O Globo
Fernando Henrique Cardoso: As difíceis escolhas
Além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre de quem manda
Dias difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios. Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e, diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da política?
O bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade, jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.
Mas não desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe.
Às vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.
Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.
Digo isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.
Ainda assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder, não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso aparece dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.
Só que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será? Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais “fazedores” que sejam.
Espero, apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal, continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má palavra) vontade política.
E isso – a tal vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.
Não convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem simboliza um sentimento.
Não escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço, de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem a ser “los que mandan”.
Livremo-nos ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja exercendo-o, seja sofrendo-o.
*Sociólogo, foi presidente da República
Ascânio Seleme: A praça do negro
A prefeitura de Bragança Paulista, cidade de 170 mil habitantes, deu o nome de Oswaldo de Camargo a uma nova praça que está acabando de construir na cidade
Pode parecer singelo, bonito e politicamente apropriado, mas batizar uma praça de uma cidade do interior de São Paulo com o nome de um poeta, escritor e ativista negro vivo é mais do que isso. A prefeitura de Bragança Paulista, cidade de 170 mil habitantes, deu o nome de Oswaldo de Camargo a uma nova praça que está acabando de construir na cidade e que vai abrigar também um terminal rodoviário. Antes disso, o único vereador de oposição da cidade, Quique Brown (PV), aprovou a concessão de uma placa de prata a Camargo, a mais alta honraria oferecida pela Câmara Municipal.
Oswaldo de Camargo tem 84 anos, é neto de escravos e filho de pais analfabetos. Aos seis anos, colhia café nas fazendas locais. Para chegar às plantações, caminhava oito quilômetros todas as manhãs, passando num largo despovoado onde hoje está sendo construída a praça que levará o seu nome. Trabalhou até perder os pais, Martinha e Cantiliano, que morreram de tuberculose. Muito jovem ainda, foi mandado para o Preventório Imaculada Conceição, onde foi alfabetizado. Religioso, foi recusado por diversos seminários, por ser negro. Até conseguir vaga no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto. Mas não foi ordenado, por ser preto.
Foi então para São Paulo. Lá trabalhou no jornal “O Estado de S. Paulo”, como revisor e resenhista, dos 23 anos até se aposentar. Escreveu diversos livros de poesia, história, contos e ensaios. Participou do movimento literário que publicou os “Cadernos Negros” e organizou uma antologia de literatura negra. Foi um dos fundadores de um grupo de ativistas negros, o Quilombhoje, dedicado a incentivar a literatura e dar visibilidade a textos de autores afrodescendentes. Oswaldo de Camargo foi e continua sendo um ativista literário. Segundo ele, a homenagem de Bragança não é para ele apenas. Numa entrevista a Shel Almeida, do UOL, disse que os homenageados “são todos os pobres, todos os negros que ajudaram a construir a cidade”.
O escritor merece com sobras a homenagem da sua cidade. Sua biografia prova o seu valor e a qualidade da sua obra não deixa dúvidas, segundo críticos e pensadores como Florestan Fernandes, que prefaciou seu primeiro livro “15 Poemas Negros”, que será relançado este ano pela Companhia das Letras. Só há uma questão, que embora lhe seja muito próxima, absolutamente não macula sua imagem. Oswaldo é o pai de Sérgio Camargo, o atarantado presidente da Fundação Palmares.
Sérgio tem ódio ao ativismo negro, como se sabe. Numa gravação feita sem o seu conhecimento, chamou o movimento negro de “escória maldita”. Disse que deveria ser extinto. Ele também é contra o Dia da Consciência Negra porque “celebra a escravização de mentes negras pela esquerda”. Um dos mais entusiasmados defensores do presidente Bolsonaro e de suas políticas, o filho de Oswaldo foi quase profano quando disse em rede social que “a escravidão foi benéfica para os descendentes dos escravos”. Segundo ele, os negros no Brasil vivem hoje melhor do que os negros na África.
O filho envergonha o pai. Embora evite falar sobre Sérgio, Oswaldo disse a Shel Almeida o seguinte: “Meu filho não tem nada a ver comigo nessa questão ideológica. A única coisa que eu torço é que este processo de apagar a História da qual eu faço parte não chegue tão longe que eu seja obrigado, como escritor, a confrontar-me com o que está acontecendo na Fundação (Palmares)”. O nome de Oswaldo de Camargo ficará na História, não apenas pela praça de Bragança, mas em razão da literatura que produziu e dos movimentos dos quais participou. O de Sérgio escorrerá pelo mesmo esgoto de onde um dia aflorou.
O Brasileiro vende voto
Se alguém ainda tinha dúvida, as últimas pesquisas sobre o governo do Bolsonaro provam que muito brasileiro vende seu voto. É absolutamente normal que um presidente ganhe o respeito e o apoio dos eleitores se governar bem, para todos, com rigor fiscal, honesta e democraticamente. O que se vê no Brasil, desde a instituição da política de bolsas, é o voto em troca de mesadas oficiais. Não se discute a necessidade das bolsas. O Brasil é muito pobre e não pode delas prescindir. Mas vejam como elas viram rapidamente um instrumento político. Nos governos do PT, os melhores resultados eleitorais do partido foram justamente nos lugares mais fortemente alcançados pelas bolsas. Agora, com Bolsonaro, o auxílio emergencial virou combustível para elevar a popularidade do presidente. Com o seu término em dezembro, o apoio ao capitão despencou. Por isso, aliás, ele quer urgentemente o seu retorno.
Última promessa
A imagem de político liberal de Bolsonaro é a última que resta a ser desmontada na sua saga para destruir todas as promessas de campanha. Paulo Guedes jamais vai confirmar. Se perguntado diretamente, vai negar, mas está com saco cheio. Tem gente no Ministério da Economia dizendo que ele não acredita mais no sucesso do projeto que o levou ao governo. A pauta liberal, que já vinha cambaleando e deu sinais de fadiga extrema com a demissão do presidente da Eletrobras, parece que não vai andar com Arthur Lira e o Centrão no comando da Câmara. Gente próxima a Guedes diz que esse grupo é egoísta, não pensa no país e que dificilmente vai apoiar privatização de empresas com centenas de cargos de livre indicação.
