O Globo
Ascânio Seleme: O que esta Casa quer
Houve um período em que a vontade popular influenciava as decisões tomadas pelos deputados
Houve uma época na vida política nacional em que a Câmara dos Deputados subordinava-se ao eleitor. Os movimentos das massas, o clamor das ruas, o rufar dos tambores mexiam com posições enraizadas, transformavam "verdades absolutas" e forçavam deputados a votar de acordo com o pleito manifesto pela maioria. Na votação do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o então deputado Ibsen Pinheiro, presidente da Câmara, promulgou o resultado com uma frase emblemática que resumia esse sentimento. “O que o povo quer, esta casa acaba querendo”, disse o deputado.
Muitos outros exemplos comprovam a tese de Ibsen. Inúmeras matérias que contrariavam interesses de governos e de suas bases parlamentares acabaram sendo aprovadas para atender aquele grito rouco que é impossível não se ouvir. O segundo impeachment no Brasil, da ex-presidente Dilma Rousseff, também confirma que é bom não contrariar a vontade do povo. A cassação do odiado Eduardo Cunha, que perdeu a presidência da casa e em seguida o mandato, acabando preso, da mesma forma corrobora a máxima de Ibsen.
Mas, nos dois últimos anos, contrariando a história, os parlamentares aparentemente deram as costas ao clamor popular. O presidente do Brasil que cometeu uma dúzia de crimes de responsabilidade permanece no cargo e, mesmo tendo apenas 37% de apoio popular, não teve na Câmara seu processo de cassação encaminhado. Na noite de segunda-feira, viu-se outro sinal inequívoco de que os senhores deputados e as senhoras deputadas estão se lixando para o que o povo quer ao elegerem o deputado Arthur Lira para a presidência da Câmara. O que importa é o que esta casa quer.
Talvez a explosão das mídias sociais tenha alguma parte nisso, já que os parlamentares falam apenas com os que os apoiam, com puxa-sacos, com sua curriola nos seus estados. Não ouvem o macro, o maior, o todo. O fato é que a Câmara elegeu Lira, candidato apoiado pelo presidente Bolsonaro, que abriu o cofres em favor do deputado condenado em duas instâncias por peculato e lavagem de dinheiro e denunciado por outros crimes, inclusive violência doméstica.
Sua posse lembrou a de Eduardo Cunha, com a gritaria entusiasmada do centrão e do baixo clero. Houve até foguetório na Praça dos Três Poderes ao final da sessão. Em frente ao Congresso, alguns dos mais fiéis seguidores de Bolsonaro rezavam na tarde de ontem pela eleição de Lira.
Nos salões da Câmara, os eleitores do deputado pareciam adestrados, em grande parte. Alguns foram instados a gravar o registro do seu voto sob pena de não levar um prometido “agrado” do Palácio do Planalto, na forma de dinheiro ou cargo público. Lembraram eleitores dos coronéis do passado não muito remoto dos rincões brasileiros. Votaram com o cabresto no focinho, sendo encaminhados na posição que Lira e Bolsonaro apontaram.
A Câmara tem agora no comando uma réplica mais elaborada de Jair Bolsonaro. O primeiro ato do novo presidente da Câmara, excluindo unilateralmente seus adversários da mesa diretora, mostra o caráter vingativo, revanchista e intolerante do deputado. Lira, que se elegeu com as verbas e os cargos do Executivo, pode agora querer dominar o próprio presidente. O primeiro gesto do eleito cria um problema para Bolsonaro, que sonhava com uma Câmara mais pacificada sem Rodrigo Maia. O que Lira fez foi implodir de saída qualquer apaziguamento.
A Casa, que não quer mais o que o povo quer, sob Lira pode também não querer o que o presidente quer. Bolsonaro vai ter que alimentar sem parar a bocarra gigante do deputado que já mostrou que não tolera negativas e não aceita perdas de prazo. O capitão que se cuide, o deputado é que carrega a chave que pode abrir um dos mais de 60 pedidos de impeachment que repousam na mesa que era de Rodrigo Maia.
Merval Pereira: Antilavajatismo
Entre as incoerências explicitadas nos acordos para a eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado não está o interesse pessoal dos parlamentares no fim da Operação Lava-Jato. Ao contrário, o antilavajatismo une a maioria deles, o que facilitou o presidente Bolsonaro ter apoio até do PT na eleição do Senado.
Ao apoiarem a candidatura de Rodrigo Pacheco, os petistas alegaram que não poderiam votar na candidata senadora Simone Tebet, uma clara apoiadora do combate à corrupção e da Lava-Jato, que também, ou principalmente por isso, foi abandonada por seu partido, o MDB, e até mesmo pelo Podemos, que sempre anunciou que gostaria de ter o ex-ministro Sérgio Moro entre seus filiados para lançá-lo candidato à presidência da República. O apoio formal do Podemos foi para Tebet, mas não a maioria de seus votos.
Na Câmara, foi mais fácil a esquerda fechar acordo com a chapa de Baleia Rossi, pois nenhum dos dois candidatos tem simpatias pela Lava-Jato. Não foi preciso rasgar a fantasia. Desde que Bolsonaro partiu para a confrontação com Moro, surgiu um campo enorme de interesses comuns entre os partidos e o Palácio do Planalto.
A posição do DEM, por exemplo, que acabou rachado pela decisão de seu presidente ACM Neto de liberar a bancada para votar em Arthur Lira, provocou efeitos colaterais até mesmo nas prováveis alianças para a disputa presidencial ano que vem. ACM Neto, juntamente com o presidente da Câmara Rodrigo Maia, tinha encontros regulares com o apresentador Luciano Huck e seu grupo político liderado pelo ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung.
Cozinhavam em fogo brando a candidatura de Huck à presidência, que deveria se filiar ao Cidadania, presidido por Roberto Freire, mas ter o DEM como principal partido de sua coligação eleitoral. Com a aproximação do DEM com o governo federal, a possível candidatura de Huck já não é provável, pois o PSDB, que seria outro grande partido a apoiá-lo, tem o governador João Dória como candidato natural.
Maia, que pretende deixar o DEM, tem sido especulado como futuro tucano, e foi rejeitado pelo Cidadania. Uma união do DEM, PSDB e MDB para lançar candidatura única parece descartada no momento, pois dois deles estão se aproximando do governo Bolsonaro e voltando ao berço de onde saíram, o Centrão.
O PSDB tem uma dissidência interna importante representada pelo ex-governador Aécio Neves. Ele conseguiu uma maioria para abandonar a candidatura de Baleia Rossi e aderir formalmente a Arthur Lira, o que só não se concretizou pela interferência do governador João Doria e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Se a oficialização da adesão não aconteceu, provavelmente a maioria dos votos tucanos foi para o candidato do Palácio do Planalto no escurinho da urna de votação.
