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Por que a globalização está ameaçada
Michael Roberts, no The next recession*
Além da inflação e da guerra, o que atrai o pensamento econômico atual é o aparente fracasso do que a teoria econômica mainstream aprecia chamar de “globalização”. O que ela quer dizer com esse termo? Refere-se à expansão livre do comércio e do fluxo de capital através das fronteiras. Em 2000, o FMI identificou quatro aspectos básicos da globalização: comércio e transações, movimentos de capitais e investimentos, migração e circulação de pessoas e disseminação do conhecimento.
Todos esses componentes aparentemente se expandiram a partir do início da década de 1980 como parte da reversão neoliberal das políticas nacionais de macrogestão anteriormente seguidas. Ditas keynesianos, elas eram adotadas por governos no ambiente da ordem econômica mundial de Bretton Woods (isto é, sob a hegemonia dos EUA). A nova regra agora era quebrar as barreiras tarifárias, cotas e outras restrições comerciais, permitindo assim que as multinacionais negociassem “livremente” e transferissem os seus investimentos no exterior, ou seja, para áreas de mão de obra barata, com a finalidade de aumentar a lucratividade. Isso levaria à expansão global e ao desenvolvimento harmonioso das forças produtivas e ao crescimento dos recursos do mundo – pelo menos era o que se afirmava então.
Não havia nada de novo nesse fenômeno. Desde que o capitalismo se tornou o modo de produção dominante nas principais economias, já em meados do século XIX, houve períodos de aumento do comércio internacional e de exportação crescente de capital. Em 1848, os autores do Manifesto Comunista notaram o aumento no nível de interdependência nacional trazido pelo capitalismo e previram o caráter universal da sociedade mundial moderna: “A burguesia, por meio da exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para grande desgosto dos reacionários, ela tirou de debaixo dos pés da indústria o terreno nacional em que estava assentada. Todas as antigas indústrias nacionais estabelecidas foram destruídas ou estão sendo destruídas diariamente…. No lugar da antiga reclusão e autossuficiência local e nacional, temos relações em todas as direções, interdependência universal das nações”.
De fato, de acordo com a Organização Mundial do Comércio, um indicador-chave da “globalização”, a proporção das exportações mundiais em relação ao PIB mundial, ficou praticamente inalterado entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial; caiu depois quase 40% no período entre guerras; aumentou 50% de 1950-70; depois estagnou até a década de 1990, decolando até a Grande Recessão de 2009; depois disso, na Longa Depressão da década de 2010, esse indicador caiu cerca de 12%, um declínio não visto desde a década de 1970.
A última onda de globalização começou a diminuir pouco antes do início dos anos 2000, quando a lucratividade global passou a recuar, tal como mostra a figura abaixo.
Na década de 1990, o comércio mundial cresceu 6,2% ao ano, o investimento transfronteiriço (IDE) aumentou 15,3% ao ano e o PIB global se elevou em 3,8% ao ano. Mas, na longa depressão da década de 2010, o comércio cresceu apenas 2,7% ao ano, mais lento do que o PIB em 3,1%, enquanto o IDE aumentou apenas 0,8% ao ano. Ora, é isso o que mostra a figura em sequência.
Os fluxos de investimento transfronteiriços em ativos produtivos físicos também pararam de crescer na década de 2010, enquanto o comércio global por meio das “cadeia de valor” (ou seja, por meio de transferências internas de empresas multinacionais) também se estabilizou.
É claro que a crítica da economia política poderia ter previsto esse resultado da globalização. A teoria da vantagem comparativa de David Ricardo sempre foi comprovadamente falsa. Sob o capitalismo, com mercados sem restrições, as economias mais eficientes tomarão parte do comércio das menos eficientes. Assim, os desequilíbrios comerciais e de capital não tendem ao equilíbrio ao longo do tempo. Pelo contrário, os países costumam ter enormes déficits e superávits comerciais por longos períodos; experimentam crises cambiais recorrentes; os trabalhadores de um país perdem os seus empregos dada a concorrência do exterior; novos setores mais competitivos não costumam substituir os decadentes (ver Carchedi, Gugliermo – Frontiers of Political Economy).
