O Globo

Dorrit Harazim: Cemitério nacional

Em seu célebre discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz, em 1954, Albert Schweitzer achou necessário despertar o mundo das ilusões do pós-guerra. “Todos nós devemos nos dar conta de que somos culpados de desumanidade. Todos nós”, informou à nobilíssima plateia o humanista, médico e teólogo cuja reverência pela vida era absoluta. Alguém, hoje, lhe daria ouvidos ou aceitaria o convite à reflexão? Difícil. Estamos ao mesmo tempo paralisados e ocupados demais em não morrer de Covid-19. Quanto aos que ostentam como honraria seu desdém pela mortandade alheia, uma não menos célebre sacada de Voltaire cabe melhor: “Quem consegue convencê-lo a acreditar em absurdos é capaz de fazê-lo cometer atrocidades”.

A tragédia do Brasil atual extrapola até mesmo a máxima voltairiana: temos na Presidência alguém que não apenas acredita (ou finge acreditar) em absurdos, como ele próprio comete atrocidades em série. Seus áulicos contribuem ao cometer outros tantos, criam terreno fértil para a irresponsabilidade coletiva nacional, e o mundo digital explode num ódio de raiz. “Estão vacinando macaco antes de vacinar gente”, dizia a mensagem recebida pela primeira brasileira a tomar a vacina, Mônica Calazans. Entrevistada no “Globo Repórter” desta semana, a enfermeira negra contou que as mensagens de ódio foram múltiplas.

Impenetrável à razão e à civilização, essa turma acaba afetando os demais. Como resultado, estamos num país-cemitério que não dá conta de seus cidadãos ainda vivos e já enterrou mais de 252 mil contaminados pelo vírus. Talvez a causa mortis devesse ser atestada por inteiro: Covid-19 + falta de vacina + colapso do valente SUS + negacionismo oficial + roubalheira geral + inércia do Congresso + inadimplência moral +... A lista seria por demais extensa, se nominal. Na verdade, a desqualificação do general e titular da Saúde, Eduardo Pazuello, o torna quase inimputável, de tão aberrante. A seu abissal despreparo, soma-se uma deliberada intenção de desinformar e camuflar o pânico — como se fosse possível esconder 1 morto de Covid-19 por minuto, a cada dia. Incapaz de responder às perguntas mais gritantes da imprensa, Pazuello sobrevive à base de pronunciamentos e proclamações à nação, todas sem nexo.

Já o papel de Jair Bolsonaro na devastação humana atingiu um patamar sem volta. Será julgado pela História, o que não lhe importa. Ser condenado pelo Brasil pensante até o alimenta. E ser amaldiçoado por pais, filhos e netos, parentes e dependentes, amigos e colegas dos que não precisariam morrer parece lhe ser indiferente. O presidente é um humano esquisito. Parece feito de um material impermeável à dor alheia. “A verdade é que ninguém chega impunemente a presidente da República”, lascou o Stanislaw Ponte Preta em tempos mais inocentes. Bolsonaro consegue superar a verve de Sérgio Porto: além da sombria bagagem que trouxe para a Presidência, ensandeceu no poder.

Difícil explicar de outra forma sua live semanal da quinta-feira, 25. Naquele dia o Brasil ultrapassara a montanha de 250 mil mortos por Covid-19 em um ano e chegara ao patamar mais alto da contagem diária de óbitos: 1.582. Ouvir o presidente tagarelar sandices contra o uso de máscaras e o isolamento social, naquele seu tom informal salpicado de algo parecido com um ricto/riso, foi horrendo. Foi obsceno.

Dias atrás o crítico de arte do “New York Times” Michael Kimmelman evocou o impacto mundial de uma célebre mostra de fotografia do pós-Segunda Guerra para falar sobre a dificuldade de retratar a atual pandemia. Ele se referia à monumental exposição “The Family of Man”, inaugurada em 1955 no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ela foi vista por 9 milhões de pessoas e circulou pelo mundo ao longo de 7 anos. O curador da mostra — ninguém menos que Edward Steichen — selecionara 503 imagens de 68 países para retratar a universalidade da experiência humana e o papel da fotografia na documentação da nossa história.

A família humana de hoje que sobreviverá à Covid-19 ainda não tem uma imagem-ícone capaz de traduzir o medo, o vazio urbano, o horror do isolamento afetivo, a falência física, a morte por asfixia, o silêncio. Não existe o instantâneo imortal do homem em queda das Torres Gêmeas em chamas, nem a foto do menino Alan Kurdi, inerte em areia estrangeira, como símbolo do drama dos refugiados. Do nosso inimigo comum, o vírus, temos apenas uma versão estilizada em forma de bola de tênis com pregos, como já escreveu Helen Lewis na revista “The Atlantic”. As máscaras e equipamento hospitalar radical das equipes médicas já faziam parte de nosso vocabulário visual como sinônimo de higiene e segurança. Não dão conta do recado. E Lewis insiste ser obrigatório encontrarmos a linguagem certa de retratar esta pandemia, porque precisamos relembrar coletivamente o que vivemos. Aguardemos.

A galeria de cúmplices do vírus, contudo, já tem seus nomes de ponta. Disporá de um farto portfólio do presidente brasileiro espalhando a morte.


Elio Gaspari: Gilmar fará uma Lava-Jato na Lava-Jato

Ministro do STF levará, nas próximas semanas, o julgamento da suspeição do juiz Sergio Moro para a mesa da Segunda Turma

Nas próximas semanas, o ministro Gilmar Mendes levará para a mesa da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal o julgamento da suspeição do juiz Sergio Moro no processo da Lava Jato. São pedras cantadas a exposição da parcialidade do doutor e a promiscuidade de suas relações com o Ministério Público. O ministro deu uma pista do que vem por aí ao lembrar que irá além do que chama de “questão Lula”: Será algo “muito maior.”

Põe maior nisso. Gilmar tem assessores passando o pente-fino nas mensagens trocadas em Curitiba. Desde junho de 2019, quando o site “Intercept Brasil” levou ao ar os primeiros grampos dos sete terabytes capturados, eles têm aparecido de forma explosiva, porém desordenada. Colocados em ordem cronológica e contextualizados, revelam a extensão das malfeitorias blindadas pela mística da Operação Lava-Jato.

A última novidade saída dos grampos foi um episódio ocorrido em 25 de janeiro de 2016. Nele, é mencionada a delegada da Polícia Federal Erika Marena, que integrava a equipe. Nas palavras do procurador Deltan Dallagnol: “Ela entendeu que era um pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada. (...) Se o colaborador e a defesa revelarem como foi o procedimento, a Erika pode sair muito queimada nessa... Pode dar falsidade contra ela... Isso que me preocupa”.