A possibilidade de construção de novas alianças, sempre à disposição de quem está com os poderes presidenciais na mão, como ressaltam apoiadores do presidente Bolsonaro, é um fato do presidencialismo de coalizão. As eleições de ontem escancararam quão gelatinosa é a ideologia partidária brasileira, e como as posições são trocadas a partir de interesses pessoais.
O a essa altura ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia já teve o sonho de fazer um novo partido de centro-direita, quando o governo Bolsonaro saíra das urnas consagrado, e parecia que o pêndulo havia mudado de direção por período duradouro. Não via viabilidade em um acordo de centro-esquerda.
Mas barrou, por exemplo, a participação do ex-juiz Sérgio Moro das negociações políticas, depois que ele fora chamado para conversas com o governador João Dória e com o presidenciável Luciano Huck. A ponto de ter obrigado Huck a declarar que a turma dele era a de Maia e ACM Neto, alijando Moro. Hoje, Maia está afastado da centro-direita, e ficou mais ligado à esquerda, devido à sua posição de combate direto ao governo Bolsonaro.
Bernardo Mello Franco: Bolsonaro compra seguro contra impeachment e CPI
A vitória de Arthur Lira sela o enlace entre Jair Bolsonaro e o Centrão. É um casamento de interesses, ditado pela gula dos parlamentares e pelo instinto de sobrevivência do governo.
Na campanha de 2018, o capitão definiu o grupo como “a nata do que há de pior” no Brasil. Ao subir a rampa, ele continuou a tratar a turma com desdém.
Partidos como o PP de Lira e o PTB de Roberto Jefferson, acostumados a abocanhar cargos em todas as gestões anteriores, viram-se preteridos na partilha de ministérios e estatais.
Foi uma surpresa amarga para as duas legendas, que haviam oferecido abrigo ao então deputado Bolsonaro por mais de uma década.
O ensaio de independência durou enquanto o presidente se julgava forte o suficiente para governar sem dividir poder com o Congresso. Essa situação mudou com a queda de popularidade e com o cerco judicial aos filhos do capitão.
Fragilizado, Bolsonaro se rendeu ao Centrão e decidiu abrir os cofres para comprar proteção parlamentar. O investimento em Lira representa a contratação de um seguro contra o impeachment, cuja apólice terá que ser renovada periodicamente até 2022.
O Planalto tem muitos motivos para festejar. No médio prazo, o presidente tende a afastar a ameaça de um processo de cassação.
Apesar de seus múltiplos e repetidos crimes de responsabilidade, Bolsonaro deverá continuar na cadeira até o fim do mandato. Mesmo que a sua permanência signifique o aumento de mortes que poderiam ser evitadas se o país tivesse um governante interessado em conter a pandemia.
Lira também deverá bloquear qualquer tentativa de instalação de CPI para apurar a omissão do Planalto no combate ao coronavírus.
Alinhada ao bolsonarismo, a Câmara tende a lavar as mãos diante da crise humanitária em estados como o Amazonas, onde pacientes continuam a morrer sufocados pela falta de oxigênio.
O desperdício de dinheiro público na produção de cloroquina, a negligência na negociação de vacinas e os desmandos do ministro Eduardo Pazuello também deverão continuar impunes.
De brinde, Bolsonaro foi dormir com a notícia da derrota acachapante de Rodrigo Maia, cujo candidato, Baleia Rossi, recebeu apenas 145 votos.
Rifado por seu próprio partido, que o abandonou a menos de 24 horas da votação de ontem, o agora ex-presidente da Câmara arrisca encerrar o mandato como um zumbi.
A julgar pelas expectativas do governo, a vitória de Lira não se limitará a blindar Bolsonaro. O capitão também espera destravar pautas reacionárias como a liberação das armas e o desmonte da legislação ambiental.
No entanto, ele poderá ser obrigado a pagar ainda mais para ver. Discípulo de Eduardo Cunha, Lira sabe como inflacionar o preço de favores e votações. Agora que ele assumiu o volante, o taxímetro do apoio ao governo passará a correr na bandeira dois.
Vera Magalhães: Pior líder mundial? Vamos dar a ele o Congresso!
Jair Bolsonaro é considerado o pior líder mundial no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Sua popularidade está em queda em qualquer pesquisa de opinião que se olhe, em praticamente todos os estratos e regiões. Não existe vacina disponível para a grande maioria da população brasileira. A economia patina após um soluço de recuperação à custa de auxílio emergencial e a desigualdade, depois do mesmo soluço, é maior que no início da pandemia.
Qual a resposta dos senhores parlamentares a esse estado de coisas? Simples: dar a este presidente o comando das duas Casas do Congresso. A que custo? As cifras variam bastante, mas sempre na casa dos bilhões de reais, vindos do Orçamento federal já estourado e de mais sacrifício a gastos que deveriam ser prioritários.
Parece impossível de entender, e é mesmo. A política vai mostrando que não tem nenhum compromisso com as preocupações reais do Brasil, as urgências sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, e que viu na fragilidade de Bolsonaro a chance de lhe arrancar até a cueca na forma de fisiologismo explícito para afastar o fantasma do impeachment, a única coisa que aflige de fato o capitão.
Não importa que, para isso, os partidos implodam suas próprias estruturas e comprometam a própria estratégia para 2022. Como em 2018, as principais siglas mostram incapacidade de projetar as consequências de médio e longo prazo de suas ações, e ignoram a capacidade de Bolsonaro de manter uma base fiel, ainda que minoritária, para construir sua candidatura em cima dos erros dos adversários (além de outros expedientes conhecidos, como fake news, discurso de ódio, negação da política e, agora, rios de dinheiro público).
DEM, PSDB, PSD e MDB adiam ou comprometem em definitivo qualquer possibilidade de construírem uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas não levam em conta nem o básico: se a economia continuar derretendo e a pandemia avançando, a popularidade de Bolsonaro vai cair ainda mais.
E é por isso, pela vida real, que se impõe, que talvez a vitória esperada do presidente nas eleições das Mesas não se configure um respiro longo ou uma melhora efetiva da governabilidade.
Todas as muitas e caras promessas feitas para angariar votos para Arthur Lira na Câmara começarão a ser cobradas no primeiro dia, com mais virulência quanto maior for o desgaste de Bolsonaro nas pesquisas.
O Orçamento em frangalhos não comporta todos os ministérios e emendas prometidos, e a gritaria não vai demorar, porque o Centrão não tem pruridos de fazer a cobrança em alto e bom som e na forma de votações.
