Odebrecht
Fernando Gabeira: Enquanto o Brasil chorava
No Brasil os bandidos é que determinam como e o que pode ser feito contra eles
Na madrugada, como costumam sempre fazer, os deputados votaram um texto destinado a golpear a Lava Jato e intimidar os procuradores e juízes. Dessa vez uma madrugada de luto pela queda do avião da Chapecoense, desastre que impactou o mundo.
Temer prometeu vetar a anistia para o caixa 2 e outros crimes. Mas não mencionou o tema da represália à Justiça, uma das grandes aspirações de Renan Calheiros.
O Brasil está diante de uma afronta espetacular: deputados investigados por corrupção determinam os limites dos próprios investigadores. Denunciar sua manobra não significa conciliar com abuso de autoridade, mas apenas enfatizar que legislaram em causa própria. No Brasil são os bandidos que determinam como e o que pode ser feito contra eles.
O que existe mesmo, como ação central, é uma tentativa de neutralizar a Operação Lava Jato, sobretudo às vésperas da divulgação dos depoimentos da Odebrecht. O caminho foi interferir nas “10 Medidas Contra a Corrupção”.
Interferir na proposta, na verdade, é um atributo do Congresso. Assim como não deve simplesmente carimbar medidas do governo, o Congresso não pode apenas carimbar medidas que se originam na sociedade.
Não há nenhum problema em cortar exageros, em adequar ao texto constitucional, etc. A crise começa quando decidem confrontar a Lava Jato e outras investigações. Em primeiro lugar, com manobras sobre uma anistia impossível; em segundo lugar, aprovando uma lei de controle de autoridade que não pertencia à proposta original.
Aliás, esse tema pertence a Renan Calheiros, com 12 investigações no Supremo Tribunal Federal. A Câmara dos Deputados antecipou-se a ele porque, com o êxito da Lava Jato, a contraofensiva parlamentar tornou-se a principal tarefa para bloquear as mudanças.
Não dá. Assim como não deu para o governo transformar-se num grupinho de amigos do Geddel e pressionar para que o prédio La Vue fosse construído com 30 andares.
Renan Calheiros segue sendo a maior ameaça. É curioso como um homem investigado 12 vezes coloca como sua tarefa principal controlar a Justiça. Com a votação da Câmara ele recebeu um alento. Renan e os deputados caminham para impedir que o Brasil se proteja dos assaltantes que o levaram à ruína.
Renan tem influência. Há os que pensam, como ele, que é preciso torpedear a Lava Jato e há os que não ousavam combatê-lo, mas agora começam a perceber que foi longe demais. E o derrotaram no plenário do Senado, impedindo a urgência na lei da intimidação.
Renan desenvolve o mesmo estilo de Eduardo Cunha, o cinismo, e usa o cargo para se proteger da polícia. Enfim, Renan delira, como Cunha delirava. A melhor saída é eles que se encontrem em Curitiba. Na ânsia de sobreviver, não hesitam em agravar a situação do País, já em crise profunda.
A votação escondida num momento de luto, tudo isso é muito esclarecedor sobre a gravidade do desafio que lançaram. O sonho dourado dos políticos corruptos ainda em liberdade não é apenas deter as investigações. Eles querem reproduzir o momento anterior, em que assaltavam os cofres das estatais, vendiam artigos, emendas, frases, às vezes até um adjetivo.
Romero Jucá é um craque nessa arte. Ele conseguiu passar uma lei que permite a repatriação do dinheiro de parentes de políticos. E não se expôs. Jogou apenas com a incompetência da oposição.
Os membros da apodrecida cúpula do PMDB precisam ser julgados. Enquanto estiverem no poder, estarão tramando uma volta ao passado, porque é esse o território em que enriqueceram. Eles sabem que nada é tão fácil como antes, caso contrário Sérgio Cabral estaria em Paris aquecendo o bumbum em privadas polonesas.
O problema no Brasil é julgar para gente com foro especial. O Supremo é um órgão atravancado por milhares de processos.
Uma razão a mais para julgar os políticos investigados com urgência é que estão legislando em causa própria. Depois de tantas investigações, tanta gente na rua, é incrível que o Brasil continue sendo dirigido pelo mesmo grupo que o assaltou.
