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Maioria dos autocratas precisa de dois mandatos para destruir democracia

Casos da Hungria, Venezuela, Turquia e Nicarágua mostram que escalada autoritária se radicaliza a partir da reeleição

Oliver Stuenkel / El País

No começo dos anos 1990, um outsider de currículo irrisório conseguiu chegar à presidência do Peru com um discurso vago e antiestablishment. Em menos de dois anos no cargo, articulou um golpe de Estado que lhe renderia quase 10 anos no poder e uma ficha criminal enciclopédica. Em tempo recorde, a ditadura de Alberto Fujimori suspendeu o Congresso e a Constituição, acabando com a independência do Judiciário e do Ministério Público. Desde então, seu regime de perseguições, supressão da liberdade de expressão e abusos sistemáticos dos direitos humanos é o sonho de consumo de autoritários de todas as partes do mundo não apenas pela virulência, mas sobretudo pela agilidade.

O que torna o caso de Fujimori tão peculiar é a rapidez com a qual o peruano conseguiu efetivar sua passagem de presidente eleito a ditador, concentrando todo o poder no Executivo e corroendo a ordem democrática logo no primeiro mandato. Essa eficiência é motivo de admiração e inveja entre políticos com ambições autoritárias até hoje. Isso porque a maioria dos autocratas costuma demorar bem mais tempo para atingir seus objetivos, perdendo anos preciosos de poder absoluto e arriscando-se a ter seus planos interrompidos por um eventual fracasso em se reeleger. Casos como o de Hugo Chávez na Venezuela, de Daniel Ortega na Nicarágua, de Viktor Orbán na Hungria e de Tayyip Erdogan na Turquia mostram que, na maior parte das vezes, o autoritário precisa se reeleger ao menos uma vez para conseguir afundar o sistema democrático. Em todos esses exemplos, as ações do primeiro mandato já disparavam os alarmes dos observadores internacionais, mas foi a partir do segundo que o autoritarismo tirou a luva de pelica e mostrou suas garras.

As tendências autoritárias de Hugo Chávez já eram perceptíveis muito antes de ele assumir a presidência, em 1999. Afinal, sete anos antes, o então tenente-coronel já tinha feito uma tentativa de golpe contra o presidente Carlos Andrés Pérez. Mesmo assim, medidas claramente ditatoriais como não renovar licenças de canais de TV críticos ao Governo, enfraquecer a assembleia nacional e prender e intimidar juízes só começaram a ser implementadas após sua primeira reeleição, em 2006. No caso de Daniel Ortega, as coisas começaram de um jeito ainda mais sutil. Logo após sua primeira eleição, em 2006, o país sofreu uma ligeira melhora na análise do Índice Democrático da revista britânica The Economist, alcançando uma pontuação melhor que a de vários países da região, inclusive Equador e Honduras. No entanto, a partir do segundo mandato, em 2011, a democracia nicaraguense entrou em declínio permanente, com ampla cooptação do judiciário e das autoridades eleitorais. O resultado é que a eleição de fachada que lhe garantiu o terceiro mandato, em 2021, terminou com sete pré-candidatos presos a poucos meses do pleito.


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O quadro se repete mesmo em países onde a democracia parecia mais consolidada. Quando Viktor Orbán assumiu o comando da Hungria, em 2010, o país se encontrava várias casas à frente da maior parte da América Latina no Índice Democrático da The Economist. Durante seu segundo mandato, porém, Orbán conseguiu enfraquecer as instituições húngaras de tal forma que hoje o país está com pontuação pior no Índice Democrático do que o Brasil, a Argentina e até mesmo a combalida Filipinas, cuja democracia vem sofrendo golpes consecutivos nas mãos do populista Rodrigo Duterte.

É por isso que impedir a reeleição de um autoritário é ainda mais importante do que barrar sua chegada ao poder. Na República Tcheca, a oposição entendeu o recado e tomou uma postura inédita para evitar a reeleição de Andrej Babis ao cargo de primeiro-ministro. Juntas, as três maiores frentes opositoras do país passaram por cima de discordâncias ideológicas basicamente inconciliáveis e uniram-se em uma ampla coalizão cujo único objetivo era derrotar o incumbente. Contra todas as chances e previsões de analistas políticos, a frente opositora derrotou o projeto autoritário armada apenas com a certeza de que a democracia tcheca dificilmente sobreviveria a outros quatro anos sob as rédeas de Babis. Nesse sentido, uma ajuda fundamental foi fornecida pelo próprio Babis, que deixou claro quais seriam seus planos para o segundo mandato e, na reta final da campanha, convidou Viktor Orbán para participar de seus comícios.

É verdade que cada líder autoritário segue sua própria receita, mas um ingrediente indispensável a quase todas elas é o tempo. Para implementar um regime autoritário, é preciso reduzir a independência do Congresso e do poder judiciário, e isso costuma ser um processo mais demorado. A maioria das constituições limita o poder do Executivo em nomear juízes, o que significa que o incumbente precisa de mais de um mandato para fazer alterações expressivas na composição da casa. Trump, por exemplo, conseguiu nomear 3 juízes de um total de 9 na Suprema Corte, onde o cargo é vitalício. Já Bolsonaro encerrará o primeiro mandato com 2 nomeações de um total de 11 membros do Supremo. Caso seja reeleito, nomeará ao menos outros três, já que Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentarão até 2023. Isso fora a possibilidade de utilizar artimanhas como aumentar o número de juízes, como foi feito na Venezuela em 2004, ou baixar a idade de aposentadoria para expulsar desafetos, como foi feito recentemente na Polônia e em El Salvador. Foi nesse intuito que a deputada Bia Kicis propôs, em 2019, uma PEC para reduzir a idade de aposentadoria de juízes do STF de 75 para 70. Caso a PEC seja aprovada, Bolsonaro poderia nomear seis juízes em seu segundo mandato.

Porém, há outro fator que explica por que a reeleição de um autoritário geralmente representa o começo do fim para os regimes democráticos. A primeira eleição de um candidato com retórica autoritária muitas vezes ocorre durante profundas crises econômicas, no embalo de uma retórica antiestablishment que costuma atrair eleitores. Muitos deles podem até discordar dos comentários mais radicais de um Trump, Duterte, Orbán, Babis, Erdogan ou Chávez, mas, naquele momento, não enxergam outra alternativa. Ironicamente, boa parte dos eleitores que concedem ao autoritário esse primeiro mandato pecam justamente por um excesso de confiança de que as regras do jogo político acabariam moderando seus excessos. É como se esse voto não tivesse sido no autoritário e em suas propostas, mas contra o establishment e a sensação de inação passada pelos outros candidatos. Esse voto sem grande apoio faz com que muitos desses eleitores rapidamente vivenciem um sentimento de vergonha de sua própria escolha. Do ponto de vista do autoritário, essa falta de convicção impõe certa moderação nos primeiros anos.


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Uma vez reeleito, o autoritário ganha confiança. Enquanto a primeira vitória de um líder extremista pode ser vista como acidental, a reeleição tem um profundo impacto empoderador sobre o autocrata, permitindo uma escalada autoritária mais explícita. Mesmo um país com instituições tão resilientes quanto os Estados Unidos correria sérios riscos nessa segunda rodada. Durante a corrida de 2020, Thomas Wright, diretor do Centro de Estudos Americanos e Europeus do Instituto Brookings, escreveu que o Trump do segundo mandato seria ainda mais perigoso que o do primeiro. Após romper com o antigo chefe, seu ex-assessor, John Bolton, alertou para o fato de que a reeleição produziria um “Trump sem freios”.

Além de inflar o ego do incumbente, a reeleição de um líder com tendências autoritárias costuma abalar a oposição e a sociedade civil, dificultando qualquer tipo de reação. Diante da perspectiva de amargar oito anos na geladeira, parte dos opositores simplesmente se deixa cooptar pelo Governo. Outros perdem as esperanças e se retiram da vida pública. Foi isso que aconteceu na Venezuela, quando a segunda vitória de Chávez gerou um desânimo sem precedentes entre os opositores. Àquela altura, eles sabiam muito bem que o presidente ou seu sucessor provavelmente se perpetuariam no poder. Na Hungria, a reeleição de Orbán deu início à perseguição no mundo acadêmico, levando ao fechamento de uma das principais universidades do país.