Não será simples também a Lira fazer andar a pauta regressiva que Bolsonaro espera ver transformada em prioridade legislativa: a oposição, depois de um primeiro ano dominado pela discussão da reforma da Previdência e um segundo em que a pandemia ditou o apoio a projetos do governo, agora será ruidosa e atuante, mesmo que saia derrotada hoje.
A discussão sobre a volta do auxílio emergencial vai estressar Paulo Guedes e sua equipe. O governo reclamou muito de Rodrigo Maia, mas vai sentir falta do compromisso que ele sempre teve com o ajuste fiscal diante do comando do rei do Centrão, para quem o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento das promessas de campanha.
E o impeachment? Os 60 pedidos que Maia deixa na gaveta deverão ficar lá como um alerta a Bolsonaro de que, se não ajoelhar no milho e entregar tudo o que prometeu, pode ser colocado na roda pelo hoje aliado.
Neste caso, aliás, não há que se esperar fidelidade: nem o presidente hesitará em culpar o Centrão pela persistência do fracasso de seu governo, nem o Centrão vai titubear se tiver de rifar o presidente caso sua popularidade afunde de vez no pântano da pandemia. É como a parábola do escorpião e do sapo, só que a diferença é que os dois companheiros de travessia têm ferrão.
Míriam Leitão: Duas Casas de costas para o país
O Congresso virou de costas para a sociedade nesta eleição. Enquanto o país está sendo devastado pela pandemia, atingido pela desastrosa gestão da crise, açoitado pelas ofensas do presidente Bolsonaro, a Câmara e o Senado, como se estivessem em outro planeta, negociavam com olhos em outras questões. Houve ecos, alguns poucos, do que realmente aflige o Brasil, mas o que pavimentou o caminho dos candidatos governistas foram verbas e cargos. Os eventos da sucessão no Congresso terão reflexos na política e na economia.
Na política, houve uma mudança de curso importante, diz o cientista político Jairo Nicolau. O governo Bolsonaro aderiu nesta eleição à construção de uma maioria com base em partidos. Isso significa uma reversão daquela ideia inicial, fracassada por inviável, de ignorar os partidos e fazer acordos com as bancadas. É um equívoco avaliar que houve agora a adesão de Jair Bolsonaro ao centrão, ao fisiologismo e à velha política. Ninguém adere ao que sempre foi. Esse é o seu grupo. Bolsonaro é o que ele definia como “velha política”. Pensou que poderia costurar alianças diretamente com as bancadas temáticas. Não deu certo, porque não daria mesmo.
Bolsonaro fez explícita intervenção no Congresso para, desta forma, afastar o fantasma do impeachment. No Senado, conseguiu um feito impressionante. O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi eleito com convincente maioria, juntando votos dos seguidores de Bolsonaro e dos partidos de esquerda. Pacheco conseguiu também tirar do maior partido, o MDB, a presidência da Casa. E o fez com apoios do próprio MDB, que abandonou sua candidata Simone Tebet. Pacheco falou em pacificação, sendo o candidato de um presidente que fez do mote da campanha o gesto de armas apontadas. E elas têm atirado.
A equipe econômica via o dia de ontem como uma vitória que permitirá que ela siga com a sua pauta de reformas. O problema é que são reformas de Itararé. As propostas feitas são fracas e não terão impacto fiscal importante. E a tendência é agora de aumento de gastos, por vários motivos.
Uma das fontes de despesa serão os compromissos assumidos com os deputados e senadores que frequentaram a sala do ministro Luiz Eduardo Ramos, onde foi instalado um balcão de negócios que custarão bilhões de reais. Havia outros balcões em outros ministérios. Em alguns deles se ofereceu recursos não rastreáveis porque extraorçamentários. Essa farra deu ao governo a vitória e uma conta para pagar.
O Congresso vai também aprovar uma nova etapa do auxílio emergencial. Os quatro candidatos que disputaram ontem falaram isso nos seus discursos. Como a pandemia não acabou, e até piorou, ao contrário do que a equipe econômica acreditava que estaria acontecendo neste momento, será necessário mesmo. Já deveria ter sido proposto pela própria equipe.
Não haverá contrapartidas suficientemente fortes para esse novo gasto. A PEC emergencial tem vários gatilhos para serem disparados em momento em que for preciso conter gastos. Mas o governo desidratou a proposta que havia sido incialmente formulada pelo deputado Pedro Paulo, como lembrou ontem em conversa com o blog o economista Sérgio Vale. Um dos pontos é o não aumento dos benefícios vinculados ao salário mínimo, porém isso só poderá ser acionado no ano que vem, porque neste já foram corrigidos.
Das outras reformas, de que o mercado financeiro e a equipe econômica tanto falam, a administrativa foi esvaziada pelo presidente antes de ir para o Congresso, a tributária foi ignorada pela própria equipe que mandou apenas a fusão de PIS e Cofins. A privatização da Eletrobras, o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, diz que é contra.
É da natureza do centrão ser governista. Foi nos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer. Mas seu apoio é negociado a cada projeto e seu preço costuma ser alto. Curta e baixa é a sua lealdade. No racha do DEM, uma parte voltou à sua natureza de centro fisiológico, abandonando a ideia de ser centro programático entre polos. O PSDB, com raras exceções, ficou no muro onde sempre esteve.
É da natureza do centrão ampliar gastos. Portanto, a vitória de ontem de Bolsonaro foi mais uma derrota para a equipe econômica. O pior, contudo, foi essa dissonância entre o sofrimento do país e os acordos opacos feitos pelo Congresso.
O Globo: 'O governo não vai aprovar tudo o que quiser’, diz o sociólogo Carlos Melo
Para professor do Insper, efeito da pandemia na popularidade de Jair Bolsonaro testará fidelidade dos deputados do centrão ao Palácio do Planalto
Eduardo Salgado / O Globo
SÃO PAULO — Para o professor sênior de Sociologia e Política do Insper Carlos Melo, a possível vitória do deputado Arthur Lira (PP-AL) na disputa pela presidência da Câmara deve sacramentar uma aliança cujo principal objetivo é a “blindagem para evitar um eventual processo de impeachment”. Leia a entrevista com o sociólogo:
Qual é o tamanho do favoritismo de Arthur Lira, apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, em relação a Baleia Rossi (MDB-SP), do grupo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ)?
As promessas do governo de liberação de recursos e reforma ministerial indicam uma vitória de Lira. Mas é claro que existem movimentações de última hora. Como é uma votação secreta, pode haver traições.
Na campanha de 2018, Bolsonaro prometia não fazer o que ele chamava de “velha política”. O apoio do presidente a Arthur Lira, expoente do centrão, configura uma quebra de promessa de campanha?
