O Globo
Elio Gaspari: A teimosia ignorante de Bolsonaro
Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais
Jair Bolsonaro administra a própria ignorância com o pior dos temperos, a teimosia. Em março passado ele disse que a Covid-19 era uma “gripezinha”, vá lá que fosse, os mortos em Pindorama eram apenas cinco. Em dezembro, ele disse que a pandemia estava no “finalzinho” (os mortos passavam de 150 mil) e um mês antes classificara a segunda onda de contágios de “conversinha”. Veio a tragédia do Amazonas, os mortos já são mais de 233 mil, e a média móvel ficou acima de mil por dia por mais de duas semanas. Conversinha?
O ministro da Saúde, um general da ativa, gosta de brigas. Seu secretário-executivo, um coronel, disse que o governador João Doria estava “sonhando acordado” quando anunciou que a vacinação começaria em janeiro no seu estado. Começou.
Bolsonaro acredita em muitas coisas. A cloroquina ajuda contra a Covid-19, a Amazônia não pode ter queimadas porque é úmida, e a eleição americana foi fraudada. Todas essas crenças têm devotos e, salvo os agrotrogloditas que tocam fogo na mata, nenhum deles causa grandes prejuízos aos outros. No caso da pandemia, a superstição presidencial causa danos. O coronel do Ministério da Saúde talvez não tivesse pulado na jugular de Doria se o Planalto falasse outra língua. Talvez o general Pazuello também não saísse por aí com sua maleta de cloroquina.
O estrago feito, feito está. A eleição para as presidências do Senado e da Câmara mostrou que Bolsonaro não está condenado a perder todas. Ele pode ganhar mais uma: basta esperar o dia em que começará a vacinação dos sexagenários e, em vez de ir a uma padaria numa de suas sortidas cenográficas, para entrar no fim de uma fila de vacinação.
Será um gesto de humildade, exemplo para sua infantaria e desestímulo a seus guerreiros sem causa.
O capitão encantou-se com a popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial e agora está correndo atrás de uma forma de alívio social para as vítimas da crise econômica agravada pela “gripezinha”. Melhor assim, até porque viu sinais de fumaça que poderiam lhe custar um retorno antecipado ao condomínio Vivendas da Barra.
Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais. Escravizado pela marquetagem, seu projeto tem um slogan incompreensível — Benefício de Inclusão Produtiva — e vem sendo concebido como uma árvore de Natal de jabutis para serem digeridos pelo Congresso.
A ideia de um benefício acompanhado de contrapartidas voluntárias perdeu-se na confusão da marquetagem. Afinal, um governo que se apresenta como se fosse capaz de fazer um “Plano Marshall” brasileiro é capaz de tudo. Se o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e pai da marca de fantasia, levasse uma ideia dessas ao general George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército americano durante a Segunda Guerra, seria atingido por um dos acessos de fúria daquele grande chefe militar. E as broncas de Marshall eram mais pesadas que a de Paulo Guedes: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.
Por falar no general Marshall, vale repetir a orientação que ele deu ao diplomata George Kennan quando o chamou para dirigir o planejamento político do Departamento de Estado: “Evite trivialidades”.
Se Bolsonaro e suas falanges evitassem trivialidades, o governo seria outro.
Bernardo Mello Franco: Bolsonaro ganhou fôlego
Jair Bolsonaro ganhou fôlego. Apesar do desastre na gestão da pandemia, o presidente recuperou força no Congresso e afastou, ao menos por ora, o fantasma do impeachment. Seus adversários, que precisavam se organizar para incomodá-lo, queimam energia com intrigas e guerras fratricidas.
Em poucos dias, a ideia de uma frente ampla virou miragem. No campo da centro-direita, o fracasso de Baleia Rossi foi o menor dos males. Partidos como DEM, PSDB e MDB, que ensaiavam se distanciar do bolsonarismo, parecem mergulharar numa espiral de autodestruição.
A briga no DEM é a mais ruidosa, devido à troca de insultos entre Rodrigo Maia e ACM Neto. No entanto, as outras legendas não estão menos divididas. No PSDB, o governador João Doria passou a enfrentar oposição aberta. O grupo de Aécio Neves, que ressurgiu das cinzas como aliado do Centrão, agora ameaça melar suas ambições presidenciais.
No MDB, articula-se um movimento para tirar a burocracia partidária das mãos de Baleia. Viciado em cargos, o partido poderia acabar no colo do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Ele construiria a ponte para um futuro governista, alinhado aos interesses eleitorais do capitão.
O arrastão no Congresso também fez estragos na esquerda. Pela primeira vez, o PT se dividiu na eleição da Mesa Diretora da Câmara. A deputada Marília Arraes se aliou a Arthur Lira para disputar a segunda-secretaria, que distribui medalhas e passaportes diplomáticos. Levou o cargo e desmoralizou a burocracia petista.
Depois da derrota, o ex-presidente Lula indicou Fernando Haddad para concorrer ao Planalto em 2022. Sem ouvir ninguém, irritou correligionários e aliados tradicionais do partido. Guilherme Boulos, do PSOL, pôs o dedo na ferida: antes de apresentar nomes, a oposição precisa discutir projetos.
Sem isso, Bolsonaro terá um caminho mais fácil para a reeleição.
O Globo: Redes sociais entram na mira de parlamentares bolsonaristas
Projetos de lei tentam impedir a remoção de conteúdos de redes sociais e até pedidos de explicação e investigação sobre bloqueios de contas
Marlen Couto, O Globo
RIO — As grandes plataformas de tecnologia entraram na mira de parlamentares e autoridades alinhados ao presidente Jair Bolsonaro da chamada “ala ideológica”. A ofensiva ocorre por meio de projetos de lei para impedir a remoção de conteúdos de redes sociais e até de pedidos de explicação e investigação sobre bloqueios de contas.
Sonar:Após suspensão de conta de bolsonarista, Mário Frias quer explicação do YouTube
O movimento ocorre após plataformas como Facebook, Twitter e YouTube adotarem medidas para restringir publicações desinformativas ou que incitem a violência. Em um mês, foram excluídos perfis do ex-presidente americano Donald Trump após publicações incentivando o ataque ao Congresso dos EUA, postagens de Bolsonaro e do Ministério da Saúde receberem selos do Twitter com aviso de conteúdo desinformativo e o canal bolsonarista Terça Livre foi excluído do YouTube.
