e falta de lucidez

Esta semana comprovou que o presidente não é sano e que a oposição não é lúcida.

Em um gesto irresponsável, de voluntarismo e capricho infantil, o Presidente da República demitiu o presidente da Petrobrás, com a clara intenção de interferir nos preços dos combustíveis. Demonstrou o despreparo de quem não tem ideia das consequências de seu ato em uma economia já sofrendo forte escassez do fator Confiança e em uma empresa com capital no mercado aberto. Na mesma semana, no momento mais dramático da epidemia, repete apologia de desprezo às medidas protetoras e assusta os pais dizendo que a máscara prejudica às crianças.

Na mesma semana em que o presidente e seu governo demonstram insanidade, dois de seus principais opositores para 2022 demonstram falta de lucidez ao trombarem entre si. Ciro dizendo que seu papel é derrotar Lula, o que passa a ideia de que derrotar Bolsonaro é secundário, e como se ele fosse capaz de vencer a eleição sem o apoio de Lula e do PT. Haddad, por sua vez, responde dizendo que Ciro é de direita, como um adjetivo de desqualificação para enfrentar Bolsonaro, como se os dois fossem a mesma coisa.

Triste momento em que o presidente é insano e a oposição não é lúcida. De um lado o presidente brinca de governar irresponsavelmente, de outro os líderes da oposição brincam de disputar eleição. Quando esta seria a hora de perceberem a gravidade de uma reeleição do Bolsonaro. Declararem-se aliados, lançarem um manifesto ao país dizendo que estão juntos contra a tragédia, chamarem os outros candidatos que se opõem a Bolsonaro e proporem a escolha de um nome, entre todos, que passe credibilidade e apresente a menor rejeição entre os eleitores. Ciro e Haddad têm capacidade de reorientar suas posições para enfrentar Bolsonaro, unirem-se entre eles e com os demais candidatos democráticos. Mas cada dia isto fica mais difícil: cada um se consolida para realizar seu projeto pessoal e atender as estratégias de seus partidos. Como se o destino do Brasil não estivesse em jogo.

Pobre Brasil com um presidente insano a uma oposição sem lucidez, ou sem compromisso com o país. Felizmente ainda é tempo para a oposição mudar.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Demétrio Magnoli: Biopolítica da pandemia

Narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada

A eclosão da Covid-19 em Wuhan, em dezembro de 2019, foi muito mais ampla do que se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes da cepa A do novo coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia, silenciosamente, havia tempo. A descoberta da missão da OMS na China lança luz sobre a transformação de uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a gripe espanhola.

O percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o peso de um lockdown aplicado com a força implacável de um Estado totalitário, Wuhan emergiu da onda de contágios com poucos milhares de mortos. As cifras modestas desarmaram os espíritos no resto do mundo, semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma avalanche de óbitos atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em diversos países europeus.Hoje sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo vírus na Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O coronavírus da cepa “original” (A) era menos transmissível que o B.1, difundido fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário para impor um lockdown decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da biologia. Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
árvore de mutações virais não tinha sido desenhada em meados de 2019. Naquele ponto, diante do chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e na Lombardia, analistas suspeitaram que a China escondia pilhas de cadáveres. Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.

Obcecado pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a notícia dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O tempo perdido propiciou a disseminação subterrânea do vírus fora da China e a eclosão das variantes que vergaram o mundo inteiro.Vírus mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades de reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois matar o hospedeiro contribui negativamente na velocidade de transmissão. A regra, porém, parece não valer para o novo coronavírus porque a fase de contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a carga viral concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade maior não traz desvantagens.
Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais transmissíveis como, também, mais letais no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil. As novas ondas pandêmicas resultam, ao menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que se espalhou por toda a humanidade, expandindo suas oportunidades de mutação.
A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada. A verdade é que o regime chinês lidou com um vírus menos eficiente. Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente fracassou no combate à pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente, quando a Covid já se disseminara nas sociedades, e enfrentou variantes mais transmissíveis do vírus.

2021, Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China, triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento, enquanto EUA, Reino Unido e, logo, União Europeia, protegerão antes suas populações.

A balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas, que poderão reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim das contas, tudo depende de uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os EUA se fecharem no nacionalismo vacinal, perderão sua vantagem potencial. Se, pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países em desenvolvimento, virarão o jogo.