Certamente. Bolsonaro está mordendo a língua. É um estelionato eleitoral. O apoio mostra a inconsistência daquele discurso demagógico. E, em virtude disso, a aliança com o centrão aumenta o desalento em relação aos políticos e ao sistema político. O fisiologismo, desprovido de programa, não tem freio. Quando ouço promessas de acesso a recursos e ministérios, pergunto: a troco de quê? Em troca de blindagem para evitar um eventual processo de impeachment e para proteger os filhos. No máximo, um projeto de poder exclusivamente eleitoral. Não se discute como superar essa crise econômica, social, política e sanitária.
A agenda do governo, inclusive a ideológica, ganha fôlego no caso da vitória de Lira?
O governo não vai aprovar tudo o que quiser. Quando a prática é fisiológica, cada nova votação exige nova negociação e concessão de recursos. Não há fidelidade. Há interesses cruzados. O centrão não devota essa fidelidade a ninguém. Cada parlamentar do centrão é fiel a si mesmo. O desgaste popular do presidente e do sistema tende a continuar. O ex-presidente Tancredo Neves tinha uma frase ótima: “O político vai com o outro até a sepultura, mas não se joga”.
Como essa união entre o governo e o grupo que apoia Lira deve impactar a base de apoio do presidente?
Vamos considerar que o apoio a Bolsonaro seja de um terço do eleitorado. Dentro desse grupo, há uma parcela de extrema direita, que sempre existiu no Brasil. Algo em torno de 15% do eleitorado, talvez. Esse grupo Bolsonaro não perde. Outro setor que ainda está com o presidente são os ultraliberais, que se frustram e se descolam à medida que as respostas para a economia não vêm. Há também um grupo que apoia o presidente por causa do auxílio emergencial, cuja tendência natural é diminuir. Por fim, há os antipetistas. A corrosão do apoio pode, sim, chegar num ponto em que acabe a blindagem popular. Isso aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff.
Quais serão os fatores de definirão a longevidade do casamento entre o governo e o centrão?
Enquanto houver uma expectativa de um projeto de poder, o centrão estará com o presidente. O objetivo é ter acesso continuado a recursos públicos. A meta é a reeleição de Bolsonaro e de cada parlamentar do grupo. A eventual eleição de Lira sela o abraço institucional de Bolsonaro no centrão. Agora, se a popularidade do presidente cair e a possibilidade de poder se dissipar, o centrão vai abandonar o navio. Se o país quiser sair dessa crise, vai precisar de uma agenda que exige três quintos dos parlamentares nas duas casas do Congresso, além do apoio da sociedade. Essa maioria é necessária para fazer reformas, criar impostos e reeditar o auxílio emergencial, o que me parece inevitável. Conseguir 257 deputados para eleger o Lira é uma coisa. Chegar a 308 votos na Câmara e 49 no Senado para mudar a Constituição é completamente diferente.
O senhor acredita no apoio voluntário dessa base que sustenta a candidatura de Arthur Lira às reformas?
O que interessa para eles é a dependência de Bolsonaro. Temos um presidente corporativista e sem habilidade política, que amaldiçoa a política, com uma base que demoniza o centrão. Se, lá na frente, Bolsonaro recuperar o apoio popular e plenas condições de governabilidade, quem garante que ele não abandonará seus novos amigos?
Em que medida o sucesso no enfrentamento da pandemia afeta a relação entre o presidente o Congresso?
A pandemia está sem controle. A chance de estancá-la a médio prazo é pequena. O desemprego e o desalento estão elevados e, com o fim do auxílio emergencial, devem aumentar. A pressão por medidas imediatas será muito forte. Já no Congresso, o processo de negociação do fisiologismo é lento porque os recursos são escassos. Uma das possibilidades é que o presidente venha a ter novos abalos na popularidade. Quando o apoio popular cai, a governabilidade mingua. Um influencia o outro. Quanto menos apoio popular Bolsonaro tiver, maior o poder de barganha do centrão. Isso se mantém até que exista oxigênio para combustão. Se acabar o oxigênio, é possível que um processo de impeachment seja votado ou que o Centrão decida não entrar no barco da reeleição de Bolsonaro.
E se Baleia reverter as previsões e ganhar a disputa na Câmara?
Com o Baleia, há um elevado grau de fisiologismo também, mas não da mesma ordem do de Lira. Não tenho ilusão. Baleia não é um estadista. Também não creio que iria facilmente para o impeachment. Mas é verdade que Maia construiu uma agenda, e Baleia poderia ser sua continuidade. Uma agenda de defesa da autonomia do Congresso e da permanência de um núcleo reformista. Maia surpreendeu no período em que esteve no comando da Câmara, salvando Bolsonaro do desastre que o próprio presidente construía. A reforma da Previdência era necessária e foi feita por Maia, a despeito de Bolsonaro. O auxílio emergencial também saiu do Congresso. Com Baleia, a agenda de costumes do presidente não teria chance e haveria algum ambiente para reformas.
Fernando Gabeira: A política que mata
Há muito tempo que gostaria de escrever sobre outra coisa: a dimensão do realismo fantástico num país em que o presidente acha que vacina nos transforma em jacaré, oferece hidroxicloroquina para a ema do palácio e manda os jornalistas enfiarem uma lata de leite condensado no rabo.
Mas a urgência do drama proíbe digressão. Não absorvemos bem o que aconteceu em Manaus. Não quero dizer apenas que era necessário avaliar os estoques de oxigênio, planejar, em termos estratégicos, a produção e o consumo desse elemento vital.
Pazuello foi a Manaus defender a cloroquina e não percebeu a gravidade da falta de oxigênio. Quando percebeu a gravidade da falta de oxigênio, tarde demais, não percebeu outro fato decisivo: a presença de uma nova variante do coronavírus.
Desde quando os japoneses sequenciaram o mapa dessa variante em turistas que chegaram da Amazônia, era preciso acionar o alarme.
A variante brasileira tem características, ao que parece, semelhantes às mutações encontradas na Inglaterra e na África do Sul.
Todos se adaptaram de tal forma que podem se propagar com mais facilidade. Boris Johnson imediatamente decretou um lockdown para conter a nova onda que estava a caminho.
No Brasil, confirmada a existência da variante, não houve um debate nacional sobre o que fazer diante desse novo perigo. Na verdade, a variante brasileira é mais destacada nos jornais estrangeiros do que nos nossos.
Parece que, no Brasil de Bolsonaro, adotamos aquele velho lema: desgraça pouca é bobagem. Pazuello decidiu transferir os doentes de Manaus sem cuidados especiais de segurança. O aeroporto de Manaus durante algum tempo foi muito usado pelas UTIs aéreas que saíam do estado com os doentes mais ricos.
Somente Roraima e Pará, dois estados limítrofes, tentaram erguer uma tímida barreira sanitária. A variante já apareceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, sem contar seus voos mais longos: Estados Unidos e Alemanha.