O caso dos países que sofreram uma guinada autoritária, mas não repetiram o erro na eleição seguinte, costuma ser bem menos grave. Quase um ano após a saída de Trump, a democracia americana ainda apresenta sequelas de seu flerte autoritário, mas saiu dessa experiência relativamente ilesa. Com poucos meses da derrota de Babis, a República Tcheca ainda não deixou completamente a zona de risco, mas há grandes esperanças de que a aliança opositora leve o país a mares mais amenos. Em ambos os casos, a população soube aproveitar sua segunda chance e evitar o abismo.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-11-16/maioria-dos-autocratas-precisa-de-dois-mandatos-para-destruir-a-democracia.html?event_log=oklogin


Oliver Stuenkel: Como resgatar a imagem do Brasil pós-Bolsonaro

A reputação internacional do Brasil chegou ao fundo do poço, mas o próximo governo tem meios para iniciar o processo de recuperação

Oliver Stuenkel / El País

Presumindo-se que Jair Bolsonaro perca as eleições de 2022 – como as pesquisas parecem sugerir até agora – e que a democracia brasileira esteja sólida o suficiente para garantir a transição de poder, o próximo presidente terá nas mãos um dos maiores desafios na história da política externa brasileira: reconstruir a reputação e a estratégia internacional de um país cuja imagem global passou por um colapso inédito ao longo dos últimos anos. Até pouco tempo atrás, um país com assento à mesa dos poderosos quando se discutiam os grandes desafios globais, o Brasil hoje é visto como uma fonte de instabilidade, marcada pela negação da ciência no combate à covid-19 e questões ambientais.

Antes de analisar as opções de um possível sucessor de Bolsonaro, é preciso reconhecer que o ex-capitão não é apenas causa do declínio do Brasil no palco internacional. Sua ascensão também é reflexo de um país cuja economia praticamente não cresce há uma década e no qual a instabilidade política, pelo menos desde 2013, inviabiliza qualquer estratégia internacional consistente. Bolsonaro é o principal arquiteto do colapso da imagem do país no exterior, e sua atuação internacional entrará para a história como o período mais vergonhoso da política externa brasileira. No entanto, não podemos deixar de lembrar que ele assumiu um país cujo poder diplomático já se encontrava em franco declínio, simbolizado, por exemplo, pela viagem do então presidente Temer ao encontro do G20 em Hamburgo em 2017, onde não teve nenhum encontro bilateral com outros líderes antes de retornar a Brasília depressa para lidar com desafios internos, perdendo o último almoço com as demais autoridades da cúpula.

Tudo indica que o próximo presidente herdará um país em frangalhos, que, no melhor cenário, segundo cálculo recente de pesquisadores da FGV, só retomará a tendência pré-pandemia em 2025. Seja quem for o sucessor de Bolsonaro, precisará dedicar energia considerável para apagar incêndios internos, com bem menos tempo disponível para desafios externos. Será importante, portanto, escolher um(a) chanceler com brilho próprio e muito traquejo político. Afinal, além de reerguer a imagem do país, caberá à(o) próxima(o) diplomata-chefe reconstruir o próprio Itamaraty, que perdeu espaço na condução da política externa brasileira: devido à postura negacionista do governo federal frente às mudanças climáticas e a pandemia – os dois maiores desafios da humanidade hoje –, governadores assumiram um protagonismo internacional inédito. O Itamaraty dificilmente conseguirá reconquistar todo esse espaço perdido, e será fundamental que a/o próxima chanceler tenha um diálogo fluido com os governadores para que os atores ao nível estadual e federal estejam bem alinhados na hora de articular a estratégia internacional. Da mesma forma, seria ideal se a/o vice pudesse assumir uma responsabilidade externa relevante – não para conter o estrago feito pelo presidente, como foi o caso com Hamilton Mourão –, mas reforçar a diplomacia presidencial.

Além disso, seria ingênuo acreditar que uma mera “volta ao normal” na política externa bastará para desfazer o imenso estrago feito pelo atual presidente brasileiro na imagem do país. A melhor solução será transformar as maiores fraquezas da política externa bolsonarista nos pilares da atuação internacional do próximo governo, enfatizando três grandes eixos: 1) meio ambiente, com ênfase no combate ao desmatamento, 2) saúde global e 3) democracia e multilateralismo. Nas três áreas, o Brasil não tem apenas o potencial de estar sentado à mesa dos grandes, mas também de se destacar por trazer novas ideias e iniciativas, e como país que pauta a agenda global.

Do ponto de vista geográfico, o próximo governo brasileiro deve buscar, primeiramente, recuperar sua imagem junto a dois grupos de países onde ela mais se abalou: na América do Sul – os países da região enxergam o Brasil como fonte de problemas e ator que em nada contribui para os desafios da região – e no G7 (as principais potências europeias, os EUA, o Canadá e o Japão) – nesses países, o governo brasileiro virou sinônimo de negacionismo e está fortemente associado à extrema direita, o que leva ao risco cada vez mais elevado de movimentos de boicote contra produtos brasileiros.

A maior urgência será reerguer a relação bilateral com a Argentina, que é e sempre será a mais importante para o Brasil: apesar da relevância econômica declinante, ela é fundamental para consolidar a paz e a estabilidade na América do Sul, tão arduamente alcançadas há 35 anos com a Declaração do Iguaçu entre os presidentes Alfonsín e Sarney. Uma forma de demonstrar a intenção de virar a página seria levar os ministros do novo governo brasileiro a Buenos Aires, já no primeiro mês de mandato, para uma reunião dos dois gabinetes, e reconstruir uma relação suficientemente consolidada e insuscetível a eventuais diferenças ideológicas entre seus governos.

A imagem do Brasil na região está tão desgastada que seria presunçoso reivindicar um papel de liderança. Em vez disso, o novo governo deve sinalizar a disposição de voltar a cooperar e fornecer bens públicos regionais, sejam financeiros – por exemplo, ajudando a superar a baixa integração física regional –, sejam políticos, coordenando melhor estratégias conjuntas para lidar com desafios comuns, como o crime transnacional, o desmatamento e a crise migratória venezuelana. Da mesma forma, o Brasil deve ter um papel-chave para assegurar que a América Latina reagirá de forma mais eficaz em uma próxima pandemia, facilitando a cooperação entre ministérios da Saúde e centros de pesquisa.

Na Europa, na América do Norte e no Japão, o próximo governo brasileiro terá oportunidade ímpar para negociar apoio financeiro no combate ao desmatamento, não apenas destravando os pagamentos da Alemanha e da Noruega – suspensos em 2019 quando o Brasil alterou a estrutura de governança do Fundo Amazônia –, mas também negociando contribuições dos outros países do G7. A crescente preocupação global com o meio ambiente – responsável, inclusive, por impulsionar profundas mudanças no modelo econômico chinês – não deve ser interpretada como uma ameaça à soberania brasileira, mas como uma oportunidade geopolítica, que, se for for negociada de maneira adequada, poderá fortalecer o poder de barganha do Brasil.

Por fim, mesmo que a transição de poder em janeiro de 2023 ocorra de maneira ordenada, interlocutores internacionais se perguntarão qual é a chance de um populista com ambições autoritárias reeleger-se no futuro, problema semelhante ao dos EUA, em relação à sucessão do presidente Joe Biden. Afinal, de que valem suas promessas aos parceiros da OTAN se há uma chance real de Trump retornar à Casa Branca em 2025? Da mesma forma, nem a melhor diplomacia brasileira na área ambiental terá impacto significativo se houver um risco elevado de um outro negacionista vencer as eleições em 2026. Por isso, é fundamental o Brasil assumir papel-chave na cooperação internacional em defesa da democracia, tanto promovendo o fortalecimento de mecanismos regionais – similares à cláusula democrática do Mercosul – quanto atuando firmemente no combate às fake news.

A reconstrução da imagem internacional do Brasil será um processo árduo, sobretudo porque, mesmo com uma eventual derrota de Bolsonaro nas urnas, o bolsonarismo deverá continuar a ter papel expressivo na política brasileira. Ainda assim, uma diplomacia bem desenhada pode, ao longo de um mandato presidencial, reverter ao menos parte do colapso reputacional sofrido desde 2019.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-13/como-resgatar-a-imagem-do-brasil-pos-bolsonaro.html


Embate entre Bolsonaro e a democracia entra em fase mais crítica

Ameaças cada vez mais explícitas de Bolsonaro contra a Suprema Corte mostram que país está preso em crise constitucional permanente

Oliver Stuenkel / El País

Com um cenário econômico sombrio e as chances cada vez menores de uma recuperação significativa até o pleito presidencial em outubro de 2022, o presidente da República e seus assessores há tempo sabem que será difícil repetir o triunfo de 2018. Melar o jogo e impedir uma eleição normal no ano que vem será um dos principais objetivos de Bolsonaro, seja alimentando teorias da conspiração sobre supostas fraudes eleitorais, seja mobilizando partes radicalizadas da Política Militar para intimidar seus adversários, seja convencendo uma parcela da população de que o STF está violando a Constituição e precisa ser combatido. Treze meses antes do pleito, com o presidente apresentando poucos sinais de que estará disposto a aceitar a independência do Judiciário ou passar a faixa presidencial, caso perca a eleição, o Brasil está prestes a entrar no período de mais volatilidade política e crise institucional da presidência de Jair Bolsonaro.