Dispensável
Até outro dia intocável, Paulo Guedes virou apenas mais um na Esplanada dos Ministérios. Bolsonaro, que já jogou no lixo até mesmo o combate à corrupção, a mais cara promessa aos eleitores não radicalizados, não tem por que segurar um ministro turrão, que vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir a criação de novos ministérios e desembolsos, emergências ou não, desestruturados e sem compensações adequadas. O prazo de Guedes está chegando. Sua paciência também.
Mentirosa
Não sei por que ainda se dá bola e microfone para Bia Kicis, reconhecida como a maior disseminadora de fake news no Congresso. Fake news significa notícia falsa em português. Ou informação inventada. Trata-se, portanto, de uma mulher que inventa história, de uma mentirosa. Não é a única, muita gente diz que todo político mente. Mas no caso dela, trata-se de uma mentirosa patológica. Para quê ficar ouvindo mentira, não é mesmo?
Quem odiar
Em alguns meses Arthur Lira vai ganhar antipatia parecida com a do seu inspirador, o ex-deputado preso por corrupção Eduardo Cunha. Num determinado momento da História política nacional, Cunha tinha praticamente todo o Brasil contra ele. Foi o homem mais odiado do país. Mais do que os ex-presidentes Michel Temer e Dilma Rousseff, para ficar apenas na História mais recente. Lira tem tudo para seguir os passos do seu velho guia. Primeiro, tocando a pauta da Câmara, que na prática é a agenda nacional, com a truculência com que iniciou o seu mandato. Depois, quando começar a retaliar Bolsonaro, que não vai conseguir conter a sua gula e a gula do Centrão.
A prova
A eleição de Arthur Lira prova definitivamente aquela máxima de que o que é ruim pode sempre piorar. O fundo do poço é sempre mais fundo do que se pensa. No caso do Congresso, fica para lá do pré-sal.
Bola dentro
Está bem, você pode dizer que se trata de protocolo. Mas vale ressaltar que eventualmente até o ministério de Ernesto Araújo acerta. O Itamaraty distribuiu comunicado entre todas as embaixadas, consulados e outras missões estrangeiras acreditadas no Brasil explicando que todos podem e devem fazer uso dos serviços nacionais de saúde, especialmente o SUS, para enfrentar qualquer inconveniência em razão da pandemia. Explica ainda que estrangeiros têm direito à vacinação, atendendo os critérios de idade e comorbidades. Tudo bem, tudo certo. O problema é quando as vacinas chegarão. A Embaixada de Israel estuda repatriar seus servidores em escala para serem vacinados no país para depois retornarem imunizados ao Brasil.
Militares no poder
Além dos nove ministros militares do governo Bolsonaro, sabe-se que o Executivo abriga em seus ministérios e autarquias 2,7 mil oficiais e praças cedidos pelas três Forças Armadas. Dados do Movimento Acredito mostram que na Presidência da República, 15,1% dos cargos de natureza especial em funções de DAS e similares são ocupados por militares. No Ministério das Minas e Energia eles ocupam 10,8% dos cargos; na Ciência e Comunicações, 10,1%; no Meio Ambiente, 8,3%; e na Saúde, 7,3%. No final do governo Dilma, os militares somavam 2,7% dos cargos comissionados no Palácio do Planalto.
Esquecimento
Se a polêmica sobre o direito ao esquecimento passar no Supremo, os bisnetos de Getulio Vargas vão poder pedir para que se esqueça que o velho ditador deu um tiro no próprio peito. E os descendentes de Emílio Garrastazu Médici poderão exigir que não se fale mais da carnificina de civis promovida em seu governo.
Pablo Ortellado: Transigência que mata
Depois da invasão do Congresso americano, as plataformas de mídia social endureceram a implementação de suas políticas de moderação de conteúdo —e não apenas nos Estados Unidos.
No Brasil, o presidente Bolsonaro e o Ministério da Saúde tiveram tuítes sobre tratamento precoce filtrados (conteúdo borrado, acompanhado de alerta de publicação enganosa), e o YouTube removeu um vídeo sobre ivermectina de Eduardo Bolsonaro.
Apesar disso, ainda há milhares de publicações nas plataformas promovendo o uso de cloroquina, criticando o uso de máscaras e difundindo desinformação sobre as vacinas. Um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo apontou que 98% dos vídeos recomendados no YouTube sobre tratamento precoce eram desinformativos.
Em tese, nenhum conteúdo desse tipo deveria estar on-line. O Twitter diz que removerá conteúdos que apresentem “um risco direto para a saúde ou o bem-estar das pessoas”; o YouTube diz que “não é permitido o envio de conteúdo que dissemine informações médicas incorretas que contrariem as orientações da OMS”, e o Facebook diz que vai proteger “contra conteúdo prejudicial relacionado à Covid-19”.
O problema é que as regras de aplicação dessas diretrizes genéricas não são transparentes —elas existem e orientam a ação dos algoritmos e dos moderadores humanos, mas não são públicas. É permitida a publicação de conteúdo promovendo a ivermectina e a cloroquina? É permitido fazer publicações desestimulando o uso de máscaras?
Também não há transparência na escala de sanções de Facebook e Twitter para quem viola as políticas. Que gravidade de violação é punida com um rótulo, com a diminuição da distribuição, com a remoção da publicação ou a suspensão da conta?
Como a aplicação da política não é transparente, ela pode se dar de forma arbitrária, e não uniforme. Tudo leva a crer que essa opacidade está sendo utilizada como margem de manobra, que permite às empresas operar discricionariamente num ambiente em que as políticas de saúde foram politizadas.
Embora haja consenso científico contrário ao uso da cloroquina e da ivermectina no tratamento contra a Covid-19, levantamento da Associação Médica Brasileira mostrou que 35% dos médicos brasileiros consideram eficaz a cloroquina, e 41% consideram eficaz a ivermectina. Esses índices, não por acaso, são parecidos com os índices de aprovação do presidente, que defende o uso dessas drogas.