Como mostrou O GLOBO na última segunda-feira, a atuação das redes também motivou uma reação do governo Bolsonaro para pressionar as empresas de tecnologia em fóruns internacionais. Em território nacional, a estratégia ficou a cargo principalmente de parlamentares da ala governista do PSL.
Desde que canais do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, entre eles o Terça Livre, foram removidos por violar regras da plataforma, aos menos três projetos de lei já foram protocolados na Câmara para limitar o poder das redes na moderação de conteúdo. O primeiro foi apresentado no mesmo que dia que os canais foram excluídos pelos deputados Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL/SP), Filipe Barros (PSL/PR) e Helio Lopes (PSL/RJ).
O texto propõe ao alterar o Marco Civil da internet para condicionar a decisões judiciais a remoção de postagens ou redução de seu alcance. Na prática, as plataformas não teriam mais autonomia para seguir suas próprias políticas de uso.
Os deputados Caroline de Toni (PSL/SC) e Daniel Silveira (PSL-RJ) também apresentaram projetos. O da deputada permite a responsabilização civil de provedores que “rotularem conteúdos que expressem a opinião do usuário”. Já o de Silveira veda a retirada de mensagens “em desacordo com as garantias constitucionais de liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento”. Ao GLOBO, o deputado argumenta que propôs o projeto porque houve uma “rápida escalada de perseguição seletiva nas redes”.
— Não foi proposto que elas não possam remover. Elas podem, desde que, exista um caso concreto que afete o ordenamento jurídico e moral. O que vem ocorrendo é que estas empresas apenas agem em detrimento de perfis com ideologias políticas antagônicas as de seus CEOs — defendeu.
Leia: Droga Raia é alvo de bolsonaristas nas redes após cancelar anúncios no Terça Livre
Em outra frente, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) acionou na última quinta-feira a Procuradoria Geral da República (PGR) para que abra um inquérito civil e ingresse com ações judiciais, com pedido de liminar, para o imediato restabelecimento dos canais de Allan dos Santos. No dia seguinte, sem citar o blogueiro, o secretário de Cultura, Mário Frias, determinou que a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SDAPI), vinculada ao órgão que comanda, notifique o YouTube para que explique os atos de suspensão de usuários da plataforma.
Allan dos Santos é investigado nos inquéritos que apuram a disseminação de fake news e a organização e financiamento de atos antidemocráticos. O YouTube afirma que os conteúdos do canal Terça Livre não seguiram suas diretrizes. A conta já havia sido notificada duas vezes sobre o descumprimento, uma delas por postar um discurso de Trump sobre o Capitólio, e tentou utilizar uma conta reserva para burlar as políticas da plataforma. Apesar das remoções, Allan dos Santos já voltou a postar vídeos no YouTube utilizando uma conta pessoal que soma mais de 70 mil inscritos.
Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD), João Guilherme Bastos destaca que a reação bolsonarista ganhou força principalmente com a remoção dos canais de Allan dos Santos pelo impacto financeiro que a medida pode provocar na rede de apoio ao presidente nas redes, enquanto as plataformas adotam políticas pouco transparentes para remover conteúdos.
— Essa reação aparentemente desproporcional tem uma raiz material muito nítida, que é o financiamento de toda uma rede de extrema direita que vai perder fonte de renda. Por outro lado, embora no caso do Terça Livre você tenha um ator que de forma recorrente violou políticas e termos de uso, essas políticas não são claras. É simples falar que vai remover postagens de quem divulgar fake news, mas a questão é decidir quem vai determinar ou não o que é uma fake news — alerta Bastos.
Pedro Doria: O Terça Livre é só o começo
Marco Aurelio Ruediger, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV), vê a reação de parlamentares bolsonaristas como uma estratégia voltada para as próximas eleições presidenciais e também critica a falta de transparência das empresas do setor:
— As políticas não são claras e alimentam a possibilidade desse tipo de manobra. Ao mesmo tempo, há um temor de ação mais duras das plataformas. Esse é um movimento preventivo da base do presidente já pensando em 2022 para garantir que seu espaço de atuação fique desobstruído nas redes. O que querem no fundo é que não haja nenhum tipo de moderação.
Procurados para comentar as reações de autoridades alinhadas a Bolsonaro, Facebook, Twitter e YouTube não quiseram se manifestar. Sobre a remoção de canais do Allan dos Santos, o YouTube reiterou que se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios.
Carlos Andreazza: Jaca não vira cereja
Arthur Lira venceria mesmo sem o patrocínio de Bolsonaro. Talvez fosse mais difícil, com segundo turno; mas venceria. Venceu porque não teve adversário. Ou melhor: tinha a vitória encaixada quando finalmente o quiseram enfrentar. E, quando Baleia Rossi tentou, foi Mario Andreazza contra Paulo Maluf na convenção do PDS em 1984: crente numa campanha terceirizada e de gabinete, dedicada a pedir votos de parlamentares a governadores, prefeitos e líderes partidários; isso enquanto o adversário mercadejava no mano a mano, pé na estrada, falando aos iguais com a linguagem que cativa os que comerciam poder.
Lira tinha já costurados pelo menos 200 votos quando Rodrigo Maia ainda contava com o golpe de Alcolumbre pela reeleição; o que significou frustrar expectativas de aliados que esperavam a vez. Não há deputado fiel a ponto de aceitar um presidente da Câmara permanente; o que equivaleria a aceitar o próprio engessamento.
Maia — um bom presidente — confundiu seu tamanho com o do cargo. Sua dimensão individual parecia maior não porque tivesse crescido muito — mas porque era muito baixa a estatura média dos pares. Desqualificados, os que compõem o pior Parlamento da história, que, no entanto, têm o mesmo peso de voto.
Maia tomava café frio desde que o Supremo derrubara o movimento golpista contra a Constituição. Errou demais e em pouco tempo. Apostou —dizendo não querer — em que o STF lhe daria o direito casuístico de se reeleger. Então estimulou ao menos cinco candidaturas inviáveis. Esperava que um impasse entre esses aguinaldos resultasse na ascensão de seu nome como solução pacificadora. Quando o golpe fracassou, aquele arranjo fantasioso — o dos vários bivares insuflados a uma sucessão sob seu controle — impôs-lhe a anarquia. Exatamente o terreno em que melhor prospera o bolsonarismo, o do caos. Maia — cuja gestão se baseara na confiança dos pares — havia perdido. E talvez seja o caso de avaliar se não seria derrotado mesmo sendo ele próprio o candidato.