Diante da alta probabilidade de que o Brasil tenha um “6 de janeiro”, como o dos EUA, para chamar de seu, resta saber se as instituições brasileiras demonstrarão o mesmo grau de resiliência diante das investidas autoritárias de seu mandatário. Porém, a analogia com a invasão do Capitólio dos Estados Unidos em janeiro de 2021 disfarça um desafio muito mais sério que o presidente Bolsonaro representa à democracia brasileira: Trump pode ter se recusado a reconhecer o resultado das eleições, mas suas tentativas de inviabilizar a transferência de poder foram amadoras e pouco disciplinadas. Nunca chegou perto de convencer nem uma pequena minoria das Forças Armadas americanas a apoiá-lo em uma possível aventura autoritária. Da mesma forma, Trump não conseguiu desestabilizar a política americana a ponto de produzir uma crise constitucional permanente. Não ousou anunciar que ignoraria as decisões de um juiz da Suprema Corte americana, como Bolsonaro fez durante o comício em São Paulo neste 7 de setembro. Mesmo sem o poder necessário para dar um golpe, Bolsonaro, confiante de que o Centrão o protege de um impeachment, tem a capacidade de inviabilizar o funcionamento do sistema democrático, seja exortando desobediência à Justiça, seja enraizando a convicção junto a uma parcela cada vez maior de que as eleições de 2022 serão fraudadas. Mais do que uma ruptura democrática imediata, o maior risco é de uma crise constitucional permanente, consumindo o país sem avançar nenhuma pauta política relevante.

Os benefícios que o caos político duradouro geram para Bolsonaro não são triviais. Desde que chegou à presidência, por meio de uma série interminável de polêmicas, ataques e escândalos cuidadosamente planejados, conseguiu inviabilizar um debate público produtivo sobre como o Governo deve responder aos principais desafios que o país enfrenta ― desde o aumento da pobreza, da desigualdade e do desmatamento até a péssima gestão da pandemia, que já matou mais de 580.000 brasileiros. A maior façanha de Bolsonaro foi criar, quase diariamente, cortinas de fumaça para distrair a atenção pública e esconder sua inépcia e seu despreparo para exercer sua função. O mesmo vale para numerosos membros do seu gabinete ― como todos os seus ministros da Educação, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello ou o ex-chanceler Ernesto Araújo. O presidente conseguiu, assim, reduzir o espaço que a oposição poderia utilizar para apresentar suas ideias.

Bolsonaro pode estar cada vez mais acuado politicamente, mas demonstrou que ainda é capaz de mobilizar uma quantidade expressiva de seguidores, sobretudo em São Paulo ― nada fácil, considerando o cenário econômico em que o país vive. Quando Collor convocou seus seguidores a tomarem as ruas em 1992, acabou impulsionando seu próprio impeachment. Bolsonaro, bem mais habilidoso, demonstrou ao país que ainda tem uma enorme capacidade mobilizadora. O STF dificilmente será intimidado pelas ameaças do presidente, mas já não se pode ignorar o fato de que centenas de milhares de brasileiros tomaram as ruas de diversas capitais do país durante o feriado da Independência para se manifestar contra a Suprema Corte.

Independentemente do desfecho das eleições do ano que vem, o custo da estratégia autoritária do presidente para a democracia brasileira é incalculável. Por enquanto, Bolsonaro parece estar fraco demais para dar um golpe de Estado, e a oposição, débil demais para um impeachment. No entanto, o recado para futuros mandatários com ambições autoritárias não poderia estar mais claro: com o apoio do Centrão, a anuência tácita das Forças Armadas e a manutenção de uma base radical mobilizada, tentativas golpistas não serão punidas. Mesmo se Bolsonaro deixar a presidência daqui a 15 meses, as sequelas serão duradouras.

*Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra).

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-08/embate-entre-bolsonaro-e-a-democracia-entra-em-fase-mais-critica.html


Oliver Stuenkel: Brasil fora da nova construção da ordem global pós-coronavírus

Visto como ameaça tanto no âmbito ambiental quanto no da saúde global, o país vive colapso inédito da sua reputação e influência

Cada geração vivencia momentos históricos que transformam a política global, fechando uma era ou abrindo um novo ciclo geopolítico. Eventos como o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os atentados do 11 de setembro, a entrada da China na OMC e a crise financeira global de 2008 rearranjaram o tabuleiro global, tanto dando mais espaço a países que conseguiram, por inteligência estratégica ou mera sorte, se adaptar melhor à nova realidade, quanto reduzindo a influência daqueles que não souberam aproveitar o novo contexto. Em momentos nos quais o mundo está em transição, países com lideranças bem-preparadas podem aproveitar para galgar posições, enquanto outros correm o risco de perder relevância.

Com a pandemia do novo coronavírus não será diferente, e já se percebe que alguns países mostram-se mais ágeis e resilientes no combate à covid-19 do que outros. Enquanto Tailândia, Vietnã e Nova Zelândia conseguiram evitar elevadas taxas de infecção, outros, como China e Rússia, estão aumentando sua influência global por meio da “diplomacia da vacina”, oferecendo doses a países em desenvolvimento mesmo antes de completar a vacinação de suas próprias populações.

O Brasil, pelo que tudo indica, é um dos grandes perdedores geopolíticos do momento atual: não apenas saiu da lista das 10 maiores economias do mundo durante a pandemia, mas também vive um colapso inédito de sua imagem diante da estratégia negacionista de seu presidente, abalando a confiabilidade que o país tinha entre seus tradicionais aliados. A reputação brasileira de país com um dos maiores e melhores sistemas públicos de saúde no mundo em desenvolvimento, arduamente construída ao longo de anos, se desfez, ofuscada por um presidente que ocupa regularmente manchetes dos maiores jornais do planeta por seus ataques contra a ciência.

Ainda é cedo para se ter uma noção clara de todas as consequências geopolíticas da pandemia, mas algumas tendências já se destacam. Três questões merecem atenção.

Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a saúde global se consolidará como um tema-chave no âmbito multilateral, seja pelo fortalecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), seja pela criação de uma estrutura nova para monitorar o surgimento de futuras pandemias e o desenvolvimento e a distribuição de outras vacinas. Além de se buscar prevenir e combater o surgimento de um novo vírus, cresce a preocupação com as chamadas superbactérias, que resistem a antibióticos e poderiam, segundo estudo encomendado há alguns anos pelo governo britânico, matar milhões de pessoas e “levar a medicina à era das trevas”, como disse Jim O’Neill, coordenador da pesquisa e criador do termo BRICS. Tanto os principais fornecedores de vacinas quanto países que responderam melhor a pandemia devem liderar esse debate. O Brasil, que é visto como uma ameaça global e um possível celeiro de variantes por não controlar a transmissão do vírus, dificilmente terá voz.

Em segundo lugar, uma das tendências mais transformadoras da política global nos próximos anos será a influência do enfrentamento da mudança do clima na política externa das grandes potências —inclusive da China. O atual debate sobre o ecocídio ser ou não considerado um crime internacional, como é o caso do genocídio, é apenas o princípio de uma transformação que mudará a maneira como países pensam seus interesses nacionais e as principais ameaças que enfrentam. Enquanto lideranças políticas brasileiras e das Forças Armadas do Brasil se destacam pelo negacionismo, as Forças Armadas de outros países discutem o tema de maneira frequente há anos —inclusive porque o desmatamento pode aumentar o risco do surgimento de novas pandemias. Da mesma forma que no debate sobre saúde global, o Brasil corre o risco de ser visto como ameaça pela comunidade internacional, reduzindo a possibilidade de tornar-se interlocutor qualificado, consolidando, assim, seu papel de pária.

