O Globo
Número de células neonazistas no Brasil cresce cerca de 60% em dois anos
Pesquisadores alertam para o perigo da banalização do discurso de ódio no país
Eduardo Graça e Janaína Figueiredo / O Globo / Época
RIO E SÃO PAULO - Em 22 de agosto, uma prece virtual organizada pela Associação Religiosa Israelita do Rio (ARI) em homenagem a Dora Fraifeld, ex-diretora da escola Eliezer que morrera uma semana antes, foi invadida por um grupo neonazista. Imagens de Hitler, de suásticas e de soldados alemães foram reproduzidas nas telas, além da defesa da morte de judeus. A violência, que foi repudiada pelo Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil (OJDHB), não se trata de fato isolado.
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Pesquisadores e historiadores que acompanham a evolução do neonazismo no Brasil ouvidos pelo GLOBO alertam para o perigo da banalização do discurso de ódio no país e temem que a disseminação de desinformação nas redes sociais, ao lado da polarização política, que pode aumentar na campanha presidencial, impulsionem ainda mais o crescimento de grupos e células neonazistas.
Espécie de caçadora de neonazistas brasileiros, a antropóloga Adriana Dias estima que atualmente existam 530 células (formadas por pessoas que estão no mesmo município). Em 2019, a especialista detectara 334, o que indica um aumento de 58%. Há duas décadas, quando a antropóloga começou a vasculhar sites e blogs e não se tinha ainda a dimensão que tomariam as redes sociais e a deep web (onde os neonazistas atuam com total impunidade), o número não passava de dez. A pesquisa feita na Unicamp é permanente, e no momento em que a entrevista foi feita, a acadêmica e sua equipe tinham em mãos 200 perfis de usuários neonazistas, que podem pertencer a novas células ou a alguma detectada anteriormente.
— Em 2002, meus dados já me indicavam que em 2020 o Brasil teria um governo de extrema direita. À época, me chamavam de louca. A realidade foi confirmando minha pesquisa, e isso é assustador — afirma Adriana.
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Diretor-presidente e fundador da SaferNet Brasil, ONG focada há uma década e meia no estudo do discurso de ódio no país, Thiago Tavares também tem números preocupantes. Em 2019, foram recebidas e processadas 1.071 denúncias anônimas de neonazismo, envolvendo 544 páginas (URLs), das quais 212 foram removidas. Em 2020, foram 9.004 denúncias anônimas e 3.884 páginas, das quais 1.659 foram removidas.
— A radicalização do discurso político tem legitimado e empoderado células extremistas que atuam principalmente na região Sul do país e amplificado o ódio, o preconceito e a intolerância contra quem pensa diferente — diz.
Tavares fez uma apresentação na última terça-feira no Tribunal Superior Eleitoral sobre o problema. Ele mostrou como estes grupos radicais vêm utilizando as redes sociais para disseminar desinformação, amealhar seguidores e diminuir a reação da sociedade civil aos crimes que propõem.
Os anormais
Para especialistas, o problema não é apenas o aumento do número de casos, mas como eles vão se “normalizando”. Tavares lembra de um jovem no Recife andando no shopping com uma camisa com uma suástica, um outro em um bar em Belo Horizonte, a detecção de células nazistas em clubes de futebol, como o Grêmio...Os exemplos são cada vez mais comuns.
O aumento vertiginoso de militantes que aderem ao pensamento, discurso e estética neonazista, somado a outros que se declaram fascistas, integralistas ou promovem algum tipo de regime autoritário, levou especialistas de várias universidades a criarem o Observatório da Extrema Direita no Brasil. Seu coordenador é Odilón Caldeirão, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor do livro “O fascismo em camisas verdes”. Ele aponta que o neonazismo brasileiro surgiu com força a partir da transição democrática e não tem uma única faceta.
— Há diversas tendências e orientações. Nos últimos anos, tivemos muitos processos judiciais por apologia do nazismo e um aumento exponencial das investigações judiciais — diz o historiador.
Michel Gherman, coordenador do núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ, define características presentes, segundo ele, em todo neonazista brasileiro.
— O nazismo tem uma característica fundamental: o ressentimento. A ideia mobilizadora de que eu poderia ser melhor não fosse o outro, que pode ser o negro, o judeu, o gay, a mulher. São pessoas que atuam nas redes sociais e nelas se sentem fortalecidas.
Com a consolidação de uma agenda antiracista após a redemocratização, a sociedade viu a redução de prédios com quarto de empregada ou elevador de serviço e a elaboração de políticas públicas para a entrada de mais negros nas universidades. Os neonazistas são uma reação a isso, opina Gherman.
Conivência dos APPs
Estes grupos atuam no submundo virtual, mas também em aplicativos de mensagens de largo alcance, como o Telegram e o WhatsApp. Adriana Dias e sua equipe apresentaram recentemente uma denúncia judicial na qual afirmam que grupos “propagam discursos de ódio que envolvem neonazismo, racismo e negacionismo”.
A acusação lembra que a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, dispõe sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, e declara que é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos distintivos ou propagandas que utilizem a cruz suástica ou gamada para fins de divulgação do nazismo”. A denúncia enumerou mais de 20 grupos no Telegram que violam a lei.
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A historiadora Heloisa Starling, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mergulhou em pesquisas e teses acadêmicas para entender a raiz desse “nazismo à brasileira”.
Um dos trabalhos que mais a impressionou foi o da historiadora Ana Maria Dietrich, da Universidade Federal do ABC, autora de “Nazismo Tropical”. O livro afirma que o Partido Nazista mais forte fora da Alemanha atuou justamente no Brasil, entre 1928 e 1937 (quando Getúlio Vargas suspendeu partidos políticos, no Estado Novo, o nazismo brasileiro passou a ser um movimento clandestino).
A agremiação tinha sedes em 17 estados, contava com 3 mil integrantes, 57 núcleos organizados e 40 pontos de apoio. Patrocinava eventos esportivos e erguia escolas. O país teve Juventude Nazista, Associação de Mulheres Nazistas e uma constelação de associações nazistas. Parecia ser um problema que tinha ficado enterrado no passado
Fonte: O Globo/Época
https://oglobo.globo.com/epoca/numero-de-celulas-neonazistas-no-brasil-cresce-cerca-de-60-em-dois-anos-1-25258395
Aras diz que PGR pode ‘avançar’ na investigação contra políticos
Senadores entregaram material para procurador-geral da República nesta quarta-feira
O Globo
BRASÍLIA - Senadores da CPI da Covid entregaram nesta quarta-feira o relatório final ao procurador-geral da República Augusto Aras, que afirmou que o material permitirá avanços nas investigações contra políticos com foro privilegiado.
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“Esta CPI já produziu resultados. Temos denúncias, ações penais, autoridades afastadas e muitas investigações em andamento e agora, com essas novas informações poderemos avançar na apuração em relação a autoridades com prerrogativa do foro nos tribunais superiores", afirmou Aras, em comunicado divulgado pela PGR.
O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), o relator, Renan Calheiros (MDB-AL) e o vice-presidente, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), foram pessoalmente entregar o documento. Segundo a PGR, Aziz fez um breve relato do trabalho, lembrou o número de mortos em decorrência da pandemia e destacou a resistência do governo federal na compra de vacinas como um dos fatos mais graves apurados pela CPI.
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“Foram mais de 600 mil mortos. Nós não queremos vingança. Queremos justiça. Que as pessoas que contribuíram para isso possam ser responsabilizadas pela Justiça dos homens. Confiamos no trabalho da Procuradoria-Geral da República e de todo o Ministério Público Federal”, disse, de acordo com comunicado da PGR.