Assim, as empresas precisam impor políticas de moderação a um meio que as rejeita. Não se trata apenas dos usuários comuns, mas também das autoridades políticas e de parte dos médicos.
Não é possível saber em que medida a falta de rigor na aplicação das políticas de moderação de conteúdo ligado à Covid se deve à incapacidade das empresas de moderar uma grande quantidade de conteúdo, ao medo de perderem usuários polarizados ou ao medo de receberem retaliações do governo.
Seja como for, a difusão desse tipo de conteúdo está contribuindo para ampliar a contaminação —sem exagero, está tirando vidas.
Bernardo de Mello Franco: O centrão na janelinha
O centrão mal entrou no ônibus e já quer sentar na janelinha, assumir o volante e se apossar do bagageiro. Recém-instalado no comando da Câmara, o bloco não está disposto a aceitar migalhas. Vai cobrar caro pelo apoio que prometeu ao governo.
Ontem a turma começou a mostrar a que veio. O deputado Ricardo Barros, um dos principais escudeiros de Arthur Lira, ameaçou “enquadrar” o almirante Antonio Barra Torres, presidente da Anvisa. Esbravejou contra as exigências para o registro da vacina Sputnik V, de origem russa. “Estão achando que eu sou trouxa?”, desafiou, em entrevista ao “Estadão”.
A pressa de Barros não parece ser motivada pelo avanço do vírus. A Sputnik V será produzida no Brasil pelo laboratório União Química, ligado a políticos do centrão. Um dos diretores da empresa é o ex-deputado Rogério Rosso, que disputou a presidência da Câmara em 2016. Ele era o candidato de Eduardo Cunha, que festejou a vitória de Lira na segunda-feira.
Em outra frente, o centrão jogou na fritura a deputada Bia Kicis, porta-voz da ala mais radical do bolsonarismo. O novo chefão da Câmara havia prometido a Bolsonaro que ela assumiria a Comissão de Constituição e Justiça. Ontem seus aliados começaram a sabotar o acordo.
Investigada no inquérito das fake news, Kicis poderia usar o cargo para ajudar o Planalto a conspirar contra a democracia. No entanto, Lira tem preocupações mais urgentes. Quer evitar conflito com os ministros do Supremo, onde é réu por corrupção e organização criminosa.
As cotoveladas em Torres e Kicis anunciam uma fase mais agressiva na disputa por poder em Brasília. Na semana passada, Bolsonaro declarou que poderia recriar três ministérios para acomodar os novos parceiros. Ontem Barros debochou da oferta. “Quem está correndo atrás de ministério da Cultura, do Esporte e da Pesca?”, questionou.
O centrão não vai se contentar com cargos decorativos. Exigirá pastas de alto orçamento e com potencial para turbinar candidatos em 2022, como Saúde, Cidadania e Desenvolvimento Regional.
Na primeira metade do governo, Bolsonaro suou para mediar crises entre militares e olavistas. Em pouco tempo, essas disputas deverão ser lembradas com saudade no Planalto. Agora o capitão terá que lidar com profissionais.
Vera Magalhães: Síndrome do cunhado
Muito se falou no chavão “criminalização da política” como uma das justificativas para a sucessão de fatos que levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Trata-se de uma leitura bastante rasa e condescendente com a roubalheira que os políticos promoveram como se não houvesse amanhã, ao longo de sucessivos mandatos e que, quando foi descoberta, gerou, sim, uma onda de compreensível indignação com a classe política.
Acontece que os políticos não só não perceberam isso a tempo, como menosprezaram os efeitos que isso teria. Cansei de ouvir de próceres de vários partidos, da esquerda à direita, em 2018, as seguintes avaliações:
1) corrupção nunca foi fator decisivo para eleição, bastava ver que Lula tinha sido reeleito em 2006 mesmo com o mensalão;
2) redes sociais nunca elegeram ninguém;
3) Bolsonaro desidrataria quando começasse o horário eleitoral, pois as eleições ainda seriam definidas pela equação clássica: tempo de TV, coligação forte e grana.
Bolsonaro fez um rocambole de tudo isso, regou com leite condensado, e a política, além de criminalizada, ficou humilhada no cantinho do pensamento.
Eis que, mais de dois anos e quase 230 mil mortos pela pandemia depois, os políticos do autoproclamado centro democrático estão marchando docemente para o cadafalso, atrelando seu destino ao de Bolsonaro.
Para o presidente do DEM, ACM Neto, Bolsonaro não é um extremista. Como chamar alguém que desdenha uma pandemia, que frequenta e incentiva atos pelo fechamento do Supremo e do Congresso, que aparelha instituições como a Polícia Federal e o Coaf, que investe por meio de decretos contra a pauta de direitos humanos e de defesa do meio ambiente, que acusa fraude eleitoral sem provas e insinua dois anos antes que isso pode ocorrer se não houver voto impresso?
O que precisará acontecer para que o presidente brasileiro seja reconhecido como o que é: um expoente de uma cepa de políticos de corte neopopulista que usa de expedientes como a propagação de fake news, o enfraquecimento deliberado da imprensa e do sistema de freios e contrapesos da democracia e a difusão do ódio para se manter no poder?
Diante do cálculo de curtíssimo prazo de líderes como ACM Neto, que priorizam a aproximação a um presidente mal avaliado e mal-intencionado à construção de uma alternativa sólida e viável de poder que tire o país dessa encalacrada social, econômica e institucional em que está enfiado, Bolsonaro vai ganhando, justamente dos políticos a quem desprezou em 2018, um passaporte de vida fácil para 2022.
Acontece que, como escrevi aqui na quarta-feira, a vida real caminha de forma bem diferente do minueto desconjuntado da política. Na Bahia de ACM Neto, faltam vacinas, faltam leitos de UTI, falta comida, falta auxílio emergencial e falta base social para o bolsonarismo. Em nome de que, então, o presidente do DEM opta por implodir a própria legenda, depois de um sucesso nas urnas? O tempo vai responder em nome de quê.