Não são as vantagens comparativas ou os custos que impulsionam os ganhos comerciais, mas os custos absolutos (em outras palavras, a lucratividade relativa). Se os custos trabalhistas chineses forem muito menores do que os custos trabalhistas das empresas americanas, a China ganhará participação de mercado, mesmo que os Estados Unidos tenham a chamada “vantagem comparativa” em design ou inovação. O que realmente decide o crescimento de uma economia é o nível de produtividade e o custo da força de trabalho.
Ao contrário da visão do mainstream em Economia, o capitalismo não pode se expandir por meio de um desenvolvimento harmonioso e uniforme, estendendo-se para todo o mundo. Pelo contrário, o capitalismo é um sistema atravessado por contradições geradas pela lei do valor e pela motivação do lucro. Uma das contradições do capitalismo é a lei do desenvolvimento desigual – algumas economias nacionais concorrentes se saem melhor que outras. E quando as coisas ficam difíceis, os mais fortes começam a comer os mais fracos. Como Marx disse nas Teorias de mais-valia: “os capitalistas são como irmãos hostis que dividem entre si o saque do trabalho das pessoas que trabalham”. Às vezes, esses irmãos se mostram fraternos e a globalização se expande como no final do século XX; outras vezes, eles se afiguram hostis e a globalização diminui – como no século XXI.
Para a teoria marxista, globalização vem a ser de fato a palavra de uso corrente e dominante para se referir ao imperialismo. O século XX começou com o capitalismo mundial cada vez mais dividido entre um bloco imperialista dominante e o resto. No século XXI, o domínio do imperialismo permanece. E se, agora, as economias imperialistas começam a lutar pela lucratividade e pelos mercados, então elas começam a não cooperar, lançando as bases para a divisão, o conflito e a guerra.
Mesmo a teoria mainstream está agora ciente de que o livre comércio e o livre movimento de capital, que se aceleraram globalmente nos últimos 30 anos, não levaram ganhos para todos – exatamente ao contrário do que afirma a teoria da vantagem comparativa e da livre concorrência. A globalização e o livre comércio não trouxeram aumentos de renda para todos. Sob a livre circulação de capitais pertencentes às transnacionais, assim como sob o livre comércio sem tarifas e restrições, os grandes capitais mais eficientes triunfaram às custas dos mais fracos e ineficientes.
Em consequência, os trabalhadores desses últimos setores foram também atingidos. Em vez de um desenvolvimento harmonioso e igualitário, a globalização aumentou a desigualdade de riqueza e renda, tanto entre as nações quanto dentro delas. As corporações transnacionais transferiram as suas atividades para áreas em que a mão de obra era mais barata, adotaram novas tecnologias que exigem menos mão de obra na luta pela lucratividade.
Esses resultados se devem em parte à globalização levada a efeito pelo capital multinacional: fábricas e empregos foram transferidos para o que costumava ser chamado de Terceiro Mundo. Mas também se devem em parte às políticas neoliberais nas economias avançadas (isto é, redução do poder sindical e dos direitos trabalhistas; precarização do trabalho e redução dos salários; privatização e redução dos serviços públicos, pensões e benefícios sociais). Não se pode esquecer também a parte devida aos colapsos ou quedas regulares e recorrentes na produção capitalista.
Eis que tudo isso levou a uma perda de renda familiar para um volume expressivo de trabalhadores nos países desenvolvidos. Ora, essa perda nunca vai ser contrariada por meio de uma “recuperação’, principalmente a partir de 2009. O mundo capitalista nunca foi plano, mesmo no final do século XX – e certamente está bem montanhoso agora. A grande recessão, a fraca recuperação durante a longa depressão, a pandemia de COVID e agora o conflito Rússia-Ucrânia, tudo isso destruiu as cadeias de suprimentos globais, bloqueou o comércio global e interrompeu os movimentos de capital.