Dallagnol propôs um remendo:“Combinar com ela de ela nos provocar diante das notícias do jornal para reinquiri-lo ou algo parecido. Podemos conversar com ela e ver qual estratégia ela prefere. (...) Se não fizermos algo, cairemos em descrédito”.

Havia sido simulado um depoimento que não tinha acontecido, e o caso seria resolvido ricocheteando-se uma notícia que seria plantada na imprensa.

No início de 2016, o juiz Moro ordenava operações irregulares de busca e apreensão:

“Russo deferiu uma busca que não foi pedida por ninguém… hahahah. Kkkkk”, escreveu um delegado da PF.

“Como assim?!”, respondeu uma delegada.

“Normal… deixa quieto…Vou ajeitar…kkkk”.

O depoimento mencionado pela delegada Erika era uma das muitas peças da colaboração do lobista Fernando Moura, um amigo do comissário José Dirceu. Ele havia sido preso, negociara um acordo, mas vinha se desdizendo. Numa audiência, tratando de um caso de corrupção explícita na Petrobras, Moura perguntou ao juiz: “Assinei isso? Devem ter preenchido um pouco a mais do que eu tinha falado.”

Estava feia a coisa. A delegada já havia dado sua versão para o depoimento que não aconteceu: “Usaram meu nome no cabeçalho, mas não tomei e não participei de nenhum termo. Se ele está se desdizendo, infelizmente não haverá gravações.”

Os procuradores negociavam o que um deles chamou de “terceirização dos depoimentos”. (Ganha uma vacina de vento quem souber o que é isso.) O devido processo legal não era devido, nem processo, muito menos legal. Criminalistas veteranos lembram que esse tipo de “depoimento” era prática comum para rábulas bem relacionados com escrivães.

Um procurador exclamou: “Erramos !!” Outro, Júlio Noronha, resolveu a questão com um xeque-mate: Fernando Moura deveria ser “exemplarmente punido, inclusive com prisão — ou o instituto (da delação premiada) sofrerá um abalo”.

Assim, a discrepância foi varrida para baixo do tapete em 2016, e a turma da Lava-Jato pagará a conta em 2021.

O pente-fino da equipe de Gilmar Mendes poderá responder à sua grande pergunta:

“Como nós chegamos até aqui? (...) O que nós fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso que se produziu. (...) Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram”.

Um reitor na ficha da delegada

Em maio de 2016, a delegada Erika Marena teve 1.065 votos entre seus pares para substituir o diretor da Polícia Federal. Com a fama da turma de Curitiba, Marena foi retratada pela atriz Flávia Alessandra no filme “A Lei é Para Todos”. Afinal, foi ela quem deu o nome fantasia à operação.

Na manhã de 14 de setembro de 2017, uma semana depois da estreia do filme, a delegada mobilizou 105 policiais e prendeu espetacularmente o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, e outros quatro professores.

Erika Marena acusou-o durante uma entrevista coletiva de obstruir as investigações que apuravam um desvio de R$ 80 milhões do programa de ensino a distância. Depois de ter dormido na cadeia, o reitor foi libertado por uma juíza. Não podia pisar no campus da universidade, em cuja vizinhança vivia. Passadas duas semanas, Cancellier publicou um artigo falando da “humilhação e do vexame” a que havia sido submetido e, no dia 2 de outubro, atirou-se do sétimo andar de um shopping de Florianópolis.

Faço porque posso

Depois do voto de Gilmar Mendes sobre a suspeição de Moro, a turma da Lava-Jato responderá pelas tramoias que armou contra ministros do Superior Tribunal de Justiça.

Um sai, o outro fica

A diplomacia bolsonarista dá resultados parecidos como de um canhão que só atira pela culatra.

Yossi Shelley, embaixador de Israel e queridinho da família do capitão, foi levado de volta. Exibido e atrevido, suas asas já haviam sido cortadas pela chancelaria de Tel Aviv.

Já o embaixador da China, Yang Wanming, igualmente atrevido, teve sua retirada pedida pelo governo brasileiro e foi mantido no posto por Beijing.

General da logística

O general Eduardo Pazuello foi colocado no Ministério da Saúde porque é um craque da logística.

Estando no cargo, uma partida de vacinas que deveriam ter ido para Manaus acabaram no Amapá. A distância entre a capital do Amazonas e Macapá é de mil quilômetros.

Atribuir a lambança a Pazuello seria injusto, até porque, com seu temperamento, virou saco de pancadas por bobagens alheias.

Mesmo assim, ele deveria refletir. O que aconteceria a um oficial que, no Dia “D”, mandasse um suprimento destinado à Normandia e ele fosse parar em Copenhague, na Dinamarca?

Capitão Galtieri

Uma víbora chama o presidente Bolsonaro de “Capitão Galtieri”.

O general Leopoldo Galtieri presidia a Argentina e era um tipo espetaculoso. Em 1982, teve uma ideia: invadir as Ilhas Malvinas, colônia inglesa perdida no Atlântico. Negou a lógica da ciência militar e foi humilhado por Margaret Thatcher, que desceu com a frota e botou suas tropas para correr.

Ao contrário de Galtieri, Bolsonaro é abstêmio.

250 mil mortos

A “gripezinha” estava no “finalzinho” e a segunda onda era “conversinha”.


Bernardo Mello Franco: Impunidade parlamentar - Lira recuou, mas não desistiu

Por duas semanas seguidas, os deputados esticaram o trabalho e se reuniram para votar numa sexta-feira. O surto de produtividade nada teve a ver com a pandemia. O objetivo era despachar o aloprado Daniel Silveira e evitar novas prisões de parlamentares.

Assim que a cabeça do bolsonarista foi entregue, a Câmara passou a discutir a chamada PEC da Imunidade. A proposta muda a Constituição para reforçar a blindagem de deputados e senadores. Com a regra atual, prender um congressista é muito difícil. Com a nova, passaria a ser uma missão impossível.

O articulador da ideia foi o novo presidente da Câmara, Arthur Lira. Em defesa da mudança, ele disse que “proteger o mandato é garantir que os parlamentares possam enfrentar interesses econômicos poderosos ou votar leis contra organizações criminosas perigosas”.

O deputado não é conhecido por contrariar empresários ou combater quadrilhas. Ele responde a duas ações no Supremo, por corrupção passiva e organização criminosa.

Discípulo de Eduardo Cunha, Lira se inspirou no mestre e tramou uma aprovação a toque de caixa. Na terça, seus aliados começaram a recolher assinaturas para apresentar a proposta; na quinta, o texto estava pronto para votação em plenário.