A terceira grande tendência política no mundo pós-covid-19 será a chegada da chamada guerra tecnológica —a competição tecnológica global entre EUA e China, que se tornou mais visível no Brasil depois de o Governo Bolsonaro sofrer pressão dos EUA para excluir a empresa chinesa Huawei entre as opções de fornecedores na construção da rede 5G. A pressão norte-americana foi seguida de alertas de Pequim, para a qual tal posição seria interpretada como um ato hostil ao governo chinês. Gerenciada de maneira perspicaz, a crescente atuação chinesa na América Latina poderia ajudar o Brasil na gestão da relação com os EUA e vice-versa. Afinal, sempre convém ter alternativas. Porém, como as tensões entre Pequim e Washington no âmbito tecnológico podem levar à criação de duas esferas tecnológicas, uma liderada pelos EUA e outra pela China, manter relações amistosas demandará sofisticação diplomática por parte do Brasil. O Governo Bolsonaro, no entanto, escolheu o pior dos mundos: depois de Bolsonaro se posicionar publicamente a favor dos EUA, viu-se obrigado a permitir, de última hora, a participação da Huawei na corrida pela rede 5G quando aumentou a pressão pública por ganhar acesso a vacinas chinesas contra a covid-19. Tanto em Washington quanto em Pequim, observadores ficaram com a impressão de que a atuação externa do governo Bolsonaro não se baseia em um planejamento estratégico, mas é curto-prazista e imprevisível. O presidente conseguiu a proeza de ter saído do episódio com a relação abalada tanto com Washington quanto com Pequim.

Em meio a essas transformações que moldarão os fundamentos da era pós-pandemia, está nascendo uma ordem global diferente, produto de decisões das principais lideranças da atualidade. Enquanto os EUA pagavam um preço desproporcional por ter uma liderança incapaz de gerenciar a pandemia até recentemente, a atual administração já está conseguindo conter os danos, implementando um dos melhores programas de vacinação do mundo. No caso brasileiro, a troca do atual presidente em 2022 seria o primeiro passo para começar a controlar o prejuízo e reverter o colapso inédito da reputação e influência brasileira no mundo.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Oliver Stuenkel: Desmonte do Itamaraty abre brecha para projeção internacional de governadores e prefeitos

Com o chanceler brasileiro priorizando assuntos internos, governadores, prefeitos e deputados estão virando interlocutores-chave de governos, empresas e ONGs no exterior

Quando os assessores de Anthony Blinken, secretário de Estado do presidente americano Joe Biden, começaram, recentemente, a discutir o futuro da relação entre os Estados Unidos e o Brasil, surgiu uma pergunta incomum: quem no Governo Bolsonaro seria o principal interlocutor do novo Governo americano? Em tempos normais, seria o chanceler brasileiro, é claro. Na prática, porém, Ernesto Araújo não é uma opção para gerenciar a relação bilateral. Afinal, o novo Governo americano avalia, corretamente, que o papel fundamental de Araújo não é a condução da política externa brasileira, mas, por meio da promoção de teorias conspiratórias, a mobilização permanente da base bolsonarista.

Mesmo se Araújo priorizasse a gestão das relações exteriores do Brasil, seus comentários sobre o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro (segundo ele, os invasores seriam “cidadãos de bem”) e a respeito das eleições presidenciais americanas (para ele, fraudadas) já seriam suficientes para torná-lo persona non grata em Washington. O cenário em Berlim, Paris, Pequim e Buenos Aires é o mesmo: alguma comunicação oficial e um aperto de mão protocolar até podem envolver Araújo, mas a maioria dos governos já estabeleceu canais alternativos.

Não há vácuo de poder na política, e o mesmo vale para a política externa. Na ausência de um chanceler disposto ou capaz de gerir as relações do Brasil com o resto do mundo, outros políticos brasileiros tornaram-se figuras-chave nos palcos internacionais. Durante o primeiro ano do Governo Bolsonaro, enquanto Araújo cumpria seu papel de cheerleader do presidente Trump, o vice-presidente Mourão e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se empenhavam no âmbito diplomático. Em viagem a Pequim, por exemplo, os dois souberam desfazer o estrago feito pelo presidente brasileiro na relação bilateral. Coube a eles acalmar os ânimos dos chineses porque Araújo, com seu histórico de ataques verbais à China, tinha perdido credibilidade em Pequim.

Para diplomatas chineses, ficou claro que, se for preciso resolver alguma questão com o Governo brasileiro, Mourão e Tereza Cristina serão interlocutores bem mais úteis do que o chanceler brasileiro. O cenário repetiu-se quando o ministro foi excluído das negociações com Pequim para a compra de vacinas contra a covid-19 e quando o governador de São Paulo, João Doria, e o então presidente do Congresso, Rodrigo Maia, tornaram-se interlocutores-chave para o Governo chinês e empresas farmacêuticas chinesas.

Nada disso é por acaso. Afinal, a marginalização do Ministério de Relações Exteriores (MRE) é um objetivo-chave da gestão atual, em uma tentativa de combater o que o bolsonarismo chama de deep state, estrutura composta por tecnocratas que supostamente sabotam as ideias do Governo. Como Eduardo Bolsonaro declarou depois da vitória de seu pai nas eleições presidenciais, o Itamaraty era “um dos ministérios onde mais está arraigada essa ideologia marxista e onde haveria uma maior repulsa ao presidente Jair Bolsonaro”. Ao permitir que outras figuras no Governo se ocupem de temas internacionais, Araújo está cumprindo sua missão de diminuir o controle do Itamaraty sobre a articulação da política externa. Mesmo no período pós-Bolsonaro, o MRE demorará para reconquistar o espaço perdido, um processo que dependerá muito da capacidade de futuros e futuras chanceleres.

A estratégia bolsonarista, porém, representa um risco político para o próprio presidente. Afinal, não são apenas ministros e familiares a preencher o vácuo que a atuação de Araújo está criando. Opositores de Bolsonaro, como o governador João Doria, também estão conseguindo se destacar no exterior com muito mais facilidade e são vistos por entidades públicas, privadas e da sociedade civil fora do país como interlocutores fundamentais para tratar de temas da relação bilateral. Em vez de chamar o chanceler brasileiro para participar de reuniões sobre o Brasil, cada vez mais, organizadores de eventos internacionais convidam governadores ou prefeitos capazes de articular uma visão mais pragmática.

Na hora de avançar a pauta ambiental com o Brasil, governos estrangeiros mantêm laços fortes com governadores e prefeitos da Região Norte, cientes de que é mais fácil trabalhar com eles do que com Ernesto Araújo ou Ricardo Salles, o controverso ministro do Meio Ambiente. Governadores e até prefeitos, como Eduardo Paes, têm hoje uma interlocução comparável ou até melhor do que a do chanceler com tomadores de decisão no exterior, uma situação sem precedentes na história do Itamaraty.

Esse novo cenário da multiplicação dos atores envolvidos na política externa brasileira ―um processo descrito por especialistas como pluralização ou fragmentação― pode ajudar a mitigar, em parte, o impacto nefasto da atuação internacional bolsonarista. O protagonismo de vários governadores no contexto do combate à pandemia e a obtenção de vacinas do exterior é apenas um dos vários exemplos disso. No futuro, porém, a perda de influência do Itamaraty complicará tentativas de governos pós-Bolsonaro de articularem e implementarem um projeto coeso de política externa. Quanto mais Araújo permanecer no cargo, mais árdua será a tarefa de seus sucessores de reerguer o Itamaraty.

É claro que governos estrangeiros, como a nova administração de Joe Biden nos Estados Unidos, não podem lidar apenas com entidades subnacionais brasileiras. Resta saber, no entanto, com quem no Governo Bolsonaro o novo Governo americano, por exemplo, buscará estabelecer um diálogo produtivo. Desta vez, o vice-presidente Mourão dificilmente poderá desempenhar o papel de interlocutor racional e “adulto na sala” porque tem sido visto como isolado em Brasília. O mesmo vale para Paulo Guedes, cuja palavra já não tem tanto peso no exterior. O mais provável é que os EUA e outros países com relações delicadas com o Brasil identifiquem seus interlocutores caso a caso, seja Tereza Cristina, da Agricultura, seja Roberto Campos Neto, do Banco Central, seja Mourão.

O uso do Itamaraty para animar a base bolsonarista traz vantagens inegáveis para o presidente, e o combate contra o “globalismo” e o “comunismo” são populares nos grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro. Ao mesmo tempo, fica cada vez mais claro que o presidente também acaba entregando, de bandeja, a oportunidade ímpar aos seus adversários de se tornarem atores-chave na política externa brasileira e dar visibilidade às consequências desastrosas da estratégia internacional de seu Governo.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra).