Lira fez a leitura correta. Propôs nova partilha de poder — perspectiva de novas lideranças. E levou. Agora é Lira. E Lira é Lira, é Lira, é Lira. Como Bolsonaro é Bolsonaro. Se ainda não tivermos aprendido: jaca não vira cereja. Com poder, mais jaca será. Será Lira na presidência da Câmara. Jaqueira. Para Bolsonaro, um investimento na blindagem contra impeachment e nas condições para o exercício fiscal do populismo financiador daquilo em que somente pensa: a reeleição.
Atenção. Não é que Bolsonaro de súbito se tenha convertido ao Centrão — ele comeu naquelas bordas por três décadas. É produto daquela engenharia com fim em si mesmo. Nem que o Centrão de repente vá transformado em bolsonarista — a lógica de funcionamento do varejo legislativo sempre encontrou campo de expansão favorável associada ao motor autocrático. Havendo bilhões, um alimenta o outro.
Será, pois, Lira no comando da Câmara: fiando o jorro de dinheiros para enfrentar a pandemia que Bolsonaro — criador de dificuldades para colher oportunidades eleitorais — faz prolongar. Grandes reformas? Antes seria necessário o governo apresentá-las. E depois — em vez de jogar aqueles fatias requentadas de tributária e administrativa no Parlamento — trabalhar por elas. Não creio. Creio na nova CPMF, porque alguém terá de pagar a conta.
A ideia otimista de que o governo doravante não terá mais desculpas para não aprovar as reformas é ingênua. Tem como pressuposto a mentira de que Maia as impedia. A verdade é que Bolsonaro e seus sócios jamais diminuirão a fartura da teta em que se alimentam; no caso do presidente, há 30 anos, para a edificação de bem-sucedida empresa familiar. Privatizar? Isso corresponderia a diminuir o volume de leite condensado com que chupadores como Bolsonaro e Lira incham a pança.
Como escrevo aqui há meses: o auxílio emergencial voltará — e no improviso. Tem sido assim. O governo nada faz, a miséria se aguça, o Congresso reage — pressionado pela inação calculada de Bolsonaro —, e o presidente ganha um cartaz para chamar de seu. O Parlamento se mexe; o Planalto colhe os louros. Isso é perfeitamente alinhado aos interesses do Centrão; um parceiro que não se incomoda — desde que mamando — em ancorar um programa de reeleição fiscalmente irresponsável que, uma vez alcançado, tende a se desdobrar na volta dos avanços golpistas.
Para além de garantir proteção e guarida a seu populismo, Bolsonaro — o maior empenhador de emendas parlamentares da história — patrocinou a ascensão de Lira de modo a interditar, plantando desconfiança, qualquer movimento desde o centro para desafiá-lo em 2022. Por exemplo: a eleição na Câmara indica — com o abraço provinciano de ACM Neto — ser mais fácil o DEM compor com Bolsonaro do que numa chapa de oposição. O presidente engajou o que o Tesouro não tem para desarticular o pouco que havia de centro, petrificar o tabuleiro e ter como adversária — numa nova peleja entre rejeições — a esquerda figurada em Lula ou em seu cavalo da vez.
Uma eleição que reproduza “ele não” para cada lado. É o paraíso para Bolsonaro, convencido de que eleitores que lhe deram o voto em 2018 — mesmo os que ora rejeitam seu governo — repetirão a escolha se ante a possibilidade de o PT voltar ao poder.
Míriam Leitão: Crise de produção e preços em alta
Os preços estão subindo fortemente dentro da indústria e há uma crise de suprimento. Altas da ordem de 60% no aço e de 63% nas resinas para plásticos. Embalagens continuam em falta. E os chips. Resultado de uma forte desorganização produtiva. O IPA industrial subiu 30% em 12 meses, e só em janeiro chegou a 4,48%. Para os consumidores também as contas estão chegando, os planos de saúde, combustíveis e material de limpeza sobem. Os preços dos alimentos vão cair porque a safra foi boa, mas menos do que se esperava. O IPCA mensal vai ficar em níveis baixos, mas o índice anual vai subir.
Dentro da indústria, o que está acontecendo é definido pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, como “pancada de custos e falha no suprimento”.
— Quando a economia parou, aqui e no mundo, todas as grandes aciarias desligaram fornos. Foram cinco desligados. Para religar, leva 60 a 90 dias, porque se perde os refratários internos. Isso gerou um atraso que não se tirou até hoje. Quando a demanda voltou em junho não tinha como entregar. Na metalurgia, muitas plantas anteciparam a manutenção preventiva. Nas embalagens, falta caixa de papelão, assim como latas de cervejas, porque no Brasil 70% do papelão é produzido por matéria-prima dos recicladores, as carrocinhas das grandes cidades — diz José Roberto Mendonça de Barros.
Os produtores de vidro durante a crise tiveram um alto custo. Para não parar os fornos eles produziam, quebravam os vidros e retomavam a produção. Agora tem demanda, mas a barrilha é importada, o dólar subiu, e o gás teve alta de preços, explicou uma fonte do setor.
— Falta frasco de vidro, garrafas, vidro para conservas. Garrafas para cerveja, se houver aumento de demanda, não têm para entregar —diz Mendonça de Barros.
Quanto disso vai ser repassado para o consumidor? A demanda vai cair neste primeiro semestre e deve segurar parte desse repasse. O IPCA de janeiro vai ser divulgado hoje e não será alto. Deve ficar entre 0,30% e 0,35%, mas ao longo do primeiro semestre o índice baterá em 6,5% em 12 meses, explica o professor Luiz Roberto Cunha. É que no ano passado os índices foram baixos ou negativos.
— A alimentação está desacelerando gradualmente, mas tem pressão de diesel, o vestuário está em alta. Em fevereiro, deve pesar a educação e tem uma certa confusão na energia elétrica que agora está sem a bandeira vermelha, mas que durante o ano vai subir — diz Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio.
