O Globo

Vera Magalhães: Entubados, mas armados

Se depender de Jair Bolsonaro, o número de mortes pela Covid-19 passará em breve dos 300 mil brasileiros, sem que haja uma palavra de compaixão, reconhecimento da tragédia ou das múltiplas ações e omissões propositais que nos levaram a isso. O presidente não está nem aí, já se cansou de dizer.

Para este homem, este presidente incidental e lamentável, pouco importa que as UTIs colapsem com gente entubada em uma, duas, três ondas sucessivas e contínuas da pandemia, desde que ele passe com sua boiada de desmonte das políticas civilizatórias. Para isso, quanto menos gente estiver olhando, melhor.

Se for na calada da noite de um não carnaval ermo, sombrio, melancólico, em que as pessoas lamentam a alegria suprimida com as vidas das pessoas amadas, perfeito.

Para o presidente da República do Brasil, o “povo tá vibrando”. Bolsonaro conhece tanto de povo quanto de cloroquina: absolutamente nada. Sua noção de povo se limita a olhar gráficos de popularidade em pesquisas e, quando eles caem, se preocupar com o próprio pescoço.

É quando isso acontece, que ele se lembra de chamar algum auxiliar e ordenar uma medida que arrefeça a indisposição com seu governo, coalhado de ministros tão ineptos quanto o chefe, que só por isso estão onde estão.

Quem seria Gilson Machado em qualquer outra época que não fosse o governo Bolsonaro? Nem para tocar sanfona como calouro num daqueles programas dos anos 1980 serviria. Seria gongado por Aracy de Almeida. Sem o escrutínio daquele baluarte do bom gosto musical, somos obrigados a ouvi-lo não apenas tocar desajeitadamente o instrumento, como fazer perorações absurdas acerca de um suposto “castigo divino” que teria se abatido sobre nós pelos pecados do carnaval e teria resultado nas mortes por Covid-19.

Tal pessoa, saída de algum desvão da História onde deveria ter permanecido, é ministro do Turismo! Motivo de um indisfarçado orgulho de um presidente que se jacta de ser cercado de fracassados e ressentidos — com cada vez mais raras exceções que, se não se tocarem de onde estão enfiadas, vão virar a regra.

Depois de boicotar de todas as formas que conseguiu a vacinação dos brasileiros e comprar, fabricar e enfiar goela abaixo de doentes incautos um medicamento sabidamente ineficaz, Bolsonaro parece encantado com a possibilidade de a Covid-19 sumir com um spray nasal.

A droga, em fase inicial de testes, é desenvolvida por Israel, o que faz com que o presidente a considere “ideologicamente correta”. Surtiu efeito em, vejam só, 29 pessoas! Uau!

Mas onde estão as vacinas, presidente? Por que seu ministro-general da Saúde, que o senhor disse ser especialista em logística quando demitiu dois médicos, não consegue estruturar um plano de chegada de doses mínimas de imunizantes a estados e municípios que terão de paralisar a vacinação?

Por que, no lugar de editar de uma vez, na calada da noite, quatro decretos inconstitucionais e imorais, que liberam geral não apenas a posse de armas, mas de miras telescópicas e a fabricação de munição, e permitem transformar os amigos caçadores, atiradores e colecionadores em Rambos armados até os dentes, o senhor não estava cobrando de Pazuello que implemente um plano de vacinação capaz de tirar o Brasil da UTI, onde permanece entubado graças à incompetência do senhor e do seu estafe?

É inadmissível que assistamos anestesiados à completa inversão de prioridades numa crise sanitária. A vacina mingua no momento em que estamos no pico de casos e mortes, com a nova cepa do vírus se espalhando pelo país. O auxílio emergencial ainda está sendo estruturado, mas os decretos de armas estão aí, a desafiar o bom senso, o Supremo Tribunal Federal e um Congresso que é cúmplice da incitação à barbárie e à morte.


Pedro Dória: Prisão de deputado bolsonarista põe Arthur Lira em xeque

Com a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), já no fim da noite de terça-feira, o Supremo colocou o presidente da Câmara, Arthur Lira, em xeque. E, simultaneamente, enviou um forte aviso ao Exército Brasileiro e ao Palácio do Planalto. A situação toda é muito delicada.

Para Lira, o problema é simples: Silveira foi preso por ameaçar o Supremo. Por ele ser deputado, o plenário da Câmara precisa confirmar a prisão — ou negá-la. Se nega, o Legislativo manda ao Judiciário uma mensagem. Considera normal que parlamentares ameacem outro Poder. Aquilo que o presidente Jair Bolsonaro passou o primeiro semestre de 2020 fazendo — ameaçar o Supremo — passa a ser prerrogativa também dos deputados. Se, porém, permite a prisão, Lira entra em conflito com o próprio Planalto e a base ideológica do presidente.

O centrão, do qual Lira é líder, tem duas características. Uma é de que troca favores no Parlamento por espaço no Executivo e verbas para os deputados. Outra é que é ideologicamente amorfo e evita se definir. O gesto de Silveira — em seu vídeo o deputado essencialmente desafiou o Supremo a prendê-lo — obriga o centrão a se posicionar para defender um discurso bolsonarista radical. Ou, então, se afastar.

Ocorre que o Planalto ainda não liberou as verbas e mal distribuiu cargos no ministério. O acerto de contas para ser feito pela eleição de Lira ao comando da Câmara não ocorreu. É cedo para ter este desgaste na relação — mas o centrão vai ter de se posicionar. E não é simples. Muitos deputados precisam estar nas graças do STF. Como precisam estar nas graças do Planalto.

De sua parte, o STF agiu claramente dentro da lei para efetuar a prisão. O ataque foi a Edson Fachin, o relator da Lava-Jato, num momento em que a operação está sob fogo cerrado. E, indiretamente, mostra uma resposta da Corte à pressão que sofreu em 2018, só agora se sabe, não apenas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Mas de todo o Alto Comando da Arma. Afinal, quando atacou o Tribunal no vídeo que motivou sua prisão, Silveira desafiava os ministros a prenderem Villas Bôas — ou se abaixar perante a pressão. Com seu gesto, ofereceu à Corte uma terceira saída. Prendê-lo e assim mostrar um gesto forte.


O Globo: Bancada evangélica resiste a decretos das armas - 'Contradição' com valores religiosos

Deputados e senadores argumentam que igrejas sempre foram contra o armamentismo

Paulo Cappelli e Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA — Os novos quatro decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro sobre armas de fogo encontram resistência em uma das principais bases de sustentação do governo: o segmento evangélico. Lideranças religiosas do Senado e da Câmara criticaram o ato do chefe do Executivo que, sem o aval do Legislativo, flexibiliza regras para compras e uso de armas e munições. Na volta às atividades após o feriado do carnaval, parte dos parlamentares ligados às igrejas deve apoiar medidas para a derrubada dos decretos, enquanto outros defendem construir uma solução para que as medidas sejam discutidas no Congresso.