Durante os anos 1990 e 2000, a teoria econômica dominante (com poucas exceções) se alinhou com as teses liberais de David Ricardo; assim, os méritos imaculados da globalização foram louvados. Apesar das tendências atuais, alguns especialistas tradicionais ainda mantêm a visão de que a globalização retornará. Veja-se em sequência o que disseram dois deles:
“Foi a inflação” – disse o primeiro – “que ajudou a criar um novo ambiente político em meados do século XX e na década de 1970. À medida que os custos econômicos e políticos da inflação se tornaram mais óbvios e mais prejudiciais, parecia mais atraente procurar maneiras de acalmar as pressões inflacionárias. Com certeza, a cura da doença inflacionária – a globalização e um governo mais eficaz – foi temporariamente desconfortável. Mas levou o mundo a aproveitar oportunidades técnicas e geográficas antes ignoradas ou negligenciadas. Há, em suma, um futuro pós-conflito para o qual podemos olhar para frente com algum grau de esperança”.
“A minha crença” – disse o outro – “pode ser tomada como fé cega, contudo o fato é que as últimas orações para a globalização foram feitas várias vezes nos últimos anos, mas, em cada ocasião, ela se levantou do seu leito de morte parecendo, então, bastante animada. As empresas têm sido engenhosas, apoiam-se na tecnologia para se renovarem. Até mesmo os governos mais destrutivos têm se mostrado incapazes de anulá-la”.
Claro, o comércio mundial e o investimento transfronteiriço não vão desaparecer; ao contrário, continuarão a crescer (pelo menos um pouco) apesar das pandemias, guerras e cadeias de suprimentos em colapso. Mas isso dificilmente é um argumento para dizer que a onda de globalização anterior não acabou.
O argumento de fundo é que a crise de lucratividade e a inflação dos anos 1970 foi seguida pela onda de globalização dos anos 1980 e 1990 e isso pode acontecer novamente. Mas este não parece ser um cenário muito provável. A década de 2020 se parece mais com o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial; veja-se que as potências econômicas rivais (irmãos inimigos) estão lutando agora entre si para obter uma parte maior dos lucros gerados globalmente.
Escrevendo no final da década de 1880, Engels previu, não a expansão global harmoniosa como pensava o líder e teórico social-democrata alemão Karl Kautsky, mas o aumento da rivalidade entre as potências econômicas concorrentes, o que resultaria em uma nova guerra europeia: “as destruições da Guerra dos Trinta Anos (ocorrida no século XVII) seriam comprimidas em três a quatro anos e estendidas por todo o continente… com uma realocação irrecuperável de nosso sistema artificial de comércio, indústria e crédito, sem um retorno à expansão global de 1850-70”.
Os keynesianos agora procuram retornar aos dias de Bretton Woods com suas taxas de câmbio fixas, estímulos fiscais dos governos e tarifas gradualmente reduzidas. Afirmam que isso levaria a um renascimento do “multilateralismo” e da cooperação global. Eis que uma ordem mundial de paz e harmonia poderia ser aparentemente restaurada.
Mas esse prognóstico – veja-se bem – é apenas uma negação da história e da realidade dos anos 2020. As organizações multilaterais do pós-guerra, como o FMI, o Banco Mundial e a ONU, estavam todas sob a “orientação” do capitalismo norte-americano. Mas agora a hegemonia dos EUA não se impõe mais de modo seguro; ademais, de modo mais significativo, a alta lucratividade das principais economias pós-1945 não existe mais. Os irmãos agora não são mais fraternos entre si, mas hostis. A atual tentativa dos EUA de manter sua hegemonia é mais parecida com tentar colocar gatos em um mesmo saco.
É perfeitamente possível argumentar que a desglobalização diminui a eficiência das empresas, diminui a concorrência e que isso não é bom para o capital. Sem qualquer reversão prevista no rumo das coisas para acelerar o crescimento, um mundo desglobalizado seria “muito inferior” aos últimos 30 anos em que prevaleceu uma abertura do comércio mundial.