Pelo rito tradicional, toda PEC precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial. O presidente da Câmara pulou as duas etapas, mas não conseguiu consumar o tratoraço.

Na sexta, o deputado admitiu, a contragosto, que não tinha os 308 votos necessários para mudar a Constituição. Ele se disse “muito triste e preocupado”, com as críticas à emenda. “Essa não merece ser chamada PEC da Imunidade. Deveria ser chamada PEC da Democracia”, reclamou. Lira foi generoso com a própria obra. Outros parlamentares preferiram acrescentar um P, rebatizando-a de PEC da Impunidade.

O chefe do Centrão usou um argumento fajuto para proteger os colegas na mira da polícia. A Constituição afirma que os congressistas são invioláveis por “opiniões, palavras e votos”. O texto foi redigido para defender a democracia e o livre exercício dos mandatos. Não pode ser usado como escudo para a prática de crimes.

Se a proposta de Lira já estivesse em vigor, o deputado Daniel Silveira não teria sido preso e a deputada Flordelis não teria sido afastada por ordem da Justiça. Ela é acusada de mandar matar o marido, executado com 30 tiros em Niterói.

A pastora foi denunciada por homicídio triplamente qualificado, associação criminosa, falsidade ideológica, uso de documento falso e tentativa de homicídio por envenenamento. Ela se tornou ré há seis meses, mas escapou da prisão preventiva graças à imunidade parlamentar.

O marido de Flordelis foi assassinado em junho de 2019. O Conselho de Ética da Câmara só instalou um processo disciplinar contra ela na terça passada, como parte do teatro para justificar a votação da PEC. Lira foi obrigado a recuar, mas já deixou claro que não desistiu.


O Globo: Bolsonaro dobra presença de militares em cargos estratégicos no governo

Em setembro de 2020, 342 egressos das Forças Armadas ocupavam cargos comissionados nas maiores faixas de remuneração da máquina federal, em postos de coordenação, diretoria, secretaria ou de ministro

Maiá Menezes, Bernardo Mello e Marlen Couto, O Globo

RIO — Em paralelo a crises vividas pelo presidente Jair Bolsonaro, a presença de militares em funções de comando nos ministérios praticamente dobrou nos últimos dois anos. Em setembro de 2020, 342 egressos das Forças Armadas ocupavam cargos comissionados nas maiores faixas de remuneração da máquina federal, em postos de coordenação, diretoria, secretaria ou de ministro. Em janeiro de 2019, início do governo, eram 188 militares nessas funções. Dois movimentos feitos pelo governo nos últimos dias vão aprofundar a participação: o general Joaquim Silva e Luna foi indicado para a presidência da Petrobras, enquanto o almirante Flávio Rocha deve ser o novo chefe da Secretaria Especial de Comunicação (Secom).

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Os dados foram obtidos em levantamento dos gabinetes do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) e atualizados pelo GLOBO. Além do Ministério da Defesa, que habitualmente abriga membros de Exército, Marinha e Aeronáutica, pastas como Saúde e Meio Ambiente registram avanços significativos. Para especialistas, o salto ignora a necessidade de experiência prévia em áreas sensíveis, como o combate à pandemia da Covid-19 e o controle do desmatamento, e expõe a dificuldade de Bolsonaro em articular uma base.

Percentual de militares em altos cargos no governo federal Foto: Editoria de Arte
Percentual de militares em altos cargos no governo federal Foto: Editoria de Arte

Ao longo das gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer, o percentual de ocupação desses cargos não passou de 2,5%. No governo Bolsonaro, em setembro, havia presença militar em 6,5% dos postos com remuneração bruta entre R$ 6 mil e R$ 16,9 mil. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), há, ao todo, 6,1 mil militares em funções civis no governo federal — em 2017, havia 3 mil.

Ordens cumpridas

Para o cientista político Maurício Santoro, da Uerj, a ampliação do espaço de militares, inicialmente ligada à tentativa de criar uma imagem “técnica” do governo, passou a obedecer uma lógica de crises.

Percentual de militares em altos cargos no governo por órgão Foto: Editoria de Arte
Percentual de militares em altos cargos no governo por órgão Foto: Editoria de Arte

— Os militares passaram a assumir as tarefas ideologicamente controversas. Assumiram a Saúde porque o presidente não encontrava médicos dispostos a implementar uma visão negacionista. Entraram no Ibama, onde Bolsonaro tinha problemas com sua política ambiental. Também é o que ocorre, em parte, na Petrobras — diz Santoro.

A mudança na petroleira, após insatisfação de Bolsonaro com o aumento do preço dos combustíveis, é citada pelo cientista político Christian Lynch como exemplo de uso dos militares como “interventores”. Atuar para conter a subida de preços é uma medida simpática aos caminhoneiros, base eleitoral do presidente.

— Bolsonaro tenta dar uma impressão ordeira para seu eleitorado, mas o que importa mesmo a ele é que cumpram suas ordens em assuntos que podem afetar sua reeleição. Por isso, se cerca dos militares que compartilham deste projeto político — afirmou.PUBLICIDADE

No conselho de administração da Petrobras, no qual Silva e Luna também deve ingressar, há dois militares indicados por Bolsonaro. A participação também ocorre em estatais como Eletrobras e Correios, nas quais há promessa de privatização — esta última é presidida por um militar.

Após um primeiro ano de governo marcado por quedas de popularidade e pelo avanço de investigações contra a família de Bolsonaro, a Presidência da República teve o maior incremento entre todos os órgãos, com nomeações de 34 militares para postos estratégicos. O principal deles foi a chefia da Casa Civil, assumida pelo general Braga Netto em fevereiro de 2020. Flávio Rocha, nomeado secretário de Assunto Estratégicos na mesma época, agora é cotado para a Secom. O Ministério do Meio Ambiente, criticado em meio a recordes de queimadas, teve nomeações de militares nas superintendências do Ibama no Amazonas, Amapá, Pará, Mato Grosso do Sul e Rio. A presença cresceu até agosto de 2019 e voltou a subir no início de 2020, na sequência do período mais crítico na Amazônia.

Militares no Ministério da Saúde Foto: Editoria de Arte
Militares no Ministério da Saúde Foto: Editoria de Arte

— Em geral, essas pessoas ocupam cargos de altíssimo nível, sem entender sua especialidade. Conforme a crise cresceu, aumentou-se o número de militares na Saúde — exemplificou a deputada Tabata Amaral.

A pasta da Saúde é hoje a terceira área com mais militares no governo, atrás apenas da Defesa e da Presidência. O ministro Eduardo Pazuello, general da ativa, nomeou 21 dos 30 militares nesses postos. Para Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa e professor de Saúde Pública da USP, eles carecem de “domínio total”da área de atuação.