Enquanto isso, graças a análises equivocadas como essa, Bolsonaro, o “não extremista”, vai se comportando depois das vitórias congressuais que lhe foram dadas de bandeja como o cunhado folgado que chega na casa do outro e tira o sapato com chulé, coloca o pé em cima do pufe, faz uma piada homofóbica com o sobrinho e assalta a geladeira para acabar com a cerveja.
Quando a classe política resolver reagir, pode ser tarde, como viram os atônitos integrantes do Partido Republicano, que não contiveram o também extremista Donald Trump e o deixaram questionar as eleições, incentivar a invasão do Capitólio e desgastar uma democracia sólida como a americana.
Por aqui, o centro com vocação para cunhado bonachão não aprendeu absolutamente nada nos últimos anos.
O Globo: Partidos se articulam para barrar indicação de Bia Kicis à CCJ da Câmara
Aliados de Lira acreditam que deputada terá dificuldade de ser eleita pelos futuros integrantes da comissão
Natália Portinari, Bruno Góes e Paulo Cappelli, O Globo
BRASÍLIA — Em meio à reação negativa em torno da escolha da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para assumir a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, partidos se articulam para derrubar a indicação ou derrotar a parlamentar no voto.
Veja:Em dez pontos, quem é Bia Kicis, a extremista que vai comandar a comissão mais importante da Câmara
Seu nome foi definido para o cargo em um acordo no PSL, a quem cabe a indicação, mas já há resistência entre parlamentares até no próprio partido. Segundo a deputada, Arthur Lira (PP-AL), o novo presidente da Câmara, ajudou a costurar a combinação que levou à indicação de seu nome.
Aliados de Lira, porém, acreditam que Bia Kicis terá dificuldade de ser eleita pelos futuros integrantes da CCJ. Avaliam, em conversas reservadas, que ela cometeu um equívoco ao anunciar que seria presidente um mês antes da instalação da comissão e que, pelo histórico polêmico, sofrerá resistência.
Presente em atos considerados antidemocráticos nos quais os manifestantes atacavam o Congresso, e ela mesma uma crítica daquilo que aliados de Bolsonaro chamavam de “velha política”, a parlamentar não tem boa relação com líderes partidários. A previsão do entorno de Lira é de que ela seja derrotada por uma candidatura avulsa caso insista.
O PSL tem a prerrogativa de indicar o comandante da CCJ por ter 53 deputados, tendo sido a maior bancada do maior bloco na eleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara em 2019. As comissões seguem a proporcionalidade da primeira eleição da legislatura.
Bia Kicis na CCJ: debate online sobre indicação da deputada alimentou ambiente de polarização
Em geral, pela praxe parlamentar, o designado é eleito sem disputas em votações. Mas essa tradição pode ser rompida, alertam parlamentares, caso o PSL mantenha o nome de Kicis. Ela é investigada em dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF): o das fake news e o dos atos antidemocráticos.
Nesse último, Bia Kicis teve seus sigilos bancário e fiscal quebrados por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Ela negou à PF ter feito manifestações de apoio ao fechamento do STF e disse que sugeriu aos grupos bolsonaristas que não aderissem a essa pauta. A PGR apontou que ela gastou R$ 6,4 mil de sua cota parlamentar para contratar uma empresa para promover nas redes sociais apoio a manifestações antidemocráticas.
Possíveis adversários
O deputado João Bacelar (Podemos-BA) lançou sua candidatura à presidência da CCJ. “Precisamos de equilíbrio, aqui nesta Casa. Chega de disputas acirradas, conflitos e pressões do governo”, disse, em nota.
Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara e aliado de Arthur Lira, frisa que Bia precisará fazer um “trabalho de diálogo”:
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) é a de maior destaque, tanto da Câmara quanto do Senado, porque a grande maioria das propostas precisa ser apreciada pelo colegiado. É considerado um controle preventivo da constitucionalidade e do ordenamento jurídico.
Sonar: Bolsonaristas fazem campanha para que deputada Carla Zambelli (PSL-SP) assuma comunicação da Câmara
Dentro do próprio PSL, há dirigentes e deputados que estimulam o lançamento de outra candidatura para enfrentar Bia Kicis. O mais cotado para a tarefa é Marcelo Freitas (PSL-MG), visto com um parlamentar com bom diálogo com a ala de Luciano Bivar (PSL-PE), presidente do partido, e com o núcleo bolsonarista.
Ao GLOBO, Bivar disse que a bancada é quem deve escolher o nome e evitou responder se apoia Kicis:
— O partido hoje tem novo líder, Vitor Hugo. Então o partido tem o direito a indicar o presidente da CCJ. Mas é preciso ser eleito na comissão.
O acordo costurado por Lira no PSL envolve ceder a Bivar a primeira secretaria na Mesa Diretora. Os bolsonaristas, que pertencem à outra ala do partido, ficariam com a CCJ e poderiam indicar o líder, Vitor Hugo.
Míriam Leitão: Festa, mentiras e videotapes
Quem tem 35 prioridades no meio de uma crise desta dimensão não tem nenhuma. Mas foi essa a lista que o presidente Jair Bolsonaro entregou ontem ao Congresso. Quem acha que o importante é o homescholling não tem ideia da tragédia que está acontecendo na educação brasileira, com 47 milhões de estudantes longe das escolas. Quem acha que o importante é liberar armas num país em que há um milhão de civis armados, como este jornal informou, quer alimentar a formação de milícias no Brasil.
Na abertura do ano legislativo, a oposição recebeu o presidente com gritos de “genocida” e “fascista”, e os governistas responderam com “mito, mito”. O presidente Bolsonaro, diante disso, afirmou que foi deputado por 28 anos e nunca desrespeitou as autoridades. Ele disse que fuzilaria Fernando Henrique e exaltou torturadores de Dilma Rousseff. Só para citar duas agressões das muitas com as quais ele cimentou sua notoriedade. No seu discurso, ele falou uma coleção de mentiras. O espaço é curto para listá-las. Falarei de uma. Bolsonaro disse que concedeu mais títulos de terra do que os distribuídos nos 14 anos anteriores. Mentira. A média anterior era três mil títulos distribuídos por ano. A pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, conta que em 2019 houve “um apagão fundiário”. Foram apenas seis títulos. No blog, publiquei nota com gráficos. Os dados foram obtidos pela ONG graças à Lei de Acesso à Informação.