Leia: Decreto das armas divide Centrão e será primeiro teste da nova base aliada de Bolsonaro no Congresso

Ontem, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) apresentou quatro projetos para sustar os decretos de Bolsonaro. A parlamentar, que integra a bancada evangélica, classificou os decretos como “uma traição à democracia”, que não se justifica “nem por interesses econômicos legítimos nem por um suposto aumento da segurança dos cidadãos frente ao crime organizado ou comum”.

— Eu entendo que colocar armas nas mãos das pessoas, dessa forma, é produto de um instinto anti-humano, anticristão e a favor de mortes. É uma irresponsabilidade completa. Todo parlamentar e sobretudo os que defendem o princípio maior do Cristianismo, que é o amor, precisarão impedir que isso avance — disse a senadora, frequentadora da Assembleia de Deus

Contradição

No dia anterior, o vice-líder do Cidadania na Câmara, deputado Daniel Coelho (PE), já havia ingressado com uma proposta de decreto legislativo para derrubar o decreto 10.630, que ele julga ser o mais “amplo” dos quatro. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), também criticou os decretos e disse que Bolsonaro exacerbou suas competências.

Líder da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), ligado à Assembleia de Deus, diz que apoiar a pauta armamentista é contraditório para quem faz a defesa da vida feita pelos cristãos. Ele evitou opinar se o presidente extrapolou sua competência ao usar decretos para definir novas normas sobre armas.

— Nós que defendemos a vida, por mais que sejamos base do governo, não podemos compactuar no apoio ao armamento, porque pregamos a paz, não temos uma ideologia no Brasil de usar as armas — disse Cezinha. — Muitos acreditam que, como há uma discussão no STF (Supremo Tribunal Federal), teria que ser passar pelo Congresso um tema muito espinhoso, mas não acredito que houve irresponsabilidade do presidente — disse o líder.

Veja também:'A falta de fiscalização agora é institucionalizada', diz advogado sobre decretos que flexibilizam armas

Um dos representantes da bancada evangélica mais próximos de Bolsonaro, Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), membro da Assembleia de Deus, defende que seja encontrado um “meio termo” entre a ampliação de armas defendida pelo presidente desde a época de campanha e o atual Estatuto do Desarmamento.

— Avalio que não temos uma cultura que permita armar a população como nos EUA, onde o acesso é muito fácil. Temos regiões do país com índice muito alto de brigas de trânsito, de violência doméstica. Imagina essas pessoas com armas? Por outro lado, não sou um desarmamentista. Sou contra, por exemplo, a discricionariedade da Polícia Federal para conceder ou não a posse de arma. Já falei para o Bolsonaro que temos que chegar a um meio termo — disse, pontuando que ainda não leu os quatro decretos.

— O governo foi vencedor na presidência da Câmara e do Senado e deveria fazer um debate franco e harmonioso. Essa imposição da extrema direita pode levar o presidente para um caminho sem volta. Pautas que mexem na vida da sociedade devem ser referendadas pelo Congresso — disse o deputado Fausto Pinato (PP-SP), frequentador da Congregação Cristã no Brasil.

— Não sou favorável a facilitar o acesso às armas, ainda mais por meio de um decreto. O tema deveria ser amplamente discutido no Congresso, ouvindo inclusive especialistas sobre o impacto que essas medidas podem acarretar — opinou o deputado Áureo Lídio (SD-RJ), frequentador da Igreja Metodista.

Entenda: As mudanças nos decretos de Bolsonaro sobre armas

Evangélico, o bolsonarista Otoni de Paula (PSC-RJ) é um dos mais ferrenhos defensores da facilitação do acesso de armas para civis. Para ele, o presidente “atendeu ao anseio das urnas e de seu eleitorado” ao publicar os decretos:

— Não acho que as medidas adotadas por Bolsonaro firam princípios cristãos. Se por um lado a igreja historicamente é contra o armamento, por outro tem defendido cada vez mais a autodefesa. Essa resistência ao armamento dentro da igreja tende a diminuir.


Míriam Leitão: Aos que não brincaram o carnaval

Hoje é terça de carnaval e não haverá blocos com aquela alegria resistente querendo esticar o que já estaria acabando. Não houve desfile no sambódromo, as baterias não tomaram os corações ao passar com seu ritmo e cadência, nem as baianas rodaram sua dança envolvente. As costureiras não bordaram o brilho da avenida. Os foliões que saíram não encontraram respaldo. Não é engraçado vestir-se de alguma paródia, se a morte à espreita na esquina não é uma fantasia.

Houve aglomeração e escutei no domingo a interminável festa de um vizinho, mas mais interessante é o silêncio de quem não foi para a rua, mesmo sendo apaixonado pela folia. Por isso dedico essa coluna aos que não brincaram o carnaval de 2021. É admirável a festa do avesso, da ausência, dos que demonstram respeito ao outro. Cada folião que não saiu, que dispensou a fantasia, que se enfeitou para si mesmo, estava celebrando a vida.

O Rio é do folguedo momesco. Eu admiro essa alegria como parte essencial da natureza do país apesar de me sentir estrangeira às vezes. No Rio, o carnaval de rua renasceu há vários anos em blocos de nomes tradicionais, divertidos e poéticos. Os trios elétricos da Bahia. Os ranchos de Belém. O Largo da Batata, em São Paulo. Metódico, São Paulo tem se esmerado para que o seu sambódromo brilhe mais do que a Sapucaí. Vai vai que consegue. No Recife, o frevo com suas muitas pernas trançantes e suas sombrinhas coloridas avisou ao galo que não cante de madrugada. Em Brasília, o pacotão ficou embrulhado. Em Salvador, o Pelô fez silêncio. Manaus. Manaus é o centro da nossa dor.

Ninguém melhor que Maria Bethânia refletiu o momento ao pedir “vacina, respeito, verdade e misericórdia”, na live em que mostrou a força inteira da sua voz de rainha. Ela reclamou da saudade do público distante, mas esteve tão próxima. Fez o que sempre soube fazer no canto, na poesia, na mensagem direta. Bethânia é opinião. Miguel em queda lembrava o passado que não corrigimos. Cálice parecia ter sido composta na véspera. As raízes do Brasil estavam todas no canto da filha de Dona Canô.