— Há também uma lógica de comando em que falta espaço para o diálogo, sempre essencial na Saúde — afirma.

Entre os militares do time de Pazuello, há exemplos de descumprimento de medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a Covid-19. O major da reserva Angelo Martins Denicoli, nomeado no fim de maio como Diretor de Monitoramento e Avaliação do SUS, fez publicações encorajando o uso da cloroquina, remédio sem comprovação científica contra o coronavírus. Denicoli tem formação em Educação Física, MBA em Economia e Gestão e atuou na Comissão de Desportos do Exército.

“Campo desconhecido”

Pazuello também nomeou três coordenadores distritais de Saúde Indígena que não informam, em seus currículos, experiência na área: o capitão da reserva Gildo Henrique de Azeredo, no Distrito Especial de Saúde Indígena (DSEI) Xavante; o capitão Eloy Ângelo dos Santos Bernal, no DSEI Porto Velho; e Joe Saccenti Junior, coronel da reserva, à frente do DSEI Mato Grosso do Sul. O trio está subordinado ao secretário especial de Saúde Indígena, o coronel da reserva Robson Santos da Silva, nomeado por Luiz Henrique Mandetta, e que se apresentava como consultor em educação a distância.

— Mais importante até do que a formação é a experiência em gestão na área de Saúde, o que não se vê nesses militares. No caso da Saúde Indígena, não estão conseguindo aplicar todas as doses de vacina destinadas às aldeias. Falta compreensão das políticas públicas — afirmou o infectologista Julio Croda, ex-diretor de Vigilância em Saúde.

O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão enxerga “incompatibilidade” na trajetória dos militares.

— O departamento de Monitoramento do SUS acompanha indicadores de saúde muito específicos. Já a Atenção Especializada atua em transplantes, com hospitais de excelência e tratamentos como hemodiálise. Os escolhidos foram nomeados para um campo desconhecido para eles.

O Ministério da Saúde disse adotar “critérios técnicos” para as nomeações e que conta com “um corpo técnico de servidores qualificados que mantêm a normalidade das atividades da pasta”. (Colaborou Raphaela Ribas)


Míriam Leitão: Bancos e corretoras pioram projeções para o Brasil

O mercado financeiro continua fazendo contas e piorando as principais projeções para a economia brasileira. Há uma mudança de humor recente do ambiente externo, com o aumento dos juros futuros dos títulos americanos, e uma crescente desconfiança com o intervencionismo do governo Bolsonaro em empresas estatais.

O banco Itaú subiu de 4% para 5% a projeção para a taxa Selic, e piorou de -2,1% para -2,5% a estimativa para o resultado primário, por causa do pagamento do auxílio emergencial. Mesmo que a PEC Emergencial seja aprovada, as medidas de contenção de despesas só começariam a ter algum efeito a partir de 2023, segundo o banco. Ainda assim, o Itaú manteve estimativa de alta de 4% no PIB deste ano.

O Bradesco subiu a projeção de inflação de 3,5% para 3,9% e para o dólar, de R$ 5,00 para R$ 5,30 no final do ano. Segundo o banco, as sondagens setoriais apontam para retração no PIB do primeiro trimestre, com o agravamento da pandemia e o aumento das medidas de restrição à circulação de pessoas. Para o PIB do ano, o banco manteve expectativa de crescimento de 3,6%.

Já a Ativa Corretora está mais pessimista. A projeção para o PIB de 2021 caiu de 3,1% para 2,9%, e para o ano que vem, de 2,5% para 2,4%. Também houve aumento nas estimativas para inflação e para a taxa Selic em 2021.

Na semana que vem, o IBGE vai divulgar o PIB do quatro trimestre, que deve ficar em torno de 2,5%, na comparação com o terceiro, segundo o Bradesco. Será um olhar pelo retrovisor, porque já houve desaceleração da atividade neste início de 2021.

Saída de Brandão era previsível, ficarão apenas os submissos

O Banco do Brasil negou agora à noite a renúncia de André Brandão do Banco do Brasil. Mas, na verdade, o que se pode dizer da saída dele é que são favas contadas porque ficarão apenas os integrantes da equipe econômica que sejam submissos ao comando do presidente Jair Bolsonaro. Se não estava claro antes para alguns, ficou absolutamente explícito pela maneira como foi defenestrado o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco.

André Beltrão foi indicado após a saída de Rubem Novaes e para dar um sinal de que o banco seria independente. Não durou muito. Na primeira proposta que fez de fechamento de agências e demissão voluntária, Bolsonaro teve mais um dos seus ataques. Ameaçou de público. O ministro Paulo Guedes tentou segurar. A maneira como Bolsonaro investiu contra Castello Branco, inclusive criticando o economista, diante do silêncio de Paulo Guedes, ficou claro para a equipe que o ministro da Economia não defende ninguém.

O primeiro de uma longa lista de demitidos foi Joaquim Levy. Numa manhã de sábado, Bolsonaro disparou contra ele numa fala rápida para os seus apoiadores. Disse que ele não abria a caixa preta do banco. Na verdade, ele queria colocar no colar o jovem economista, amigo dos filhos, Gustavo Montezano. Que também não achou a tal caixa preta, mas não se falou mais nisso.

O presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, não precisa sair. Ele aceitou o papel de seguir fiel de Bolsonaro. Frequenta todas as lives, mesmo as que não aparece em cena. Viaja com o presidente e inventa qualquer linha de crédito e abre qualquer agência que o presidente manda. O que se diz em Brasília é que ele aguarda na fila para assumir a cadeira de Paulo Guedes. Se é que algum dia o Posto Ipiranga vai se cansar das humilhações diárias.

Caixa é diferente de Banco do Brasil e Petrobras. A Caixa não tem capital aberto. Então a manipulação lá não gera oscilação em mercado porque não há ações. Tem apenas um detalhe, usar politicamente a Caixa para gastos orçamentários já deu impeachment. No BB e na Petrobras o intervencionismo do presidente pode provocar outros problemas, como por exemplo ações de minoritários na Justiça.


Ascânio Saleme: A infâmia

O presidente é solitariamente o indivíduo que mais contribuiu para a encrenca em que o Brasil está metido, à beira de um colapso sanitário

A tragédia foi anunciada há um ano. Desde fevereiro de 2020 sabia-se que a pandemia de coronavírus deveria ser tratada com todo rigor pelas autoridades, nas três instâncias de poder, e pelos brasileiros, em cada um dos cantos da Nação. Foi já neste começo que percebemos que não dava para contar com a contribuição do presidente do Brasil. Jair Bolsonaro fez graça e piada sobre a “gripezinha” e desafiou a ciência ao propor tratamento alternativo inteiramente ineficiente. Jamais respeitou o distanciamento social recomendado e quase nunca usou máscara para se proteger e proteger os demais.