Em 2020, o consumo de energia caiu. Por mais estranho que pareça, consumidor vai pagar mais por isso. A distribuidora teve prejuízo com a queda da demanda, e agora a conta vai para o consumidor. As empresas explicam que, para dar garantia de fornecimento, elas compram antecipadamente a energia. Se a demanda cai, ela continua pagando por essa energia. Em resumo: o consumidor sempre paga a conta.
A economia está vivendo um período bem confuso. Recessão com choque de custos, falta de produto e dificuldade de importar.
— Quando a demanda voltou, o dólar estava em R$ 5,50 e faltava navio. No mundo inteiro, houve aumento de pedidos e faltou navio. O preço do frete subiu. O preço de transportar por contêiner multiplicou-se por quatro — diz Mendonça de Barros.
Para o consumidor, o começo do ano sempre tem vários gastos extras, mas desta vez a pressão vem em momento de queda de renda e de elevação da incerteza. Além da energia, que pode ter reajustes de dois dígitos durante o ano, os planos de saúde estão cobrando a conta e a compensação por terem reajustado menos no ano passado.
Tanto para o consumidor quanto para o produtor industrial a situação está complicada. A desorganização produtiva fez com que em muitos casos o produto esteja pronto, esperando apenas uma peça. É por isso que há 250 mil carros vendidos e não entregues e 150 mil motos. E há coisas surpreendentes.
— Falta chip no mundo inteiro. Aqui e em outros países. Todo mundo trabalhando em casa houve uma demanda extra por equipamentos de informática. E como os chips para informática são mais sofisticados do que os que vão nos carros, os fabricantes mudaram a produção e agora falta produto — diz José Roberto.
Mendonça de Barros diz que “está sempre acontecendo coisa nova ruim no Brasil”. Desta vez, contudo, há um grau exagerado de confusão.
Demétrio Magnoli: Moro, o ‘nada jurídico’
Rosangela Moro, advogada do marido, acionou o STF pedindo a Fachin a revogação da liminar de Lewandowski que dá à defesa de Lula acesso às mensagens trocadas entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa de Curitiba. A reclamação ilumina o desprezo do Partido da Lava-Jato pela verdade factual e, ainda, pela verdade jurídica.
A peça da advogada repete as duas alegações básicas do ex-juiz e dos procuradores: 1) “Não há prova da autenticidade das mensagens”; 2) As mensagens “não provam fraude na condenação ou suspeição do juiz”.
A primeira afirmação é uma tentativa de circundar, por um artifício jurídico, a questão da verdade factual. Temendo cometer perjúrio, os acusados não declaram que as mensagens são falsas — mas referem-se a elas como se fossem diálogos entre terceiros desconhecidos sobre os quais nada sabem.
A segunda afirmação, se verdadeira, tornaria a primeira desnecessária. Afinal, se os diálogos não contêm ilegalidades, por que não admitir sua autenticidade? Contudo, como as trocas de mensagens evidenciam graves violações da lei, a advogada tira da cartola um terceiro coelho manco e solicita a eliminação processual delas: seriam um “nada jurídico”, devido aos meios ilegais utilizados na sua obtenção.
Nos diálogos, Moro oferece orientações aos procuradores sobre fontes, os instrui sobre possíveis provas e combina com eles a sequência de operações policiais. São evidências abundantes de conluio entre o Estado-julgador e o Estado-acusador. A gangue de Curitiba suprimiu do processo legal o juiz imparcial.
A verdade jurídica não é idêntica à verdade factual, pois a segunda só se torna a primeira quando percorre a estrada do devido processo. Sorte de Moro e de seus comparsas: a verdade factual expressa nas trocas de mensagens seria suficiente para condená-los por subversão do processo legal, se não tivesse vindo à luz pelo túnel da ilegalidade. Tal circunstância não implica, porém, a completa invalidação jurídica dos diálogos criminosos.
A jurisprudência não admite o uso de provas obtidas ilegalmente para condenar alguém, mas permite utilizá-las para sustentar a presunção de inocência. Lula pode até ser factualmente culpado — mas, na vigência do estado de direito, não é possível condená-lo ao arrepio do devido processo. É dever do STF anular as sentenças condenatórias do líder petista tingidas pela mão de gato de Moro.
Moro enxerga a lei como fonte de privilégios e discriminações. No pacote anticrime que formulou quando ministro de Bolsonaro, introduziu o “excludente de ilicitude”, mecanismo destinado a impedir a punição de crimes cometidos por policiais. Na reclamação ao STF, sua advogada alega que as trocas de mensagens “não provam inocência” de Lula, como se cidadãos acusados tivessem o ônus de provar ausência de culpa.
“Nada jurídico” — o qualificativo não serve para invalidar os diálogos que repousam no STF, mas define à perfeição os processos conduzidos pelo Partido da Lava-Jato. As mensagens expõem acertos entre o juiz e os procuradores para plantar notícias na imprensa e financiar a divulgação de propostas legislativas, além da ambição de reformar o sistema político-partidário. Nada jurídico, tudo político: a gangue manipulava suas prerrogativas de agentes da lei para deflagrar um projeto de poder centrado na figura de Moro.
A demanda da advogada ao STF pretende soterrar tanto a verdade factual quanto a jurídica. A guerra contra a verdade tem a dupla finalidade de evitar a desmoralização jurídica da gangue e de conservar os resíduos de um projeto político envenenado pela associação de Moro com Bolsonaro.
Na hora da morte da força-tarefa, o Partido da Lava-Jato conta com três fiéis militantes no STF. Mesmo assim, diante do grito das evidências, a manutenção integral das condenações tornou-se um sonho improvável. Circula, por isso, a ideia criativa de preservar, ao menos, o legado da interdição de candidatura de Lula. “In Fux We Trust”: o compromisso imoral concluiria, melancolicamente, a trajetória de juízes que confundem a lei com suas próprias convicções políticas.
Fernando Gabeira: Roteiro para tempos difíceis
O Congresso caiu nas mãos de Bolsonaro. É o fato da semana.
Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.
Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.
Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.
Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.
As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.
A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.
O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.
Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.
Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.
É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.
Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.
Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.
É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.
E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.
O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.
Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.
É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.
Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.