Elio Gaspari: O caminho do vexame em Glasgow
Se o Itamaraty cuidar, ele será evitado
Elio Gaspari / O Globo
Faltam três dias para a ida de Jair Bolsonaro à reunião do G-20 de Roma e mais um para o começo, no domingo, da reunião da ONU sobre mudanças climáticas, a COP-26. Se a conduta das delegações brasileiras for conduzida por profissionais do Itamaraty, será possível evitar que o Brasil saia satanizado de Glasgow. Se a orientação sair da copa do presidente Bolsonaro, arma-se um vexame. Essa preocupação é legítima quando se sabe que, em setembro, a copa do Alvorada deu o tom do discurso pedestre do capitão na abertura da Assembleia Geral da ONU.
A entrega da chefia da delegação brasileira ao ministro Joaquim Leite, do Meio Ambiente, foi um mau sinal. Não só pelo currículo e pela falta de experiência dele em assembleias internacionais, mas também pelo desconhecimento dos antecedentes históricos da encrenca em que se meteu. Ele disse que a proposta da Comissão Europeia de criar uma taxa de carbono sobre produtos importados seria “uma forma de proteger as indústrias europeias de concorrentes estrangeiros que não cumprem os mesmos padrões de redução das emissões de gases de efeito estufa”.
Traduzindo: os europeus usam a proteção ao meio ambiente para proteger suas economias. Essa ideia é compartilhada pelo ministro da Economia, doutor Paulo Guedes. Vá lá que haja um fator econômico na querela. Mesmo assim, acreditar que a preocupação mundial com o clima seja um joguinho de papeleiros “revela um despreparo enorme”, para usar uma expressão do próprio Guedes detonando a fantasia de um Plano Marshall diante da Covid-19.
O pelotão palaciano viajou no tempo para escorregar numa casca de banana do século XIX. Quando o Império defendia a escravidão e o contrabando negreiro, argumentava, quase em surdina, que o abolicionismo era um ardil dos ingleses para proteger sua produção. Em benefício da elite da época, esse argumento nunca foi vocalizado por ministros. O Barão de Penedo, embaixador em Londres, nunca disse essas tolices por lá.
Passou o tempo e, novamente em surdina, a ditadura dizia que a política de defesa dos direitos humanos do presidente Jimmy Carter era uma nova face do imperialismo americano.
Omitiam-se dois fatos essenciais: o Império assentava-se na escravidão, e a ditadura amparava-se na tortura. Hoje, tenta-se embaralhar a questão climática reciclando a ignorância. É perda de tempo porque, salvo na cabeça dos agrotrogloditas, as queimadas da Amazônia estão na agenda do mundo.
Se o Brasil for para a reunião do G-20 de Roma e para Glasgow oferecendo um vago projeto verde, falando em protecionismo e cobrando recursos dos países ricos, pagará um mico. Em situações semelhantes, defendendo posições escalafobéticas, a diplomacia brasileira soube deixar o país fora da vitrine. Foi assim quando defendeu a insana política de reserva de mercado na informática, aquela que proibia a importação de computadores. Depois de um surto nacionalista, deixou o Acordo Nuclear com a Alemanha ir para a sepultura sem muxoxos.
Um presidente que não toma vacina e divulga a mentira de que ela provoca reações letais pode ser um ícone para seus convertidos, mas suas ideias em relação ao meio ambiente não são produto de exportação.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/o-caminho-do-vexame-em-glasgow-1-25252788
Dorrit Harazim: Vísceras expostas
Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento
Dorrit Harazim / O Globo
O simples fato de a CPI da Covid ter existido e resistido, apesar da tropa de choque bolsonarista e da contrariedade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já foi notável. Duplamente admirável foi o empenho da maioria de seus integrantes em trabalhar como gente grande, com decência e benefício claro para a sociedade. Conseguiram dar algum compasso moral a um Brasil que, de resto, está à deriva e expuseram as vísceras de Jair Bolsonaro, cujo método de governo se assenta num amplo leque de tipificações penais.
Nada a festejar, porém. Não pode haver conforto para povo algum que tem na chefia da nação um presidente indiciado por crime contra a humanidade — no caso, contra sua própria gente. É igualmente trevoso para a história de qualquer nação ver seu presidente indiciado por mais outros oito crimes. É tudo de um horror abissal, por ser factual. E por quase ter ficado enterrado nos porões do governo, não fosse o dever cumprido pela maioria na CPI.
Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento. E dar uma resposta adulta para a gargalhada com que o filho Zero Um do presidente, senador Flávio Bolsonaro, pretendeu desdenhar o documento histórico. O aspecto mais chulé da vida nacional anda esquisito — num curto espaço de tempo somos informados de que o presidente chora escondido no banheiro e de que o Marcola do PCC, líder da maior facção criminosa do país, está deprimido na prisão.
Mas são problemas reais que deixam em torvelinho 213 milhões de brasileiros. A fome de comer pelanca, o caos social, a extrema direita sem freios, os solavancos na economia, a emergência ambiental, a incerteza quanto a liberdades, a degradação geral da vida em sociedade — tudo isso entrou em marcha acelerada sob o comando errático de um só homem, Jair Bolsonaro. Que ninguém se engane — armados de fé e, se preciso, munidos de armas, seus seguidores mais extremados nunca lhe faltarão no pacto de morte contra o Estado Democrático de Direito.
Talvez o presidente e o relator da CPI da Covid, senadores Omar Aziz e Renan Calheiros, já tenham se arrependido de ter votado pela recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República. Nos Estados Unidos, o então presidente Donald Trump sobreviveu a dois processos de impeachment porque os senadores do Partido Republicano cerraram fileiras. Acreditaram estar fazendo política. Na realidade, fizeram história trevosa ao deixar o caminho aberto para Trump e sua vertente nacionalista voltarem ao poder — seja na reconquista da maioria na Câmara e no Senado em 2022, seja com Trump de volta à Casa Branca em 2024.
Não se trata de alarmismo. Nesta semana, Steve Bannon, o já notório cérebro de uma internacional fascistoide que inclui o Brasil, desafiou abertamente o Poder Legislativo dos EUA. Simplesmente recusou-se a depor perante a comissão de inquérito que investiga sua atuação na invasão do Capitólio de 6 de janeiro último, quando milicianos trumpistas pretendiam impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden em 2020. Parece pouco? Para padrões da bicentenária democracia americana, não é. Ao deboche público das instituições, arrostado por Bannon, vem somar-se uma acelerada limitação do direito ao voto em vários estados decisivos do país. E esse desmonte é obra de governadores mais leais a Trump que àquilo que os Estados Unidos de melhor deram ao mundo: o voto universal e livre.
Por toda parte, pipocam candidatos a clones de Trump, que Steve Bannon vai arrebanhando e formatando em rede. Alguns ainda são meros aspirantes a um poder menor, como a figura midiática do argentino Javier Milei, candidato a uma vaga no Congresso nas eleições do próximo mês. Admirador declarado de Trump e Bolsonaro, tem fala carismática e propostas de soluções simples para problemas complexos, como manda o manual populista. Outros visam mais alto logo de cara. Na França está em curso a ascensão meteórica e inesperada do polemista Éric Zemmour, apresentador do canal conservador CNews , que parece querer disputar a corrida presidencial. Situado à extrema direita de Marine Le Pen, Zemmour também é admirador declarado de Trump, alerta contra o “declínio da França”, ataca a imigração, o islamismo e o resto da cartilha democrática.