É inegável que houve avanços, muito dinheiro foi restituído. Dirigentes do PT estão na cadeia, assim como alguns do principais empreiteiros do País. Entretanto, quem conseguiu escapar até agora organiza a resistência, prepara-se para o combate e só descansará quando puder de novo roubar em paz.
Esta semana me lembrei do Glauber Rocha. Num de seus diálogos mais geniais, um personagem dizia: “Já não sei mais quem é o adversário”. Se a sociedade e a Justiça tiverem dúvidas sobre quem é, podem pagar caro por essa hesitação.
O movimento inspirado por Calheiros e iniciado com êxito na Câmara é, no fundo, uma provocação irresponsável. O Congresso, recentemente, já foi invadido por gente indignada com a corrupção. Toda a luta pelo impeachment foi conduzida de uma forma pacífica. Todavia se torna mais difícil evitar a radicalização, uma vez que deputados e senadores já mal podiam andar pelas ruas antes mesmo de golpearem a Lava Jato.
Será preciso muita habilidade e paciência para julgá-los e prendê-los. Se isso não for feito logo, o Brasil merecerá o nome que Ivan Lessa lhe dava nos seus textos bem-humorados: Bananão. Não nos deixam outro caminho senão lutar com todas as forças, como se tivéssemos sido invadidos por alienígenas de terno e gravata.
Depois de nove anos, o primeiro inquérito em que Renan Calheiros é acusado finalmente entrou na pauta do Supremo para ser julgado. O silêncio dos ministros ao longo de todos esses anos contribuiu para que ele se sentisse impune. Se escolheram esta semana para absolvê-lo, então aí terão, ainda que involuntariamente, se tornado numa força auxiliar do crime político. Se condenado na primeira ação, Renan começará a arrumar as malas para Curitiba. Lá nasceram os demais inquéritos e lá já estão outros que deliram com riqueza e poder. Como Eduardo Cunha.
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,enquanto-o-brasil-chorava,10000092006
Luiz Carlos Azedo: Tapa na cara do cidadão
Políticos que receberam dinheiro de caixa dois da Odebrecht estão à beira de um ataque de nervos e dispostos a pôr um fim à Operação Lava-Jato
O Brasil não é para principiantes, dizia Tom Jobim; ou seja, não é para amadores, ainda mais quando se trata do Congresso Nacional. As Dez Medidas Contra a Corrupção, com mais de dois milhões de assinaturas, são resultado de uma iniciativa dos procuradores da República para endurecer o jogo contra empresários, executivos e políticos corruptos, mas estão servindo de cortina de fumaça para aprovação de uma lei que anistia os envolvidos na Operação Lava-Jato. Por duas vezes, a manobra já foi tentada e fracassou em plenário, mas, na próxima terça-feira, voltará à pauta da Câmara dos Deputados. O presidente da casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), nega a existência do substitutivo e garante que, se for apresentado, o submeterá à votação nominal.
O problema é que desde a Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, o Brasil mimetiza leis aparentemente progressistas para manter o status quo. Nossa primeira Carta Magna era de inspiração liberal, mas a introdução do direito à propriedade privada como cláusula pétrea não mirava o desenvolvimento do capitalismo, o objetivo era apenas preservar a escravidão, que somente acabou em 1888, com a Lei Áurea. Assinada pela Princesa Isabel, a abolição só chegou quando a monarquia já não se aguentava em pé. É mais ou menos o que se quer fazer agora com aprovação de uma legislação que, ao “criminalizar” o caixa dois eleitoral, absolve todos os crimes praticados no escândalo da Petrobras, isto é, salvar o “capitalismo de laços”, seus oligarcas e nababos da dèbâcle em que se encontram.
Foi muita ingenuidade dos procuradores acreditar na aprovação de uma legislação que apartasse as doações eleitorais das empreiteiras por meio de caixa dois dos crimes conexos, como recebimento de propina, superfaturamento de obras, desvios de recursos públicos, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Essa atribuição é do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar os processos da Lava-Jato. Os deputados da comissão especial aprovaram o relatório do deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), mas esqueceram de combinar com os políticos já enrolados na Operação Lava-Jato, que jamais aceitarão isso.