O Globo: Centrão investirá em projetos contra o legado da Lava-Jato
Fazem parte dessa agenda não propagandeada ainda a proibição de buscas em escritórios de advocacia
Bruno Góes e Natália Portinari, O Globo
BRASÍLIA - Fora da lista de projetos citados como prioritários pelo presidente Jair Bolsonaro, em um documento direcionado a deputados e senadores, uma pauta “oculta” deverá ganhar corpo no Congresso, impulsionada pela ascensão do centrão. Aliados do presidente da Câmara, Arhur Lira (PP-AL), e até integrantes da oposição enxergam o novo momento como propício para o avanço de propostas que afrouxam a punição para crimes associados ao mau uso de dinheiro público e à corrupção. Fazem parte dessa agenda não propagandeada a limitação da punição em casos de improbidade administrativa e lavagem de dinheiro, além da proibição de buscas em escritórios de advocacia.
Na outra ponta, duas Propostas de Emenda à Constituição — a da prisão após a condenação em segunda instância e a que extingue o foro privilegiado — seguirão a passos lentos, na mesma toada da gestão do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Uma das prioridades do centrão é um projeto que diminui o alcance da lei de improbidade administrativa e elimina a forma “culposa” — sem intenção — do ato. De acordo com o relatório do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), já entregue, as violações que não gerassem prejuízos ao Erário ou enriquecimento ilícito deixariam de ser enquadradas como improbidade.
— Essas matérias não estão na lista de prioridades do governo, então podem entrar na pauta caso os líderes (partidários) queiram. Pessoalmente, sou a favor de mudar a lei de improbidade, para incluir só o que causa prejuízo ao Erário. Hoje, qualquer coisa é improbidade, e as penas são muito altas — diz o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).
Liberação das armas e escola em casa: veja quais são os projetos prioritários de Bolsonaro
Zarattini frisa que, com as mudanças, a lei vai continuar a permitir o bloqueio de bens e suspensão de direitos políticos daqueles que cometem improbidade:
— A lei não pode ser tão ampla. Há casos em que há condenações mesmo sem ter havido irregularidades.
No ano passado, a Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal classificou as alterações pretendidas como “um dos maiores retrocessos no combate à corrupção e na defesa da moralidade administrativa”.
Em 2020, a Câmara criou ainda uma comissão de juristas para discutir a tipificação da lavagem de dinheiro. Nos primeiros debates, advogados fizeram sugestões para amenizar as punições previstas na lei e tornar mais difícil a condenação por lavagem, que passaria a exigir um crime antecedente.
Aliados de Lira ouvidos pelo GLOBO avaliam que esse tema deve caminhar mais lentamente — ainda não há previsão de quando o colegiado vai voltar a se reunir —, mas que há boas chances de avanço. Quando os encontros forem retomados, é provável que o número de pessoas envolvidas no debate seja reduzido, o que facilitaria o andamento.
Também no fim do ano passado, a Câmara aprovou a urgência da proposta que impõe obstáculos a mandados de busca e apreensão em escritórios de advocacia. O projeto, portanto, pode ir a plenário a qualquer momento.
O texto torna praticamente inviolável o escritório ou local de trabalho do advogado. Não poderão ser expedidas buscas com fundamento em indício, depoimento ou colaboração premiada, sem a presença de provas periciadas e validadas.
— Não agrada 100% a todos, mas tem espaço para consenso e votação. É preciso buscar o que a Constituição já estabelece para proteger o exercício da advocacia, mas não é respeitado — diz o deputado Paulo Abi Ackel (PSDB-MG).
Atuação anti-moro
Crítico da Lava-Jato e réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF) — ele nega os crimes —, Lira sempre foi um dos parlamentares mais empenhados no Congresso a impor obstáculos à pauta do ex-ministro Sergio Moro. Em 2019, atuou para aprovar a Lei do Abuso de Autoridade e para modificar pontos do pacote anticrime, proposto por Moro. Agora, a avaliação no Congresso é que há consenso para a aprovação de uma quarentena eleitoral para juízes, integrantes do Ministério Público e policiais. Para o cientista político Carlos Pereira, professor da FGV, o pacote de intenções do centrão não necessariamente encontrará apoio majoritário entre os parlamentares.
— É fundamental lembrar que a situação do governo com o centrão não é majoritária, nada garante que a última vitória será reproduzida e convertida em políticas concretas no Parlamento. Acredito ser muito mais fácil a progressão de pautas econômicas, alinhadas à centro-direita, do que temas sobre costumes ou mesmo conectados com a Lava-Jato.
(Colaborou Filipe Vidon)
Míriam Leitão: O diplomata que virou pária
No Itamaraty, a expectativa é a de que Ernesto Araújo deixe de ser ministro em março. Seria um alívio para várias gerações de diplomatas, porque ele feriu normas essenciais da boa diplomacia. Um dos problemas para tirá-lo é saber para onde ele pode ser removido. Ele gostaria de ir para Paris, mas o risco é o governo de Emmanuel Macron não dar o agrément, que é o consentimento do país que recebe. Outro risco é o de constrangimento em sessão do Senado, que recentemente rejeitou o nome do embaixador indicado para Genebra, num recado para Araújo. Por isso, uma das possibilidades aventadas é a OCDE, posto que não exige sabatina, já que é uma espécie de embaixador alterno.
Há uma maioria sólida de adversários de Araújo dentro da carreira, mas os últimos acontecimentos aumentaram a indignação. Os olhos dos diplomatas brasileiros acompanharam com estupefação a atitude de Ernesto Araújo na cena em que Jair Bolsonaro berrou palavras sórdidas contra jornalistas numa churrascaria. O ministro aplaudiu, deu gargalhadas, gritou “mito”. Isso provocou repulsa generalizada. Não é nem mais uma questão de gostar ou não do governo, disse uma fonte diplomática, aquilo aviltou a própria Casa, até porque houve matérias no exterior descrevendo a baixeza da cena.
Ernesto Araújo tem também adversários fora do Itamaraty. O vice-presidente Hamilton Mourão recentemente falou que ele sairia, mas com isso lhe deu uma sobrevida. Na entrevista ao “Valor”, publicada na edição de sexta-feira, o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, define o centrão como “estabilizador do governo” e diz que “a condução do Itamaraty hoje prejudica o Brasil” e por isso “tem que mudar”.