Os voos do Brasil para Portugal foram suspensos. Biden manteve as restrições à entrada de brasileiros.
Muitos já notaram que Pazuello errou ao receitar hidroxicloroquina. Está sendo questionado por isso. Errou ao ignorar o avanço da crise de oxigênio, algo que não acontece de um momento para outro.
Mas não estamos cobrando do governo um projeto para conter a variante amazônica no norte do país. Na verdade, nem se toca no assunto, como se o vírus mutante fosse brasileiro e já tivesse o direito de circular livremente pelo nosso território.
Muito menos nos espantamos com o fato de os japoneses terem sequenciado e anunciado a variante. Na Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, já era conhecida. Mas a verdade é que rastreamos pouco, sequenciamos pouco, por falta de recursos.
O negacionismo da política de Bolsonaro não se limita a tiradas verbais. Ele tem uma tosca base teórica. Prefere gastar com remédios a gastar com vacina e não se preocupa com testes. Milhares deles foram abandonados num galpão de São Paulo. O que adianta conhecer e monitorar? O que adianta sequenciar mutações de vírus?
Pelo que li, o governo já sabe que uma nova onda virá, dobrando o número de mortos. Diz que vai correr atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde demais.
Quando Bolsonaro pagará por isso? Quem quiser pesquisar desde o início as frases, decisões, atitudes, omissões vai recolher um acervo, mais amplo ainda do que o enviado ao Tribunal Internacional.
Quando vejo Pazuello respondendo ao TCU pela compra da cloroquina, à PF pela omissão em Manaus, a sensação que tenho é de que tudo é um único e indivisivel processo: a história da negação e as mortes que ela produz diariamente no Brasil.E ele é apenas o homem que obedece.
O Globo: Aliados de Bolsonaro, Lira e Pacheco chegam com vantagem para a eleição no Congresso
Após a saída do DEM do bloco de Baleia Rossi, ampliou-se a dianteira do candidato do PP na Câmara
Bruno Góes e Julia Lindner, O Globo
BRASÍLIA — Com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) chegam com amplo favoritismo para a eleição, hoje, que definirá os novos presidentes de Câmara e Senado. Na noite de ontem, a Executiva Nacional do DEM, partido do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), anunciou a ruptura com o bloco de Baleia Rossi (MDB-SP) na Casa. Maia é o principal fiador da candidatura do emedebista.
Leia: Como a nova cúpula do Congresso vai influenciar governo e política
Com a mudança, ampliou-se a dianteira de Lira na composição partidária. Seu bloco reúne 11 siglas e 255 deputados. Já o de Baleia tem 10 legendas, totalizando 209 parlamentares. Os blocos são importantes porque balizam a divisão dos demais cargos na Mesa Diretora. Mas o voto é secreto, e os deputados não são obrigados a seguir a orientação partidária.A Flourish hierarchy chart
O líder do DEM, Efraim Filho (PB), afirmou que ele e o presidente da sigla, ACM Neto, fizeram uma “avaliação de cenário” e concluíram que a independência seria o melhor encaminhamento. Maia lamentou a decisão.
Perfil: Conheça os principais candidatos da Câmara e do Senado
— Prevaleceu a posição histórica de um partido de direita. Trabalhamos pra trazê-lo (para o) caminho de centro, mas a natureza de direita prevaleceu — reagiu Maia, que negou reflexo na candidatura de Baleia por considerar os votos “cristalizados”.
Lira e seu grupo, porém, trabalham ainda para trazer de volta o Solidariedade e estimulam dissidências no oposicionista PSB. O candidato do PP teve durante a campanha apoio efetivo do governo, com entrega e promessa de cargos e recursos. No campo governista, há uma força-tarefa para tentar decidir a eleição no primeiro turno.
Aposta no segundo turno
Aliados de Baleia reconhecem a situação como delicada, mas apostam que há chance de vitória, caso a eleição seja levada para o segundo turno. Em posição fragilizada, o candidato do MDB tentava recuperar o apoio do PSL, o que poderia lhe dar de volta o maior bloco.
Leia: Saiba como é a eleição para presidente da Câmara e do Senado
Baleia almoçou ontem com integrantes de oposição e recebeu parte da bancada feminina. Já Lira conversou com parlamentares de PL e Podemos, recebeu deputadas que o apoiam, e tinha jantar marcado com o governador do Rio, Cláudio Castro (PSC), e o presidente do PSD, Gilberto Kassab.
Os dois candidatos concederam também entrevistas à Globonews. Baleia afirmou não ser “de oposição", mas disse que não “fugirá” à responsabilidade de analisar pedidos de impeachment.
— É prerrogativa do presidente da Câmara a análise (do impeachment). Eu não fugirei às minhas responsabilidades de analisar. A análise será feita com todo o critério, à luz da Constituição — afirmou.
Lira, por sua vez, afirmou que é a pressão social que decide se há ou não a abertura.
— O impeachment é um processo político. Nenhum presidente pauta um impeachment, um impeachment pauta um presidente. Se tivermos inflação de 200%, protestos nas ruas, caos social, isso vem naturalmente — disse.
Senado: Apoio do PT
Rodrigo Pacheco recebeu uma declaração pública de “simpatia” de Bolsonaro e teve integrantes do governo articulando em seu favor, mas recebeu também o suporte da oposição. Sua liderança ficou tão folgada em relação a Simone Tebet (MDB-MS) que o partido dela decidiu na semana passada liberar a bancada para negociar cargos na Mesa Diretora.
Encabeçada pelo atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a estratégia de campanha de Pacheco foi se antecipar aos movimentos dos adversários, tendo conseguido apoio do PSD e PT antes mesmo dos emedebistas decidirem seu candidato. Após Simone entrar na disputa, partidos que eram contados como aliados dela racharam, como Podemos e PSDB.
Com o embarque do MDB na campanha, mesmo que sem apoio oficial, Pacheco também passou os últimos dias buscando uma forma de acomodar a legenda na Mesa. O principal entrave é o PSD quer a mesma vaga desejada pelo MDB, a vice.
Sem respaldo nem em seu partido, Simone passou a direcionar a campanha para fora do Senado, em encontros com empresários e figuras políticas de fora da Casa, como Marta Suplicy.
Ontem, os dois mantiveram a postura da campanha. Pacheco esteve em um almoço com outros 30 parlamentares promovido pelo senador Weverton Rocha (MA), líder do oposicionista PDT. Simone, por sua vez, passou o tempo com a família, mais reclusa, e conversou com o ex-senador Pedro Simon (RS) por telefone.