Não foi à toa que dois lobbies se digladiaram nos bastidores da Câmara, de quarta para quinta-feira, enquanto a comissão varava a madrugada para aprovar o relatório. De um lado, procuradores de todo o país abordando os deputados de suas relações; de outro, o poderoso lobby das empreiteiras com advogados e assessores de relações institucionais. A votação em plenário foi suspensa, mas a Odebrecht adiou a assinatura do seu acordo de delação premiada, aparentemente porque Marcelo Odebrecht ainda se recusava a fazê-lo. A moeda de troca das empreiteiras na Câmara não é mais a mala cheia de dinheiro, é o medo dos deputados em risco de encerrarem a carreira política na cadeia. Na verdade, trata-se de uma corrida contra o relógio para aprovar a anistia antes da delação.
Efeito Borboleta
A teoria do caos (ou seja, o estudo da desordem organizada) explica melhor a situação. Quando simulou no computador a evolução das condições climáticas, seu autor, o meteorologista Edward Lorentz, acreditava que pequenas modificações nas condições iniciais de ventos e temperaturas acarretariam alterações também pequenas na previsão do tempo. Mas o resultado foi o contrário: pequenas modificações nas condições iniciais provocaram efeitos desproporcionais. Em um ou dois dias, eram insignificantes; em um mês, os efeitos produziam padrões catastróficos.
É mais ou menos o que está acontecendo em relação à criminalização do “caixa dois”. Todos os políticos que receberam dinheiro de caixa dois da Odebrecht estão à beira de um ataque de nervos e dispostos a pôr um fim à Operação Lava-Jato, numa manobra que acabaria também por beneficiar os demais envolvidos: empresários, executivos, lobistas e doleiros. Quem viu o filme Efeito Borboleta pode imaginar outras consequências. “Essa proposta de anistia do caixa dois de campanhas é um tapa na cara do cidadão honesto desse país”, criticou o senador José Antônio Reguffe (sem partido/DF), em pronunciamento no Senado. É mais ou menos o sentimento generalizado da sociedade. Seus colegas, porém, estão chamando o povo de volta às ruas.
* Jornalista, colunista do Correio Braziliense
fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-tapa-na-cara-do-cidadao/
Sérgio Fausto: Esperando a Odebrecht
Não pode haver sociedade decente fora do império da lei, igual para todos
Ao contrário de Godot, personagem do dramaturgo Samuel Beckett, ela chegará: a delação premiada de aproximadamente 50 executivos da Odebrecht e de membros da família que controla a companhia virá à luz nos próximos meses. Não será o dia do Juízo Final para os cerca de 200 políticos que, diz-se, são mencionados nos depoimentos feitos ao Ministério Público. Haverá situações variadas: quem recebeu recursos de caixa 2 e praticou crime de lavagem de dinheiro e/ou corrupção; quem recebeu esses recursos sem cometer tais crimes; quem os cometeu em benefício de financiamento de campanha própria ou de seu partido e/ou de seu enriquecimento pessoal, etc. Caberá à Justiça individualizar cada caso e as penas respectivas, quando couberem, respeitado o devido processo legal. E à sociedade, formar juízo a respeito da responsabilidade de cada um(a) do(a)s acusados(as).
A despeito da diversidade dos casos, as delações da Odebrecht confirmarão a existência de um sistema de corrupção político-empresarial que se entranhou nos partidos e no Estado. Mais: mostrarão que esse sistema operou em governos de várias colorações partidárias, nos níveis nacional, estadual e municipal, e em favor de políticos de diversas siglas, embora o PT tenha sido seu principal articulador e beneficiário. A confirmação do ecumenismo do sistema terá duas consequências importantes: jogará uma pá de cal na ideia da seletividade partidária da Lava Jato e porá o PSDB e outros partidos que se opunham ao governo anterior na posição de acusados, e não de acusadores. A reação do PT à Lava Jato oferece insuperável exemplo de como não enfrentar essa situação.