Os críticos de Ernesto podem ter motivos diversos, mas existem fatos concretos contra ele. Na área científica do governo, a convicção é que o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que acaba de chegar da China para a Fiocruz, demorou semanas a mais pelos atritos criados pelo ministro com os chineses. No caso da Índia, a trapalhada de anunciar a ida do avião antes de conversar com as autoridades indianas causou o maior ruído no país fornecedor. A diplomacia existe para aplainar terrenos, desatar nós, dissolver conflitos. O pior problema não são os delírios persecutórios de Ernesto Araújo, mas o prejuízo que ele dá aos cofres públicos, anulando o empenho de servidores qualificados para o trabalho diplomático.
— A grande maioria dos nossos colegas acha que ele não tem o direito de destruir o Itamaraty como tem feito. O problema não é ideológico. O caso dele é clínico. Já há claros sinais precursores de que o tempo dele está terminando. O problema é achar um posto que o aceite. Ele queria que o Brasil fosse um pária, ele se tornou um pária — resumiu uma fonte diplomática.
Naquela série de tuítes sobre o assalto ao Capitólio, Ernesto Araújo fez um raciocínio tortuoso, quase justificando a violência com a hipótese, nunca confirmada, de “infiltrados”. Definiu os invasores do Congresso como “cidadãos de bem” e ainda disse, num comentário descabido, que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política”. Queria, claro, transpor para o Brasil. Esse episódio, o reiterado embate com a China, as trapalhadas frequentes com vários parceiros obrigam muita gente a consertar seus estragos. Suas ações têm um amadorismo que envergonha uma diplomacia outrora orgulhosa do seu profissionalismo.
Quem poderia ir para o lugar de Ernesto Araújo? Há quem fale na ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se a escolha for de fora da carreira. Ela impressiona os diplomatas pela sua habilidade em negociação, apesar da incapacidade de entender o cerne do problema ambiental, que será mais importante durante o governo Biden. Se for da carreira, há pelo menos um que faz campanha com bajulações explícitas, e há os que têm chances de reequilibrar o Itamaraty. Existem muitos que preferem distância do atual governo.
Ernesto Araújo tem levado doutrinadores extremistas para falar para os diplomatas jovens e estudantes do Instituto Rio Branco. Não tem tido sucesso nessa tentativa de lavagem cerebral, como se viu pela última turma, que escolheu o poeta João Cabral de Melo Neto como patrono. Ernesto Araújo, ao violentar tanto as normas da boa diplomacia, tem produzido sua antítese. Está aumentando no Itamaraty a defesa da diplomacia como carreira de Estado.
Dorrit Harazim: Pente finíssimo
Esta foi a semana inaugural da vice-presidente pinçada por Joe Biden para estar a seu lado — ou no seu lugar — no comando do país até 2025. Foi de Kamala Harris o voto de minerva no Senado que permitiu a tramitação do pacote emergencial de estratosféricos US$ 1,9 trilhão (R$ 99,5 trilhões) destinado a reparar a devastação nacional causada pela Covid-19. A votação durou 15 horas, terminou às 5h30m da madrugada de anteontem, e sua tramitação recheada de 40 emendas volta agora para a Câmara dos Representantes. Um marco e tanto.
A partir de terça-feira, quando o segundo pedido de impeachment de Donald Trump aportar no mesmo Senado rachado em 50-50, a inquisitiva ex-senadora Harris fará falta nas arguições — se arguição houver. É mais provável que nem sequer haja condenação, pois, para ser aprovada, são necessários dois terços dos votos. Na improvável hipótese de que seja aceita uma votação extra, por maioria simples, sobre Trump ser proibido de exercer qualquer cargo público futuro, Kamala estará a postos em caso de empate na votação. Ao longo da história, o voto de minerva que compõe as atribuições da Vice-Presidência já foi exercido 268 vezes.
A equipe de Biden que garimpou Kamala Harris trabalhou em duplas por três meses durante a campanha. Da primeira seleta de 23 sabatinadas, e da avaliação das montanhas de documentos por elas fornecidos, haviam sobrado 11. Várias chegaram a classificar o questionário de mais de 120 perguntas como “invasivo” e “extenuante”. Ao final de 120 horas de entrevistas, sobraram Kamala e Susan Rice, a assertiva ex-assessora de Segurança Nacional de Barack Obama, também negra. Biden só foi chamado a tomar sua decisão histórica na reta final. E, sendo quem é, telefonou pessoalmente às 11 descartadas para atenuar o desapontamento e agradecer a dedicação.
A cortesia e civilidade do 46º ocupante da Casa Branca são inerentes a sua índole. Mas o rigor na seleção de quem deve ou não se juntar à equipe, Joe Biden aprendeu com Barack Obama, seu chefe e parceiro inseparável por oito anos. O presidente americano de número 44 entrará para a história com uma marca invejável: permaneceu no cargo por dois mandatos sem um só grande escândalo financeiro, ético ou moral por parte de sua equipe. Obama traçara essa linha vermelha por saber que o grande teste de liderança para qualquer presidente começa na escolha dos que ocuparão cargos críticos no governo. O Brasil e Jair Bolsonaro que o digam.
O método Obama foi impiedoso com os postulantes. Tinha como pedra fundamental um questionário de 63 itens que não deixavam nada insepulto. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um presidente submetia a crivo tão invasivo candidatos aos 15 cargos do primeiro escalão e aos 800 postos executivos que dependem de aprovação pelo Senado. No total, o questionário contemplou todos os cerca de 7 mil postos do governo federal sujeitos à indicação do presidente. Vários postulantes de renome acabaram desistindo no meio do caminho. Outros recorreram a advogados próprios para se aconselhar sobre os riscos de omitir algum pecadilho por e-mail, alguma distração financeira, alguma referência acadêmica imprecisa.
E aquela contratação de doméstica sem registro, dez anos antes? Sim, porque o tal questionário esquadrinhava retroativos a uma década. Qualquer presente de mais de US$ 50 recebido de pessoa fora do círculo familiar ou amical precisava ser listado. O propósito do questionário não era montar um governo reservado a virgens de qualquer pecado. Para Obama, tratava-se de conhecer os riscos da contratação. Não era necessariamente um veto, serviria de norte. E funcionou.