Sem falar no governo a cada dia mais fechado da Polônia, primeiro a desdenhar de peito aberto as convenções democráticas da União Europeia. Na sexta-feira, a ainda chanceler da Alemanha, Angela Merkel, recebeu uma ovação sincera dessa mesma União Europeia. Foi recebida pelo rei Philippe da Bélgica (a sede da EU é em Bruxelas), homenageada com peças de Mozart e Beethoven em concerto de gala e saudada com frases como “a senhora foi um compasso”, “as próximas cúpulas sem Angela Merkel serão como Paris sem a Torre Eiffel”. No caso, não eram exagero — por 16 anos ela foi âncora. Sem ela, a Europa e o mundo com Trumps e Bolsonaros se tornarão ainda mais sombrios.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/visceras-expostas.html
Elio Gaspari: Os frentistas abandonaram o Posto Ipiranga
Quase todos saíram, por terem percebido que estavam perdendo tempo, ou queimando biografias
Elio Gaspari / O Globo
Num governo que já explodiu a meta da inflação, o ministro Paulo Guedes adoçou sua adesão ao estouro do teto de gastos falando difícil, com uma azeitona em inglês:
“Estamos buscando a formatação final dos R$ 400, fazendo a sincronização dos ajustes das despesas obrigatórias, dos salários e do teto ou pedindo um waiver.” Na gíria do carteado, a tradução dessa palavra é “estia”. O jogador que tem menos habilidade pede uma estia ao outro.
Quanto à sincronização, Guedes conseguiu a demissão sincronizada de quatro colaboradores. Desde a posse do Posto Ipiranga, 19 frentistas já pediram o boné. Quase todos, por terem percebido que estavam perdendo tempo, ou queimando biografias. Na Prevent Senior, diriam que elas caminhavam para uma “alta celestial”.
Guedes parece ter subestimado a saída do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, em julho do ano passado. Mesmo antes da posse, Mansueto mostrou ao czar que uma parte de suas promessas era fantasia. O economista havia passado com brilho pelo Massachusetts Institute of Technology e conhecia as mumunhas de Brasília. Ao ir embora, mostrou que entendia muito de política.
A última debandada da ekipekonômika mostrou que Guedes não entendeu onde se meteu. Nenhum deles foi-se embora porque Guedes sofreu derrotas políticas, mas porque tendo-as sofrido, meteu-se numa aventura injetando cloroquina na sofrida economia nacional. Guedes encantou-se ao ver que as portas se abrem sozinhas para deixar o excelentíssimo senhor ministro passar, e por essa porta 19 se foram.
‘Oito Dias de Maio’, um grande livro
Saiu nos Estados Unidos um grande livro. É “Eight Days in May: The Final Collapse of the Third Reich”, do historiador alemão Volker Ullrich, conhecido pela sua biografia de Adolf Hitler. Ele conta com maestria os dias que foram do suicídio do Fuhrer (30 de abril de 1945) à rendição do alto comando alemão em Reims (7 de maio).
A sabedoria convencional sugere que entre um fato e outro pouco de relevante aconteceu, além do inexorável triunfo das Tropas Aliadas. Com um olhar alemão, Ullrich mostra um painel de dramas, ruínas e ambições. Nele, sobressai a figura do almirante Karl Dönitz, um nazistão a quem Hitler passou o governo do Reich. Seu comportamento, com o pelotão de militares e civis que o rodeava, é uma aula sobre a psicologia do poder, mesmo quando ele só existe na forma de delírio patológico.
O almirante tinha uma ideia: continuar a guerra na frente do Leste, sem combinar com os russos que já estavam em Berlim. No dia 5 de maio, ele compôs ministério e entregou ao economista Otto Ohlendorf a tarefa de planejar a reconstrução do país. (Como oficial da tropa da SS, ele se envolveu na morte de 90 mil pessoas na frente russa).
Nesse dia, a fotógrafa americana Lee Miller posava com o torso nu na banheira do apartamento de Hitler em Munique, e um general alemão chegava ao QG dos Aliados levando a proposta de paz em separado. Não foi recebido pelo comandante americano Dwight Eisenhower: rendição incondicional ou nada. Quando ele relatou a Dönitz o resultado da gestão, o almirante indignou-se e considerou a posição de Eisenhower “inaceitável”. Pouco depois entendeu que inaceitável era sua ideia e, às 2h41m da madrugada do dia 7, os alemães assinaram a capitulação.
No dia 9, os russos já tinham identificado os restos de Hitler a partir de sua arcada dentária. Dönitz, contudo, ainda não sabia se deveria renunciar. Seu chanceler argumentava que a rendição fora das tropas, não do governo. O almirante concordou e foi ao rádio: “Nós não temos do que nos envergonhar. Nesses seis anos, o que o Exército conseguiu combatendo e a população, resistindo, foi um fato inédito na História do mundo, um heroísmo sem precedentes.”
No dia 23, seu governo foi extinto, e ele foi preso. Passou dez anos na cadeia e morreu em 1980. Nunca disse uma palavra contra Hitler nem a favor dos judeus. Os dois comandantes do Exército alemão foram enforcados em 1946, e seu ministro da Fazenda foi executado na Alemanha em 1951 pelo que havia feito na Rússia.
Boa ideia
Aos poucos, a Petrobras está retomando o fornecimento de combustível de aviões e helicópteros.
Não há razão para que existam intermediários para abastecer com combustível da Petrobras voos de bases da empresa para plataformas da própria companhia.
Posto Ipiranga
De uma víbora:
“O Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro virou uma daquelas casas pelas quais, segundo o escritor Guimarães Rosa, homens sérios entravam, mas por elas não passavam.”
Mailson disse tudo
O ex-ministro Mailson da Nóbrega disse tudo:
“Parece um grande manicômio.”
A privataria avança no parque
A Urbia, empresa que se tornou concessionária do Parque do Ibirapuera, privatizado pela fúria liberal do então prefeito e hoje governador João Doria, decidiu abrir uma interessante discussão. Quer arrecadar uma tarifa a empresas e treinadores que cobram pela prática de atividades esportivas no seu espaço.
Essa tarifa renderia de R$ 100 mil a R$ 200 mil mensais à empresa. Querem cobrar de 3% a 5% do que pagam os alunos; até as árvores sabem que essa conta vai para o bolso dos alunos.
Há empresas que se apropriam de pequenos espaços para suas atividades. Nesses casos, a ideia faz sentido. A girafa aparecerá quando se quiser cobrar a um treinador que acompanha clientes numa corrida ou numa sessão de ginástica sem demarcar espaço.
Se o doutor João Doria sair candidato pelo PSDB poderá explicar o alcance de suas privatizações durante a campanha.
Bolsonaro no Congresso
Um leitor de folhas de chá acredita que se Jair Bolsonaro perceber que não terá chances de vitória na eleição presidencial procurará abrigo numa disputa para o Senado, ou mesmo para a Câmara.
Se isso acontecer, o recuo do capitão nada terá a ver com apreço pelo Legislativo. Será uma busca de imunidade.
Príncipe William
Faz tempo que não se ouve uma coisa inteligente vinda da Casa de Windsor. A rainha Elizabeth não fala. Seu falecido marido foi um campeão de impropriedades, e seu filho Charles falava com plantas.
O sinal de vida veio do príncipe William, que criticou os milionários que torram fortunas para ir ao espaço enquanto as coisas na Terra vão mal.
As aventuras espaciais de Elon Musk e Jeff Bezos, bem como o quadro de Banksy parcialmente triturado que foi arrematado num leilão por US$ 25,4 milhões serão marcos das maluquices de uma época.
No século passado, o fotógrafo Philippe Halsman ganhou notoriedade com a “jumpology”, algo como “pulologia”. As celebridades eram fotografadas enquanto pulavam. Até o Duque e a Duquesa de Windsor participaram dessa palhaçada, rendendo uma bela imagem.