Elio Gaspari: A pajelança das va$$inas
Descobriu-se que eventuais compradores não queriam entrar no projeto
Çábios do Planalto e libélulas da plutocracia jogaram o andar de cima num dos maiores vexames dos últimos tempos. Do nada, na semana que começou no dia 18, apareceu a ideia de juntar pelo menos 12 grandes empresas brasileiras para comprar 33 milhões de vacinas Oxford/AstraZeneca. Metade dos imunizantes iriam para o SUS e a outra metade serviria para vacinar funcionários das empresas e seus parentes.
Deu-se um fenômeno raro na história do capitalismo. Em poucos dias descobriu-se que eventuais compradores não queriam entrar no projeto e que o eventual vendedor também não estava oferecendo a mercadoria.
Durante a semana o assunto foi discutido com o presidente Jair Bolsonaro, e o governo avalizou a operação na sexta-feira (22), com uma carta enviada ao fundo BlackRock, acionista da AstraZeneca.
Na segunda-feira (25), a repórter Julia Chaib mostrou a girafa, informando, desde logo, que pelo menos seis das empresas listadas já haviam se dissociado da iniciativa. Se a Ambev, a Vale, o Itaú, o Santander, a JBS e a Vivo não queriam entrar no negócio, algo havia esquisito nele. Nos dias seguintes, 9 das 12 empresas listadas haviam saltado.
As empresas saltaram por diversos motivos. O preço de US$ 23,79, quatro vezes superior aos US$ 5,25 do mercado, não fazia sentido, nem era explicado. Também não se conhecia a engenharia do negócio. Além dessas questões, havia também o risco da associação das marcas de grandes empresas a uma operação fura-fila.
A proposta viria do fundo BlackRock, a quem foi dirigida a carta do governo. O presidente-executivo da empresa no Brasil, Carlos Takahashi, detonou a mentira para os repórteres Vera Brandimarte e Francisco Goes: “Isso é ficção, se estão usando o nome da BlackRock, é fraude. (...) Nunca tivemos nada a ver com isso e não conhecemos essas empresas e essas pessoas que estão usando o nome da BlackRock. (...) Estes rumores são completamente falsos. Autoridades em todo o mundo já alertaram para esquemas relacionados com a suposta comercialização de vacinas, e é importante que as empresas e os governos se mantenham vigilantes”.
O vexame foi produzido pela opção preferencial de um governo disfuncional, que vai da marquetagem à fantasia e dela às fake news sem qualquer constrangimento.
FALA O SANITARISTA GUEDES
Na terça-feira (26), quando já se esfumaçara o consórcio de empresas que enfeitavam a girafa das vacinas privatizadas, Bolsonaro e seu ministro da Economia discutiram a ideia numa palestra para convidados do Credit Suisse. Por que ambos foram discutir uma crise sanitária num banco, só eles sabem. No evento, Paulo Guedes foi matemático: “Para cada funcionário vacinado a empresa tem que entregar uma vacina para o SUS. Não é fura-fila. É uma volta segura ao trabalho. E quem está desempregado, como fica? Vai pegar as doses que forem para o SUS. É evidente que isso é muito bom”, explicou Paulo Guedes.
Melhor que isso só a notícia dada por Guedes no dia 4 de abril, quando só haviam morrido 86 pessoas. Ele anunciou que um amigo inglês lhe oferecia a remessa de 40 milhões de testes por mês. Cadê?
Guedes sustentou que era “evidente” a virtude de uma partilha segundo a qual as empresas do consórcio ficariam com 50% das vacinas. Não era evidente, pois, na quinta-feira (28), uma tentativa de ressuscitar a ideia trabalhava com outro modelo, no qual o SUS ficaria com dois terços das vacinas, indo o terço restante para as empresas. Se um papeleiro de um banco onde Guedes trabalhou perder, em 48 horas, 16% do ativo que negocia, vai para a rua.
A ideia de privatizar parte das vacinas é coisa que ainda não apareceu em outro país. Foi aparecer logo em Pindorama, cujo governo está mal avaliado internacionalmente pela sua conduta diante da pandemia.
Para efeito de raciocínio, admita-se que a ideia deva ser discutida. Isso pode ser feito de forma clara e competente, longe do escurinho dos palácios. As dúvidas que levaram grandes empresas a fugir do modelo que foi posto em circulação ainda não foram respondidas. Por que uma vacina de US$ 5,25 será comprada por US$ 23,79?
O SANITARISMO DA MARQUETAGEM
A ideia do consórcio poderia ter saído de uma equipe de burocratas qualificados, advogados competentes e, com algum luxo, pelo menos um sanitarista, mas na sua primeira versão, apareceram no lance as digitais de diretores das indústrias Gerdau, o onipresente Paulo Skaf, presidente da Fiesp.
Depois da debandada, o programa ganhou uma marca de fantasia (“Coalizão da Indústria”) e uma nova lista passou a circular. Teria até 60 adesões. Fábio Spina, da Gerdau, explica: “A intenção é gerar volumes adicionais de vacinas que, de outra forma, não estariam disponíveis para o Brasil”.
A metalúrgica se mete em política desde 1974, quando, corajosamente, o patriarca Jorge Gerdau ajudou a campanha ao Senado do oposicionista Paulo Brossard e encrencou-se com o Serviço Nacional de Informações. Naquela ocasião, Gerdau explicou-se ao SNI. Mostrou que sua ajuda ao candidato do governo havia sido muito maior e procurou assegurar “a confiança que sempre mereceu da presidência”. Não a tinha, mas essa é outra história.
Na terça-feira (26), depois de passar pelo Palácio do Planalto, Paulo Skaf disse que não participou da primeira operação, mas está pronto para ajudar “naquilo que for necessário”.
Santas palavras. Desde o início da pandemia, inúmeras empresas estão ajudando. O banco BTG, por exemplo, socorreu o Hospital das Clínicas de São Paulo, e uma franquia da Dominó mandou cerca de 30 pizzas para um hospital público do centro do Rio. Em abril, o Itaú Unibanco estourou o teto da filantropia nacional reservando R$ 1 bilhão para iniciativas de combate à Covid, a ser gerido por um conselho independente. Esse dinheiro irrigou dezenas de iniciativas, e R$ 100 milhões financiaram a produção de vacinas do Instituto Butantan e da Fiocruz. O projeto recebeu mais R$ 300 milhões com a adesão de empresas e pessoas físicas. Contrapartida? Zero.
GATO NA TUBA
Enquanto não for conhecida a engenharia financeira desse consórcio e a planilha de custos que levou o preço das vacinas de US$ 5,25 para US$ 23,79, ficará o medo de que haja um gato nessa tuba.