O folião desgarrado que volta pra casa, lúcido e triste, como diria Manuel Bandeira, com sua fantasia um pouco estragada pelos excessos, sempre me pareceu a melhor poesia do carnaval. A alegria se esbaldou, o canto aquietou, os pés já não pulam, o grupo se desfez e essa volta lenta, ainda marcado da festa, é a imagem que sempre prendeu meus olhos quando andei pela cidade, nos carnavais. Hoje, se houver algum folião voltando com restos de festa, não será uma imagem poética. Eu veria, se eu o visse, a pessoa que decidiu que o risco coletivo não é importante.

Eu nasci numa cidade que tem hoje 92 mil habitantes. Com quantas caratingas se conta a dor de hoje do Brasil? Que métrica mediria o que temos vivido? As mortes somadas não informam tudo sobre o sofrimento desse tempo. Houve também as esperas longas e angustiadas por um parente, um amigo, uma pessoa amada, houve a aflição de contar os dias, isolado num quarto, temendo que o ar fugisse dos pulmões e, ainda, a espera ansiosa pelo resultado dos testes. Houve a solidão e a saudade.

Na história dos carnavais haverá a cicatriz de 2021. Esse lapso, intermédio, ausência, parêntesis será o que de melhor teremos a contar nos anos vindouros. A folia recolhida foi o maior presente dado ao outro. Ó abre alas que vamos passar sem o carnaval. Momo foi levado a uma república. Destronou-se. Reinará no futuro, em outros carnavais.

O pior é a festa dos incautos, insensatos e insensíveis, dos que desprezam o risco, não por coragem, mas pela covardia de expor outros ao perigo, dos que por estupidez duvidam da ciência, fruta madura da inteligência humana.

Há muito sobre o que escrever no Brasil, numa coluna de jornal. Temas nunca me faltaram, nos quase 30 anos que aqui pontuo. Hoje a melhor notícia é a festa que não houve, a fantasia não vestida, os foliões que não foram vistos por aí. Aos que se recolheram, mesmo tendo alma carnavalesca, todo o meu respeito nessa terça magra do carnaval de 2021.

Bethânia mistura palavra falada e cantada. Declama e canta. Estilo dela. Opinião. Buscou Cecília Meireles para avisar que “a primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la”.


Carlos Andreazza: Inação calculada

Como cantado longamente aqui, o auxílio emergencial voltará; a dúvida sendo sob que grau de oportunismo populista. Agora parece uma obviedade, mas não foram poucos os especialistas cujos calls — em janeiro de 2021 —bancavam a improbabilidade da volta; talvez decorrendo daí, da fé nas palestras de Paulo Guedes, o estado, segundo Bolsonaro, “irritadinho” do mercado.

Muita gente bacana ficou de mau humor na semana passada — o governo de repente afobado, preocupado com os pobres, o presidente falando em fome —, porque acreditou na fantasia de que a economia virara o ano crescendo em V, e a segunda onda da peste seria mero repique. Estaria tudo sob controle — mesmo que ainda não haja orçamento para 2021. (Mas temos o direito a seis armas!) Tudo sob controle, livres de Maia, com as reformas chegando — e, claro, com o Banco Central independente, esta prioridade. Né?

Aí está, porém, o IBGE a nos situar; as vendas no varejo tombando 6,1% em dezembro. A imposição do mundo real. A premência do auxílio emergencial; o agente que induzia o consumo, sem o qual a miséria de um país miserável se expandirá — a miséria de um país miserável cujo governante boicota a vacinação em massa, a única forma de gerar empregos novamente. Voltará. Virou pra ontem.

O governo — até ontem — tinha pressa nenhuma. E agora, de súbito, o ai-jesus; porque também a popularidade de Bolsonaro geme. Guedes, aliás, precisa esclarecer se temos crescimento em V ou se é imperiosa a volta da assistência. Os dois discursos não casam.

Estava dado que o auxílio seria a principal agenda do Parlamento, uma vez escolhidos os novos presidentes de Senado e Câmara. Ato contínuo, procuraram o Planalto para impor a retomada. Virem-se. Há urgência — uma demanda social que não poderia ser condicionada por rigores fiscais. Esse foi o recado inicial; mensagem que vem do Congresso profundo. A da imposição de uma agenda que afrontaria o teto de gastos, ultimato em consequência do que ora vemos a correria do Ministério da Economia. Um barata-voa que muitos chamam de negociações com o Parlamento. Tomara. Eu desconfio.

Fala-se, desde o fim da semana passada, em acordo. Já haveria um entre Guedes e os presidentes das Casas legislativas para que o restabelecimento do auxílio contemplasse, imediatamente, ajustes fiscais compensatórios. Será preciso, contudo, combinar com as lideranças no Congresso. Recomendo prudência. A maré ali é outra, postas as condições para o atropelo. Isso seria o normal.

Tudo indica que o instrumento para a reconstituição a jato será algo como o orçamento de guerra, uma guarida excepcional já testada, que autorizaria, à margem do teto, a liberação de crédito extraordinário. Como em 2020, a âncora fiscal seria preservada de gastos que, no entanto, integrariam a fatura do déficit primário. Pronto. Desde que eleitos os novos comandos legislativos, ficara evidente que a preocupação do Congresso com a balança fiscal ia até somente a foto em que se acordaria um compromisso verbal para que, apenas em meados do ano, fosse votada uma emenda constitucional com medidas duras de verdade. Isso seria o normal. A promessa de austeridade projetada no amanhã.

O governo diz que não; que haveria mesmo um pacto de responsabilidade para já, e que se trabalha conjuntamente pela concepção do modelo. O modelo: embutir o novo orçamento de guerra na PEC do Pacto Emergencial, o que equivaleria a usar a pressão pela assistência para empurrar um projeto contra o qual há resistência no Parlamento. Essa é a estratégia. Prosperará? Se sim, afinal capaz de formar consensos, o Ministério da Economia daria uma demonstração de competência até hoje inédita. Haja empenho de fé.

Sugiro ceticismo. Maiores são — sob a vara do afogo — os riscos de triunfar uma resposta fácil. Sempre se soube que o auxílio emergencial acabaria com 2020; e que, não preenchido, o vácuo resultaria no agravamento da pobreza. O V de Guedes sendo amassado pela realidade, a que nos esfrega a forma bruta do K na lata; a perna que desce, a da saúde econômica dos ferrados.

O governo teve muitos meses para formular alternativas que abrissem espaço fiscal capaz de conciliar auxílio e teto. Houve mesmo tempo para que se estudasse, em nome da previsibilidade, uma modalidade de flexibilização da âncora fiscal ante uma situação excepcional. Mas se preferiu mentir sobre a saúde da economia. Preferiu-se a inação calculada, que alivia Bolsonaro dos prejuízos de fazer escolhas ao mesmo tempo que lhe dá a colheita das glórias.