Anos depois, a televisão italiana criou o programa de bobagens “Mondo Cane”. Num de seus episódios, um artista tocava uma peça de Beethoven dando tapas na cara de suas vítimas.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/os-frentistas-abandonaram-posto-ipiranga-25249228
Míriam Leitão: Mentiras fiscais desviam o foco
Os mais otimistas estão prevendo que o PIB brasileiro suba 1%
Míriam Leitão / O Globo
O governo terminou a semana com o presidente Bolsonaro acusado de nove crimes, e o Ministério da Economia com um desfalque de parte da equipe. Os dois eventos estão ligados. Bolsonaro, acuado pela CPI e pela perda de popularidade, anunciou elevação do benefício social, ainda inexistente, mas para isso foi preciso atropelar as regras fiscais. A reação foi a saída de quatro secretários da equipe econômica. Depois disso, o presidente visitou o Ministério da Economia, disse que o ministro tem sua confiança, e Paulo Guedes ficou no cargo.
A confusão feita pelo governo nos últimos dias vai impactar o país por muitos anos. Os juros vão subir mais para compensar a incerteza da política fiscal. O país crescerá pouco no ano que vem e os economistas já falam em estagflação. Enquanto isso o mundo estará crescendo forte.
– O mundo vai crescer 4,9% em 2022, será uma das maiores distâncias entre o Brasil e o mundo em quatro décadas — diz o economista-chefe de um dos maiores bancos do país.
Os mais otimistas estão prevendo que o PIB brasileiro suba 1%. Mas muitos economistas de bancos e consultorias estão reduzindo para números próximos de zero.
Fazer o orçamento será um exercício de adivinhação depois da mudança feita essa semana. O teto de gastos será corrigido pelo índice de janeiro a dezembro, em vez de ser pela inflação de doze meses até junho. Ou seja, o orçamento será enviado ao Congresso sem que se saiba a inflação do ano e, portanto, sem o valor do teto de gastos. Será votado também sem a definição do valor do teto. Só em janeiro do ano em que o Orçamento estará sendo executado é que se saberá qual foi a inflação de janeiro e dezembro.
–O espaço do teto era corrigido pelo IPCA de 12 meses acumulado até junho. Por que? Porque o orçamento precisa ser enviado em 31 de agosto ao Congresso com a previsão de despesas dentro do teto. A Secretaria de Orçamento precisa desses números e de tempo para preparar. Fizeram isso por conveniência, porque agora há um ganho — explicou uma fonte que já preparou as contas para o orçamento.
Outra consequência dos eventos dessa semana, e que se estenderá para os próximos anos, é a mudança nos precatórios. São dívidas que tramitaram na Justiça. Não são meteoros, ao contrário do que disse Guedes. A solução poderia ter sido outra, que não a de dar um calote em parte dos credores.
—É falacioso o argumento de que não há como pagar os precatórios. O governo não soube gerenciar o problema. Uma das maiores dívidas era com o Fundef, que poderia ter tido uma boa negociação. Havia um erro da AGU de R$ 30 bilhões e o governo foi alertado sobre isso bem antes. Bastava negociar com os estados. Nada foi feito porque os “beneficiários” seriam governos da oposição — explicou um ex-integrante do governo.
Por onde se olhe há gambiarras e casuísmos. O governo deixará de pagar dívidas que poderia ter negociado e vai criar uma dívida paralela, para ser paga em 10 anos, e que pode virar uma bola de neve. A mudança do prazo do índice que corrige o teto de gastos é uma manobra oportunista. Até meses atrás, o governo comemorava o descasamento dos índices porque haveria uma folga fiscal. E é isso que Paulo Guedes disse que havia “R$ 30 bi a R$ 40 bi que eram nossos e sumiram”. Se a inflação caísse fortemente no segundo semestre, o teto seria corrigido pela inflação de 12 meses até junho e, então, as despesas subiriam menos porque o INPC seria menor. Só que a realidade não respeitou as previsões e a inflação subiu nesse segundo semestre comendo a “folga fiscal”. Será mudada a periodicidade do índice que corrige o teto porque agora dá vantagem ao governo. Mas isso vai criar um problema permanente na formulação do orçamento.
E tudo isso foi feito para ajudar os pobres? Não. Tudo isso é feito para parecer que está ajudando os pobres, mas para garantir na prática que continuam altas as emendas parlamentares inventadas no governo Bolsonaro, e conhecidas com o nome de RP9. E, desta forma, o governo possa continuar comprando apoio no Congresso.
Foi uma semana de mentiras, desrespeito às leis fiscais e muita demagogia para tentar desviar a atenção do fato de que o presidente Jair Bolsonaro foi acusado de cometer nove crimes, entre eles o crime contra a humanidade.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/mentiras-fiscais-desviam-o-foco.html
Bernardo Mello Franco: Genocídio com outro nome - CPI recua, mas enumera provas contra Bolsonaro
Índios não foram convidados nem para a sessão que ouviu parentes de vítimas da pandemia
Bernardo Mello Franco / O Globo
Em quase seis meses de trabalho, a CPI da Covid ouviu 68 pessoas em depoimentos transmitidos ao vivo na TV. Os senadores questionaram políticos, militares, empresários e lobistas. Mas não deram voz a um único representante dos povos indígenas.
Os índios não foram convidados nem para a sessão que ouviu parentes de vítimas da pandemia. Isso ajuda a explicar o tratoraço que removeu a acusação de genocídio do relatório final da CPI.
O texto do senador Renan Calheiros sugeria o indiciamento de Jair Bolsonaro pela prática do crime, tipificado na lei brasileira e no Estatuto de Roma. Também seriam enquadrados o presidente da Funai, Marcelo Xavier, e o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva.
As propostas de indiciamento não significavam que os três seriam condenados. Mas retirá-los do relatório significa absolvê-los antes da abertura de uma investigação formal.
A CPI enumerou diversas ações e omissões do governo que transformaram os povos indígenas em alvo fácil para o coronavírus. Bolsonaro chegou a vetar 16 pontos de uma lei que o obrigava a proteger as aldeias. Negou-se a fornecer água potável, comida e material de higiene. O capitão ainda iludiu os índios com a distribuição de remédios ineficazes. E resistiu a incluí-los no grupo prioritário da vacinação, o que só ocorreu por ordem judicial.
Em parecer enviado ao Senado, a Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB apontou “graves indícios da prática do crime de genocídio”. O texto original de Renan concordava com a tese. “O que distingue a morte de centenas de indígenas da morte de centenas de milhares de concidadãos é, fundamentalmente, a intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio. Atitudes deliberadas do governo ajudaram a produzir esse efeito”, escreveu o relator.
Na reta final da CPI, os senadores Omar Aziz e Eduardo Braga articularam a retirada da acusação de genocídio. Eles se elegem pelo Amazonas, onde vigora a máxima de que índio não dá voto. Militares, ruralistas e pastores evangélicos costumam endossar o discurso anti-indigenista do Planalto.
Para evitar uma derrota, Renan cedeu à pressão horas antes de ler do relatório. O presidente da Funai, delegado da PF, e o secretário de Saúde Indígena, coronel do Exército, livraram-se de qualquer tipo de indiciamento. No caso de Bolsonaro, o crime de genocídio foi trocado por crime contra a humanidade.
Apesar do recuo, o documento preservou 77 páginas que podem complicar o capitão num eventual julgamento no Tribunal Penal Internacional. O texto mostra que ele já perseguia e discriminava os índios antes da pandemia. Depois passou a sabotar as medidas que poderiam protegê-los.
“O estímulo à presença de intrusos nas terras indígenas e a negligência deliberada do governo federal em proteger e assistir os povos originários foram aliados do vírus, produzindo efeitos combinados”, afirma o relatório. “Com relação aos indígenas, o governo tratou o vírus não como um risco, mas como uma oportunidade”, conclui.
As marcas do genocídio ainda estão lá, mesmo que seja com outro nome.