O exemplo do principal líder do país repercutiu de maneira devastadora. Bolsonaristas passaram a usar a mesma retórica, os mesmos argumentos do mito, deixaram as máscaras em casa e se aglomeraram. O Ministério da Saúde, seguindo as instruções absurdas do presidente, instrumentalizou a Anvisa, deixou de comprar vacinas, torpedeou o quanto pôde o Instituto Butantan e receitou cloroquina para quem sentia falta de ar e não dispunha de oxigênio para se socorrer.

O fanatismo de Bolsonaro foi de tal ordem que ele chegou agora ao ponto de atacar o uso de máscaras. Citando estudo de uma universidade alemã que não identificou, disse que máscaras são prejudiciais porque podem irritar e desconcentrar as pessoas, além de causarem dor de cabeça. Pode? Não pode. Sob qualquer ângulo que se observe, a afirmação do fanático é estúpida. No mesmo dia em que ele pronunciava a barbaridade, 1.582 brasileiros morriam em consequência da doença.

Fora um ou outro, governadores e prefeitos Brasil afora não caíram imediatamente na falácia presidencial. Em alguns casos, corretamente, decretou-se lockdown nos momentos mais agudos da crise no ano passado. Os resultados foram positivos, nenhuma dúvida. Mas, do lado de fora, Bolsonaro torpedeava os que endureciam acusando o desarranjo que o fechamento produziria na economia. Aos poucos, a contaminação tomou também a consciência de alguns mandatários em estados e municípios.

No Rio, por exemplo, hospitais de campanha foram fechados prematuramente e ambientes propícios à aglomeração, como shoppings, bares e restaurantes, foram reabertos muito rapidamente. Morrem quase 200 pessoas a cada dia no estado. Nas últimas duas semanas foram registrados 30 mil novos casos por aqui. As praias estão abertas e os calçadões fechados no domingo para que o carioca possa se divertir e se aglomerar tranquilamente. Aliás, por que as praias do Rio continuam abertas?

A fantástica aglomeração observada no Palácio do Planalto no dia da posse do novo ministro João Roma foi mais um exemplo de como os homens que ocupam o poder se lixam para a doença. O que viu foi de causar inveja até mesmo nas noites mais quentes da Dias Ferreira. Nem a garotada desgarrada da Zona Sul do Rio consegue superar o capitão. Só os fins de semana de sol em Ipanema, Copacabana e Leblon aglomeram tanta gente.

A infâmia produzida em escala nacional por Jair Bolsonaro gera crias estaduais e municipais que ampliam seu poder deletério. O presidente é solitariamente o indivíduo que mais contribuiu para a encrenca em que o Brasil está metido, à beira de um colapso sanitário. Mas seus filhotes, espalhados por todos os lados da organização do Estado nacional, ajudam muito no esforço do capitão para solapar os brasileiros.

Francamente

Ao anular as quebras de sigilo aprovadas pelo juiz Flávio Itabaiana, o STJ atrasou por pelo menos três anos o andamento na Justiça do caso das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro na Alerj. Ficará tudo para depois das eleições de 2022. Um belo serviço prestado ao capitão. Todas as evidências dos crimes cometidos estão no inquérito, com testemunhas, operadores e pessoas beneficiadas. Até Michelle, a mulher do presidente, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz. O dinheiro era desviado dos salários de funcionários do gabinete e caía nas contas do zerinho, da sua mulher e da sua madrasta. Os servidores do gabinete pagavam até a escola dos netos de Bolsonaro. Mas três de quatro juízes, orientados pelo voto de João Otávio de Noronha, não aceitaram a quebra do sigilo que revelou a corrupção porque suas excelências não enxergaram “fundamentação” para tanto.

Vai ter que remar

Depois desta semana, Augusto Aras vai ter que fazer muito esforço e malabarismo para voltar a se destacar na corrida pela vaga de Marco Aurélio Mello no STF. Ainda restam alguns meses, tempo suficiente para o capitão e sua turma aloprada aprontarem mais uma. E então, Aras voltará a ser útil.

Bittar na história

Há duas categorias de abilolados. A primeira é formada pelos que se envergonham da sua condição e tentam não fazer muito barulho para passarem despercebidos. A segunda reúne gente que fala o que lhe dá na telha e tenta tocar ideias malucas sem se preocupar com o impacto que podem causar em sua imagem, como o senador Márcio Bittar, relator da PEC do auxílio emergencial. O senador propõe suspender os gastos mínimos com Saúde e Educação, desviando parte desse dinheiro para os gastos emergenciais. A ideia, que não é dele, contempla o pacote liberal de Paulo Guedes. Não deve passar, mas com esse Senado nunca se sabe. Se a PEC passar, Bittar será eternamente lembrado como a tesoura de Saúde e Educação.

Se está sobrando...

De acordo com levantamento do Tribunal de Contas da União, 6.157 militares das três Forças Armadas servem em postos civis no governo Bolsonaro. Destes, 3.029 são da ativa, segundo o Ministério da Defesa. Com o contingente desviado de função, dá para montar uns cinco ou seis batalhões de infantaria do Exército. Se esse volume de gente não faz falta às Forças Armadas, não seria o caso de reduzir o tamanho do aparato todo e economizar recursos? Olha uma oportunidade aí, Bittar.

Flamengo

Difícil falar de qualquer coisa importante depois do octacampeonato do Flamengo. Pretendia usar minha coluna para, além de declarar meu total apoio ao mais querido, enaltecer a conquista de quinta-feira. Mas, aí apareceu o nosso capitão.

Não toquem nas Laranjeiras

O prefeito Eduardo Paes pediu ao governador Cláudio Castro que desista da ideia de transformar o Palácio Laranjeiras em museu. Jurou que ele mesmo cuidará do assunto mais adiante, mas antes disso quer morar na residência oficial do governo estadual. Claro que antes ele tem que ser eleito governador. O prefeito, que adora uma residência oficial, morou seus dois primeiros mandatos na casa da Gávea Pequena, para onde voltou agora. No Laranjeiras, todo mundo sabe, habitam muitos fantasmas, mas Paes não se importa.