Os novos presidentes da Câmara e do Senado, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), foram ao Palácio do Planalto ontem cedo e fizeram declaração pelo combate à pandemia e seus efeitos econômicos. A cena pública estava correta, as palavras eram boas, mas era impossível não compará-las com o que fora feito pelo deputado Arthur Lira e outros parlamentares e ministros.
A festa espalha vírus promovida pelos vitoriosos da Câmara dos Deputados, com a presença de dois ministros, foi um ultraje. Organizar esta festa é crer na impunidade. Participar dela, sem máscara, dançando e se aglomerando entre 300 pessoas é uma demonstração de que para esses ministros e parlamentares a vida dos brasileiros não tem valor. A festa em plena pandemia, como escrevi no blog, é um tapa na cara do país.
A primeira urgência na pauta do Congresso é ter um orçamento, porque sem isso alguns serviços essenciais podem entrar em colapso. O Ministério da Economia quer o orçamento aprovado até março. Na lista do Ministério há também a PEC Fiscal e a aprovação de marcos legais. Entre eles, o do petróleo, que permitirá que se possa ter concessão em áreas onde há o modelo de partilha. Os outros marcos são de ferrovias, cabotagem e do setor elétrico.
Nenhum desses é simples. Para se ter ideia, o senador Rodrigo Pacheco prometeu colocar hoje para votar a MP do setor elétrico, antes que ela caduque na semana que vem. Ela reduz os incentivos às novas fontes renováveis, solar, eólica, biomassa, e cria um encargo na conta de luz para financiar a interminável e caríssima Angra 3.
A atenção de Jair Bolsonaro está em outros pontos da sua lista de prioridades. Quer aumento de armas nas mãos dos extremistas que o apoiam e a retenção de crianças e adolescentes em casa, sob o argumento medieval de que só os pais sabem o que deve ser ensinado.
Há momentos no Brasil em que a dúvida é quanto mais podemos piorar. Certamente um passo na decisão da piora aguda é pensar no nome da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ela é protagonista de uma série infindável de agressões ao direito, à ciência e à democracia. Propagadora de mentiras. Em plenário, defendeu a intervenção militar em caso de divergência entre poderes, dizendo que este é o sentido do artigo 142. Está sendo investigada por envolvimento em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Que uma pessoa que proponha rasgar a Constituição seja cogitada para a Comissão que deve zelar pelos princípios constitucionais é uma anomalia que ilustra os tempos atuais.
O senador Rodrigo Pacheco, lembrando JK, falou muito em pacificação. Soa bonito. Juscelino fez alianças com adversários pela frente ampla, mas sabia com quem não deveria buscar a pacificação. Com a ditadura militar, que o cassou e que inspira Bolsonaro.
Merval Pereira: Os caminhos até 22
O presidente Bolsonaro descreve uma rota de escape em sua trajetória política, movendo-se para longe de sua origem, deixando a incoerência como sua marca, o que não chega a ser novidade entre nós. Eleito à Presidência da República em situação radicalizada, identificada pelos cientistas políticos como um ponto fora da curva, tentará a reeleição a bordo de uma coligação partidária comandada pelo “Centrão”, expressão máxima da baixa política que fingiu abominar durante a campanha presidencial.
Quis, sem sucesso, governar prescindindo dos partidos e das instituições democráticas. Perdeu seu primeiro ano de mandato com tentativas golpistas, alimentando uma turba extremista. Conflitos com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal (STF) provocaram crises institucionais, que só abandonou quando a prisão de seu ex-auxiliar, o ex-PM Fabrício Queiroz, pôs em risco seus filhos, especialmente o senador Flávio Bolsonaro, investigado pelas “rachadinhas” quando era deputado estadual.
Buscou cordialidade com o Supremo quando os processos sobre fake news e manobras antidemocráticas chegaram dentro do Palácio do Planalto, no gabinete do ódio. Livrou-se de Sergio Moro, um ministro simbólico de seu pseudo-empenho em combater a corrupção, e foi se blindar justamente no avesso do avesso disso. O Centrão tem a pretensão de domá-lo, para transformá-lo de líder político tosco e autoritário em candidato populista e sensível às necessidades do povo.
Na posse, o novo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, sublinhou a necessidade de auxiliar os necessitados (leia-se auxílio emergencial) e repetiu: “Vacinar, vacinar, vacinar”. Os políticos já sabem que o negacionismo tira votos de Bolsonaro e querem dar-lhe um banho de humanismo. Escancarada a inutilidade dos partidos — só Bolsonaro já esteve em dez deles —, assim como a pandemia escancarou a desigualdade social, ambos fenômenos bem brasileiros, o presidente que só pensa naquilo busca a reeleição com nova roupagem, mas disposto a conservar seus eleitores extremistas.
Uma engenharia política semelhante à de 2018, mas naquela ocasião não havia candidato na centro-direita que fosse competitivo. Bolsonaro engoliu o eleitorado do PSDB no Sudeste e obrigou que os fisiológicos do Centrão aderissem a ele em meio à campanha. O fantasma do petismo uniu diversas correntes em torno de Bolsonaro, e continuará sendo assim caso a centro-esquerda não se organize.
A eleição para as presidências da Câmara e do Senado mostrou que os partidos de centro-direita já estão tomando o caminho da adesão, oficial ou camuflada, ao governo Bolsonaro. A esquerda está dominada pelo petismo, talvez até com Lula na cabeça da chapa, o sonho de consumo de Bolsonaro. Provavelmente Moro será considerado parcial com o voto de minerva do ministro Nunes Marques.