Compartilho a preocupação de quem teme os efeitos desse anunciado terremoto político sobre o atual governo, que mal começa a resgatar o País do poço cavado pelo anterior. Temo também a eventual inviabilização jurídica e/ou política de lideranças que farão falta ao País pela experiência, pelo conhecimento e pela competência inegáveis que têm.
Na política, à diferença da economia, nem sempre a destruição dos incumbentes leva ao progresso – o economista austríaco Joseph Schumpeter cunhou a expressão “destruição criativa” para se referir ao avanço do progresso técnico no capitalismo pela emergência “disruptiva” de novas empresas e novos empreendedores. A substituição de uma geração de líderes políticos por outra, principalmente quando os partidos não cuidaram antecipadamente da necessária renovação de seus quadros, será complicada.
O maior risco, porém, é que, em nome da governabilidade do País e da estabilidade do sistema político, prevaleça novamente alguma forma de autoproteção dos “donos do poder”. A democracia depende, em última instância, de o povo acreditar que eleições, partidos e congressos não são um jogo que serve apenas aos interesses dos que jogam e pagam o jogo. Essa crença está por um fio. Se desabar, será difícil reerguê-la e o cenário estará pronto para demagogos e messiânicos.
Diante desse risco os intelectuais se veem diante de um desafio. Enquanto a corrupção era um mal imputável exclusivamente às oligarquias atrasadas (Collor e seu operador PC Farias, para dar um exemplo), a vida era mais fácil. Quando as investigações da Lava Jato começaram a revelar que o PT havia organizado um esquema de corrupção nunca antes visto na História deste país – pela escala e pelo comando superior centralizado –, os intelectuais petistas, com poucas exceções, divorciaram-se definitivamente da realidade para atacar com fé cega o Ministério Público, o Judiciário, a imprensa, ou seja, instituições centrais da democracia brasileira. Todas seriam culpadas. Menos o seu partido, vítima de uma “conspiração das elites”.
Os intelectuais petistas de maior bom senso evitaram abraçar teses estapafúrdias – como a das supostas ligações dos procuradores da Lava Jato e do juiz Sergio Moro com o governo americano, imaginariamente interessado em apear o PT do poder para roubar do Brasil as riquezas do pré-sal. Preferiram denunciar a “criminalização da política”, como se os procuradores e o juiz estivessem atentando contra a democracia ao investigar crimes cometidos por políticos do PT e partidos aliados. Esqueceram-se de que quem pratica a corrupção, sendo agente político, é que criminaliza a política, e não quem investiga ou pune essa prática com base em provas produzidas dentro do devido processo.
O sentido de missão revelado pelo juiz e pelos procuradores de Curitiba foi transformado em atributo negativo: seriam “missioneiros”, imbuídos de um cristianismo conservador, ligados à Opus Dei, evangélicos, etc. A “esquerda” passou a estigmatizar um grupo de servidores públicos concursados, bem preparados tecnicamente, empenhados em deslindar um sistema de corrupção comandado por partidos governistas e um oligopólio de grandes empreiteiras. Que beleza!
Se o PSDB quiser um lugar ao sol no lado mais luminoso da política brasileira terá de mostrar que nem todos são iguais. Na avaliação política das culpas e responsabilidades o tribunal terá duas instâncias: a opinião pública e o grosso do eleitorado. Na primeira haverá algum espaço para um debate nuançado sobre o caráter mais ou menos sistêmico ou o grau mais ou menos profundo de práticas de corrupção. No segundo, a exemplaridade, o cortar na carne, a coragem de se arriscar com novas lideranças farão toda a diferença, a depender da extensão e profundidade dos danos causados pelas delações de Odebrecht.
No Brasil oscilamos entre a impunidade e a violência, desigualmente distribuídas. A punição de crimes pela Justiça, respeitado o devido processo legal, é uma das maiores conquistas da civilização. Só se redime quem paga por seus erros. Isso vale para os indivíduos e vale também para um país. Não pode haver democracia, não pode haver sociedade decente, fora do império da lei, igual para todos. Doa a quem doer.
* Superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-Usp
fonte: estadao.com.br