Claro, prefeito

O museu terá de esperar. O governador não vai desagradar o prefeito, sobretudo porque ele poderá ser o seu principal cabo eleitoral para uma eventual candidatura pela reeleição. Castro é de longe a melhor opção para Paes, que não vai se desincompatibilizar da prefeitura para concorrer em 2022. Ele calcula que se outro for eleito no ano que vem, será um adversário forte em 2026, ano em que o prefeito quer se eleger governador para ir morar no Laranjeiras. Com Castro no lugar, o caminho fica mais fácil.

Melhor que o paraíso

O ex-senador Darcy Ribeiro costumava dizer que o Senado é melhor do que o paraíso, porque não é preciso morrer para dele usufruir, basta ter um mandato. E olha que na época de Darcy não se discutia a total e absoluta impossibilidade de a Justiça punir um parlamentar, como prevê a PEC da Impunidade. Imagina o que o senador diria hoje, lembrando que pela emenda, o paraíso terrestre passa a ser acessível também aos deputados. Todos terão liberdade para delinquir à vontade.

Coronel Fan Coil

A comunicação do Planalto vai mudar. O civil Fábio Wajngarten dá lugar ao almirante Flávio Rocha. Do primeiro nunca se obteve uma informação relevante que fosse. Do segundo pode-se esperar menos. São os legítimos sucessores do “coronel Fan Coil”, do governo do general João Figueiredo. Fan Coil é um sistema de refrigeração central. Grande, exige espaço amplo e exclusivo. No Planalto de Figueiredo havia uma sala para o equipamento com o seu nome numa placa na porta. Todo jovem jornalista que iniciava a cobertura do Planalto era instruído pelos mais velhos a procurar o coronel Fan Coil no quarto andar, que ele sempre tinha boa informação. Era só chegar, bater na porta e esperar ele abrir. Poderia demorar, mas valia a pena. Mesmo os que caíram no trote tiveram com Fan Coil mais informação do que conseguiriam com a turma de hoje.


Pablo Ortellado: Bolsonarismo entranhado

As articulações políticas para derrotar Bolsonaro estão olhando para as urnas e se esquecendo da sociedade —estão preocupadas demais com Bolsonaro e pouco preocupadas com o bolsonarismo.

Talvez seja perfeitamente exequível derrotar Bolsonaro nas urnas em 2022, mas ainda será necessário lidar com o pesado fardo do bolsonarismo.

A comparação com o trumpismo, espécie de contrapartida americana do bolsonarismo, pode ser instrutiva. Trump foi derrotado nas urnas e tentou sem sucesso pressionar a Justiça e o Congresso a não reconhecer o resultado —o trumpismo, porém, segue vivo.

Quarenta e três por cento de todos os eleitores americanos e 74% dos republicanos acreditam que as eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos foram fraudadas. Mesmo após a divulgação das chocantes imagens de violência, num episódio que deixou 5 mortos, 21% de todos os eleitores e 45% dos republicanos aprovam a invasão do Congresso americano.

Um episódio recente do podcast “The Daily”, do jornal “The New York Times”, entrevistou trabalhadores e donas de casa, eleitores comuns de Donald Trump, para saber o que pensavam da invasão do Congresso americano. Embora geralmente tenham condenado a violência, muitos falaram de uma “guerra civil” contra os progressistas que, embora indesejada, lhes parecia inevitável.

Qualquer passeio pelos fóruns republicanos na internet está recheado de menções à guerra civil emergente, para a qual é preciso se preparar e se armar. Uma pesquisa publicada duas semanas atrás mostrou que assustadores 36% dos americanos (e 56% dos republicanos) acreditam no uso da força para defender o estilo de vida americano.

É por esse motivo que o bom desempenho eleitoral não é suficiente para enfrentar o desafio do bolsonarismo.

Em carta aberta ao STF, o ex-ministro da Segurança Pública e da Defesa Raul Jungmann, muito acertadamente, alertou para o risco de guerra civil na política de Bolsonaro orientada ao armamento da sociedade.

Bolsonaro tem reiteradamente enfatizado que a população precisa se armar para defender sua liberdade e se proteger de ditadores —não se referindo, claro, àqueles ditadores que cultua. Tudo sugere que, por “ditador”, se refere a qualquer adversário que venha a ser eleito. É a maneira como os bolsonaristas já se referem, aliás, aos governadores que adotam políticas de isolamento social ou fazem oposição ao governo federal.

Bolsonaro está fazendo um jogo duplo. De um lado, está minando a confiança popular na Justiça (inclusive na Justiça Eleitoral), no Congresso e na imprensa. De outro, está cooptando setores da sociedade, consolidando seu apoio entre policiais e militares e ampliando sua influência sobre médicos, juristas e órgãos da imprensa, inclusive da grande imprensa.

Uma crise econômica profunda, o aumento das mortes na pandemia ou um adversário carismático e com apelo junto ao eleitorado podem derrotar Bolsonaro em 2022. Mas, assim como os alemães precisaram desnazificar a sociedade depois da Segunda Guerra, precisaremos ainda extirpar o bolsonarismo entranhado na sociedade brasileira. 


O Globo: Ex-ministros da Saúde recomendam lockdown para evitar colapso do país

Serra, Temporão, Padilha e Mandetta reivindicam agilidade na campanha transparente de conscientização e agilidade na aplicação de vacinas

Ana Beatriz Moda*, Constança Tatsch, Raphaela Ramos e Renato Andrade, O Globo

RIO — José Serra (1998-2002), José Gomes Temporão (2007-2011), Alexandre Padilha (2011-2014) e Luiz Henrique Mandetta (2019-2020) comandaram o Ministério da Saúde e, à frente do cargo, conheceram os principais desafios do SUS e os esforços para criar campanhas de alcance nacional, como a vacinação. Agora, porém, veem o país caminhar a passos largos para um colapso diante da disseminação do coronavírus, que já provocou mais de 250 mil mortes desde sua chegada ao Brasil, em março do ano passado.

Serra, Temporão, Padilha e Mandetta, ministros de quatro governos distintos, defendem medidas em comum, como a necessidade de divulgar medidas de distanciamento social e fechar estabelecimentos comerciais, ao menos nas próximas semanas, para evitar um aumento descontrolado no número de internações e óbitos. Da mesma forma, condenam o presidente Jair Bolsonaro, que ainda menospreza os efeitos da pandemia e parece mais preocupado em alardear factoides, e o atual ocupante do ministério, Eduardo Pazuello, por não contestar os desmandos do Palácio do Planalto e falhar na logística da campanha da vacinação.

O agravamento da pandemia está levando os sistemas hospitalares de diversos estados ao colapso, assim como o SUS. O que é preciso fazer para evitar a paralisação da saúde no país? 