Um estudo recente da Organização Mundial do Comércio, baseado em medição do impacto dinâmico da perda de comércio e da difusão de tecnologia, descobriu que “uma divisão potencial do sistema de comércio global em dois blocos – um bloco centrado nos EUA e outro centrado na China – reduziria o bem-estar global, por volta de 2040, em comparação com uma linha de base, em cerca de 5%. As perdas seriam maiores (mais de 10%) nas regiões de baixa renda que costumam se beneficiar de repercussões positivas dos avanços do comércio e da tecnologia”. De fato, o colapso da globalização pode se transformar não apenas em uma batalha entre dois blocos, mas em uma mistura mais complexa de unidades econômicas concorrentes.
De qualquer modo, a globalização só retornará eventualmente se e quando o capitalismo ganhar um novo sopro de vida baseado em lucratividade crescente e sustentada. Parece improvável que isso aconteça diante da perspectiva de uma nova crise nos próximos anos – e talvez de mais guerra.
*Texto publicado orginalmente em The next recession
Daniela Chiaretti: Sobre lebres e sardinhas
Mudar de status na OMC pode repercutir em fóruns climáticos
Como se divide a conta do clima entre os países? Como se reparte o espaço que resta na atmosfera para emissões de gases-estufa de modo que os impactos do aquecimento global não sejam tão desastrosos? Como se estabelecem critérios justos para que nações em desenvolvimento possam crescer sem comprometer a vida na Terra? Esta equação incômoda ronda as negociações climáticas há anos. Trata-se de compartilhar o orçamento de carbono na atmosfera para que o aquecimento da temperatura não ultrapasse 2°C até 2100 - para ficar em 1,5° C os cálculos são muito mais drásticos. Existem várias contas feitas por pesquisadores de diferentes lugares com diversos critérios. O único ponto em comum é que governo algum gosta de falar neste assunto.
Governos mencionam datas e objetivos para reduzir suas emissões, mas não o caminho para alcançar o compromisso. Fala-se em "descarbonizar a economia até 2050", por exemplo, mas a trilha até lá é indefinida. Uma aposta é imaginar que novas tecnologias irão surgir e resolver o problema do carbono - costuma ser o jeito de pensar dos Estados Unidos. Outra forma é estimular produção e consumo sustentáveis, ou consumir menos - estratégia que tem mais eco entre europeus. Outra via é entender o que dizem os cientistas: limitar o aquecimento em 2°C significa que os países podem emitir, juntos, cerca de mil gigatoneladas de CO2 até 2100, a começar em 2014. Estourar a barreira causará impactos maiores e piores. Então, é preciso definir quem pode emitir e quanto. É aí que acaba a ciência e começa a política.
"É como se todos os condôminos de um prédio tivessem que dividir o volume da caixa d'água durante uma crise hídrica", explica o pesquisador Oswaldo Lucon. Ele introduziu o assunto em três páginas do "Global Environment Outlook", o GEO 6, a mais completa radiografia sobre o estado do ambiente global, desenvolvida pela ONU Meio Ambiente durante os últimos cinco anos. O relatório foi lançado no mês passado durante reunião em Nairóbi, no Quênia.
Na divisão dessa conta, cada um puxa a sardinha para o seu lado, mesmo que ninguém goste do peixe. Chineses, por óbvio, preferem o critério que divide as emissões per capita. O Brasil sempre defendeu a responsabilidade histórica, lembrando que quem causou o problema foram os países ricos em seu processo de industrialização e, portanto, têm de fazer cortes maiores nas emissões e pagar para que os outros também se desenvolvam. Os indianos pensam até nos direitos de quem ainda não nasceu e querem garantir que eles possam emitir o mesmo tanto que os americanos emitem hoje. As reivindicações são legítimas, mas não há Terra que aguente tal pressão nos recursos naturais sem aquecer a níveis que coloquem tudo a perder.