Oliver Stuenkel: Como o fim da Guerra Fria contribuiu para a polarização dos EUA

Colapso da União Soviética eliminou a ameaça existencial que ajudava a estabilizar a política norte-americana

Quando ficou sabendo da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, meu pai ficou extasiado. Correu pela casa gritando “Caiu o Muro!”, como se seu time de futebol tivesse vencido o campeonato. Horas depois, toda a família estava na estrada em direção a Berlim, onde dezenas de milhares de pessoas se aglomeraram para saudar cidadãos da Alemanha Oriental, que entravam na parte Ocidental de Berlim pela primeira vez. Sem compreender o significado geopolítico daquele episódio na época, me impressionei com meu pai abraçando pessoas desconhecidas, todo o mundo aos prantos.

Como a vasta maioria da sociedade norte-americana, meu pai, um berlinense que passou a adolescência nos Estados Unidos, viu no colapso da União Soviética um triunfo histórico dos EUA. Ele fazia questão de que minhas irmãs e eu cursássemos parte do Ensino Médio em uma escola nos Estados Unidos. À primeira vista, a década de 1990 lhe dava razão: foi um período marcado por um boom econômico nos EUA e muita confiança de um país que se via, pela primeira vez na história, sem rival no planeta.

Em retrospectiva, porém, ficou claro: o colapso da União Soviética plantou na sociedade norte-americana a semente da polarização destrutiva, hoje uma marca registrada da política contemporânea dos EUA. Os debates políticos nos Estados Unidos durante a Guerra Fria não foram sempre civilizados evidentemente. A carreira do senador Joseph McCarthy, um charlatão famoso nos anos 1950 por liderar o combate a supostos comunistas infiltradosno Governo norte-americano, é prova disso. Durante expressiva parte desse período histórico, porém, havia consenso na população americana de que, diante da ameaça soviética, haveria limites aos ataques a oponentes na política doméstica. Afinal, a disputa contra a URSS gerava uma espécie de acordo nacional, que unia todos os atores políticos nos EUA, independentemente de suas convicções ideológicas.

Livre de preocupações sobre a sobrevivência do país, o tom na política norte-americana nos anos 1990 mudou para pior. Carente do grande projeto nacional de derrotar o comunismo, a política começou a priorizar intrigas que apequenaram a elite política dos EUA. Liderado pelo deputado republicano Newt Gingrich em 1999, o processo de impeachment de Bill Clinton —do qual seria absolvido pelo Senado depois—indicava uma abordagem de vale-tudo e a demonização dos opositores. Duas décadas mais tarde, a fragilidade da democracia americana revelou-se ainda mais flagrante quando seguidores pró-Trump invadiram o Capitólio para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Como escreve Janan Ganesh, “o fim da Guerra Fria foi uma vitória da qual os Estados Unidos nunca se recuperaram.”

A última vez em que um candidato à presidência dos EUA ganhou mais de 400 votos no Colégio Eleitoral foi em 1988, quando George Bush pai, piloto da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, com longa experiência de política externa, venceu na vasta maioria dos Estados norte-americanos. Não se trata de uma coincidência. Desde então, todas as eleições presidenciais revelam um país profundamente dividido, com ambos os lados acusando o outro de inimigo da pátria, cuja vitória representaria o fim da república. Não surpreende, tampouco, que mais presidentes tenham sofrido processos de impeachment desde o fim do confronto ideológico com os soviéticos do que nos primeiros dois séculos da república estadunidense.

Nesse contexto, a ascensão da China e a emergência de uma guerra fria entre os EUA e esse país asiático teriam o potencial de ajudar a sociedade americana a superar suas profundas divisões, que hoje representam ameaça à estabilidade política do país? À primeira vista, parece que não —afinal, apesar do seu sistema político formalmente parecido com o da União Soviética, qualquer um que pousa no aeroporto de Pequim ou Xangai logo percebe que a sociedade chinesa é profundamente capitalista e pelo menos tão materialista e individualista quanto a dos Estados Unidos. Enquanto na Guerra Fria (1947-1991) havia pouca interação econômica entre os EUA e a União Soviética, hoje, milhares de empregos norte-americanos dependem da China, dificultando um confronto como o proposto por Donald Trump nos últimos quatro anos. Um vasto número de estudantes chineses, muitos deles filhos da elite política da China, assegura a sobrevivência das universidades norte-americanas. Além disso, diferentemente da União Soviética, a China não tem planos de exportar seu modelo político ou econômico. Transformar o regime comunista chinês em bicho-papão com o fim de unificar os EUA não seria nada fácil.

Por outro lado, tudo indica que Trump é apenas sintoma de um novo consenso anti-China em Washington, reflexo de uma sociedade cada vez mais preocupada com o deslocamento de poder para o gigante asiático. O bloqueio de aplicativos chineses pelo Governo dos EUA e a disputa pela supremacia digital entre as duas potências, simbolizada pela atuação do Governo norte-americano contra a empresa chinesa Huawei, representam somente o começo de um novo sistema internacional marcado por esferas de influência de natureza tecnológica, dividindo o mundo em países que ou usam tecnologia americana ou preferem a chinesa. Parece provável que líderes políticos nos EUA tentarão aproveitar esse novo cenário para incitar o nacionalismo que ajudou a estabilizar o debate político durante a Guerra Fria.

Um estrategista da equipe de transição do Governo Biden me disse recentemente que a postura de Trump em relação à China era “talvez o único ponto de convergência que temos [com os Republicanos]”. Só o tempo dirá se esse entendimento será suficiente para ter início uma reaproximação entre Democratas e Republicanos de forma a superar a hiperpolarização que se apoderou da política norte-americana.

*Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Oliver Stuenkel: Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço

Com derrota da Donald Trump, Brasil fica ainda mais isolado em sua política radical e negacionista

Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro executa uma política externa precisa e disciplinada, cujo objetivo é manter sua base mobilizada. Trata-se de uma postura internacional feita sob medida para a cozinha de casa, e não para o mundo lá fora. Atitudes como não parabenizar o novo líder argentino, alegar que Joe Biden venceu as eleições de maneira fraudulenta, atacar a ONUXi JinpingEmmanuel Macron e quem mais aparecer pela frente integram uma retórica cuidadosamente articulada para atiçar os ânimos de sua torcida. Ter se aproximado do Centrão e se afastado do discurso anticorrupção e antissistema fez com que o presidente dependesse ainda mais desses comentários bombásticos para garantir a fidelidade de seus seguidores mais radicais.

Mas a política antiglobalista tem um preço. Em dois anos de mandato, Bolsonaro deteriorou praticamente todas as relações do País. A reputação nos quatro mercados mais relevantes para a economia brasileira – o chinês, o norte-americano, o europeu e o latino-americano – é a pior em décadas. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, a retórica antiambientalista fortalece aqueles que se opõem a uma aproximação com o Brasil. Em círculos diplomáticos europeus, fala-se abertamente que o presidente brasileiro é o pior inimigo da ratificação do acordo comercial com o Mercosul. Fora os nacionalistas da Hungria, Polônia e Eslovênia, não há um único chefe de Estado da União Europeia que receberia uma visita oficial de Bolsonaro hoje em dia. 

Com a onda ambientalista que vem dominando a política europeia, cresce o risco de boicotes mais amplos contra os produtos daqui. Isso ocorre não só pelas escolhas problemáticas do presidente no campo interno, mas também porque Jair Bolsonaro abriu mão de uma arma poderosa da qual os governos anteriores dispunham. Ao rifar as relações externas para manter sua popularidade interna, o presidente atou as mãos de um dos Ministérios de Relações Exteriores mais sofisticados do mundo. Até poucos anos atrás, o Itamaraty servia de escudo para a reputação do País no exterior mesmo em momentos em que o governo brasileiro estava obviamente errado. Essa proteção foi crucial em crises como os massacres do Carandiru e da Candelária, em 1992 e 1993, ou quando as taxas de desmatamento tiveram uma aceleração, nos anos 1990 e 2000. Enquanto um chanceler normal mobilizaria as missões brasileiras no exterior para reagir à crise de reputação, o atual chefe do Itamaraty amplia o isolamento ao defender teorias conspiratórias, e faz tempo virou chacota mundial. 

Se antes a atuação independente do Itamaraty ajudava a reparar os danos de catástrofes nacionais, hoje o órgão encontra-se escanteado por um governo que ofusca até o que deveria capitalizar. Avanços com a reforma da Previdência de 2019 foi o grande exemplo disso. Em vez de ficar calado e deixar que uma medida celebrada pelos mercados ganhasse visibilidade na imprensa especializada, Bolsonaro lançou uma bomba que deixou o assunto em segundo plano: a tentativa de emplacar seu filho como embaixador nos EUA. 