O PSDB parece se desmilinguir, e não é à toa que o ex-presidente Fernando Henrique insiste na candidatura de Luciano Huck. Um grupo de tucanos já abriu conversas com o Cidadania, mas quer que surja daí um novo partido, com outro nome, o que não agrada a Roberto Freire, seu presidente. Rede e Partido Verde já conversam também sobre fusão com o Cidadania, que pode até mesmo receber o deputado federal Rodrigo Maia. Juntamente com ACM Neto, o ex-presidente da Câmara mantinha contato constante com Huck, o que ficou prejudicado pelos recentes movimentos do DEM.
Com o desmantelamento do bloco de centro-esquerda que se tentava formar, com PSDB, DEM e MDB e Cidadania, para lançar Huck, Freire tenta manter a possível candidatura em pé. Huck tem acesso ao eleitorado nordestino, o que lhe coloca à frente de outros candidatos do mesmo grupo, como João Doria. Mas é o que bolsonaristas consideram “adepto de uma agenda identitária de esquerda”, um liberal-progressista que não seria bem aceito pelos liberais-conservadores e conservadores. Pode transformar-se na alternativa à polarização entre PT e Bolsonaro. Mais palatável para eleitores liberais do que Ciro Gomes, que também disputa, desde 2018, esse espectro da centro-esquerda.
O Globo: Após 7 anos de trabalho e 79 operações, força-tarefa da Lava-Jato de Curitiba deixa de existir
Mudança ocorreu após determinação em dezembro da Procuradoria-Geral da República (PGR)
Dimitrius Dantas, O Globo
SÃO PAULO — A força-tarefa da Lava-Jato no Paraná anunciou nesta quarta-feira que oficialmente deixou de existir e que, a partir de agora, parte de seus integrantes passará a integrar o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público Federal (MPF) do Paraná. A decisão coloca fim na trajetória de quase sete anos do grupo responsável pela maior operação de combate à corrupção na história do país.
A mudança ocorreu por determinação de uma portaria de 7 de dezembro da Procuradoria-Geral da República (PGR), que decidiu pela integração de quatro integrantes da Lava-Jato ao Gaeco, que já contava com cinco membros. A partir de agora, os casos que faziam parte do acervo da Lava-Jato serão conduzidos por cinco procuradores alocados no Gaeco.
Até outubro, outros procuradores continuarão em alguns processos que ainda correm na Justiça Federal do Paraná.
“A força-tarefa paranaense deixa de existir, porém alguns de seus integrantes passam a atuar no Gaeco, com o objetivo de dar continuidade aos trabalhos”, afirmou, em comunicado, a força-tarefa.
No Rio, a força-tarefa da lava-Jato foi prorrogada até o final de março. Serão mais dois meses de trabalho para a equipe de 11 procuradores da República, coordenados por Eduardo El Hage, até a criação, prevista para abril, do primeiro Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado no MPF (Gaeco federal) no estado.
A Lava-Jato de Curitiba deflagrou 79 fases e condenou 174 pessoas. Entre elas estão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o ex-governador Sérgio Cabral, além de diversos atores políticos das últimas décadas como José Dirceu e Antônio Palocci.
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Segundo a força-tarefa, R$ 4,3 bilhões foram devolvidos por meio de acordos de colaboração premiada e de leniência. Ao todo, esses acordos deverão devolver R$ 15 bilhões aos cofres públicos.
— O legado da força-tarefa Lava-Jato é inegável e louvável considerando os avanços que tivemos em discutir temas tão importantes e caros à sociedade brasileira. Porém, ainda há muito trabalho que, nos sendo permitido, oportunizará que a luta de combate a corrupção seja efetivamente revertida em prol da sociedade, seja pela punição de criminosos, pelo retorno de dinheiro público desviado ou pelo compartilhamento de informações que permitem que outros órgãos colaborem nesse descortinamento dos esquemas ilícitos que assolam nosso país há tanto tempo — afirmou o procurador Alessandro José de Oliveira, agora coordenador do núcleo da Lava-Jato no Gaeco.
A Lava-Jato também gerou a formação de outras forças-tarefa ao redor do país, com destaque para a do Rio de Janeiro.
A Lava-Jato começou com a investigação de um esquema de lavagem de dinheiro comandado pelo doleiro Alberto Youssef. Entre os locais utilizados por ele para essa prática estava um posto de gasolina em Brasília, o que deu origem ao nome da operação. Com as investigações, a operação descobriu a participação de uma série de políticos e, eventualmente, de um sistema generalizado de corrupção na Petrobras.
Até 2018, os processos foram conduzidos pelo juiz Sergio Moro. Ele deixou a Justiça Federal no fim daquele ano para assumir o Ministério da Justiça no governo Jair Bolsonaro, caro que já deixou após alegar interferência do presidente na Polícia Federal. Moro também é alvo de um pedido de anulação dos casos do ex-presidente Lula na Lava-Jato. O petista, com base em troca de mensagens entre Moro e Deltan Dallagnol, então coordenador da força-tarefa, alega que o juiz não era imparcial para julgar o seu caso. O processo corre no Supremo Tribunal Federal e deve ser julgado ainda este ano.
A Lava-Jato em números
Até o momento, a operação Lava-Jato foi às ruas em 79 fases e cumpriu 1.450 mandados de busca e apreensão e outros 132 mandados de prisão preventiva. Além disso, a Justiça determinou 211 conduções coercitivas, uma das novidades introduzidas pela operação.
As conduções coercitivas obrigavam investigados a prestarem depoimentos. Criticada por alguns juristas, a medida foi proibida por decisão do Supremo Tribunal Federal em 2017. O ex-presidente Lula, por exemplo, chegou a ser alvo de uma condução coercitiva em abril de 2016.
Outra novidade da operação foi a possibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância. Permitida pelo Supremo Tribunal Federal após mudança de entendimento da Corte, a mudança permitiu que condenados começassem a cumprir suas penas na prisão após duas condenações.
Assim como com a condução coercitiva, a decisão também foi revertida posteriormente pelo STF, que voltou ao entendimento de que a execução da pena só pode ocorrer após o trânsito em julgado, salvo em ocasiões especiais, como quando o liberdade do investigado é vista como um risco para a sociedade.