José Serra: O Ministério da Saúde deveria estar muito mais ativo, com campanhas de conscientização, alertando a população 24 horas por dia a respeito do momento crítico e de altíssimo risco para todos. Os brasileiros sempre responderam ao chamado do Estado com responsabilidade, como na época do apagão ou da crise hídrica. Mas o Ministério parece distante e perdido. Por isso mesmo não vejo outro caminho diferente de um lockdown total de 14 dias, ao menos, para que se avalie, a partir daí, os resultados.

José Gomes Temporão: As pessoas não estão se protegendo, o distanciamento caiu drasticamente, novas cepas surgiram, as pessoas não usam máscara e se aglomeram, autoridades se omitem. A capacidade de atendimento é limitada, e se o profissional não é experiente a taxa de letalidade aumenta. Então tem que ir na raiz do problema, a circulação do vírus. Como resolve? Fechando tudo, por três semanas. Restringir horários não adianta. Todas as medidas têm que ser cumpridas: lockdown, máscara, higiene das mãos e vacinação, ampliar drasticamente o ritmo.

Alexandre Padilha: O mais importante é acelerar a vacinação, não faz sentido o Brasil estar com esse número de mortes e o sistema de saúde privado e público colapsado e o governo federal não estar acelerando as vacinas. Em segundo lugar, o ministério precisa coordenar as restrições, adaptando às realidades regionais. Não dá para adotar uma decisão única de fechamento num país heterogêneo assim. Mas, em algumas regiões, ou se faz lockdown ou será insustentável o colapso do sistema de saúde em duas semanas. E as decisões têm que ser regionais. PUBLICIDADE

Luiz Henrique Mandetta: Primeiro é preciso colocar o SUS no centro da solução, ter liderança em saúde, senão vai continuar essa terra de ninguém. O segundo passo é estabelecer a velocidade de contaminação da nova cepa e simular para ver se as capitais aguentam. Se não aguentar, tem que criar mais leito, mais equipe, mais oxigênio. E vai ter que ter mais afastamento. Em alguns lugares vai ter que botar lockdown absoluto mesmo.

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O ministro Pazuello (Saúde) reconheceu a piora da situação. Não caberia ao ministério organizar uma campanha nacional de conscientização, para que os cidadãos evitem circular e, com isso, reduzir as chances de contraírem a Covid?

Serra: Se ele fosse um ministro com autonomia e tivesse liberdade para tomar as decisões necessárias e urgentes, sim. Até o momento, infelizmente, ele tem seguido o roteiro do presidente, que, já sabemos, não é o aceitável para o combate à pandemia.

Temporão: Tudo teria que vir acompanhado de uma campanha de comunicação, porque as pessoas estão perdidas. A conduta do presidente é permanente, ele tem um projeto, não se trata de omissão, ele está executando um enfrentamento da doença que levou a 250 mil mortes, e o ministro participa por omissão. As próximas semanas serão terríveis. Vai ter que vacinar todo mundo, chegar a 80% da população brasileira. São necessárias 352 milhões de doses de vacina. O cenário é o pior possível, não vamos dispor disso em prazo curto.

Padilha: Tem que constituir um gabinete de crise com técnicos para estabelecer um conjunto de ações, como destravar o problema da testagem e fazer uma campanha de comunicação. É preciso envolver as equipes de saúde da família, que têm sido desprezadas pelo governo.

Mandetta: Tinha que fazer uma campanha transparente: temos uma ameaça nova, não aglomere, use máscara, o sistema de saúde não aguenta. Tinha que ter uma fala do presidente, do ministro. Propaganda nacional, com mea culpa.

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Especialistas defendem que os governos estaduais criem uma comissão para encontrar soluções para o problema. É um caminho viável?

Serra: É viável e ajudaria. Mas de nada adiantará se continuarmos tentando equilibrar saúde e economia. É prioridade absoluta para a saúde.

Padilha: Defendo um comitê nacional de crise, que pode ser convocado pelo Congresso, com secretarias municipais, estaduais, o governo federal. É preciso ter uniformidade nas decisões, mas reconhecidas as diferenças regionais. É necessária participação do Judiciário, porque vão chegar ações contra o lockdown. Tem que haver mobilização nacional pela vida.

Temporão: Politicamente é pouco provável que a ideia prospere. O que realmente funcionaria seria o afastamento do presidente e a instituição de um governo de salvação nacional.

Mandetta: Para se defender da morte pode surgir um comando informal paralelo, mas que não vai ter os instrumentos que o governo legítimo tem. É perigoso ter um duplo comando nacional, e seria extremamente complexo. No final de tudo isso tem o povo, que se pergunta: escuto quem? Teremos 60, 90 dias extremamente duros, uma megaepidemia de Norte a Sul.

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Existe alternativa de curto prazo para acelerar a vacinação?

Serra: Sim. Precisaríamos de mudança radical na posição do governo federal, que deve buscar comprar vacinas sem criar entraves burocráticos! Só a vacina nos tirará desse caos. Já são mais de 250 mil brasileiros mortos. O governo não pode continuar indiferente.

Padilha: Há três alternativas: aquisição imediata de vacinas da Pfizer e Janssen; autorização emergencial para incorporação da Sputnik 5; e fazer uma solicitação emergencial para ampliar sua cota de vacinas da Covax junto à OMS, passando de 10% a 30% da população.

Temporão: A Anvisa tem que ser respeitada, mas a decisão do Supremo de que governos e municípios possam adquirir vacinas, se for feita de forma articulada, poderia funcionar.

Mandetta: Estamos vacinando aos soluços porque a estratégia foi errada. Só em agosto vamos ter boa quantidade de vacina. Até lá, é liderar, explicar, dar segurança. Temos 340 mil agentes de saúde, tem que trazer esse povo pro seu lado. Tem que verificar geladeira, capacitar pessoal, trazer quem tem visibilidade nacional, abrir igrejas para vacinar, todo mundo tem que participar. O vírus está de Ferrari, e nós de carroça. Em junho teremos um Fusca.

*Estagiária, sob supervisão de Eduardo Graça


Pedro Doria: O trabalho de hoje, a política de ontem

Na última sexta-feira, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu que o Uber deve tratar seus motoristas como funcionários. Ou seja: direitos trabalhistas. A decisão abrange Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte. E é final, não cabe recurso. A Suprema Corte francesa já havia tomado decisão semelhante, assim como a da Espanha. Um processo do tipo está em curso no Canadá e em diversos estados americanos. Evidentemente que nova legislação pode reverter esse curso — mas esta é uma das mais relevantes discussões em curso no mundo atualmente. Uma discussão ausente no Brasil.