Com a vitória de Biden, o risco econômico da política bolsonarista tende a aumentar ainda mais. As nomeações do democrata sugerem que o tema ambiental será um pilar de seu mandato tanto no âmbito interno quanto no externo. A futura secretária do Interior, Deb Haaland, tem sido uma das críticas mais ferrenhas da política ambiental do presidente brasileiro. O desmatamento da Amazônia foi citado por Biden ainda em campanha. Na ocasião, Bolsonaro foi ao Twitter dizer que a soberania nacional não seria negociada. O atrito dá uma amostra do que vem pela frente na relação com os EUA. Para piorar a situação, é provável que o governo Biden coordene sua política ambiental com a União Europeia

A derrota de Trump deixa o Brasil ainda mais isolado em sua política radical e negacionista. Antes ofuscadas pela atuação do colega americano, as patacoadas de Bolsonaro devem ganhar ainda mais atenção negativa dos observadores internacionais. Tivemos uma prévia disso logo em dezembro, quando ele virou notícia internacional por ser o último líder de um país democrático a parabenizar Joe Biden pela vitória.

Em 2021, cada aparição de Bolsonaro no noticiário internacional será um risco para a já combalida economia brasileira. O mesmo se estende ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e ao Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. No caso desses dois, sua mera permanência no cargo já contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus e americanos preocupados com o desmatamento.

Se em 2019 Hamilton Mourão e Tereza Cristina foram a Pequim tentando desfazer o mal-estar causado pela retórica anti-China, em 2021 já não existe campanha publicitária ou iniciativa de quadros mais moderados que possa consertar a imagem tóxica da ala radical do governo. 

A substituição de Salles e Araújo reduziria o risco de boicotes, fugas de investidores estrangeiros e complicações na ratificação de acordos comerciais. O problema é que eles representam dois grupos-chave de sustentação do governo: ruralistas e antiglobalistas. Sobretudo no caso de Salles, a facilitação do desmatamento e o desmonte das estruturas de fiscalização estão no cerne do programa bolsonarista. Desistir disso complicaria as relações do governo com uma parte obtusa, porém importante, do setor ruralista. 

Em meio a essa confusão, avanços diplomáticos como a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) já são improváveis, e os riscos de reputação do País inevitavelmente entrarão na conta de qualquer investidor. O País está aprendendo de um jeito doloroso que a imagem externa é uma abstração com consequências bastante reais, e que doem no bolso.

* COORDENADOR DA PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV-SP

Conteúdo Completo:

A vida de milhões de pessoas vai piorar em 2021

Os desafios da economia em 2021

Nunca estivemos tão perto e tão longe da reforma tributária

Política ambiental é entrave ao crescimento

Privatização mesmo  só veremos nos governos estaduais

Reforma administrativa é a agenda que precisa caminhar

O governo Bolsonaro precisaria se reinventar, mas isso é muito improvável

O grande risco para o Brasil este ano é interno, e não externo

Política antiglobalista de Bolsonaro tem um preço

O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil


Oliver Stuenkel: Um demagogo mais competente que Trump asfixiaria a democracia nos EUA mais facilmente

O sistema democrático norte-americano sobreviveu, em grande parte, graças à falta de disciplina de Trump. Um populista com ambições autoritárias, que aprendesse com os erros do magnata, representaria muito mais riscos no futuro

Joe Biden venceu as eleições presidenciais americanas de 2020 porque soube transformar o pleito em um referendo sobre Donald Trump. Mesmo a poucas semanas das eleições, o candidato democrata era econômico em suas aparições públicas, dando a seu adversário a maior visibilidade possível. “Trump deve receber corda suficiente para se enforcar. Quanto mais ele fala, melhor para mim”, Biden apostou. Deu certo: acima de tudo devido a sua gestão desastrosa da pandemia, que ceifou a vida de um quarto de milhão de norte-americanos, Trump tornou-se o primeiro presidente dos EUA, desde 1992, a não se reeleger.

O clima festivo nas grandes cidades americanas depois da declaração do resultado final, na semana passada, foi diferente daquele de 2008, quando o jovem senador Barack Obama acabara de se tornar o primeiro presidente-eleito negro da história dos EUA. Doze anos mais tarde, não se celebrava a vitória de Joe Biden, mas o fim da presidência de Donald Trump e a ameaça autoritária que ela representava. “Parece que acabamos de completar um exorcismo”, o cientista político Francis Fukuyama resumiu.

Não há dúvida de que a derrota de Trump pode ser interpretada como prova de resiliência da democracia americana. Numerosas iniciativas do Republicano, ao longo dos últimos quatro anos, foram bloqueadas pela justiça, ele não conseguiu calar jornais ou intimidar acadêmicos e, em uma mensagem pouco sutil na semana passada, o general Mark Milley, oficial militar de mais elevada patente das Forças Armadas dos EUA, alertou: “Não fazemos juramento (...) a um ditador. Fazemos juramento à Constituição. Cada soldado (...) vai defender esse documento, independentemente do preço que tenhamos que pagar.” Vista dessa perspectiva, a principal diferença entre os Estados Unidos e países cuja democracia colapsou ao longo das últimas décadas ―como Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Rússia, Zimbabwe, Egito e Filipinas― seria a qualidade de suas instituições.

Porém, enquanto as instituições certamente tiveram papel relevante para explicar o fracasso do projeto autoritário do presidente Trump, há uma outra razão, possivelmente ainda mais importante: a democracia norte-americana sobreviveu, acima de tudo, graças à incompetência e à falta de disciplina do presidente, que muitas vezes atuou visando a pequenas vitórias táticas, em vez de planejar o longo processo de desmonte das estruturas democráticas, como fizeram outras lideranças autoritárias ao redor do mundo.

A pandemia talvez seja o melhor exemplo. Em vez de aproveitar-se da crise sanitária para concentrar mais poder na presidência ―como fez o líder húngaro Viktor Orbán―, Trump optou pelo negacionismo meia-boca, permitindo a permanência de cientistas sérios no seu próprio governo. Em vez de aprovar um grande pacote de estímulo e aumentar gastos públicos para a população mais pobre, o que provavelmente teria aumentado sua taxa de aprovação, Trump não tomou a dianteira no debate.

Diferentemente de muitos líderes autoritários que conseguiram se consolidar no poder, o presidente norte-americano nunca tentou engajar aqueles fora da sua base eleitoral. Suas tentativas de atrair o voto feminino pouco antes do pleito ―dizendo, durante um comício, “Mulheres suburbanas, vocês por favor podem gostar de mim?”― nunca foram sérias. Da mesma forma, apesar da boa vontade inicial no mercado financeiro, Trump jamais tentou controlar seus impulsos nas redes sociais, mesmo ciente de que a incerteza gera frustração em Wall Street.

O presidente poderia ter provocado tensões internacionais alguns meses antes do pleito, tática clássica para impulsionar o sentimento nacionalista e aumentar a aprovação popular. Diferentemente da grande maioria dos líderes autoritários, que entendem que a destruição de um sistema democrático requer foco, dedicação e paciência, Trump aproveitou-se da presidência, até o fim, para lidar com suas ansiedades pessoais. Como a professora Ayse Zarakol observa, “[Trump] não teve o foco de Putin, a coragem de Erdogan ou a crueldade de Rodrigo Duterte.”

A verdade alarmante é que uma versão igualmente autoritária, porém mais disciplinada, mais afável e empática, mais paciente e mais competente de Donald Trump, provavelmente teria sido reeleita com tranquilidade, e há muitos indícios de que o Republicano teria tido mais espaço para implementar medidas antidemocráticas no seu segundo mandato ―como, aliás, costuma acontecer na maioria das vezes quando a democracia morre lentamente.

Não restam dúvidas de que muitos americanos votaram em Biden no último 3 de novembro para defender a democracia. Muito sugere, porém, que a vitória do democrata não se deve tanto à rejeição às tendências autoritárias, mas ao repúdio pela incompetência do presidente Republicano. Como os resultados no Senado mostram, onde aliados de Trump conseguiram defender a maioria republicana e no Congresso, onde a maioria democrata diminuiu, o trumpismo nos EUA veio para ficar. A próxima ameaça autoritária que os EUA poderão enfrentar ―possivelmente já em 2024― dificilmente seria tão amadora quanto a de um tosco apresentador de TV, que pouco se interessa pelo ato de governar. Na hora de enfrentar um caudilho mais competente, o bloco democrático não poderá se limitar a jogar parado e torcer para que o candidato com ambições antidemocráticas se enforque sozinho. Esse risco é um luxo que os democratas não poderão mais ter.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Oliver Stuenkel: Negacionismo de Bolsonaro tem método e pode garantir sua sobrevivência política

Gestão grotesca da crise consolida isolamento internacional do Brasil, mas é fruto de um cálculo político sofisticado

Desde o início da pandemia, o Brasil ganhou destaque internacional como um dos integrantes da chamada “Aliança do Avestruz”, composta por países cujos líderes negam a gravidade ou mesmo a existência da covid-19. Além do presidente brasileiro, os ditadores da Nicarágua, Bielorrússia e Turcomenistão viraram chacota mundial ao minimizarem o risco ou recomendarem o consumo de vodca, fumaça de ervas, vermífugo e outras substâncias sem nenhuma evidência médica de ação contra a doença. Embora também defenda teses esdrúxulas sobre o vírus, o presidente americano Donald Trump não abraçou o radicalismo da Aliança do Avestruz. Enquanto sua recusa a endossar o negacionismo rendeu ao ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta uma demissão, Trump ainda não ousou demitir Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos e um dos principais especialistas do mundo em epidemias.