À época, o advogado E. Pendleton , sabatineiro de candidatos na era Ronald Reagan, indignou-se: “Não entendo como alguém com um mínimo de autoestima possa se sujeitar a tudo isso... É apavorante, qualquer candidato que preencha o questionário fica em pânico de ter cometido algum engano”. Os sabatineiros da era Obama trabalhavam seguindo o mantra do “se nós achamos algo, alguém mais também vai acabar achando”.
Biden conhece como poucos as armadilhas do poder, em particular as do Legislativo, onde atuou por mais de 30 anos. Estava atento quando Trump, a poucas horas de partir da Casa Branca, deu uma última carteirada braba: aboliu a quarentena de cinco anos que impedia ex-funcionários federais de exercer a profissão de lobista. Uma das primeiras ordens executivas de Biden ao se sentar no Salão Oval foi restabelecer a proibição por pelo menos dois anos. Também vetou a difundida prática conhecida como “paraquedas dourados”, que permitia aos novos nomeados receber mimos de ex-patrões do setor privado.
Fred Dombo é especialista em legislação de lobby e ética de compliance num grande escritório de advocacia de Washington. Sua avaliação da questão é de veterano. Acha louvável a retificação de curso acenada por Biden, mas conclui que, no final das contas, o decisivo acaba sendo sempre o indivíduo — picareta não se torna honesto por implementação de normas. Nem quem é honesto vira picareta diante de oportunidades.
Em tempo: o link para o Questionário Obama é https://cutt.ly/kkxCcUO
Vale dar uma espiada e imaginar sua aplicação no Brasil.
Elio Gaspari: A Lava-Jato morreu na infância
Acabou-se a força-tarefa de Curitiba que durante sete anos mostrou ao país o maior esquema de corrupção de sua História. Morreu sem choro nem vela. Empreiteiros corruptos e onipotentes foram para a cadeia, suas empresas encolheram, milhares de empregos sumiram, e nenhum deles ficou pobre. O juiz Sergio Moro tornou-se uma celebridade nacional, mumificou-se indo para o Ministério de Bolsonaro e de lá para a humilhação pública. Alguns procuradores lambuzaram-se com a fama. Ninguém saiu da Lava-Jato como entrou, e ninguém saiu bem dela.
Só a poesia de Paulinho da Viola captura o tamanho dessa tragédia:
“A marca dos meus desenganos ficou, ficou. (...)
Foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar.”
A Lava-Jato prendeu um ex-presidente da República e destruiu a máquina do comissariado petista que havia se associado a caciques do Centrão. Em 2004, antes que a Lava-Jato surgisse, o juiz Sergio Moro escreveu um artigo louvando a campanha de combate à corrupção que deslegitimou o sistema partidário da Itália. Com a fama que conquistou, aninhou-se num governo, que prometia uma “nova política”. Podia-se fazer tudo pelo juiz de Curitiba, menos o papel de bobo. Enquanto ele dava esse salto, seus colaboradores concebiam uma fundação bilionária. A “nova política” tornou-se o novo nome do Centrão, com suas obras e suas pompas.
Numa trapaça da História, a Lava-Jato de Curitiba morreu nos mesmos dias em que voltam a ser conhecidos, com mais detalhes, as conversas promíscuas e primitivas que tinham em suas redes. (Eles continuam dizendo que os diálogos são “supostos”. Supostas foram as falas messiânicas com que embrulhavam o devido processo legal).
Em seus quase 200 anos de História, o Brasil teve solavancos e ditaduras, mas nunca teve um governo internacionalmente comprometido com o atraso. (D. Pedro II nunca saiu pelo mundo defendendo a escravidão).
Em 1831, depois de ter assinado um tratado com a Inglaterra, o governo brasileiro proibiu a importação de escravizados. O Centrão daquele tempo mastigou a lei, e o tráfico só foi suspenso em 1850. Nesse período entraram no Brasil 800 mil escravizados. O contrabando alimentava uma economia que cevava a política de senhores vestidos como europeus. Como ensinou Mark Twain, a história não se repete, mas às vezes rima.
Registro
Sumiu do radar a privataria dos quatro milhões de vacinas que seriam comprados por um clube de empresários.
Fica o registro de que no escurinho da rede, nas conversas que envolviam o presidente da Fiesp, doutor Paulo Skaf, um magano disse que estava disposto a entrar na operação, pois havia recebido telefonemas de Fábio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, e do senador Flávio Bolsonaro.
Harvard fez o certo, 38 anos depois
Lawrence Bacow, presidente da veneranda universidade Harvard, dirigiu-se à sua comunidade para reconhecer e condenar os assédios sexuais do professor Jorge Dominguez contra jovens colegas e alunas.
Terminou assim um caso que começou em 1983. Sempre que possível, ele foi varrido para baixo de um tapete. Dominguez, conhecido historiador da América Hispânica, assediou a jovem colega Terry Karl durante dois anos. Ela denunciou-o, ele foi afastado de decisões que a envolvessem e tirou uma licença. Karl foi para Stanford, o caso foi mantido em sigilo, e o professor seguiu sua carreira, com sucesso. Chegou a vice-diretor de assuntos internacionais da universidade.
A presidente de Harvard, a professora Drew Faust, visitou o Brasil em 2011 em grande estilo e trouxe Dominguez em sua comitiva. À época, o historiador Kenneth Maxwell expôs a bizarrice.
Em 2018, eram 18 as denúncias contra Dominguez, e ele aposentou-se. No ano seguinte, foi destituído de todos os títulos e convidado a não frequentar o campus. Resolvera-se uma questão, a dos assédios.
Faltava enfrentar a cultura do abafa de Harvard. Ela foi resolvida agora, 38 anos depois da denúncia de Terry Karl. Felizmente, as mulheres não desistiram.
Amil
Na segunda-feira, uma senhora de 90 anos, cliente da Amil há 20, pagando R$ 4 mil mensais, chegou com dores à emergência do Hospital Santa Teresa, em Petrópolis.
Ficou duas horas numa sala de espera cheia, e sua acompanhante ouviu que o sistema da operadora estava fora do ar, sem previsão de retorno.
Tentaram falar com a Amil por telefone e ouviram gravações. Conseguiram uma maca e um cubículo.
Quatro horas depois, transferiram-se para um outro hospital particular.
Estavam lá quando, às 23h55m, a Amil finalmente autorizou a internação.