Em março de 2019, o capitão Bolsonaro mal tinha chegado ao palácio e começou uma negociação em torno do preço da energia gerada por Itaipu. Foi assinado um acordo, o presidente da estatal de energia paraguaia pediu demissão, começou uma investigação no Congresso e por pouco o governo não caiu. Em agosto, o acordo foi revogado. Havia gato na tuba, basta lembrar que o atravessador, vendo-se exposto, apressou-se em revelar que havia perdido seu celular.
Caíram o chanceler, o embaixador do Paraguai no Brasil e o presidente da estatal que acabara de ser nomeado.
Por falar em gatos e tubas, até hoje não se sabe como foi produzido o edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que gastaria cerca de R$ 3 bilhões comprando equipamentos eletrônicos para a rede pública de ensino. Os 255 alunos de uma escola mineira receberiam 30.030 laptops. Deve-se à AGU de Bolsonaro a descoberta da bizarria, provocando a anulação do edital.
Ricardo Noblat: Bolsonaro e o escafandrista do Leblon
A normalização que acolhe e a que implica em graves riscos
Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 70, vestido com seu pesado equipamento de mergulho, entrou no Antonio’s, bar mítico do Leblon, na esquina das ruas Bartolomeu Mitre e Ataulfo de Paiva, sentou a uma mesa, tirou o capacete e pediu uma cerveja.
Depois de certo tempo, irritado com a indiferença dos frequentadores do lugar, o jornalista João Saldanha subiu numa cadeira, bateu palmas para chamar atenção e disse em voz alta para ser escutado por todo mundo:
– Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal.
Ninguém deu bola para a fala irritada de Saldanha. Nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de poucas iguarias, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.
Ah, os cariocas e seu ar blasé! Em janeiro de 1964, o Rio foi sacudido com a notícia de que Brigitte Bardot, uma das atrizes mais famosas do cinema, chegara sem aviso à cidade. Depois do assédio inicial, ela refugiou-se em Búzios com o namorado.
Ficou por lá sem ser incomodada durante quase um ano. Vez por outra surgia o boato: Brigitte voltou ao Rio. Os mais cariocas entre os cariocas já não se abalavam. Alguns se limitavam a comentar com desdém: “Quem, aquela chata? De novo?”
Ninguém parece mais estranhar quando o presidente Jair Bolsonaro diz palavrões em público. Nem mesmo quando os palavrões são usados como ariete para atingir a honra de pessoas ou de um conjunto delas. A ele tudo é permitido.
Os presidentes Lula e Dilma diziam palavrões, mas jamais em público. O país ficou chocado com a quantidade de palavrões que Bolsonaro disparou em abril último durante reunião ministerial que provocou a saída do governo do ex-juiz Sérgio Moro.
Depois disso, não mais. Assim, ele sentiu-se autorizado para na semana passada, em reação ao noticiário sobre gastos do governo com leite condensado, mandar os jornalistas “à puta que os pariu”. Na quarta-feira, numa churrascaria de Brasília, ele esbravejou:
“Vai para puta que o pariu. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado”.
No dia seguinte, em Propriá, cidade na divisa de Sergipe com Alagoas, Bolsonaro voltou ao tema, sendo apenas mais sucinto:
“É para enfiar no rabo de jornalista”.
Por pudor, por estar acostumada a ser agredida ou sabe-se lá por que, de uma maneira geral a imprensa preferiu não dar destaque a mais um despautério do presidente da República. Praticamente ignorou-o. As redes sociais se encarregaram da tarefa.
Nem o ex-presidente Donald Trump, o precursor universal dos ataques desmedidos à imprensa, ousou valer-se de linguagem tão agressiva e desrespeitosa com profissionais que eram obrigados a cobrir suas atividades como chefe de Estado.
Só quem ganha com a normalização do comportamento estúpido de Bolsonaro é ele. A malta que o tem como ídolo, também ganha e faz questão de imitá-lo. Cresce no país o número de casos de jornalistas hostilizados no desempenho de suas funções.
Atenção, Justiça! O que falta para que se dê um basta definitivo a isso? Que um jornalista seja morto?
Míriam Leitão: A saúde no centro da economia
O Brasil precisa garantir 400 milhões de doses de vacina, o Butantan e a Fiocruz têm de ser financiados, o Ministério da Saúde deve contratar todas as doses possíveis do Butantan, para dar previsibilidade ao instituto e ter fluxo de produto para o programa. O governo está fazendo tudo errado e tardiamente. Além de ter sido um negociador débil com grandes produtores internacionais. Essa é a visão de André Medici, especializado em economia da saúde, e que foi por muitos anos do Banco Mundial.
Medici acompanha tudo o que se passa no setor, sempre o fez, muito mais agora que o mundo vive a pior pandemia em um século. Recentemente, lançou um livro virtual sobre o desafio da cobertura universal nos Estados Unidos, de Barack Obama a Joe Biden. O interessante é a força da ampliação da cobertura de saúde, com seguros em parte subsidiados. Por mais que o ex-presidente Donald Trump tenha feito, ele não destruiu a proposta do Partido Democrata. O ex-presidente Obama conseguiu ampliar em 50 milhões de pessoas a cobertura dos seguros de saúde. Com Trump, saíram cinco milhões.
A economia da saúde com todas as suas ramificações está no centro do debate atual aqui e no mundo. No Brasil, nos últimos dias, o que se viu foi um novo absurdo do Ministério da Saúde. O governo Bolsonaro decidiu fazer mais uma guerra contra o governador João Dória usando como bucha de canhão a saúde dos brasileiros. O Butantan precisa de recursos e previsibilidade e por isso quis que o Ministério da Saúde antecipasse decisões de compra. O governo disse que só em maio responderia. Seria mais um crime de Bolsonaro e Pazuello contra a saúde dos brasileiros. A posição ficou insustentável com a pressão da opinião pública e na sexta-feira à noite eles anunciaram a compra de mais 54 milhões de doses. Mas o fato mostra como esse governo decide. Pensa apenas na briga política.
No mundo, o mercado está intenso e nervoso. A União Europeia em disputa com a AstraZeneca aumenta a preocupação no Brasil, porque essa é a mesma vacina da qual dependemos na Fiocruz. O governo Joe Biden aumentou muito o volume de compras esta semana.
— Biden já fez encomendas que podem chegar a 700 milhões de vacinas. Eu não sei por que tão grande — diz Medici.
A boa notícia, ressalta o economista, é que tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos começam a cair as taxas de novos contágios, ainda que não de mortes.
— Há uma hipótese entre especialistas que seja consequência já do começo da quebra da cadeia de transmissão pela vacinação. Os Estados Unidos vacinaram até a semana passada em torno de 25 milhões de pessoas, 7% da população. Mas Biden está acelerando. Ele começou falando em um milhão por dia, aumentou para um milhão e meio e os especialistas acham que ele tem que chegar a três milhões — diz o economista.