Desde então, chovem análises que pintam o Brasil como um país à deriva, liderado por um presidente imprevisível, sem norte e incapaz de articular uma resposta coerente à pior crise sanitária do último século, que já matou mais de 100.000 brasileiros. À deriva pode até ser, e o Financial Times acertou ao chamar o Brasil de “a country without a plan”: um país sem planejamento, sem perspectiva de como proteger a população ou de como se preparar para o mundo pós-pandemia. Enquanto nações com governos eficientes sairão da crise mais unificadas e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos, o Brasil sairá ainda mais fragilizado, polarizado e inseguro. Essa derrota humilhante no combate à pandemia fica mais difícil de engolir quando lembramos da tradicional liderança do país no âmbito da saúde pública e de sua vitória diplomática contra as grandes farmacêuticas há vinte anos, quando conseguiu quebrar patentes poderosas e produzir genéricos para controlar a pandemia de HIV. Hoje, a posição do Brasil no cenário mundial espelha aquela que o próprio Bolsonaro ocupou ao longo de quase três décadas no Congresso Nacional: isolado, conhecido por suas loucuras e sem qualquer influência.

Mas há método nessa loucura, e seria um erro acreditar que a atuação do presidente seja incoerente ou imprevisível. Ao contrário de Trump, que permitiu a presença de cientistas de verdade em seu Governo e chegou a ensaiar uma retórica mais séria em relação à crise, Bolsonaro não titubeou e abraçou o negacionismo de maneira consistente, implementando sua estratégia de forma sofisticada e disciplinada, resistindo às pressões nacionais e internacionais mesmo quando o custo dessa postura em vidas humanas ficou evidente. O centro da estratégia consiste em nunca assumir a responsabilidade e não virar o pai do problema, evitando arcar com o custo político brutal da crise econômica que virá.

Desde o início, Bolsonaro percebeu que a pandemia tinha potencial para causar a crise econômica mais profunda da história da América Latina. Esse vendaval pode criar um nível de instabilidade social capaz de fazer as manifestações que tomaram vários países da região em 2019 parecerem uma época de calmaria. A região já tinha o pior desempenho econômico do mundo antes da pandemia, e deve demorar anos para recuperar o PIB pré-covid. A história política recente mostra que, na América Latina, os presidentes conseguem se reeleger e fazer seus sucessores em tempos de vacas gordas. Já quem tem o azar de governar em anos de baixo crescimento tende a perder a eleição seguinte ou a cair antes dela. Não por acaso, os líderes brasileiros da década de 2001 a 2010 gozavam de altas taxas de aprovação e baixa probabilidade de impeachment: nessa época, o PIB crescia em média 3,7% ao ano.

A coisa mudou entre 2011 e 2020, e o fato do PIB brasileiro só ter crescido algo como 0,04% ao ano nos ajuda a entender não só a queda de Dilma Rousseff como a de seus vizinhos Fernando Lugo, Evo Morales e Pedro Kuczynski, igualmente retirados antes do fim de seus mandatos em um contexto econômico desafiador. Não é uma previsão arriscada dizer que a América Latina do pós-pandemia deve viver uma onda de instabilidade política, reduzindo as chances dos presidentes terminarem seus mandatos.

Diante deste cenário desolador, a decisão de Bolsonaro de minimizar o problema, criticar o distanciamento social e promover remédios sem comprovação científica está longe de ser uma estratégia incompreensível. Trata-se de uma aposta ardilosa e sofisticada, ainda que moralmente indefensável. Se o número de vítimas tivesse estacionado em 800, como ele chegou a prever no final de março, Bolsonaro poderia ter acusado os especialistas de alarmismo. Agora, com mais de 100.000 vítimas fatais e nenhum sinal de achatamento da curva, o presidente pode culpar a suposta futilidade das medidas de distanciamento social, empregando uma lógica torta de que, já que “todos pegarão” a doença de qualquer jeito, seria melhor manter tudo aberto e supostamente evitar a crise econômica. Na narrativa bolsonarista, a culpa pela pior crise da nossa geração recai sobre governadores, prefeitos, especialistas em saúde pública e, claro, sobre a China. São eles, e não o presidente, que devem arcar com o custo político.

A aposta de Bolsonaro ainda pode dar errado, mas é inegável que funcionou bem melhor do que muitos esperavam no início da pandemia. As condenações viraram um tanto protocolares. Se em tempos normais a insistência em promover a cloroquina geraria escândalo, agora foi normalizada. A militarização do Ministério da Saúde, a ausência de um ministro da Saúde, a incapacidade do presidente em reconhecer a dor de dezenas de milhares de famílias brasileiras, a insistência em não usar máscara em público: cada um desses fatos é inaceitável quando analisado individualmente. No entanto, o fluxo contínuo de notícias absurdas parece retirar a gravidade de cada uma delas. Ao contrário de Trump, que enfrenta uma campanha de reeleição bastante complicada devido à sua péssima gestão da crise sanitária, a aprovação do governo Bolsonaro recentemente subiu para 45%. “O cenário hoje é de Jair Bolsonaro reeleito”, afirmou recentemente Thomas Traumann, um dos observadores políticos mais experientes em atividade. Os panelaços de março e abril minguaram rapidamente. Simbólico pela normalização geral da tragédia, o Jornal Nacional desta quarta-feira (5/8) foi o primeiro em meses a não mencionar o coronavírus em suas palavras iniciais. O país parece estar anestesiado. Ainda estamos no começo da pandemia, mas não podemos descartar a possibilidade de que Jair Bolsonaro seja um dos grandes vencedores políticos da tragédia.


Oliver Stuenkel: Com Salles e Araújo, imagem do Brasil no Ocidente seguirá negativa

Permanência dos ministros das Relações Exteriores e do Meio Ambiente contamina qualquer tentativa de apaziguar investidores europeus preocupados com o desmatamento

Há semanas, alguns generais e integrantes da ala liberal do Governo, apoiados por numerosos empresários brasileiros preocupados com a imagem do Brasil no exterior, estão sugerindo a Jair Bolsonaro que demita o chanceler Ernesto Araújo e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Mesmo para os padrões bastante baixos do Governo, os dois ministros se destacam e tornam praticamente impossível defender o Brasil lá fora.

Até observadores simpáticos ao presidente hoje admitem que o radicalismo de Salles e Araújo prejudica a economia brasileira, inspirando boicotes contra produtos brasileiros no exterior, aumentando o risco de fuga de investidores e tornando menos provável a ratificação de acordos comerciais. Eles sabem também que a postura ambientalista dos países europeus representa o novo normal. Além disso, se o democrata Joe Biden virar presidente, os EUA passarão a ter uma postura semelhante à europeia em relação ao Brasil. A permanência dos dois ministros, portanto, só aumentará a pressão que o Brasil já enfrenta no exterior.

O problema é que Ricardo Salles e Ernesto Araújo representam duas facções-chave de sustentação do Governo Bolsonaro. No caso de Salles, facilitar o desmatamento desmontando as estruturas de fiscalização tem sido uma das promessas da campanha do presidente, e quebrá-la pode fazer com que ele perca o apoio de uma parte importante do setor ruralista, pouco preocupado com a imagem do país no exterior. Para eles, Salles não decepciona: segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), junho foi o 14º mês seguido em que houve aumento no desmatamento, enquanto o número de multas caiu para menor nível em 24 anos.

O mesmo vale para Araújo: ele representa a faixa lunática, mas bastante barulhenta, da coalizão que sustenta Bolsonaro. O chanceler virou chacota global desde que assumiu e contribui ativamente para o crescente isolamento diplomático do país, mas não se pode negar que entregou o que prometeu: a atuação brasileira enfraqueceu o multilateralismo, inimigo do olavismo. Demitir Araújo pode fazer com que bolsonaristas radicais questionem seu compromisso com suas causas: combater o comunismo, o globalismo e o ambientalismo.