Ao todo, a Lava-Jato apresentou 130 denúncias contra 533 acusados, que culminaram em 278 condenações. Como algumas pessoas foram condenadas mais de uma vez, a operação condenou, ao todo, 174 pessoas. As sentenças, somadas, somaram 2611 anos de pena.
A Lava-Jato também gerou consequências fora da esfera penal: foram apresentadas 38 ações civis, entre as quais ações de improbidade administrativa contra três partidos políticos: PSB, MDB e PP.
Bernardo Mello Franco: Maia perdeu o bonde do impeachment
No último dia de reinado na Câmara, Rodrigo Maia ameaçou receber um dos 62 pedidos de impeachment que adormeciam em sua gaveta. A bravata gerou marola nas redes sociais, mas não chegou a assustar o governo. Aos ouvidos da classe política, soou apenas como um ato de desespero.
Maia teve diversas chances de frear a escalada autoritária do bolsonarismo. Ele viu o presidente tramar um autogolpe, estimular motins nas polícias e atiçar radicais que pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo. Em vez de permitir a abertura de um processo de cassação, preferiu lavar as mãos e distribuir notas de repúdio.
Ao ser cobrado pela omissão, o deputado dizia não ver base jurídica para o impeachment. Crimes de responsabilidade não faltaram. Faltou coragem para enfrentar extremistas e contrariar agentes econômicos que lucram com o desgoverno.
No sábado, Maia engrossou a voz e acusou os bolsonaristas de adotar métodos do fascismo. Esses métodos estão em uso desde a campanha de 2018, quando o então presidenciável ameaçava fechar jornais e mandar adversários para a cadeia ou o exílio.
Sem a prisão de Fabrício Queiroz, o plano da quartelada poderia ter evoluído das palavras à ação. Bolsonaro foi contido pelo cerco judicial a seus filhos, não pela covardia do Legislativo.
Maia perdeu duas vezes o bonde do impeachment. Ele passou pela primeira vez entre março e abril de 2020, quando o capitão ejetou dois ministros da Saúde e virou alvo de panelaços diários. A inércia da Câmara permitiu que Bolsonaro continuasse a atuar a favor do vírus. Ele recuperou popularidade com o auxílio emergencial e conseguiu se equilibrar na cadeira.
O bonde voltou a passar no mês passado, quando ficou claro que o negacionismo federal deixou o país no fim da fila das vacinas. O deputado recebeu novos apelos para agir, mas estava mais preocupado em pedir votos para o aliado Baleia Rossi.
Ao vociferar no domingo, Maia já havia perdido o controle da eleição da Câmara. A abertura do impeachment era um imperativo ético, mas seria reduzida a um ato de vingança. Que seria anulado rapidamente por seu sucessor, ansioso para mostrar serviço ao Planalto.
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A frente ampla de Baleia Rossi encalhou na praia, mas produziu cenas inusitadas na eleição da Câmara.
Ex-líder do governo Bolsonaro, a deputada Joice Hasselmann foi aplaudida por deputados do PT ao chegar ao Congresso.
Eleita com um discurso feroz contra o ex-presidente Lula, ela rompeu com o Planalto e se aliou à esquerda na sucessão de Rodrigo Maia. Quase foi chamada de companheira.
Depois da recepção calorosa, Joice travou um animado bate-papo com a deputada Jandira Feghali, do PCdoB.
O tema da conversa foi a dieta que mudou a silhueta da ex-bolsonarista. Ela contou que perdeu 20 quilos em pouco mais de cinco meses.
Apesar das novas companhias, Joice se manteve fiel ao capitão em ao menos uma coisa. Ela chegou à Câmara sem máscara, e assim continuou ao confraternizar com os petistas.
Em tempo: no fim da noite, a deputada esqueceu o apoio a Baleia e participou da festa da vitória de Arthur Lira, o candidato do Planalto.
Zeina Latif: 'O liberalismo Viúva Porcina'
A política econômica no Brasil poucas vezes foi liberal em nossa história, menos ainda por convicção. O liberalismo só ganha ímpeto nas crises. Na atual, nem isso.
Historicamente, prevaleceu o nacional-desenvolvimentismo - mesmo quando não existia esse termo, do pós-guerra –, que defende a intervenção estatal para a promoção do desenvolvimento de economias atrasadas. Não há preocupação com o desequilíbrio fiscal e a política monetária é condicionada ao estímulo da economia.
Em vez de eliminar os problemas estruturais que obstruem o desenvolvimento, como a baixa qualificação da mão de obra e a insegurança jurídica, busca-se atalhos e privilegia-se alguns setores - em geral empresas ineficientes que não conseguem se tornar competitivas - em detrimento dos demais.
Enquanto isso, o liberalismo condena artificialismos e preconiza medidas horizontais, com resultados favoráveis também em países emergentes.
O fato é que a ação estatal fracassou. Não se trata de erros de implementação, como alguns argumentam, mas de concepção - como na “canetada” nas tarifas de energia em 2013. Políticas são renovadas mesmo quando não funcionam, como a Zona Franca de Manaus, que nem desenvolveu a região, nem preservou a floresta.
Erros de política econômica geralmente demoram para se materializar, como nos governos Geisel e Dilma, responsáveis pelas mais graves crises da nossa história. Isso dificulta a compreensão da sociedade, que muitas vezes hostiliza quem faz o ajuste. Este, por sua vez, não é lei da física; depende de convicção e liderança do presidente.
O liberalismo, por outro lado, não se apresenta satisfatoriamente à opinião pública como agenda republicana, do bem-comum.
Avalio que a fraqueza remonta à formação da intelectualidade ainda no Império, com predomínio dos bacharéis liberais da escola de direito de São Paulo. Na imprensa, na política e no serviço público, defendiam a liberdade para os negócios, mas se ajustaram ao patrimonialismo, como aponta Sérgio Adorno.