Não é a primeira vez que o Planalto age assim. Ou seja: não age. Espera o Parlamento exigir. Forma-se o impasse. O governo, bancando o equilibrado, então solta o balão de ensaio: associar o mecanismo que viabilizaria a política pública urgente a uma PEC impopular parada no Congresso. E, dessa forma, empurra ao Legislativo o ônus de qualquer solução que não fiscalmente ponderada. Uma armadilha. Como diria Guedes, a granada no bolso do inimigo. Ganha-ganha para Bolsonaro; porque o auxílio, que nunca deveria ter cessado, voltará — um crédito extraordinário para o mito brincar de salvador.


Vera Magalhães: Com vacina acabando, Bolsonaro troca cloroquina por spray nasal israelense

Depois de passar quase um ano fazendo propaganda de cloroquina e hidroxicloroquina, inclusive ordenando ao Ministério da Saúde adotar um protocolo para que esses medicamentos fossem prescritos em casos leves de covid-19, determinar sua fabricação pelo Exército brasileiro e importar doses não utilizadas dos Estados Unidos, Jair Bolsonaro parece ter um novo xodó no enfrentamento da pandemia.

Enquanto começam a acabar as poucas doses de vacinas enviadas pelo governo federal a Estados e municípios, Bolsonaro postou neste domingo em sua conta no Twitter que conversou com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que o Brasil participe da fase 3 de testes do spray nasal EXO-CD24, que, escreveu "vem obtendo grande sucesso no tratamento da covid-19 em casos graves".

De novo, o presidente vende um remédio "milagroso" antes de ciência atestar isso. Nesta segunda-feira, ele voltou ao assunto (o que mostra que estamos a caminho de uma nova obsessão; as emas do Alvorada que se cuidem), dizendo que ele tem eficácia "próxima de 100%" e que, em breve, será enviado pedido de aprovação da Anvisa para uso emergencial.

As pesquisas com sprays nasais, não só em Israel, mas em várias partes do mundo, de fato são uma das vertentes abertas pela ciência na tentativa de combater a covid-19. A epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, publicou um fio no Twitter em que esclarece que o que existe publicado a respeito do EXO-CD24 é um registro de ensaio clínico de fase 1, com resultados promissores.

Segundo os fabricantes, explica ela, dos 30 pacientes com casos graves que usaram o spray nasal, 29 teriam se recuperado. É a isso que Bolsonaro se refere empolgadamente como "eficácia de praticamente 100%": um estudo preliminar com 30 pacientes.

Mais: mesmo para ter o uso emergencial aprovado pela Anvisa o medicamento precisa apresentar estudos de fases 2 e 3. O Brasil pode fazer parte de protocolos de estudos clínicos, como sugere o presidente, mas o uso do medicamento em escala capaz de aplacar os efeitos da pandemia, ainda que a eficácia seja comprovada, levará meses.

O que a nova obsessão do presidente mostra é sua busca desenfreada por uma narrativa que o tire do atoleiro de popularidade em que está enfiado por ter minimizado a pandemia, atuado contra o isolamento social, boicotado a compra de vacinas e mesmo a confiança da população em sua necessidade, segurança e eficiência.

A progressão de uma ainda ínfima campanha de vacinação mostra duas coisas concomitantemente: a adesão esperançosa e entusiasmada da população à vacina, algo em que o Brasil sempre foi vanguardista e exemplo para o mundo em logística, e a completa incompetência do governo para fazer andar o Plano Nacional de Imunização.

A "vacina chinesa do Doria", como o presidente de forma irresponsável insistiu em chamar a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, é o imunizante em maior quantidade no Brasil, mas mesmo assim, somada às doses da vacina da AstraZeneca/Oxford, com a qual a Fiocruz tem parceria, o que existe disponível não nos permitirá acabar a imunização da maioria da população neste ano.

Com a média móvel de casos no mesmo patamar de julho e picos de médias diárias que beiram os 1.500 óbitos por dia, e com a difusão da nova cepa de Manaus em outros Estados, inclusive de forma autóctone, a insistência de Bolsonaro em remédios "milagrosos" e a incapacidade de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em fazer chegar vacina a todo o País mostram que nem tão cedo o Brasil vai superar o pior momento da pandemia. 


Merval Pereira: Operação abafa

Uma entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso ao historiador Marco Antonio Villa está viralizando nas redes sociais, como contraponto à campanha de tentativa de desmoralizar a Operação Lava-Jato, com o objetivo de anular a condenação do ex-presidente Lula pelo então juiz Sergio Moro por parcialidade no processo do triplex do Guarujá, sentença que foi confirmada no Tribunal Regional Federal em Porto Alegre e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília.

Segundo Barroso, há uma “operação abafa” em curso, por meio da aliança de todos os setores para enterrar ações de combate à corrupção. Ele já havia abordado esse tema, entre outros, no livro “Sem data venia”, publicado pelo selo História Real, coordenado por Roberto Feith na editora Intrínseca. Para Barroso, referindo-se às mensagens roubadas dos celulares de procuradores de Curitiba, o problema não é “alguém ter dito uma frase inconveniente ou não. É que estão usando esse fundamento pra tentar destruir tudo que foi feito, como se não tivesse havido corrupção”.

No livro, Barroso desenvolve a tese de que há em curso no Brasil “um esforço imenso para capturar a narrativa do que aconteceu no país”, fazendo uso “de provas ilícitas, produzidas por criminosos, Deus sabe a soldo de quem”.

Ele classifica esse como um “processo de tentativa de reescrever a História, com tinturas stalinistas”, e ironiza: “Só falta a criação de um Ministério da Verdade, como na obra ‘1984’, de George Orwell, que vivia de reescrever a história a cada tempo, modificando os fatos”.

No livro, e também na entrevista a Marco Antonio Villa, Barroso relata os fatos, “para que não se perca a memória do país”: “a) Eu ouvi o áudio do senador pedindo propina ao empresário e indicando quem iria recebê-la, bem como vi o vídeo do dinheiro sendo entregue; b) eu vi o inquérito em que altos dignitários recebiam propina para atos de ofício, abriam offshores por interpostas pessoas e, sem declará-las à Receita, subcontratavam empresas de fundo de quintal e tinham todas as despesas pagas por terceiros; c) eu vi o deputado correndo pela rua com uma mala de dinheiro com a propina recebida, numa cena que bem serve como símbolo de uma era; d) todos vimos o apartamento repleto com 51 milhões de reais, com as impressões digitais do ex-secretário de Governo da Presidência da República no dinheiro; e) eu vi, ninguém me contou, o inquérito em que o senador recebia propina para liberação dos pagamentos à empreiteira pela construção de estádio; f ) todos vimos o diretor da empresa estatal que devolveu a bagatela de R$ 182 milhões; e g) todos vimos a usina que foi comprada por US$ 1,2 bilhão e revendida por menos da metade do preço”.