Voltando ao exemplo da caixa d'água, os americanos se justificam dizendo "devo, não nego, mas não tenho como pagar. Não dá para mudar a matriz de produção e consumo de uma hora para a outra. Não podemos parar de tomar banho", segue Lucon, assessor da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, professor colaborador da Universidade de São Paulo e membro do IPCC, o painel da ONU que reúne cientistas climáticos.
Os europeus, a bem dizer, já dividem sua conta domesticamente - têm meta climática única e compartilham esforços entre si -, mas não querem ficar neste jogo sozinhos. No Brasil, técnicos do governo costumam dizer que o debate em torno ao orçamento de carbono é colonialista. Argumentam que os países ricos usaram toda a capacidade atmosférica e agora que a coisa complicou querem restringir os outros.
Os países já reconheceram formalmente as cerca de mil gigatoneladas de CO2 ao aprovar o último relatório do IPCC, em 2014. "Agora precisam reconhecer que isso deve ser repartido. Quanto cabe a cada um é uma etapa seguinte, tão complexa cientificamente quanto na mesa de negociação", diz Lucon. "É algo difícil, mas necessário. Ou a janela de oportunidade para manter o limite dos 2°C estará perdida."
As três páginas incluídas no GEO 6 introduzem a discussão pela primeira vez em um documento de prestígio internacional. Uma das ideias expressas ali é a da "convergência". Todos os cidadãos do planeta emitiriam a mesma quantidade de gases-estufa em 2035 - os de países ricos teriam que emitir bem menos que hoje, e os dos em desenvolvimento emitiriam mais do que os níveis atuais. Daí em diante as emissões totais convergeriam até chegar a zero em 2070. O exemplo escolhido por Lucon é apenas um ponto de partida para a discussão. Não está escrito em pedra. "É só para reconhecer que o jeito que estamos consumindo e produzindo hoje é insustentável. Vamos ter que resolver."
Este debate se torna particularmente importante para os interesses brasileiros agora. São ainda indefinidos os desdobramentos da decisão do governo de Jair Bolsonaro de fazer com que o Brasil mude de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio. Em março, nos EUA, o governo conseguiu o apoio de Donald Trump para que o Brasil integre a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Mas, para entrar no clube dos ricos, terá que abrir mão do tratamento diferenciado na OMC.
Se este conceito transbordar para as rodadas climáticas, posições históricas defendidas pelos diplomatas do Itamaraty poderão ser questionadas. O Brasil é líder tradicional no grupo dos países em desenvolvimento, o chamado G-77 - terá que abandonar esta turma? Os negociadores brasileiros batem forte para que os recursos financeiros que vão pavimentar a transição das economias ao baixo carbono fluam dos países ricos aos mais pobres. O que acontece diante desta nova composição, se o Brasil entrar na OCDE? Como ficará o país se for identificado como de maior renda e passar a receber menos empréstimos do Banco Mundial? Os compromissos climáticos dos ricos para os pobres - US$ 100 bilhões ao ano a partir de 2020 - deixarão de beneficiar o Brasil? Os recursos do Fundo Verde do Clima vão passar ao longe? Não há respostas ainda para estas questões, mas é bom saber que vão levantar a lebre.
Arnaldo Jardim: Jogo bruto no comércio internacional
O Brasil tem uma pequena participação no comércio internacional, bem abaixo de sua dimensão como país em desenvolvimento.
Padecemos pela falta de agressividade da diplomacia brasileira nas organizações internacionais (OMC e outras), de sequelas da visão “nacionalista” que nos levou ao isolamento, e de ação empresarial mais articulada que busque estabelecer relações de médio e longo prazo.
Alias, mais do que isto, carecemos de um Projeto Nacional que contemple uma visão de como deve ser nossa inserção internacional, que defina por exemplo quais serão os setores em que, tendo vantagens competitivas e comparativas, possamos ter um protagonismo mundial e daí definirmos uma inserção no comércio mundial.