No mundo inteiro, a pandemia movimenta o mercado de vacinas. Além das 10 em uso, sendo duas já aprovadas e oito com autorização emergencial, há 67 em fases distintas de testes clínicos em humanos e quatro foram abandonadas após os primeiros resultados de laboratórios, segundo o “New York Times”. Um ponto importante para o Brasil refletir neste momento: é que viramos apenas licenciadores por não investirmos em biotecnologia. Coreia do Sul, Tailândia, Canadá, França, Rússia, China, Turquia, Israel e, claro, Estados Unidos e Reino Unido desenvolveram vacinas ou estão em estágios dois ou três de testes clínicos. O Brasil, tendo excelentes institutos, ficou atrasado na produção. E pior, se atrasou até nas compras.
— Quando as vacinas estavam na fase dois de testes clínicos, lá para agosto, os países fizeram suas encomendas. O Brasil, que já perdeu esse momento, tem que garantir a maior quantidade possível de doses da Coronavac e da AstraZeneca. Tem que ser rápido e decisivo — diz André Medici.
Países de renda média que não se apressaram ficarão perdidos. Os ricos estão garantindo suas vacinas. Os países pobres podem ser atendidos pela iniciativa de Bill Gates com o Consórcio ACT.
— A iniciativa de Gates está destinando muito dinheiro para vacinas, US$ 16 bilhões, de um total de US$ 38 bilhões. E o principal objetivo é atender aos países mais pobres. Existem alguns países de renda média que se posicionaram bem. O grande problema é o Brasil e por culpa do governo — diz Medici.
A pandemia mostrou claramente que a saúde está no centro da economia.
Dorrit Harazim: Palavras e silêncios
Nos EUA e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas racharam sob Trump e Bolsonaro
‘Kintsugi’ (algo como reparação dourada) é a arte japonesa de devolver vida a objetos de cerâmica quebrados, remendando-os com pó de ouro. Essa centenária artesania nasce da ideia de que, ao aceitarmos imperfeições e falhas, ao mantermos visível a cicatriz, podemos criar algo ainda mais forte, ainda mais belo do que o original único agora despedaçado. Nada mais atual, eterno e multiuso do que essa arte, visto que ela pode ser aplicada tanto a um pote quebrado como a pessoas, à democracia estalante de hoje e à própria vida. Quando exigimos a perfeição em tudo e todos, inclusive em nós mesmos, acabamos criando um mundo cruel em que recursos e possibilidades são descartados.
Só que, para recorrer ao restauro, é necessário, antes, reconhecer que algo quebrou. Nos Estados Unidos e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas racharam fundo sob Donald Trump e Jair Bolsonaro. Lá, o recém-empossado Joe Biden tenta iniciar o remendo sem estardalhaço, mas com gravidade, pois a hora é mesmo grave. Ao contrário do antecessor, Biden assina sua aguardada cota de decretos executivos como se fosse um burocrata apressado em carimbar formulários inúteis. É o oposto. Alguns desses decretos têm consequências planetárias, visam a corrigir cursos que apontavam para o abismo na questão climática. Outros abrem caminho para reparar desigualdades gritantes no próprio país.
Talvez algum dia venham a ser olhados como obra de kintsugi da democracia trincada, mas por enquanto são apenas decretos, sem a permanência de leis, e nenhuma garantia de que o remendo trabalhado não seja obstruído. Têm muito a conspirar contra. Continua intacta a dependência dos republicanos da máquina eleitoral fiel a Trump. O arrojo do extremismo branco aumentou desde o ataque do dia 6 contra o Legislativo. O Capitólio e seu entorno permanecem enjaulados por precaução. A deputada de primeiro mandato Lauren Boebert, conspiracionista fervorosa, já anunciou que não abre mão de circular pelo Capitólio com sua pistola Glock carregada, e Marjorie Greene, também eleita em 2020 por apoiadores da seita QAnon, já elogiou quem defende “enfiar uma bala na cabeça” da presidente da Casa, a democrata Nancy Pelosi. É da própria Pelosi, a frase da semana que melhor exprime a preocupação com as instituições do país: “O inimigo está dentro da Câmara de Representantes”. Terrível para a nação fundadora do sonho democrático moderno.
O labor pela democracia nunca acaba, ensinou Walt Whitman. O grande poeta da Guerra Civil Americana repetia que a palavra é grandiosa, mas sua história permanece em branco, porque ainda precisa ser encenada. Algo como o tempo passado e o tempo futuro lutando pelo controle do presente, definiu o maravilhoso Lewis H. Lapham, fundador e alma da “Lapham’s Quarterly”.
No Brasil, o pote está tão esmigalhado que é difícil ver algum remendo no horizonte. Faltam vacina e decência, sobram condenados à morte por asfixia. Pela peculiaridade da Covid-19, são perdas silenciadas atrás de portas de hospitais, de casas funerárias, de cemitérios, enterros em covas onde o distanciamento já não cabe mais. Um horror amplificado pelos pequenos horrores do cotidiano nacional, como um hospital federal que sofre queda de energia e compromete 720 doses da vacina da vida.
Por sistêmicas, as indignidades infligidas à vida brasileira já fazem parte do esperado. Só vez por outra o caldo ferve no cidadão obrigado a economizar energia para aguentar o amanhã. Na quarta-feira passada, a mais recente patifaria verbal de Jair Bolsonaro entornou um desses caldos de indignação. Ela merece registro neste espaço por dizer o essencial sobre a excrescência que habita no Palácio da Alvorada. No evento fechado de uma churrascaria de Brasília, o presidente estava de pé, microfone em mãos. Sentados em mesas abarrotadas, a ruidosa confraria de áulicos, que incluía o chanceler Ernesto Araújo. Explodiram de gáudio quando Bolsonaro respondeu assim a críticas recebidas por gastos alimentícios do governo: “E, quando eu vejo a imprensa me atacar dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado, vai pra puta que o pariu. Imprensa de merda essa aí. É pra enfiar no rabo de vocês aí...”. O perigo à democracia brasileira já não é mais o Mito. São os adoradores decididos a perpetuar o mito.
Melhor procurar refúgio noutro marco da cultura japonesa: o caractere Ma, que representa a arte do silêncio, o espaço sagrado do silêncio em todas as atividades humanas. No Ocidente, sentimos desconforto quando se estabelece um vazio durante uma conversa a dois ou uma reunião em grupo. Nossa tendência é preencher esse vazio com qualquer abobrinha. Para japoneses, não se trata de um vazio, e sim de uma forma sublime de se conectar através desse espaço silencioso. O que seria da música sem os silêncios que conectam os sons? Não seria música, seriam apenas sons. Bonito, não?
Por aqui, estamos em outro diapasão.