Barroso compara o que está acontecendo aqui com o que aconteceu na Itália, na Operação Mãos Limpas, que acabou sendo neutralizada por ações do governo e do Congresso: “Como seria de esperar, o enfrentamento à corrupção tem encontrado resistências diversas, ostensivas ou dissimuladas. Em primeiro lugar, as denúncias, processos e condenações têm atingido pessoas que historicamente não eram alcançadas pelo direito penal. (...) Tem-se, assim, a segunda situação: muitas dessas pessoas, ocupantes de cargos relevantes na estrutura de poder vigente, querem escapar de qualquer tipo de responsabilização penal”.

Para Barroso, “a articulação para derrubar a possibilidade de execução das condenações criminais após a segunda instância foi o momento mais contundente da reação, logrando obter a mudança de posição de dois ministros do Supremo que, antes, haviam sido enfaticamente favoráveis à medida”.

Barroso, no entanto, mantém uma visão otimista do processo — ele se diz “realista” —, acreditando que é menos provável que aconteça aqui o que aconteceu na Itália, por várias razões que elenca no livro: “Sociedade mais consciente e mobilizada; imprensa livre e plural; e Judiciário independente e sem laços políticos, ao menos na primeira e na segunda instâncias (apesar de ainda ser extremamente lento e ineficiente)”.


O Globo: Decreto das armas divide Centrão e será primeiro teste da nova base aliada de Bolsonaro

Parlamentares da oposição já se movimentam para derrubar medidas assinadas pelo presidente

Jussara Soares e Paulo Cappelli / O Globo

BRASÍLIA — Duas semanas após ajudar a eleger Arthur Lira (PP-AL) como novo presidente da Câmara negociando emendas e cargos com partidos políticos, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta o primeiro teste de fogo de sua aliança com o Centrão para sua agenda pessoal. Os quatro decretos editados na última sexta-feira para flexibilizar regras para compra e uso de armas no país sem passar pelo Congresso são questionados tanto por parlamentares de oposição como por deputados de siglas que compõem a nova base do governo.

A reação aos decretos das armas, segundo parlamentares ouvidos pelo GLOBO, vai dar a dimensão ao presidente de que, apesar de ter saído vitorioso na eleição no Congresso, não terá apoio irrestrito, mesmo do Centrão, em suas pautas. E sinaliza ao governo que a cada nova pauta a negociação deverá ser retomada do zero, principalmente nos projetos que tratam de costumes.

Lideranças de siglas como PL e PSD, duas das maiores do Centrão, e do MDB, já se manifestaram de forma contrária aos decretos. O Cidadania apresentou ontem um decreto legislativo para derrubar as novas normas, sob alegação de que o ato do presidente usurpa poderes do Congresso de legislar. Em sua primeira manifestação, Lira afirmou discordar dessa avaliação. Veja ao final desta reportagem os principais pontos dos decretos.

O posicionamento mais emblemático até o momento é o do vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), eleito na chapa de Lira com o apoio do Planalto. No Twitter, o parlamentar criticou o conteúdo dos decretos e afirmou que que Bolsonaro exacerbou sua competência.

“Mais grave que o conteúdo dos decretos (...) é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando um PL (projeto de lei) à Câmara”, escreveu. Em entrevista ao G1, Ramos disse que há “o uso da questão dos CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) para dissimular o desejo de armar a população”.

Vice-líder do Cidadania, o deputado Daniel Coelho (PE) ingressou, ontem, com uma proposta de decreto legislativo (PDC) para derrubar o decreto 10.630, que julga ser o mais “amplo” dos quatro. Se aprovada, a medida poderá suspender boa parte dos atos de Bolsonaro que tratam de cadastro, registro, porte e compra de armas e munição, além do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas. Para isso, Coelho precisará do apoio de três quintos dos votos.

O líder do PSDB na Câmara, deputado Rodrigo de Castro (MG), disse que o partido apoia a iniciativa do Cidadania e também estuda apresentar um PDC para derrubar os decretos do presidente Jair Bolsonaro.

— É um ato revestido de ilegalidade, um ato extemporâneo e é uma falta de noção muito grande por parte do governo, que não está olhando os pressupostos legais — disse o líder tucano na Câmara. — Somos radicalmente contra esse aumento (de armas), até porque ele é feio sem critérios.

O deputado Fábio Trad (PSD-MS) se posicionou contra os decretos e diz que no seu partido, embora tenha parlamentares armamentistas, não tem a ampla maioria apoiando a medida.

— O governo enfrentará resistência no Centrão. Eu, individualmente, sou contrário tanto por vício de iniciativa quanto pelo conteúdo, que me parece fora da prioridade do que o Brasil precisa. Não vejo coesão no Centrão hoje em relação a essas medidas — disse Trad.

Líder do MDB, Isnaldo Bulhões (AL) disse ser “totalmente inoportuno” o governo publicar decretos que ampliem o acesso a armas em meio à pandemia. A bancada do partido se reunirá na próxima terça-feira para tratar do assunto. A expectativa é que, salvo exceções, a maioria do MDB se manifeste contra os decretos publicados por Bolsonaro.

Outras lideranças aliadas de Bolsonaro no Congresso evitaram se posicionar diretamente e afirmam que ainda analisam os textos publicados na última sexta-feira. Aliado de Arthur Lira, o líder do DEM na Câmara, deputado Efraim Filho (PB), disse que o partido ainda fará uma reunião para consolidar uma posição majoritária sobre o tema. A bancada evangélica, grupo majoritamente contra ampliação da posse de armas, também ainda não se manifestou.

Bolsonaro já teve uma derrota semelhante no ano passado quando tentou, por decreto, flexibilizar as regras de posse e porte de armas. Um projeto de decreto legislativo (PDL) para derrubar a medida foi protocolado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e aprovado por 47 votos a 28. O texto seguiria para a Câmara, mas, antes disso, Bolsonaro recuou e revogou o decreto.

O presidente da Câmara, em entrevista ao G1, defendeu as medidas de Bolsonaro e disse que o Executivo não ultrapassou sua competência:

— Ele não invadiu competência, não extrapolou limites já que, na minha visão, modificou decretos já existentes. É prerrogativa do presidente. Pode ter superlativado na questão das duas armas para porte, mas isso pode ser corrigido — disse Lira.