Merval Pereira: Não aprenderam, nem esqueceram
Outro ponto a se destacar no livro de Edmar Bacha é a negociação parlamentar para se chegar ao Plano Real
Merval Pereira / O Globo
Diante da crise que a cada dia se aprofunda no país, favorecida pela irresponsabilidade fiscal do presidente Bolsonaro e pela submissão das convicções do ministro da Economia Paulo Guedes às ambições políticas, tem importância didática relembrar as disputas da equipe que implantou o Plano Real com as forças políticas e econômicas que sustentavam a hiperinflação brasileira àquela altura.
É o que faz o economista Edmar Bacha, membro da Academia Brasileira de Letras, em seu recém lançado livro “No País dos Contrastes”, do selo História Real. Como dizia outro economista de renome, Roberto Campos, “o Brasil nunca perde a oportunidade de perder uma boa oportunidade”, frase citada por Bacha ao relembrar o Programa de Estabilização enviado ao Congresso no final de 1993 quando Fernando Henrique era ministro da Fazenda, que propunha uma série de reformas na revisão constitucional que estava prevista para cinco anos depois da promulgação da Constituição de 1988.
Constavam lá temas que ainda hoje estão inconclusos, como o “federalismo fiscal”, o “realismo orçamentário”, a “reforma tributária”, a “reforma administrativa”, eliminação dos monopólios estatais e reservas de mercado, reforma previdenciária. Houve avanços, como o fim do monopólio da Petrobras ou o início da reforma da Previdência, ainda hoje inconclusa. Mas perdemos quase 30 anos sem dar solução definitiva a questões que já eram conhecidas, e ainda hoje esbarram em interesses corporativos ou fisiológicos.
Outro ponto a se destacar no livro de Edmar Bacha é a negociação parlamentar para se chegar ao Plano Real. Apelidado de “senador”, pelo tempo que dedicava a conversas com parlamentares no próprio Congresso, Bacha revela detalhes de enfrentamentos delicados resolvidos com recuos e avanços, sem que tenham sido necessárias trocas de favores não republicanos, como assistimos já há algum tempo, com o Centrão envolvido em mensalões, petrolões e outros escândalos.
Ele relembra algumas frases que ouviu durante essas negociações que revelam muito bem o pensamento médio do parlamentar brasileiro. Desde “você é PHD e coisa e tal, mas não ache que pode nos enganar. Aqui, o mais bobo foi eleito” a “na barganha política, o relógio zera todo dia. Nada dê hoje para obter algo em troca somente no dia seguinte”.
Outro membro da equipe do Plano Real, o economista Winston Fritsch, que foi Secretário de Política Econômica, escreveu um belo artigo recentemente no Globo (“A única via”) em que analisa as causas da perda de governabilidade do presidencialismo de coalizão, e o que chama de “irrelevância da fulanização da discussão da sucessão”.
Para ele, a solução passa por um pacto de governabilidade entre, citando o ex-ministro da Fazenda Rubem Ricupero, "o centro socialmente progressista e a esquerda democraticamente renovada". Winston Fritsch admite, porém, que esse pacto é de difícil consumação “pois o que diluiu os partidos tradicionais no mundo pós-moderno foi exatamente a perda da representatividade política dos agentes tradicionais que definiam o espectro político real entre centro-direita democrática e esquerda, e a consequente volta da direita, num mundo ainda crescentemente desigual mesmo nos países ricos”.
O pacto que exemplifica a vitória da política é o de Moncloa, na volta da Espanha à democracia depois da ditadura de Franco, mas Fritsch ressalta que ele se baseava num “mundo de sindicatos e patrões dos anos 70”. Um Pacto de Moncloa 2.0 teria que ser inventado, mas ele acha que fazer uma versão “à brasileira” é mais fácil, pois “a agenda da governabilidade aqui é infinitamente mais simples do que o original. Moncloa tinha 700 páginas. O nosso caberia em uma”. Winston Fritsch acha que a emergência climática e outras ameaças de externalidades globais reais e urgentes, como pandemias, “impossíveis de serem tratadas sem cooperação multilateral, acabarão com o surto de nacionalismo que é a força de que se alimenta a direita pós-moderna, uma forma de tribalismo político revivido com a ajuda das novas redes de comunicação”.
Infelizmente, como os Bourbons, nossos políticos “não aprenderam nada, nem esqueceram nada”.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/nao-aprenderam-nem-esqueceram.html
Na última década, 64% dos generais foram nomeados para cargos políticos
Segundo levantamento do GLOBO, maioria das nomeações ocorreu sobre a presidência de Bolsonaro
Bernardo Mello e Jan Niklas / O Globo
RIO — O Alto Comando do Exército, que configura o topo da hierarquia militar, também vem representando — especialmente no governo Bolsonaro — um estágio que antecede a obtenção de cargos políticos. Levantamento do GLOBO com os promovidos ao Alto Comando na última década mostra que, de 33 generais hoje na reserva, 21 — isto é, 64% ou aproximadamente dois em cada três — foram nomeados para funções de confiança, cuja remuneração se acumula à aposentadoria militar. A maioria das nomeações ocorreu sob a presidência de Jair Bolsonaro, e depois de esses generais esgotarem seu ciclo de promoções no Exército.
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Na prática, as nomeações configuram uma espécie de “porta giratória”, permitindo o retorno a cargos públicos para oficiais compulsoriamente retirados do serviço ativo, por esgotarem o prazo de permanência no Alto Comando. Dos 21 generais, 17 receberam seu primeiro cargo fora da estrutura militar depois de terem ido à reserva. Entre as exceções nomeadas quando ainda eram da ativa, dois são ministros de Bolsonaro: Walter Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência). Metade dos egressos do Alto Comando em cargos de confiança foi nomeada a partir de 2019. Especialistas avaliam que houve uma “exacerbação” da presença no governo de militares do topo da hierarquia.
Politização
O Alto Comando é formado pelos 17 generais de quatro estrelas da ativa, que podem ficar até quatro anos nesse estágio hierárquico. Por ser o último degrau do Exército, é obrigatória a passagem à reserva após esse prazo. No levantamento, O GLOBO desconsiderou cargos inseridos na estrutura das Forças Armadas, como os de chefe do Estado-Maior e de ministro do Superior Tribunal Militar (STM), bem como em estatais, fundações e autarquias com finalidade militar, casos da Imbel e da Fundação Habitacional do Exército. Também não foram contabilizados cargos eletivos, como o do vice-presidente Hamilton Mourão.
— Em que pese a qualificação dos generais, a exacerbação de cargos ocupados por eles não é boa nem para a corporação, nem para a sociedade. Ela traz antagonismos políticos para uma instituição, o Exército, que deveria ser funcional — avalia Eurico Figueiredo, ex-diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), que desenvolveu pesquisas em cooperação com a Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme).
Entre os generais que passaram pelo Alto Comando, quatro já figuraram no primeiro escalão do governo federal, e quatro ocuparam a presidência ou cargos de direção em estatais. Um exemplo de ambos os casos é o general Joaquim Silva e Luna, promovido à quarta estrela em 2011, e que passou à reserva em 2014. Silva e Luna foi ministro da Defesa por oito meses, no governo Temer, nomeado no início do governo Bolsonaro para a direção-geral de Itaipu e, em abril deste ano, assumiu a presidência da Petrobras.PUBLICIDADE
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Em abril, uma portaria do Ministério da Economia permitiu que militares inativos que também ocupem cargo comissionado ou eletivo ultrapassem o teto remuneratório da administração federal, de R$ 39 mil.
Ascânio Seleme: Quem tem fome paga a conta
Estado tem que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome
Ascanio Seleme / O Globo
O Estado tem que usar toda sua força e poder para evitar que pessoas morram de fome. Hoje, 19 milhões de cidadãos nacionais passam fome, de acordo com levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Em casos extremos, até mesmo furar teto de gastos definido por lei deve ser permitido de modo que os famintos possam receber dinheiro para comprar comida. Mais da metade dos brasileiros, 116 milhões para ser mais exato, passam por algum tipo de insegurança alimentar. E é claro que isso é inadmissível.
