Occupy Wall Street

Daniel Rei Coronato: As novas bandeiras do progressismo mundial

O mundo acompanhou atônito aos acontecimentos vindos das urnas nos mais diversos países e contextos durantes os últimos meses. Combinações explosivas de ressentimento coletivo, sensação de ameaça, empobrecimento sistemático de amplas parcelas da população – além de fatores pouco mensuráveis como o aparente mal-estar das sociedades contemporâneas – desembocaram em resultados que contrariaram expectativas e interpretações correntes. Ainda é pouco compreensível a existência de uma interconexão entre esses fenômenos, assim como suas consequências e repercussões.

Para as frações progressistas, no entanto, é tempo de reflexão. Desde que conquistaram o poder em países importantes na América do Sul, Europa e Estados Unidos – com o discurso de transformação encabeçado por Barack Obama –, passaram a perder sistematicamente força de interlocução. Sofreram sérios reveses, acenando para um esgotamento atrelado a sua capacidade limitada de responder aos anseios dos descontentes que procuram mudança. O enredo singular de cada caso desembocou em uma situação de incredulidade generalizada, perdendo apoio de setores historicamente alinhados e não conquistando apoiadores nas fileiras adversárias.

Crises econômicas e a tortuosa marcha da globalização apresentaram cartas com que a social-democracia e a esquerda democrática tiveram dificuldades para lidar. Assumindo uma gestão macroeconômica de perfil mais liberal, internalizando a sua semântica e retórica ancoradas no eixo fiscal, aparentaram agir como agentes do establishment à serviço da minoria endinheirada. Em alguns casos a vitória da esquerda significou a intensificação de políticas recessivas, patrocinando reformas que diminuíam o bem-estar dos trabalhadores. A defesa sistemática da inserção nas cadeias internacionais de produção, em prol do ganho de competitividade, também colaborou para essa percepção, alimentando o discurso nativista e nacionalista.

A gravidade dos temas globais e o vácuo de projetos transformadores, no entanto, impõem que sejam repensados os eixos centrais do que significaria um progressismo global.  Em razão da intensidade das transformações e da metabolização de diversos movimentos sociais, especialmente após a grande crise de 2008, parte dessa agenda já está sendo construída à revelia das organizações partidárias. De maneira ainda dispersa, sinalizam pautas e bandeiras para uma reinserção virtuosa das alas progressistas no debate público, gravitando em torno de três ideias centrais: igualdade, privacidade e Estado.

Igualdade

O conceito de igualdade é amplo, ocupando espaço considerável nas disputas políticas e intelectuais acerca do seu significado. No debate público dos últimos anos esteve especialmente atrelada ao aumento das assimetrias de renda, deterioração das oportunidades de trabalho e estudo nas sociedades de mercado. Mesmo que nunca tenha perdido sua relevância, foi com o movimento Occupy Wall Street e as ações de contestação na zona do euro que voltou ao primeiro plano nos anos recentes. Sob o lema de “Nós somos os 99%”, passaram a denunciar sistematicamente o fato de a minoria dos 1% mais abonados concentrar sozinha uma riqueza desproporcional, beneficiando-se de um sistema tributário e político que intensifica seu poder, garantindo a propagação dessa situação.

A discussão passou a ganhar viés mais programático na esteira de embates intelectuais como entre o francês Thomas Piketty e o grego Yanis Varoufakis, e a emergência de políticos como o senador democrata Bernie Sanders nos Estados Unidos. Em geral, responsabilizaram a “financeirização” e a mudança da geografia na produção industrial, que teriam juntas representado um processo de cisão no modelo de acumulação. O motor de desenvolvimento amparado pelos complexos industriais e suas ramificações foi substituído por economias essencialmente de serviços, alterando a sociabilização e o grau de proteção social que a dinâmica anterior havia permitido para uma parcela importante da população.

As mudanças estruturais patrocinadas pela dobradinha Reagan-Thatcher desenvolveram uma dinâmica própria, ganhando mais força nos anos 1990 e no início da década seguinte. Como consequência, emergiram arranjos tributários mais condescendentes com os afortunados, a diminuição de alíquotas sobre herança e a desregulamentação do setor financeiro, facilitando assim o trânsito internacional de divisas e promovendo as soluções de evasão nos paraísos fiscais. Com essa conjunção de fatores a concentração de riqueza se intensificou.