Ontem, o ministro Luís Roberto Barroso liberou a continuidade do julgamento que analisará uma resolução do presidente Jair Bolsonaro que busca zerar a alíquota de importação de revólveres e pistolas. A medida entraria em vigor em janeiro, mas foi suspensa por liminar do ministro Edson Fachin após ação movida pelo PSB. O processo começou a ser discutido no plenário virtual da Corte no último dia 5, mas havia sido suspenso após Barroso pedir vista do processo. A expectativa é que, agora, o tema entre na pauta do plenário virtual desta sexta-feira ou da sexta da semana que vem.

Principais pontos dos decretos

Limite de armas

Agora o cidadão comum pode adquirir seis em vez de quatro armas, desde que preencha requisitos necessários. Esse limite sobe para oito no caso de policiais, agentes prisionais, membros do Ministério Público e de tribunais.

Porte de armas

Agora é permitido o porte simultâneo de duas armas, o que significa poder circular com elas.

Munição para CACs

Antes, caçadores, atiradores e colecionadores poderiam comprar, por ano, até mil munições para cada arma de uso restrito (submetidas a maior controle do Estado) e cinco mil para cada arma de uso permitido. Agora, poderão comprar também, por ano, insumos para recarga de até dois mil cartuchos nas armas de uso restrito e insumos para recarga de até cinco mil cartuchos nas de uso permitido.

Armas para CACs

Os caçadores, atiradores e colecionadores agora só precisarão da autorização do comando do Exército para comprar armas acima do limite estabelecido em decreto anterior: cinco unidades de cada modelo para colecionadores; 15 unidades para caçadores; 30 para atiradores. Essas quantidades valem tanto para as armas de uso restrito quanto para as de uso permitido.

Controle do Exército

Não serão produtos controlados pelo comando Exército itens como projéteis de munição para armas de porte ou portáteis, até o calibre máximo de 12,7mm — não vale para projéteis químicos, perfurantes, traçantes e incendiários; miras como as holográficas, reflexivas e telescópicas; armas de fogo obsoletas que tenha projeto anterior a 1900 e utilizem pólvora negra.


O Globo: Nova cepa do coronavírus se espalha pelo país e cientistas temem terceira onda

Tire as principais dúvidas sobre a variante de Manaus, que pode aumentar velocidade da pandemia no Brasil

Giuliana de Toledo e Johanns Eller, O Globo

RIO e SÃO PAULO — Já somam, de acordo com a Secretaria estadual de Saúde, 25 os casos de Covid-19 no estado de São Paulo provocados pela variante do coronavírus inicialmente identificada em Manaus. Desses, 16 são de pessoas que não estiveram no Amazonas nem em contato com quem tenha viajado pela região. Ou seja, a linhagem P1 está produzindo em número significativo infecções autóctones, que ocorrem sem “importação”.

Faça o teste:  Qual é o seu lugar na fila da vacina?

O Ministério da Saúde informa que, além de Amazonas e São Paulo, essa mutação do vírus já atinge pelo menos Ceará, Espírito Santo, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Roraima e Santa Catarina. E, segundo autoridades de saúde locais, há registros na Bahia e houve um episódio autóctone registrado no Rio Grande do Sul.

O avanço da P1 pelo país é preocupante, pois, segundo cientistas, ela demonstra ser mais transmissível. O principal freio seria a vacinação em massa. Mas a campanha nacional de imunização sofre com a escassez de vacinas.

Leia mais: Variante do coronavírus preocupa, mas vacinação não deve ser interrompida, dizem pesquisadores

A própria eficácia dos imunizantes é outra incógnita. Não há estudos que indiquem o grau de proteção da CoronaVac e da vacina de Oxford/AstraZeneca contra essa cepa. O Instituto Butantan informa que testes já estão em curso e devem ser concluídos nas próximas semanas sobre a vacina chinesa. A AstraZeneca, parceira de Oxford e da Fiocruz, também iniciou estudos.

Para tentar conter a propagação, Araraquara, que concentra 12 dos 25 casos de São Paulo — os demais estão na capital (9), em Jaú (3) e em Águas de Lindoia (1) —, entrou ontem em lockdown por 15 dias.

Também para barrar as variantes (incluindo a britânica e a sul-africana), o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) emitiu um alerta recomendando medidas de contenção como toques de recolher e lockdown.

Veja também:  O coronavírus é um ‘mestre’ em misturar seu genoma, preocupando os cientistas, apontam estudos

A reportagem procurou o Ministério da Saúde para entender a estratégia federal de contenção da nova cepa, sem retorno. E a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não respondeu se adotaria medida similar à da reguladora da União Europeia, que agilizará a liberação de vacinas eficazes contra novas mutações.


Como o Brasil pode evitar uma onda da nova cepa?

País corre risco de enfrentar terceira onda, afirma virologista

Para Fernando Spilki, virologista que coordena a Rede Corona-ômica (iniciativa do Ministério da Ciência para observar a evolução do coronavírus), diante do número elevado de casos, do ritmo lento da vacinação e da nova linhagem circulando, o país deveria considerar, “se não um lockdown completo”, medidas que restrinjam a circulação. A situação atual, ele alerta, nos encaminha para uma terceira onda, ainda mais preocupante, pois, agora, com variantes do vírus. Ele diz que vivencia-se hoje o efeito da falta de controle da movimentação de cidadãos no país.

JustiçaSTF determina que Polícia Federal investigue gastos do Ministério da Saúde com compra de cloroquina


A variante é mais transmissível? É mais letal?

Estudos epidemiológicos podem demonstrar potencial de contágio

As mutações afetam a proteína S, que é determinante na propagação do vírus. Por isso, e pelo pico de doentes observados em Manaus, cientistas acreditam que a variante seja sim mais transmissível. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, afirmou, em audiência no Senado, que “análises indicam que ela seja três vezes mais contagiosa", mas não informou a estratégia da pasta para evitar a disseminação da cepa. Ainda não se sabe se ela é mais letal. “Precisamos de estudos epidemiológicos e clínicos melhores”, explica Ester Sabino, da USP, que lidera sequenciamentos genéticos do vírus.

É possível a reinfecção pela nova linhagem?

Brasil deve considerar restrição de circulação, diz especialista

Sim. Quem já foi contaminado pode ser novamente infectado por essa variante do Sars-CoV-2. “Sabemos que a reinfecção está sim ocorrendo, mas ainda não sabemos com que frequência”, conta Sabino. Os pesquisadores se preocupam pela capacidade que essa linhagem do coronavírus parece ter em “driblar” o sistema imunológico de quem já superou a doença e deveria, em tese, ser resistente. Uma outra questão que não está respondida é a da intensidade da infecção em quem já adoeceu anteriormente: ela é mais, igualmente, ou menos forte?


Devo fazer teste para saber se estou com essa cepa?