A fome se caracteriza pela ausência do consumo de proteínas, vitaminas, sais minerais e glicose. Na sua primeira fase, o organismo humano busca fontes alternativas de energia armazenada para sobreviver. Em seguida, passa a subtrair tecido adiposo ou gorduroso e depois consome músculos para manter os órgãos funcionando. Sem fontes renovadas de energia, o cérebro perde funções fundamentais de comando, com prejuízos para o raciocínio. No estágio final, o metabolismo passa a funcionar muito lentamente até parar.
O problema é igual para todos os que passam fome, mas é mais dramático para as crianças. Se submetidas por tempo prolongado à insegurança alimentar, além de perder massa muscular, os mais jovens sofrerão desaceleração e até interrupção do crescimento, depressão, anemia, raquitismo, baixa imunidade e incapacitação cognitiva. Com a redução da capacidade de manter a atenção, o prejuízo para a memória e o aprendizado é imediato. Com isso, as crianças brasileiras pobres e famintas, que já perderam mais do que as outras em razão da pandemia, estão sendo condenadas a um futuro ainda mais duro e miserável. Isso se para elas futuro houver.
As imagens da fome no Brasil, que tinham sumido do noticiário, voltaram com pessoas comprando carne de segunda nos açougues. Depois, comprando pés de galinha e ossos com alguma carne. Em seguida, com gente buscando carcaças de animais em portas de frigoríficos e, finalmente, vasculhando caminhões de lixo. O número de pessoas com fome no Brasil subiu de 10,3 milhões para 19,1 milhões em quatro anos. Significa aumento de 85%, quase todo ele medido nos três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro.
Estamos claramente diante de um caso extremo que justificaria em qualquer lugar do mundo furar teto de gastos. Isso, claro, se não houvesse fontes alternativas de recursos. Estas não apenas existem, elas abundam. Num Orçamento de mais de R$ 1 trilhão, os R$ 30 bilhões para atender a emergência podem ser deslocados de diversos pontos, mas sobretudo dos aportes abusivos conhecidos como emendas parlamentares. Apenas as emendas do relator do Orçamento somam R$ 20 bilhões, ou mais de 60% do necessário para aplacar a fome de 19 milhões.
Evidentemente que não vai se mexer nas emendas. Elas servem para alavancar candidaturas em ano eleitoral e garantem apoio parlamentar ao presidente da República, como se o dinheiro do Orçamento da União fosse dele. O senador Jorge Kajuru explicou ontem à revista “Crusoé” como a banda toca. Ele denunciou o líder do governo no Senado, Eduardo Gomes, por ter lhe oferecido R$ 100 milhões em emendas se ele parasse de bater no governo.
Como não se consegue reduzir as emendas, poderia se cortar alguns gastos militares, os únicos que aumentaram injustificadamente no governo Bolsonaro, em benefício de quem tem fome. Mas alguém acha que o capitão marchará por aí? O governo poderia ainda negociar como contrapartida projetos consistentes de reforma administrativa e tributária e um programa de privatizações em áreas onde a presença do Estado só seja necessária na regulação. Como não tem credibilidade para tanto, o governo tenta construir uma saída para a emergência atual criando emergências futuras. Serão os mais pobres que pagarão a conta dos erros de agora. Com mais fome.
RESPONSABILIDADE
Somente um governo sério e comprometido com o equilíbrio fiscal conseguiria respaldo da sociedade para furar o teto em caso emergencial. Não é o caso de Bolsonaro, Guedes e o que sobrou de sua turma, que estão mais perto de cometer um crime de responsabilidade do que eventualmente demonstrar alguma responsabilidade.
QUEM DIRIA
Depois de entregar todas as suas convicções a Bolsonaro com o único e mesquinho objetivo de manter-se no cargo, Paulo Guedes quase foi demitido. E, se fosse, seria por esta mesma razão, por ter abandonado os fundamentos que o fizeram ministro. Guedes, que já não tinha o apreço da ala política do governo, sobretudo do guloso Centrão, perdeu a credibilidade junto ao mercado quando subscreveu a ideia de furar o teto em favor do auxílio emergencial. Todo mundo sabia que havia outros roteiros possíveis para se atender à emergência, mas Paulo Guedes ignorou as alternativas, assumiu a função de tesoureiro da campanha de Bolsonaro e continuou feito ostra agarrado na cadeira achando que manteve sua credibilidade.
O DONO DO BRASIL
O ex-presidente da Petrobras disse que deixou a empresa por não suportar as pressões de Bolsonaro. Nas palavras de Roberto Castello Branco, “Bolsonaro acha que é dono da Petrobras”. Na verdade, o capitão se considera dono do Exército, que já chamou de “meu”, da Saúde, onde manda quem pode, do Meio Ambiente, em que autorizou o estouro da boiada. E do orçamento, que fura desavergonhadamente. O homem acha que é o dono do Brasil.
A COLÔMBIA PODE ESPERAR
A comitiva já estava embarcada nos carros que a conduziria ao aeroporto quando chegou o último passageiro, o presidente da Colômbia, Iván Duque. Ele acenou aos porteiros do hotel em Brasília, como se estivesse cumprimentando eleitores colombianos, e entrou no seu carro. A comitiva percorreu menos de um quilômetro e Duque mandou parar o motorcade. Viu uma churrascaria no caminho e mandou o motorista encostar. Com ele, estacionaram todos os demais. Duque sentenciou: “Vamos comer um churrasco brasileiro”. Todo mundo estranhou o gesto inesperado, mas ninguém reclamou. Melhor um rodízio do que aquele lanchinho de avião. A Colômbia podia esperar.
PLANO B
Bolsonaro não desistiu da reeleição. Com o auxílio emergencial acha que consegue sobreviver e crescer ao longo dos primeiros meses do ano que vem. Mas o plano B está mantido. Se mais adiante as pesquisas apontarem um inevitável fracasso eleitoral, ele retira sua candidatura como forma de inviabilizar Lula. E dirá alto e claramente que deixa a disputa para impedir que o PT ganhe a eleição. A saída de Bolsonaro não derrota automaticamente Lula, mas sua candidatura se enfraquece diante de um candidato de centro que atraia os eleitores da direita bolsonarista. Claro que antes de sair, Bolsonaro tentará um acordo de blindagem para si e seus filhos.
MORO AINDA
Para se viabilizar como candidato a presidente com chances de brigar por uma vaga no segundo turno, Sergio Moro deverá explicar ao Brasil seus métodos na condução da Lava-Jato e o fato de ter aceitado o Ministério da Justiça de Bolsonaro. O ex-juiz diz que os resultados da força-tarefa serão seus argumentos. Segundo ele, nunca se atingiu de maneira tão sólida e consistente a corrupção no Brasil. Foram 179 ações penais, 209 acordos de colaboração e 17 de leniência, 295 prisões preventivas ou temporárias, 174 condenações, com a recuperação de R$ 4,3 bilhões, em valores devolvidos aos cofres públicos, e R$ 14,8 bilhões, em multas. Não é pouca coisa. Sobre sua participação no governo Bolsonaro, Moro prefere falar sobre sua saída e não sua entrada. Acha que rende votos ter denunciado o presidente por querer interferir na Polícia Federal. O tempo dirá se ele tem razão.