Os proprietários rurais defendiam o liberalismo de forma oportunista, pois demandavam proteção e ajuda estatal nos momentos críticos. Além disso, o pensamento liberal não acompanhou valores democráticos de igualdade. Como resultado, foi associado à elite conservadora.
A ditadura militar prejudicou bastante o liberalismo na opinião pública. A linha dura militar resgatou o nacional-desenvolvimentismo, depois das iniciativas liberais de Castello Branco, que combateu a inflação e conduziu reformas, como a criação do Banco Central com autonomia.
Com a crise aberta, o governo Figueiredo retomou a ortodoxia, que ficou associada ao autoritarismo. Mas ficou o saudosismo no nacional-desenvolvimentismo, ignorando o legado da década perdida dos anos 1980.
O governo Collor, com abertura comercial e privatização, tampouco contribuiu para reforçar o pensamento liberal, por conta do fracassado plano de estabilização.
FHC e Lula 1, por convicção ou pragmatismo, avançaram com políticas de cunho liberal, sob bombardeios. Escaldados, não apresentaram suas plataformas como sendo liberais, pela associação equivocada a entreguismo e elitismo.
O preconceito foi atenuado após o desastre de Dilma e com o caminho iniciado pelo impopular governo Temer, que compreendeu o momento. Bolsonaro, presidente eleito, desperdiça a oportunidade aberta.
Mais uma vez, monta-se um cenário de desmoralização do liberalismo. O governo se apresenta como liberal, mas não é. Pior, seu discurso está associado ao anticientificismo e a valores antidemocráticos, contaminando o debate público.
Não há avanços em abertura da economia, privatizações, redução de benefícios tributários e eliminação de privilégios do funcionalismo - temas que dependem de (inexistente) convicção e liderança do Executivo. Não se trata de bancar as eleições das presidências do Congresso.
A grave crise deveria fortalecer as reformas liberais, inclusive para se atender às demandas por recursos públicos sem ferir o compromisso com a disciplina fiscal. Não é ao que se assiste.
Somos um país de crenças estatizantes e com grupos organizados com capacidade de bloquear reformas. Liberalismo não é para os fracos. O governo pode estar comprometendo seu tardio e tímido avanço no debate público, podendo abrir espaço para retrocessos em momento crítico da economia brasileira.
Vera Magalhães: Vida estraga-prazeres
Mais de 300 pessoas trocaram perdigotos na covidfest da vitória de Arthur Lira. Jair Bolsonaro e os filhos se refestelaram de comemorar nas redes sociais. O general Luiz Ramos teve um momento “vão ter de me engolir” pelo sucesso da articulação política da qual participou. Mas, passada a ressaca da eleição das Mesas do Congresso, a vida real bate à porta do governo e do Legislativo. E ela, sabemos, não anda nada festiva.
O primeiro para quem essa ficha caiu foi Paulo Guedes. Coube ao ministro da Economia ser o estraga-prazeres e lembrar um pequeno detalhe: o Orçamento de 2021 ainda não foi votado pelos senhores forrozeiros.
Sem essa providência básica, não há como falar em novo auxílio emergencial, a promessa mais repetida de Lira e Rodrigo Pacheco, levada pelos festeiros parlamentares às suas bases — as mesmas que eles ignoraram solenemente ao, no escurinho da urna, dar o controle das duas Casas do Parlamento a um presidente que já foi eleito internacionalmente como o pior do planeta no enfrentamento da pandemia.
Não foi só Guedes a jogar água no chope dos deputados e senadores. O novo presidente do Itaú, Milton Maluhy Filho, desafiou o coro dos contentes com os descalabros cometidos por Bolsonaro e Pazuello ao longo de um ano de transmissão descontrolada do novo coronavírus no Brasil, com mais de 225 mil vidas ceifadas, para dizer o óbvio: um atraso de seis meses no Programa Nacional de Imunização reduzirá à metade a previsão de crescimento de 4% para o PIB deste ano feita pelo banco.
O atraso já está dado. A vacinação acontece literalmente a conta-gotas, com doses contadas da CoronaVac, que Bolsonaro e Pazuello sabotaram enquanto puderam, e do imunizante de Oxford-AstraZeneca, em quantidade igualmente racionada.
Sem vacina e, portanto, sem retomada da economia, sem empregos e sem crescimento, o governo não terá outra saída a não ser reeditar alguma forma de auxílio emergencial, como pressiona o bloco de Lira — e teme Guedes.
Vem aí, portanto, um cabo de guerra no Congresso, que até ontem estava em festa, e o abraço da vitória do novo comando do Legislativo nos ocupantes do Planalto já é passado diante da pressão que vai começar.
De um lado, os parlamentares querem dar satisfação a seus eleitores a respeito de quando haverá vacina e de quando poderão retomar suas atividades, algo impossível com o ritmo de contágio e morte a que continuamos a assistir (e para que eventos irresponsáveis como a comemoração de Lira só contribuem).
De outro, os nobres congressistas querem ver entregues as emendas e os cargos prometidos. E também não há dinheiro suficiente para pagar essa fatura.
Diante de uma pauta assim congestionada pelas emergências da pandemia, da economia real e do fisiologismo, só os incautos da Faria Lima ainda podem acreditar que sairão dos escaninhos no curto prazo projetos como reforma tributária, reforma administrativa e privatizações.
Os financistas e empresários podem esperar sentados, como vêm fazendo enquanto assistem omissos e complacentes a Bolsonaro cometer crimes sucessivos contra a saúde pública e a democracia.
Também é muito etéreo e remoto traçar cenários para 2022 com base só no resultado do xadrez congressual, quando a vida nua e crua bate à porta dos políticos acompanhada pela sombra da morte. Quem me disse isso quando questionei a respeito do saldo da eleição das Mesas para a sucessão foi Ciro Gomes, que está acertadamente mais de olho nos indicadores do mundo real que nos conchavos entre um cada vez mais enfraquecido Bolsonaro e um Legislativo com apetite pantagruélico. Eis um encontro que nunca resulta bom para os governantes: o da fome dos políticos com a geladeira vazia do Orçamento e com a gritaria das ruas.