De qualquer forma, a exportação brasileira ganhou uma janela de grande oportunidade quando China e Estados Unidos travam uma acirrada guerra comercial, que inclui listas de produtos que serão tarifados, declarações acaloradas e desvalorização cambial chinesa como arma.
Trump anunciou em 22 de março que seu governo iria impor tarifas, que somariam US$ 50 bilhões, sobre produtos chineses. A intenção é punir a China que “se apropriou incorretamente de propriedade intelectual norte-americana” – o que o governo chinês nega.
Trump na realidade busca reverter o colossal déficit comercial dos Estados Unidos com a China, de US$ 375,2 bilhões em 2017, e assim aciona suas medidas protecionistas. Em resposta, o país asiático elevou, em até 25%, as tarifas sobre 128 produtos norte-americanos, que vão desde a carne suína congelada e vinho a certas frutas e nozes.
Tomara que as duas maiores potências mundiais se entendam e garantam o equilíbrio econômico mundial. Mas enquanto este entendimento não chega, é hora de mostrarmos nossa capacidade competitiva e ampliar nossas exportações, nossa participação no comércio internacional.
O Brasil pode ampliar a exportação de comodities, de produtos como algodão, milho e soja. No caso da soja vendida para a China, a demanda deve ser ainda maior com a quebra de safra de outro importante fornecedor do grão, a Argentina, os preços assim estão mais compensadores.
A soja é o principal produto da nossa pauta de exportação, este ano devemos exportar US$ 28,8 bilhões de dólares, ante US$ 25,7 bilhões no ano passado. Os chineses compraram cerca de 54 milhões de toneladas de soja brasileira de um total de 68 milhões que o Brasil exportou em 2017. A China é o principal destino das exportações de soja do Brasil, quase 80%.
Ao todo, os chineses compraram mais de 95,5 milhões de toneladas de todas as origens em 2017. É um número que o Brasil não tem como suprir por completo, mas poderá ter uma participação ainda maior.
A produção de soja do Brasil em 2018 deve atingir um recorde de 117,4 milhões de toneladas, permitindo ao País embarcar neste ano o maior volume da commodity em toda a história. A nova previsão supera tanto as 114,7 milhões consideradas em março quanto as quase 114 milhões do ano passado, como mostram dados da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove).
Com o aumento da safra, os embarques foram estimados em 70,4 milhões de toneladas, superando a previsão anterior (68 milhões) e o recorde do ano passado, de 68,15 milhões. É o reflexo da janela que se abriu com a Argentina sendo menos agressiva, e os preços melhores, com o fortalecimento do mercado de prêmio da soja brasileira sobre a cotação de Chicago.
No caso do milho, também houve reajustes positivos tanto para a primeira safra, já em colheita e que também tem apresentado rendimentos satisfatórios, quanto para a segunda safra, cujo plantio foi concluído recentemente e deve alcançar 11,54 milhões de hectares, acima dos 11,39 milhões de março e perto dos 12,1 milhões de 2016/17.
Em um momento comercialmente tão oportuno, é preciso que o Brasil se fortaleça como o grande fornecedor de alimentos, fibras e energia que é.
* Arnaldo Jardim é deputado federal pelo PPS-SP
El País: “Se não fosse a OMC, já estaríamos numa guerra comercial”, diz Roberto Azevêdo
Em reunião do Fórum de Davos, brasileiro defende relevância da organização que dirige. Meirelles diz que protecionismo dos EUA ajuda Brasil a vencer resistências na UE
Por Heloísa Mendonça, do El País
Diante da guinada protecionista do Governo de Donald Trump, que impôs tarifas de importação para o aço e alumínio para a maioria dos países do mundo, o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Roberto Azevêdo, defendeu o diálogo como o melhor caminho para resolver os conflitos gerados pela decisão dos Estados Unidos. Ele ainda negou que a organização que comanda esteja enfraquecida. “Se não fosse a OMC, já estaríamos numa guerra comercial, essa é a realidade”, disse aos jornalistas após palestra no Fórum Econômico Mundial em São Paulo. Azevedo ressaltou ainda que a organização foi criada exatamente para resolver esse tipo de problema. “Estamos em constante comunicação com os países. Eu sou consultado o tempo inteiro”, disse. Ele explicou que, até o momento, nenhum país fez uma representação formal na OMC contra a sobretaxa nos EUA.