Identificação só pode ser feita por exame ainda indisponível

É impossível descobrir por iniciativa própria se você está infectado com alguma variante, incluindo a de Manaus. A identificação das cepas só pode ser feita por sequenciamento genético, ainda indisponível nos laboratórios brasileiros. A Fiocruz do Amazonas anunciou que está criando um teste de PCR capaz de diferenciar a P1. “Hoje o sequenciamento só é feito em laboratórios de vigilância e pesquisa. Não há indicação para fazer o teste com o objetivo de saber que variante as pessoas têm”, diz Sabino. O tratamento contra a Covid-19 é o mesmo.


As vacinas usadas no Brasil são eficazes contra a cepa?

Imunizantes não divulgaram estudos que respondam sua ação diante da linhagem de Manaus

As duas vacinas em uso no Brasil, a da AstraZeneca/Oxford, produzida em parceria com a Fiocruz, e a do Butantan, em acordo com a Sinovac, não divulgaram estudos que respondam sua ação diante da linhagem de Manaus. O instituto paulista informa que testes para checar a eficácia nesses casos estão em curso e serão apresentados “nas próximas semanas”. O imunizante da AstraZeneca também está em avaliação contra a cepa brasileira. Procurada pela reportagem, a Fiocruz não respondeu sobre o estágio da investigação.


Detectamos com precisão mutações do vírus no Brasil?

Pesquisadores buscam concluir levantamentos sobre vigilância genômica

Não. Para Sabino, faltam recursos para o país conduzir um sequenciamento genético mais amplo de amostras de vírus que circulam aqui. Há vários grupos nacionais com esse enfoque, mas os esforços não estão bem distribuídos “no tempo nem no espaço", de modo que o retrato da epidemia acaba ficando incompleto. Spilki, por sua vez, destaca que, para além da vigilância genômica, o país não se vale de dados para criar estratégias, o que seria indicado “inclusive para questões de cicatrização do tecido econômico e de retorno à normalidade”.


O Globo: Huck conversa com seis partidos para eleição em 2022

Apresentador avalia cenário, cercado de experientes interlocutores, mas só decide se concorrerá ao Planalto em setembro

Thiago Prado, O Globo

RIO — No domingo, dia 7, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) desembarcou no Rio para um encontro com o apresentador Luciano Huck. Ao deputado, interessava alinhar os seus rumos após a eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL) para sucedê-lo e a briga pública com o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM-BA). A Huck, era importante ouvir um dos muitos interlocutores que passou a ter na política nos últimos tempos devido às articulações para se lançar candidato ao Planalto no ano que vem.

Desde 2018, quando seu nome já havia sido especulado para a disputa que elegeu Jair Bolsonaro, o apresentador tem relações explícitas com PSDB, DEM e Cidadania (na época chamado de PPS). O GLOBO apurou que, nos últimos meses, o apresentador também já abriu canal com PSB, Podemos e PSD como possibilidades para 2022. Ele até agora não indicou, entretanto, se de fato entrará na política e se adotará um perfil de centro-esquerda ou centro-direita.

Na conversa com Maia, Huck ouviu que o DEM não poderia mais hospedar um projeto antibolsonarista diante do alinhamento da bancada baiana na vitória de Lira na Câmara — dias depois, ACM Neto telefonou para o apresentador negando a informação. Naquela noite, o ex-presidente da Câmara queria saber dos planos de Huck e contou ao apresentador as suas duas principais hipóteses quando deixar o DEM: filiar-se ao PSL, dono de milionário fundo partidário; ou migrar para o PSDB de João Doria. Liderar uma fusão de Cidadania, Rede e PV, noticiado como possibilidade durante a semana, está em segundo plano para Maia. A ex-senadora Marina Silva resiste a dar fim ao Rede; já o PV vive uma crise interna com parte da sigla tentando desalojar do poder o presidente José Luiz Penna.

Huck mais uma vez não se comprometeu com respostas concretas a Maia. Tem sido este o conselho dado pelo seu principal consultor político, o ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung. O ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, exerce o mesmo papel na área econômica. O apresentador considera que haverá dois momentos de tomada de decisão: a entrada na política, por volta de setembro deste ano, quando o cenário econômico e social estará mais claro; e a filiação partidária no primeiro semestre de 2022 apenas.

Projeção de cenários

Hartung e Huck têm olhado com lupa todas as pesquisas recentes para decidir os próximos passos. O ramo das sondagens interessa tanto ao apresentador que ele abriu sua agenda em 5 de fevereiro para uma conversa com Murilo Hidalgo, dono do Paraná Pesquisas. Diante dos dados, o ex-governador do Espírito Santo projeta o seguinte cenário para Huck organizar o futuro: Bolsonaro perderá popularidade ao longo do ano. Mesmo criando um novo auxílio, o valor jamais será próximo aos R$ 600 pagos em 2020, o que alimentará a frustração de parte do eleitorado. Com o poder da máquina, Hartung imagina, contudo, que o piso da avaliação ótimo e bom do presidente não cairá de 25%, o que o tornará competitivo para estar no segundo turno em 2022.

A despeito da força do Planalto, pesquisas divulgadas neste início de ano, especialmente uma do Datafolha de janeiro, animaram Huck e o seu entorno. Em um índice de confiabilidade de figuras públicas brasileiras, o apresentador apareceu na frente do governador de São Paulo, João Doria, com ativos eleitorais que há tempos os tucanos encontram dificuldades de ter: entrada no Nordeste e na população de baixa instrução.

Baixos índices

Hartung chegou a fazer uma análise para Huck no fim do ano passado: a vacina Coronavac, do Instituto Butantã, poderia equivaler ao Plano Real para FH em 1994. Quase um mês depois do início da imunização no país, os índices de popularidade de Doria pelo Brasil profundo patinam. Os baixos números do governador de São Paulo coincidem com o movimento que ocorreu na semana passada no PSDB, de lançamento da pré-candidatura presidencial do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.

No campo do que se convencionou chamar de centro na política brasileira, uma análise de Huck e seu entorno é diferente de praticamente todo o mundo político: o ex-juiz Sergio Moro ainda pode, sim, ser candidato devido aos seus altos e resilientes (embora em queda) índices de popularidade. Com Moro na urna, Huck estará fora do jogo de 2022.


Fernando Gabeira: O precoce começo de 22

Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.

O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.

Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.

Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.

Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.

Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.

No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.

Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.

Já defendi a ideia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.

O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.

Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.

O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.

Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.

Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.

É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.

Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.


Elio Gaspari: Villas Bôas contou, reviu e errou

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas. Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio.

Está nas livrarias “General Villas Bôas: Conversa com o comandante”. É o resultado de 13 horas de entrevistas do professor Celso Castro com o general Eduardo Villas Bôas, que comandou o Exército de 2015 a 2019. O texto foi revisto pelo general até maio de 2020 e devolvido com acréscimos que engordaram o livro em 30%.