PALAVRAS E EXPRESSÕES
Depois da confusão que se criou na CPI da Pandemia em razão do vazamento do relatório inicial, onde se classificava como genocídio os crimes cometidos pelo governo Bolsonaro contra os índios brasileiros, chegou-se a um entendimento. Saiu a palavra genocídio e entrou o termo “crimes contra a humanidade”. Eles significam mais ou menos a mesma coisa: o ataque sistemático a grupos ou coletividades que sejam identificados por sua etnia ou aspirações políticas, culturais, religiosas ou de gênero. Nas duas hipóteses, e ambas cabem ao governo, o que se almeja é o extermínio de um grupo.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/quem-tem-fome-paga-conta-25248471
Elio Gaspari: Sergio Moro precisará se reinventar para 2022
Ex-juiz precisa de roupa nova para as eleições de 2022
Elio Gaspari / O Globo
Em 2017, no apogeu da Operação Lava-Jato, o juiz Sergio Moro parecia ter tudo para disputar a sucessão de Michel Temer. Pela primeira vez na história da República, havia mandado para a cadeia grandes empresários e um ex-ministro da Fazenda que se revelaram criminosos confessos. Condenou o ex-presidente Lula, que foi para o cárcere protestando inocência. Com a ajuda de um tuíte do comandante do Exército, evitou-se que o Supremo Tribunal Federal lhe concedesse um habeas corpus.
Aquele juiz desconhecido de Curitiba surpreendeu o país. Passou o tempo e ele produziu novas surpresas. Divulgou a colaboração do comissário Antonio Palocci às vésperas da eleição de 2018 e, poucos meses depois, aceitou o cargo de ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, que haveria de fritá-lo.
Entre o apogeu e o ocaso, a própria Operação Lava-Jato teve expostas algumas de suas truculências e umas poucas boquinhas. Passou o tempo, Lula prevaleceu em mais de uma dezena de processos, enquanto o juiz de Curitiba teve sua parcialidade apontada pelo Supremo Tribunal Federal. A Lava-Jato se revelou um desengano, se acabou na quarta-feira e pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se sorri.
Depois de uma temporada numa banca americana de litígios, Moro está no Brasil, conversando em torno da hipótese de vir a ser candidato na eleição do ano que vem.
Ele enriquecerá o debate, mas para isso terá que se reinventar, pois o juiz de Curitiba empobreceu a luta contra a corrupção em Pindorama. Seus meios se revelaram catastróficos e sua ida para o governo de Bolsonaro tisnou-lhe a biografia. Seu silêncio desde que deixou o ministério agravou essa situação. Muitos anos antes de se tornar um exemplo de moralidade, Moro se apresentava como alguém capaz de destruir um sistema político azeitado pela corrupção. Veio, viu e perdeu. O governo que ajudou a eleger gravita em torno das mesmas figuras que davam (e recebiam) as cartas antes da Lava-Jato.
Para que aquele juiz de Curitiba se apresente, reinventado, como um nome que encarne o que se chama de Terceira Via, o doutor precisa dizer para onde vai essa via. O ponto final da rota do último Moro foi o fenômeno Jair Bolsonaro, com seus subsidiários, como o juiz carioca Wilson Witzel.
Na sua fase de esplendor, Moro parecia reeditar a Operação Mãos Limpas da Itália. Seu críticos lembraram que a “Mani Pulite” produziu Silvio Berlusconi, um palhaço corrupto. A bem da justiça deve-se registrar que nenhum dos juízes italianos se aninhou no governo do histrião. Moro se tornou ministro da Justiça de Bolsonaro e deixou-se fritar em relativo silêncio.
Em 2022, como em 2017, pode-se fazer de tudo por Sergio Moro, menos o papel de bobo.
Joe Biden ainda não acordou
Picaretagens de filhos de presidentes pareciam ser um fenômeno latino-americano. Joe Biden atravessou essa fronteira de forma entristecedora. Com menos de um ano na Casa Branca, seu filho Hunter se meteu em mais uma encrenca. Ele já havia se casado com a viúva do irmão, tivera uma passagem pela dependência de drogas, farfalhara no mundo dos negócios eletrônicos, no ramo de consultorias e chegou a faturar US$ 83 mil mensais numa boquinha ucraniana.
Agora, aos 51 anos, virou artista plástico. Seus quadros abstratos parecem um carnaval de micróbios. Hunter expôs em Los Angeles telas cujo preço ia de US$ 75 mil a US$ 500 mil. Amealhou US$ 375 mil, equivalentes a cerca de R$ 2 milhões. Até aí, tudo bem, pois cada um pode jogar dinheiro fora comprando porcarias.
Hunter inovou. A identidade dos compradores foi mantida em sigilo, e a porta-voz da Casa Branca disse que o presidente tem orgulho de seu filho.
Lavar dinheiro com obras de arte é coisa velha.
Biden é um bom sujeito e protege seu filho, mas coisa desse tipo nunca se viu. O presidente Ronald Reagan manteve seus filhos encrencados a quilômetros da Casa Branca. O casal Clinton só se meteu com dinheiro, canalizando milhões de dólares para sua fundação, depois de deixar o poder.
Pelo andar da carruagem, acelerada pelo desastre da saída das tropas do Afeganistão, Biden arrisca jogar a administração democrata numa ruína eleitoral nas eleições parciais do ano que vem, perdendo a tênue maioria nas duas casas do Congresso. Os negócios de Hunter Biden são um presente para os republicanos trumpistas.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, nunca tomou vacina e resolveu ajudar o capitão ao ouvir que ele pretende vender a Petrobras porque lhe atribuem culpa pelo aumento do preço da gasolina. O cretino vasculhou seus extratos bancários em paraísos e infernos fiscais e pretende ir a Brasília levando-lhe uma proposta:
Quanto ele quer pelo resto do Pindorama?
Urucubaca chinesa
Num episódio típico dos primeiros momentos da ditadura, nove chineses foram presos no Rio de Janeiro em abril de 1964. Estavam em missão oficial de um governo que o Brasil não reconhecia formalmente e viram-se acusados de fomentar a subversão comunista com agulhas envenenadas e bombas teleguiadas com formato de pássaros. Alguns apanharam, todos fizeram greve de fome e vagaram por meses pelas cadeias da cidade. Em abril de 1965, quando haviam se transformado numa batata quente para a diplomacia brasileira, foram expulsos do país.
Um deles tornou-se embaixador em Angola e chefiou o setor de América Latina do Ministério das Relações Exteriores da China. Outro tornou-se presidente do Conselho para a Promoção do Comércio Internacional e, nessa condição, conversou com o presidente João Batista Figueiredo em 1984.
— Morei um ano no Rio de Janeiro — disse-lhe o diplomata.
— Então o senhor deve conhecer bem o Brasil.
— Conheço muito pouco, porque fiquei, aquele ano, quase todo preso.
Os repórteres Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo contaram toda essa história no livro “O caso dos nove chineses”, que será atualizado e reeditado. Eles descobriram que em 2014, no governo de Dilma Rousseff, os chineses de 1964 foram agraciados com comendas da Ordem do Cruzeiro do Sul. As patacas e os diplomas foram mandados para a embaixada do Brasil em Beijing, mas em maio passado ainda estavam engavetados e não haviam sido entregues aos sobreviventes ou a seus familiares.
O decreto de expulsão dos nove chineses já foi revogado, e a concessão da honraria foi publicada no Diário Oficial. Engavetar as patacas é um caso exemplar da clarividência do então chanceler Azeredo da Silveira quando dizia:
“Tem gente que atravessa a rua só para escorregar na casca de banana da outra calçada”.
A conta de Alcolumbre
Se os çábios do Palácio do Planalto tivessem cumprido um décimo do que combinaram com o senador Davi Alcolumbre, não estariam com um espinho no pé.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/sergio-moro-precisara-se-reinventar-25239329
Ascânio Seleme: Ciro x Lula, a guerra prematura
Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro
Ascânio Seleme / O Globo
Todo mundo no PT sabia que seria difícil evitar um confronto com Ciro Gomes, mas também não se esperava que partissem do próprio PT as pedradas que desencadeariam a tormenta. O ideal era que o confronto ocorresse apenas na campanha, talvez nos debates, na propaganda de TV, nas entrevistas dos candidatos. Mas, não, os ataques que ajudam a desmontar a história alternativa que o partido pretendia contar sobre os seus quatro mandatos no governo do Brasil foram iniciados depois das agressões da militância petista a Ciro na manifestação do dia 2 de outubro. Era tudo o que ele precisava e queria. Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro.