O tema da nova política comercial americana foi um dos mais debatidos durante o evento. Mais cedo, o presidente Michel Temer já havia dito que se não houver uma solução em breve, o país entrará com uma representação na organização. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, também cobrou do Governo Trump mais clareza sobre o que ele está disposto a negociar após impor uma taxação de 25% e 10% sobre a importação de aço e alumínio, respectivamente. "Os EUA falaram em negociar porque abriram exceção para alguns países [México e Canadá]. Mas nós queremos saber quais os termos dessa negociação", afirmou Meirelles durante um no mesmo evento, em São Paulo. O ministro ressaltou, entretanto, que não acredita que o melhor caminho para resolver o impasse seja a retaliação. A posição do Brasil contraria a reação de vários países, como os da União Europeia, que já ameaçaram retaliar, impondo taxas a produtos importados dos Estados Unidos.
Na visão de Meirelles, o impasse gerado pelo Governo Trump pode, de alguma maneira, render frutos positivos, já que permite o avanço do debate de outros acordos comerciais. “Essa questão mobiliza o mundo e avança diversas resistências para acelerar a negociação do Mercosul com a União Europeia, por exemplo. Isso que é o mais relevante que vejo de tudo isso”, explica. O ministro citou, por exemplo, a assinatura do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês) sem os americanos um dia após a decisão de Trump de sobretaxar as importações no país. “Será que é coincidência? O Brasil agora pode se aproximar mais da Aliança do Pacífico também. As conversas com o Reino Unido, que só poderão se concretizar após o Brexit, também se aceleram. Acho que isso é um efeito importante. É negativo para indústria e para o consumidor americano. Tanto por encarecer o produto, mas também por permitir esse tipo de movimento, que cria um fluxo de comércio maior entre outras regiões do mundo”, disse.
Por outro lado, o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, avaliou que, caso o Estados Unidos não volte atrás na decisão da sobretaxa, a medida afetará um setor importante da economia e deve desencadear uma guerra de retaliações mundial que não deve favorecer o crescimento dos países. “Especialmente em um momento que a economia mundial está bem, crescendo, pode afetar gravemente esse avanço mundial. É um problema de sistema, que nos preocupa”, afirmou ao EL PAÍS após participar de um painel no evento.
O ministro afirmou que a primeira opção do Brasil é o diálogo com Trump e as empresas americanas que importam aço brasileiro. Nunes destacou, ainda, que Brasil e Estados Unidos sempre tiveram uma boa relação e participaram juntos do Fórum Mundial do Aço. “Nós temos nesta matéria cooperação dos EUA. Temos empresas siderúrgicas brasileiras instaladas lá. Importamos cerca de 1 bilhão dólares de carvão mineral deles. São pontos que temos que examinar com o Governo americano parar a mostrar que para o Brasil não é uma questão de segurança nacional. Existe, da nossa parte, um otimismo de que eles possam reverter essa política”.
O Brasil está entre os países que mais devem ser afetados pela medida que intensifica a política que elegeu Trump em 2016, da "América em primeiro lugar". Um terço do aço exportado no Brasil tem como destino o mercado dos EUA. Em 2017, o aço vendido aos norte-americanos somou 4,8 milhões de toneladas e gerou uma receita de 2,63 bilhões de dólares (8,58 bilhões de reais), o que faz do Brasil o segundo maior fornecedor do produto para os Estados Unidos, atrás apenas do Canadá.