“VB”, como é chamado pelos colegas, rememora sua vida, da infância de Cruz Alta aos dias tensos do impedimento de Dilma Rousseff e da eleição de Jair Bolsonaro.

Ele tratou do seu famoso tuíte de 2018, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal (“um alerta, muito antes que uma ameaça”) e do agradecimento que Bolsonaro lhe fez pouco depois de ter sido empossado:

“Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por estar aqui. Muito obrigado, mais uma vez.”

O general explicou: “Morrerá entre nós! Garanto que não foi um tema de caráter conspiratório.”

O tempo e novas memórias do período lapidarão as lembranças de Villas Bôas.

Num caso, porém, sua memória (revista) falhou feio. Ele conta:

“O presidente Sarney relata que, após a morte de Tancredo Neves, houve uma reunião para deliberar como se processaria a nova sucessão. O deputado Ulysses Guimarães tentou impor sua posição que consistia na realização de um novo pleito. O ministro Leônidas (general Leônidas Pires Gonçalves) posicionou-se no sentido de que, conforme a legislação vigente, o cargo de presidente caberia ao senador Sarney (que havia sido eleito para a vice-presidência). Ato contínuo, voltou-se para ele, prestando uma continência disse: ‘Boa noite, presidente.’ Com seu arbítrio, o fato estava consumado, o que assegurou uma transição sem percalços”.

Sarney nunca relatou isso. Ele vestiu a faixa na manhã de 15 de março de 1985, e Tancredo só morreu no dia 21 de abril.

As incertezas com relação à posse do dia 15 foram desencadeadas na noite da véspera, quando Tancredo foi levado para o Hospital de Base de Brasília, para uma cirurgia de emergência. A posse estava marcada para horas depois.

Sarney chegou ao hospital às 21h30m.

Nas suas palavras:

“Lá encontro Ulysses. Tenho os olhos marejados. Rasga-me a alma o sofrimento de Tancredo. Ulysses me desperta ríspido: ‘Sarney, não é hora de sentimentalismos. Nossa luta não pode morrer na praia. Temos de tomar decisões. Você assume amanhã, como manda a Constituição, na interinidade do Tancredo.’

‘Não, Ulysses, assume você. Só assumo com Tancredo.’

‘Você não pode acrescentar problemas aos que estamos vivendo. É a democracia que temos de salvar.’”

O general Leônidas, ministro do Exército escolhido por Tancredo, jantava na Academia de Tênis quando soube que o presidente eleito estava no hospital. Foi para lá defendendo a posse de Sarney. Conseguiu uma gravata emprestada e seguiu com uma pequena comitiva de políticos para um encontro com o chefe da Casa Civil, professor Leitão de Abreu. Sarney ficou no hospital e depois foi para casa.

Leitão estava em dúvida (ou fingia estar em dúvida), se deveria ser empossado o vice ou o presidente da Câmara (Ulysses). Nesse encontro Ulysses e Leônidas queriam a posse do vice-presidente. Fernando Henrique Cardoso testemunhou a cena. Ela aconteceu nas primeiras horas da madrugada do dia 15. Àquela altura, achava-se que em alguns dias Tancredo estaria recuperado.

Às 3h da madrugada tocou o telefone na casa de Sarney. Era o general Leônidas, que começou a conversa com um “boa noite, presidente”. Sarney repetiu que não queria assumir, e Leônidas disse-lhe que “não temos espaço para erros”. Despediu-se com outro “boa noite, presidente.”

A cena contada por Villas Bôas nunca aconteceu. Tancredo não estava morto. Ulysses nunca quis uma nova eleição e sempre defendeu a posse de Sarney. O general Leônidas era formal, mas não dava continência falando ao telefone.

O Lavajatismo de Bretas

Enquanto o Supremo Tribunal Federal resolvia o destino das conversas promíscuas de procuradores de Curitiba, algumas das quais envolvem o ex-juiz Sergio Moro, o ministro Gilmar Mendes dava uma entrevista a Felipe Recondo e Fábio Zambeli. Nela, descascou as impropriedades praticadas durante a Operação Lava-Jato e perguntou:

“Como nós chegamos até aqui? (...) O que nós fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso que se produziu. (....) Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram.”

Gilmar reconheceu as limitações do Judiciário, condenou a “blindagem” com que a imprensa protegeu a turma da Lava-Jato e foi ao essencial: “O que nós devemos fazer para evitar que esse fenômeno se repita?”

Nesse mesmo dia, o juiz Marcelo Bretas, lavajatista do Rio de Janeiro, ouvia o ex-governador Luiz Fernando Pezão. A certa altura, Pezão disse ter certeza de que seu parceiro Sérgio Cabral e dois de seus colaboradores haviam combinado as versões de suas delações enquanto estavam na cadeia.

Pezão estava no meio do seu raciocínio quando o procurador Carlos Aguiar interrompeu-o, dizendo que ele estava fazendo “juízo de valor sobre as colaborações”.

Vá lá, porque é conhecido o espírito de corpo do Ministério Público, mas o juiz Bretas entrou no diálogo, informando a Pezão que não lhe cabia, como testemunha, avaliar se a colaboração “é justa ou correta”. Vá lá, juízes adoram dar aulas, mas Bretas foi adiante:

“É preciso ter cuidado quando se afirma que certa irregularidade aconteceu, porque é preciso provar.”

Em seguida, Pezão mudou o tom.

O repórter Athos Moura noticiou o fato. O que aconteceu?

Nadinha, pois, tomando cuidado, chegara-se àquilo.

Faz tempo que se chega.

Em 1974, quando Elzita Santa Cruz de Oliveira procurava seu filho Fernando, escreveu cartas a chefes militares contando seu caso, e um tenente-coronel acusou-a de caluniar o Exército, pois “seria desonrar todo nosso passado de tradições, se nos mantivéssemos calados diante de injúrias ora assacadas contra nossa conduta de soldados da Lei e da Ordem que abominam o arbítrio, a violência e a prepotência”.

Meses depois, o mesmo tenente-coronel estava na sala do comandante do II Exército, general Ednardo D’Avila Mello, quando o ministro Sylvio Frota interpelou-o por que um oficial da Polícia Militar de São Paulo “tinha sido insultado e agredido a socos durante um interrogatório” no DOI.

Nas palavras de Frota:

“Não é possível, Ednardo, que isso aconteça! Você deve tomar enérgicas providências. É preciso mudar, logo, alguns dos oficiais que trabalham no DOI; substituí-los, porque estão ocorrendo exageros que não podemos admitir.”

Fernando, filho de Elzita, era o pai de Felipe Santa Cruz, atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Nunca foi encontrado.