Em paralelo, o Estado reduziu os aparatos de proteção social, restringindo seu raio de ação. Esse processo aconteceu de maneira diversa no tempo e em cada canto do globo, no entanto, quando o sistema financeiro começou a apresentar seus primeiros sinais de colapso, notou-se uma convergência nessa direção, inclusive nos ambientes de maior igualdade. As reformas apresentadas pelas classes políticas como solução se tornaram imediatamente impopulares porque além de dolorosas, não socializavam as perdas entre as mais diferentes esferas da população.

Nos Estados Unidos a situação foi mais grave, já que o modelo de recuperação impetrado pelo governo Bush salvou a maior parte do sistema financeiro com um plano bilionário de recuperação que não exigia contrapartidas que levassem à superação das causas geradoras daquela situação. O sistema de bônus pagos aos executivos das empresas responsáveis pelo caos econômico foi mantido, gerando consternação em uma massa endividada pelo excesso de liquidez e desempregada, por vezes atolada em financiamentos impagáveis de hipotecas ou créditos educacionais para o custeio do ensino superior.

Para as forças progressistas essa é uma questão central. A luta pela retomada de direitos trabalhistas e estruturação de uma lógica tributária devem vir acompanhadas pela pauta de regularização do financeiro e fiscalização dos paraísos fiscais. Essa não é uma bandeira difusa: em cada país ela se materializou de maneira concreta, afetando os mais diversos estratos sociais. Ela deverá vir acompanhada de um projeto de desenvolvimento que não se restrinja apenas a repartir melhor a renda, atendendo também a reformas que priorizem um modelo social. Nesse contexto, será fundamental repensar o papel dos acordos internacionais de comércio, saindo do binômio atual entre demonizados e aplaudidos sem critério, para projetar cadeias internacionais que promovam o desenvolvimento ao invés de reforçarem distorções ainda mais intensas na divisão internacional do trabalho.

Privacidade

Possivelmente, há alguns anos, a introdução da privacidade entre os temas progressistas produzisse  estranhamento. Historicamente, o sigilo de correspondência e informações pessoais e a regulação dos diversos meios de comunicação integraram uma pauta ligada à montagem dos Estados democráticos, e fundamental para a sua existência. Tal pauta tornou-se um direito garantido, como no caso brasileiro, pela constituição federal. Encampado geralmente por grupos liberais e conservadores, entrou definitivamente no radar por força das transformações tecnológicas e dos escândalos sucessivos envolvendo vigilância sistemática por parte de Estados e empresas.

A existência de aparatos estatais que pretendem controlar, cuidar e espionar a população não é novidade, apresentando versões em praticamente  todos os regimes de governos, incluindo as democracias. As justificativas variaram a depender do contexto em que está inserido, porém, usualmente eles se legitimaram no combate à alguma ameaça – interna, externa ou ambos – que colocaria em risco o meio de vida ou a própria existência do Estado.

Com o desenvolvimento da tecnologia da informação se especulou como esse poder, então potencial, poderia ser usado para criar um sistema quase perfeito de monitoramento, já que a quase totalidade dos processos passaram a depender integralmente de alguma rede computadorizada. Suspeitas de que algo dessa natureza pudesse já estar ocorrendo começaram a ganhar força após os primeiros esforços de contra-inteligência promovidos pelo governo americano para eliminar a possibilidade de um novo 11 de setembro.

As antigas teorias da conspiração se mostraram verdadeiras com as revelações de Edward Snowden. O ex-agente da CIA desnudou um universo assustador de agências estatais e terceirizadas a serviço do governo americano e aliados, atuando com capacidade de acesso a qualquer informação, de qualquer pessoa do mundo, conectada a algum sistema integrado. Chamou também atenção o fato de diversas empresas de tecnologia e informação agirem em cumplicidade com o governo, também se beneficiando desses metadados, sendo capazes de gerar conhecimentos inimagináveis algumas décadas atrás sobre o comportamento do consumidor. Além disso, o padrão exposto por Snowden de vigilância mostrava o uso político desses instrumentos por parte dos Estados Unidos, espionando governos teoricamente amigos e empresas estrangeiras em disputa com suas correspondentes nacionais.