A estratégia agora no PT, com o leite derramado prematuramente, é evitar danos maiores. A primeira ordem do comando, de não responder a eventuais ataques, caiu antes mesmo de ser implementada. A afirmação de que Lula contribuiu de maneira decisiva para o impeachment de Dilma, que passou anos falando mal dela e de seu governo, foi prontamente respondida por Dilma. E, mais grave, pelo próprio Lula, que mordeu a isca. Falou, de maneira inapropriada para um momento grave como este, que Ciro deve ter sequelas no cérebro em razão da Covid, mas não fez referência direta à acusação de que falava mal de Dilma. Talvez para não ser pego na mentira, vai que alguém gravou.
Os ataques de Ciro são de quem conhece muito bem Lula e o PT. Quando partem de Bolsonaro ou de seus aliados, as investidas têm muito menor eficiência do que quando disparadas por gente que já foi de dentro. Ciro foi da casa, sabe muito bem com quem está lidando, conhece concretamente os métodos petistas e percebe cada dissimulação, todas as tergiversações. Mais grave, Ciro sabe se expressar. Bolsonaro, não. E Ciro tem agora João Santana, outra fonte inesgotável de informações que podem complicar muito a candidatura petista até a eleição do longínquo outubro de 2022.
Aliás, o tempo é outro problema para o PT. Se serve para Lula viajar e negociar alianças ao centro e à direita, serve também para aos poucos ir manchando sua aura de político perseguido, desmanchando a imagem de um homem indefeso que foi fustigado, condenado e preso por um juiz politicamente comprometido e um Ministério Público corrupto e interesseiro. O manto de santo com que se vestiu Lula pode virar farrapos numa campanha tão longa.
Teoricamente, esta ainda era a hora para se pressionar com todas as forças democráticas pelo impeachment do presidente, denunciado por mais de 30 crimes de responsabilidade. Foi o PT que minou a causa ao abandoná-la. Logo o PT que pediu o impeachment de todos os presidentes não petistas desde a redemocratização. Ninguém escapou da saga petista, nem mesmo o acima de qualquer suspeita Itamar Franco. Contra todos se empenhou e mostrou seus dentes. Já com o Bolsonaro, apesar do discurso inicial, aquietou-se porque, por seus cálculos corretos, com ele no páreo fica mais fácil a eleição de Lula.
Lula foi chamado de corrupto, arrogante e egocêntrico. Dilma de incompetente. Sobre o PT, Ciro disse ver um grupo de fanfarrões e hipócritas neoliberais. Difícil dizer o que dói mais na alma petista, ser chamado de corrupto ou de neoliberal. Deixando à parte todos os conhecidos exageros retóricos de Ciro Gomes, o fato é que o PT ao longo dos anos foi se transformando de um partido socialista-marxista em um agrupamento de esquerda social democrática, o que não é ruim, absolutamente, até ser hoje de centro-esquerda, como ensinou o professor Fernando Haddad.
Falta um ano para eleição, tempo demais nos cálculos petistas para ficar vendo seu telhado ser ameaçado pela chuva de pedras que já começou a pingar. A ordem de não reagir a Ciro Gomes terá de ser atendida, sob pena de Lula perder a polarização que pretende exclusiva com Bolsonaro. De sua parte, Ciro sabe que é improvável tirar Lula do segundo turno. Seu objetivo é dividir a esquerda até onde conseguir e caminhar sobre os votos do centro para alijar Bolsonaro da disputa final. Também aí terá de ralar muito. De qualquer forma, a guerra prematura à esquerda está aberta e pode ser útil aos demais.
Comprando polêmica 1
A decisão do senador Davi Alcolumbre de não pautar a indicação de André Mendonça para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado faz parte do jogo político. A prerrogativa do presidente de indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal não significa que automaticamente sua indicação passará. Primeiro, tem que ser pautada pelo presidente da CCJ, depois aprovada pela Comissão e depois pelo plenário. Todas estas etapas são políticas e devem ser negociadas. Se a nomeação fosse automática, não precisava da avaliação do Senado. Alcolumbre tem razão e direito legal de sentar sobre a indicação da mesma forma que Arthur Lira senta sobre mais de cem pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. E, já que estamos tratando do terrivelmente evangélico Mendonça, Alcolumbre tem razão de sobra.
Comprando polêmica 2
Está bem que a pauta do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, é um horror. Seus métodos de ação são ainda mais escabrosos e obscuros. O homem inventa uma pauta de manhã e à tarde a coloca em votação. Essa prática vai acabar, junto com o fim do mandato de Bolsonaro. Mesmo assim, não dá para dizer que jogar um pouco mais de luz e mais controle sobre o Ministério Público é ruim. O que faltou foi oportunidade. E debate.
Comprando polêmica 3
A possibilidade de se criar federações de partidos pode ser útil à democracia brasileira. Reduzir o número de agremiações políticas ajuda a combater o partidarismo de aluguel. E, como força que a federação perdure quatro anos, permite ajustes, entendimentos e acordos para além das eleições. O que é muito bom.
Tolinho
O governo está soprando por aí que, pelos seus cálculos, a candidatura de André Mendonça ao STF será derrotada se chegar ao plenário do Senado. Tolinho. Fosse verdade, já teria trocado o nome para não passar vexame. Seu alvo é Alcolumbre, a quem a turma palaciana deve considerar um poço de ingenuidade.
Sem estratégia
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes provaram esta semana que, além da falta de apreço, não têm qualquer estratégia em relação à Petrobras. O presidente, reclamando que sobre ele caem todas as responsabilidades dos males do Brasil, disse que até quando a gasolina sobe a culpa é dele. E falou que isso cansa e já está até pensando em privatizar a companhia para se livrar do abacaxi. O ministro, por sua vez, propôs vender ações da Petrobras toda vez que o preço dos combustíveis subir e distribuir o dinheiro obtido entre os mais pobres. Vai ver que é isso mesmo o que ele quer. Até o fim do governo, diante das sucessivas desvalorizações do Real e dos consequentes aumentos da gasolina, Guedes privatizaria a estatal. Mas claro que não é assim que se toca assunto tão importante. Falar o que dá na telha, sem estudo, sem análise, com argumentos paupérrimos, apenas confirma o que já se sabe de ambos. São dois irresponsáveis contumazes.
Coreia bem piorada
Quantos brasileiros se inscreveriam no jogo proposto na série coreana “Round 6”? Para quem não sabe, trata-se do maior fenômeno de audiência da Netflix da temporada, onde 456 homens e mulheres desesperados, pobres e endividados, sem perspectivas, topam participar de um jogo de vida e morte para ganhar um mega prêmio em dinheiro. Na Coreia, 95% têm pelo menos o equivalente ao segundo grau completo. No Brasil, bom, por aqui, num jogo semelhante, as filas de inscrição dobrariam esquinas.
Pobre e velho
O motorista fechou o apressadinho que havia buzinado para ele, forçando que parasse o carro. Abriu então a janela e disparou: “Está com pressa? Da próxima vez passa por cima, seu velho”. “Você devia ter vergonha deste carro. Aposto que ganha 15 mil por mês, seu velho, pobre!”. O outro, incrédulo com o que ouvira, até em razão do conceito de pobreza do ofensor, respondeu: “Vai se vacinar, Bolsonaro”. Bastou para o “jovem” persegui-lo por três quadras, ameaçando bater, fechando o seu carro em manobras arriscadas e chamando-o seguidamente de velho e pobre. Mais bozo, impossível.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/ciro-lula-guerra-prematura-25238877