Em 2014, a mão invisível das operadoras enfiou um jabuti numa Medida Provisória, graças ao qual o valor das multas cobradas às operadoras seria decrescente. Quanto mais delinquissem, menor o valor da multa. Dilma Rousseff vetou a gracinha.
À época, o pai do jabuti, dono da Amil, se explicava:
“O sistema caiu e foram negados centenas de procedimentos, não é justo que por causa disso se cobrem centenas de multas.”
“Você demitiu o diretor de TI?”
“Não.”
Esses sistemas são espertos, caem para negar atendimento, mas nunca erram concedendo-os por engano.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e ouviu o presidente da Anvisa, o médico-contra-almirante Barra Torres, dizer o seguinte:
“A Anvisa tem 22 anos. Nesses 22 anos, pouquíssimas vezes houve necessidade de tamanha movimentação política. E é necessário isso? Não é, porque no final quem define são os técnicos.”
O cretino desconfia que Barra Torres não lê jornal. No dia 21 de outubro, o capitão Jair Bolsonaro escreveu um texto no qual se referia ao que chamaria de “a vacina chinesa do João Doria”, assegurando: “NÃO SERÁ COMPRADA”. (Maiúsculas dele.)
Felizmente, o Brasil já comprou mais de dez milhões de vacinas chinesas.
Ulysses Guimarães dizia que as pressões políticas lhe faziam bem. Mal, fazem a ignorância ou as malfeitorias.
Arremate
Na terça-feira, a menina Ana Clara Machado, de cinco anos, brincava na porta de sua casa, em Niterói, levou um tiro e morreu.
A versão da Polícia Militar foi a de sempre: confronto. Ana Clara foi a quarta criança morta neste ano.
Em setembro de 2019, num episódio semelhante, a menina Ágatha Félix, de oito anos, estava com a mãe dentro de uma Kombi quando foi morta por um tiro disparado por outro PM. Era a quinta criança morta no Rio.
O poeta Armando Freitas Filho contou esse caso no seu recente livro, “Arremate”:
“Rio
Só podia ser de ágata
De ferro e de esmalte
Como todos os demais.
Colegas, amiga de tantas
Outras e outros — meninas.
Meninos — que são perfurados.
Nenhuma bala é perdida.
Através dos dias são certeiras.
Não erram nunca ninguém:
Os que matam e morrem”.
Merval Pereira: Verdades escondidas
Uma disputa domina os bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionada ao processo politicamente delicado de declaração de parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro na condenação do ex-presidente Lula pelo triplex do Guarujá. Trata-se da permissão à defesa do ex-presidente Lula pelo ministro Ricardo Lewandowski de ter acesso aos diálogos entre o então juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato de Curitiba, notadamente Deltan Dallagnol, roubados por hackers.
Nesta terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal toma uma decisão fundamental para o desenrolar do julgamento, que deve ser finalizado ainda nesse primeiro semestre. Os ministros Carmem Lucia e Edson Fachin já votaram a favor de Moro, considerando que não há provas de ilegalidades no processo. Restam os votos de Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que votam em conjunto contra a Lava-Jato, e o de Nunes Marques, cujo voto pode revelar qual é a posição do presidente Bolsonaro.
Só que essa questão, que precede a principal, deveria ser definida pelo plenário do STF, de acordo com decisão anterior do ministro Edson Fachin, que é o relator dos casos da Lava-Jato. O ministro Ricardo Lewandowski, por uma manobra dos advogados de Lula, e falha da secretaria-geral do Supremo, recebeu o habeas-corpus sobre as mensagens roubadas e autorizou o que Fachin anteriormente negara. Pretende levar o caso para a 2ª Turma, onde, acredita ter maioria contra Moro, antes que o plenário decida.
Embora o que esteja em pauta na 2ª Turma seja apenas o caso do triplex, já há um movimento para que a eventual anulação atinja todos os processo contra Lula. O que está por trás dessa disputa é a tentativa de suplantar a Lei da Ficha-Limpa, permitindo que ele concorra à presidência em 2022. Não seria nem preciso que os próprios ministros antilavajatistas pedissem a extensão da anulação, pois bastaria que os advogados de Lula requeressem essa extensão para abrir-se uma nova disputa judicial sobre os efeitos da anulação.
A outra condenação em segunda instância de Lula foi pelo caso do sítio de Atibaia, mas com um detalhe específico: embora Moro tenha começado o processo, saiu antes do fim para assumir o ministério da Justiça do governo Bolsonaro, e quem condenou Lula foi a juíza Gabriela Hardt. Mas há quem defenda a tese de que se Moro orientou o processo, ele também tem que ser anulado.
Até agora, todas as acusações contra o juiz são baseadas nos diálogos roubados por hackers, o que tornaria essas provas inválidas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já definiu que elas não podem ser usadas, mas a defesa de Lula recorreu ao STF. Em contraponto, a defesa do ex-ministro Sérgio Moro recorreu diretamente ao ministro Edson Fachin, contra a decisão de Lewandowski de liberar os diálogos, considerando que ele não é o “juiz natural” do caso.
Fachin faz parte da 2ª Turma, e deve reivindicar na terça-feira que seja cumprida sua decisão de levar o tema a plenário. O uso retórico dos diálogos como base da acusação de parcialidade de Moro está sendo feito há muito tempo, desde que foram revelados pelo site The Intercept Brazil, mas até agora não houve uso formal. Se o plenário do STF reafirmar que provas conseguidas ilegalmente não podem ser usadas, os ministros da 2ª Turma que votam contra Moro perderão seus argumentos. Terão apenas a primeira acusação da defesa de Lula, de que aceitar de ser ministro de Bolsonaro denotaria sua parcialidade, o que é muito frágil.
Caso prevaleça a tese de que provas ilegais podem ser usadas em favor do condenado, haverá uma avalanche de anulações, e não apenas dos casos de Lula. A “suspeição” de Moro poderá ser arguida por vários condenados por ele que porventura apareçam nos diálogos, ou que se julguem prejudicados por relações indiretas com outros processos, o que nos levaria a uma situação paradoxal: anular as prisões? Tornar sem efeito várias, ou todas, as delações premiadas? O que fazer do dinheiro devolvido pelos condenados? O que fazer com os escândalos de corrupção confessados minuciosamente durante os processos do “petrolão”? Jogá-los para baixo do tapete? Fingir que nada aconteceu?