Com Bolsonaro pouco disposto a trocar o comando dos dois ministérios ou de iniciar uma mudança real da sua política ambiental, o Governo tem tentado melhorar sua imagem por meio de medidas simbólicas —uma estratégia identificada lá fora como “window dressing”—. A decisão de decretar “moratória absoluta” das queimadas na Amazônia por 120 dias, por exemplo, dificilmente surtirá efeito. De fato, em off, diplomatas e parlamentares europeus sugerem que gestos pontuais feitos por Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, para aplacar as preocupações internacionais, pioraram a reputação do Brasil junto aos ambientalistas no exterior. Muitos deles se perguntam como o Governo brasileiro pode levar a sério o combate contra o desmatamento se Ricardo Salles, gravado dizendo que a desregulamentação ambiental deve acelerar enquanto o público estiver distraído com a covid-19, ainda for ministro, responsável pela fiscalização ambiental. Não havia dúvida, segundo um deputado do parlamento europeu me disse em junho, de que Salles é “a raposa cuidando do galinheiro”.

Da mesma maneira, o envio do Exército brasileiro para proteger a Amazônia, iniciativa que gerou visibilidade internacional, não teve efeito tangível. Pelo contrário: como a ação não reduziu o desmatamento, mas até chegou a complicar o trabalho dos fiscais ambientais, ela levou os ambientalistas europeus a acreditarem que Bolsonaro estava tentando enganá-los com um truque barato de relações públicas.

Nesse contexto, o país que mais ganhará com o crescente isolamento do Brasil é a China. Com o Brasil cada vez mais rejeitado no Ocidente, a China já deixou claro, diversas vezes, que em hipótese alguma permitirá que assuntos ambientais afetem a relação bilateral com o Brasil, vista como estratégica por Pequim. Apesar da retórica anti-China de Bolsonaro, a péssima imagem do país na Europa e nos Estados Unidos aumentará, cada vez mais, a dependência brasileira do gigante asiático. Lá, o tema ambiental também está em ascensão, mas, por enquanto, é pouco provável que consumidores chineses se mobilizem contra a política ambiental brasileira.

Bolsonaro sabe muito bem que uma nova estratégia de comunicação, como a recentemente proposta , não apaziguará os investidores. Trata-se, na verdade, de um cálculo político. A pressão externa e um possível dano econômico representam um mal menor se comparados à perda do apoio dos antiglobalistas e dos ruralistas, considerados cruciais para a sobrevivência do Governo. Além disso, é preciso lembrar que a crescente rejeição internacional não é, necessariamente, uma má notícia para Bolsonaro. Sempre em busca de inimigos internos e externos, o presidente pode facilmente construir uma narrativa segundo a qual as críticas à sua postura ambiental nada mais seriam do que uma tentativa de questionar a soberania do Brasil —como já fez no ano passado quando Emmanuel Macron, em um tom um tanto arrogante, atacou a política ambiental brasileira—. Com a temporada dos incêndios e uma nova onda de críticas internacionais a caminho, Bolsonaro só abrirá mão de Salles e de Araújo se, por algum motivo hoje improvável, esse cálculo perder o sentido.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Oliver Stuenkel: Brasil pagará preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia

O coronavírus provavelmente moldará nossa era mais do que qualquer outro evento, elevando governantes mundo afora à posição de líderes cujas decisões terão impacto por décadas

A pandemia como a que estamos vivendo é tão rara e grave que pode ser tornar o evento histórico mais marcante de nossas vidas. Marcará o início de uma nova era. Em função disso, as decisões dos líderes no momento e nos próximos anos, em um mundo em fluxo, terão consequências sistêmicas em longo prazo para seus países e a ordem global.

Como afirmou recentemente Janan Ganesh, colunista do jornal britânico Financial Times, é provável que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha, junto com o presidente chinês Xi Jinping, a oportunidade de definir os fundamentos da era pós-pandemia. Cita como exemplo histórico o presidente americano Harry Truman, que chegou ao poder depois da morte de Franklin D. Roosevelt no fim da Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias normais, Truman dificilmente teria sido um líder relevante. O momento histórico em que se tornou presidente, porém, era atípico. Truman implementou o Plano Marshall para reconstruir a economia da Europa Ocidental e fundou a OTAN, tornando-se o líder americano de maior impacto da segunda metade do século 20. Por décadas, seus sucessores operaram dentro do sistema geopolítico que ele havia desenhado. Em um mundo em fluxo, líderes ao redor do mundo se tornaram altamente relevantes para suas nações naquele momento, desde Konrad Adenauer na Alemanha, Mao Tsé Tung na China até o premiê indiano Jawaharlal Nehru e o líder israelense David Ben-Gurion. Como observa Ganesh, “as circunstâncias contavam mais do que o indivíduo.”

Tal como em 1945, há cada vez mais evidência de que a atual pandemia será um momento de transformação, elevando governantes mundo afora, mais uma vez, à posição de líderes cujas decisões terão impacto em seus países por décadas. A resposta confusa dos EUA ao novo coronavírus sugere que a época marcada pela liderança global de Washington chegou ao fim, iniciando um processo complexo de transição para um sistema liderado por duas potências. A pandemia também deve simbolizar o fim da hiperglobalização, provavelmente com um maior papel do Estado na economia e taxas de crescimento mais baixas em países em desenvolvimento. James Crabtree, professor da Universidade Nacional da Singapura, escreveu recentemente que todo o conceito de Mercados Emergentes deve deixar de existir, com profundas consequências para a distribuição global de poder e o futuro do capitalismo. A crise sanitária global causará o primeiro retrocesso no desenvolvimento humano global em três décadas, causando aumentos bruscos nas taxas de pobreza e instabilidade política em numerosos países ao redor do mundo, alimentando a xenofobia, o nacionalismo e acelerando a crise do multilateralismo. Até a chegada de uma vacina, países terão que intercalar a flexibilização da quarentena com novos períodos de isolamento, sempre acompanhados de milhares de testes.

No meio disso tudo, nascerá uma ordem diferente, moldada pelas estratégias adotadas por líderes ao redor do mundo. Como as escolhas durante a atual pandemia deverão definir o contexto no qual futuros governos operarão, os países que atualmente têm líderes inteligentes e visionários provavelmente serão recompensados ​​desproporcionalmente —simplesmente porque, devido ao momento histórico, suas lideranças terão maior impacto. Países com governos eficientes sairão da crise mais unificados e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos. Nesse países, cientistas e profissionais da saúde ganharão mais visibilidade e respeito, e há um debate público construtivo sobre como encontrar o equilíbrio certo entre aumentar a capacidade de monitoramento do Estado e a proteção da privacidade, como reabrir a economia sem pôr vidas em risco e como financiar os pacotes de estímulo econômico.

Países que atualmente têm maus líderes, por outro lado, podem acabar sendo punidos mais do que em circunstâncias normais. Além de gerir mal a pandemia e prorrogar a crise sanitária e econômica, eles não levam evidência científica em consideração e não atuam de maneira transparente. Deixarão de estabelecer as bases necessárias para iniciar a dolorosa adaptação de longo prazo. Ao invés de unificar seus países, deixarão suas sociedades mais divididas e desconfiadas, inviabilizando um debate público sobre os numerosos desafios, desde o futuro da educação, da economia, do emprego, do transporte e até do processo eleitoral em tempos de pandemia. Como sempre na história, países com lideranças inteligentes aproveitarão do mundo em fluxo para galgar posições, enquanto as nações à deriva perderão relevância.

Levará muito tempo para se poder avaliar as consequências geopolíticas da pandemia e o inevitável rearranjo na distribuição de poder entre nações. Porém, até agora, tudo indica que o Brasil será um dos grandes perdedores geopolíticos deste momento histórico. Quando o Brasil não foi nem sequer convidado para lançar, em abril, a iniciativa “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a Diagnósticos, Tratamento e Vacina contra a Covid-19”, que reúne Governos, organizações internacionais, fundações e empresas privadas, revelou-se ali uma irrelevância internacional do Brasil que pode ser o novo normal pós-pandemia —e que demoraria anos para ser revertida. A triste realidade é que, neste momento, o Brasil traz muito pouco à mesa dos debates sobre os maiores desafios que a humanidade enfrenta. É relevante apenas no sentido em que causa preocupação dentro e fora do país. Além das muitas mortes que poderiam ser evitadas com uma resposta mais coerente e baseada em evidências científicas, o Brasil pode chegar a pagar um preço muito maior, por muito mais tempo, do que a maioria acredita.