O pesadelo orwelliano assustou até os incrédulos e levantou uma gigantesca discussão sobre os limites desse tipo de ação por parte de empresas e instituições a serviço do governo. Questionamentos envolvendo a jurisdição, a ética e os desdobramentos futuros produziram uma geração inteira de ativistas defensores dos direitos de privacidade. De modo geral afirmam que com a mudança nas tecnologias, o domínio da informação será mais importante do que qualquer estrutura física de poder, representando a nova fronteira não só da guerra como da produção.

A defesa da privacidade e a democratização no controle dessas informações se converteram em uma pauta global de primeira importância, pois permeia a defesa do cidadão contra a possibilidade permanente de abusos autoritários por parte dos Estados, além de restringir o uso das informações pessoais por empresas sem o consentimento expresso ou o acompanhamento da sociedade. Dela se poderá abrir espaço para o debate de temas ainda incipientes que em breve devem monopolizar as atenções, como inteligência artificial, uso de drones para fins militares e outros da mesma dimensão.

Estado

O indomável processo de construção de sistemas de integração, acordos comerciais e organizações supranacionais parecia condicionar a vitória de um sistema internacional liberal. No embate de valores, o império do mercado aparentava ter triunfado sobre as hostes do Estado, convertendo-se no principal agente de ação e transformação. No entanto, a crença geral no esfacelamento do Estado e das fronteiras nacionais parece ter perdido força nesses últimos anos em razão da solução encontrada para os desafios impostos pela conjuntura, com o recrudescimento de medidas isolacionistas e protecionistas.

O desmonte de parte dos aparelhos de bem-estar social na Europa e em menor grau nos Estados Unidos, além das dificuldades encontradas na América Latina para a criação de um sistema minimamente viável socialmente, criaram uma geração de descontentes e desprotegidos. A diminuição das perspectivas dos mais jovens – em alguns países espremidos entre o desemprego e a precarização -, a desregulamentação do mundo do trabalho e a força do mundo informacional pressionam o sistema político por ação transformadora e criação de novos espaços de representação, paradoxalmente ampliando a importância da esfera estatal.

A volta do protagonismo do Estado parece ser também um ponto de concordância para a maioria dos movimentos sociais que entendem que ele ainda seria a única força capaz de dar proteção à sociedade e promover o progresso social. A multiplicação e a consequente pulverização das demandas dos diversos setores da sociedade levaram a uma excessiva fragmentação das pautas, enfraquecendo-as de maneira geral. Atomizadas, presas aos seus lugares de fala, as bandeiras ligadas aos direitos humanos, à ecologia, às minorias e às distintas frações de trabalhadores passaram a ter dificuldades para dar sustentação aos importantes avanços obtidos ao longo do tempo. Seus avanços mais notáveis foram na esfera do Estado, seja sob a forma de conquista de direitos, seja em termos de políticas públicas e desenho organizacional.  Mesmo com diversas outras promessas, entre elas o associativismo típico do terceiro setor, não surgiu nenhuma outra força de organização capaz de substituí-lo em suas funções.

Parece haver certo consenso entre as alas progressistas de que o Estado deve prover educação, saúde e um sistema mais equilibrado de tributação, atuando com medidas anticíclicas em eventuais processos de desestruturação e esfriamento profundo da atividade econômica. No entanto, não parece apenas uma defesa do antigo modelo de bem-estar social ou do desenvolvimentismo experimentado com êxito parcial na América Latina. O que se espera é um Estado capaz de defender a multiplicidade de atores sociais garantindo a eles um ambiente mais igualitário, justo e simétrico sem que as liberdades estejam ameaçadas e a máquina pública fique artificialmente inflacionada.  A maior ou menor intervenção nas atividades econômicas dependerá das características e do contexto em que o Estado está inserido. Mas nenhum Estado poderá se privar de democratizar o modelo decisório levando em consideração a transmutação tecnológica e a gigantesca pauta de demandas hoje existentes (*).

*   - Doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e professor de Relações Internacionais.


Fonte: neai-unesp.org/