Miriam Leitão: Subsídios condenados pela OMC custam quase o mesmo que as universidades públicas
Era pedra cantada. A OMC iria condenar o Brasil porque os subsídios e incentivos concedidos nos governos Lula e Dilma dentro da política industrial que eles adotaram são condenáveis. Ferem as regras internacionais do comércio e ofendem a lógica. Por que dar a alguns setores industriais um subsídio que custa quase R$ 7 bilhões ao ano? Isso é o valor equivalente ao que é transferido às universidades federais. Quanto custa? Essa é a pergunta central e deve ser feita a cada política pública adotada. Quem tiver por hábito fazer essa pergunta descobrirá por que o Brasil é assim desigual. Daqui até 2019, o país vai gastar com eles R$ 21 bilhões, isso sem falar em subsídios escondidos. Desde 2010, a OMC calcula que R$ 25 bi já foram concedidos aos setores beneficiados. Segundo o Itamaraty, agora sob o comando do PSDB e na presidência de Michel Temer, as políticas adotadas atendem a objetivos sociais, ambientais e de saúde.
Quais mesmo? A indústria automobilística tem que adotar tecnologias menos poluentes e investir em pesquisa e desenvolvimento. Ora, e o contribuinte brasileiro tem que pagar por isso? No mundo inteiro a indústria que fabrica carros está adotando novas tecnologias de menor impacto ao meio ambiente por uma razão de sobrevivência, porque os governos e o consumidor exigem. Se o país tivesse concedendo incentivo para a instalação de nova tecnologia disruptiva, a que vai substituir a dos motores a combustão, poderia até se entender. Mas é ainda a velha tecnologia que os governos passados incentivaram, e o atual ainda defende. Outro conjunto de benefícios é para o setor de informática, que desde os anos 1980 vem sendo protegido e subsidiado no Brasil. Acabou uma lei de informática e começou outra. O governo Temer podia aproveitar a deixa e cortar esses incentivos porque eles são gastos públicos. O Itamaraty prefere recorrer para protelar ao máximo a aplicação da pena. Este é o Brasil. Mudam-se os governos, mas não as alianças que sustentam as transferências para as empresas.
Desde sempre no Brasil se testa a tese de que se houver proteção tarifária e não tarifária, dinheiro público barato, redução ou isenção de impostos, a indústria será pujante. E ela encolhe ano a ano. Os governantes poderiam concluir, por óbvio, que esse caminho não tem dado certo e que é melhor escolher outro. Mas é pedir demais dos governantes que eles consigam dizer “não” aos lobbies.
A condenação na OMC não é uma formalidade. Países serão autorizados a retaliar o Brasil. Em vez de reconhecer o erro, o governo certamente vai procurar uma nova forma de dar uma forcinha para empresas de alguns setores. Em vez de buscar os fatores que realmente aumentam a competitividade, vai continuar usando os recursos do país para defender o que é condenável. E sempre será.
O advogado Marcos André Vinhas Quintão, da Associação Brasileira de Direito Financeiro, disse que as pessoas no país não estão com a noção exata do poder dessa condenação, porque o país tem 90 dias para mudar as políticas ou sofrer retaliação:
— O Brasil pode sofrer retaliação unilateral por parte de todos os países que fazem parte da OMC, e não apenas da União Europeia e do Japão. Para o setor de autopeças o impacto pode ser grande porque o país pode sofrer sanções da Colômbia, Argentina, Peru, Venezuela, Chile, países para os quais o Brasil tradicionalmente exporta esses produtos — diz.
Ele explica que as regras da OMC permitem que se dê incentivos fiscais a quem investir em Pesquisa e Desenvolvimento, mas que não foi isso que a indústria automobilística brasileira fez:
— Para isso a indústria teria que registrar patentes, por exemplo, mostrando que de fato inventou algo de novo para o setor no mundo.
Ele acha que o tipo de incentivo estimula a empresa preguiçosa e dependente e tem esperanças de que o processo na OMC acelere a mudança de mentalidade no Brasil.
Pouco provável. Está aí o Reintegra que não nos deixa mentir. É outro incentivo que pode dar problema e representa um valor dado ao exportador para supostamente tirar os restos de impostos da exportação. Recentemente, o governo decidiu não ampliar o benefício e já começou a choradeira. Vai ser mantido até a próxima condenação.