Este é um dos grandes custos que o bolsonarismo impõe ao Brasil. O país se perde em discussões irrelevantes a cada crise vazia — e crise nova há, muitas vezes parece, dia sim, dia não. O Brasil se perde, também, em debates que nem sequer deveriam existir — como o da defesa do meio ambiente, o do armamentismo desenfreado ou, pasme, até o da manutenção da democracia. Enquanto isso, lá fora, o século 21 corre solto impondo suas transformações.

A questão no centro da decisão da Justiça britânica não tem a ver com o Uber. Tem a ver com a reinvenção do trabalho. Não é um debate simples.

O Uber argumenta aquilo que a maioria dos aplicativos do tipo dizem. Ele oferece uma tecnologia que permite a pequenos empreendedores que encontrem com mais facilidade seus clientes. Une duas pontas. Isso é verdade. Assim como é verdade que, diferentemente de uma relação normal de trabalho, os motoristas trabalham quando querem.

Os motoristas que foram à Justiça, porém, chamam atenção para outros pontos. É o Uber que dita o preço da corrida, é ele que coleta o dinheiro, pune motoristas que recusam chamadas e impõe um sistema de notas, que pode custar a quem dirige a expulsão da plataforma. Um empreendedor, por meio de seu engenho, tem oportunidades de crescer. O motorista ganhará sempre o mesmo que os outros, e seu maior esforço tem, na vida real, uma única premiação. Poder continuar trabalhando. E não é pouco: em geral, esses apps escravizam quem precisa manter uma renda digna.

A Justiça britânica então decidiu que o Uber terá de garantir um salário mínimo por hora trabalhada — e a hora trabalhada vale quando o motorista liga o app. Dá direito também a não trabalhar quando se está doente, a férias e plano de previdência. O Uber responde que, em momentos de ociosidade, quando há mais motoristas do que passageiros, se verá obrigado a impedir muitos de acessar a plataforma. Se não, o negócio se tornará inviável.

A discussão é de uma complexidade imensa por muitos motivos. O principal é o seguinte: os carros autônomos já existem. Ainda antes de 2030, não haverá mais motoristas. O mesmo vale para os apps de entrega e tantos outros. O processo de automação de muitos desses serviços apenas começou e está para ser acelerado.

A lógica dos direitos trabalhistas que temos hoje depende de uma sociedade industrial em que grandes empresas contratam massas de pessoas para produzir. Na economia digital, grandes empresas contratam uma fração de pessoas. A força dos grandes sindicatos só vai diminuir, pois cada vez mais o trabalho será mais fragmentado e distribuído. Aquele Estado de bem-estar social não é mais sustentável. Tem de ser pensado outro.

laissez-faire não é a solução. O que aconteceu nas décadas de 1920 e 30 no mundo, com a ascensão de governos autoritários e totalitários foi justamente fruto de uma crise de emprego que levou gente em desespero a virar as costas para a democracia liberal. Não é à toa que estamos vivendo uma versão daquilo.

O Estado tem de ser reinventado, assim como empresas e sociedade. No Brasil, claro, estamos ainda discutindo o papel social de uma petroleira estatal.


Vera Magalhães: Sem luto nem luta

O Brasil atingiu a inimaginável marca dos 250 mil mortos por Covid-19 sem que seu presidente tenha tido a decência mínima de decretar luto oficial, de determinar medidas enérgicas para conter uma curva que só empina ou de se empenhar para garantir vacina e auxílio emergencial a um país entregue à pandemia sem perspectiva de saída.

Assim como outras marcas tenebrosas em um ano de circulação do novo coronavírus em terras brasileiras, essa também passou em branco pelo Palácio do Planalto e pela Esplanada dos Ministérios. Vamos enterrando pessoas aos milhares todos os dias, sem que o governo federal reconheça a gravidade da crise sem precedentes que atravessamos.

Diante de uma tragédia que nenhum de nós, crianças ou velhos, viveu antes, Jair Bolsonaro está fazendo planos de mandar buscar em Israel não vacinas, mas spray nasal experimental.

Eduardo Pazuello está enviando doses escassas de imunizantes não para o Amazonas, epicentro das mortes, da falta de oxigênio e da nova cepa do vírus, mas para o vizinho Amapá, de população e urgência infinitamente menores.

O presidente não está se ocupando de exigir providências do general que enfiou na Saúde, mas do presidente da Petrobras. Não está empenhado em trocar o responsável pelo fracassado Plano Nacional de Imunização, mas sim o encarregado da publicidade oficial.

A pressa não é para conceder auxílio emergencial a quem precisa, depois que essa ajuda foi suprimida sem nada para ser colocado no lugar em dezembro, mas para subsidiar combustível para caminhoneiros que têm o presidente da República como refém.

No Congresso, o auxílio emergencial e o acordo para a compra de vacinas de outras empresas com que Bolsonaro achou por bem não negociar podem esperar. O que é para ontem é a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição ampliando ainda mais os limites da já praticamente plena imunidade parlamentar. A imunidade ao vírus que espere. As pessoas que se virem.

Nesse cenário de absoluta anomia — estatal, social, cívica —, vivemos de improvisos que têm por objetivo mitigar o colapso no enfrentamento da pandemia.

O mais recente deles veio de novo do Supremo Tribunal Federal, que virou uma Corte de emergências de toda sorte. De acordo com a decisão tomada na quarta-feira, estados e municípios poderão adquirir vacinas por conta própria.

Trata-se de algo a ser celebrado, pois parece ser uma possibilidade ao menos de que saiamos da letargia em que o Plano Nacional de Imunização se encontra, justamente porque foi sabotado pelo presidente da República, por seus acólitos e seu general.

A chancela do STF é antes de tudo um atestado de fracasso, um carimbo da inépcia do Brasil para lidar com a crise. Outros virão: a decisão abre espaço também para que, no futuro, empresas privadas possam adquirir vacinas, o que contraria a lógica do Sistema Único de Saúde.

Mas, se não for isso, quando teremos a maioria da população imunizada, de forma a que se possa pensar em começar a reconstruir a economia, a educação e a vida das pessoas, que estão em decomposição há um ano?

Vivemos sob um regime que banaliza e precifica mortes, não importa as cifras que elas atinjam. É como se o presidente visse o taxímetro da pandemia correr e continuasse rodando despreocupadamente, fazendo barbeiragens em todos os demais assuntos nos quais esbarra pelo caminho.

Somos o vice-líder mundial em mortes por Covid-19, só abaixo dos Estados Unidos. E, no entanto, temos apenas a sexta maior população do mundo. Com o segundo maior número de mortes, só vacinamos menos de 4% da população. E assistimos a essa sucessão de indicadores do nosso fracasso como quem acompanha uma entediante partida de tênis, virando o pescoço indiferentes para um lado e para o outro.

Um ano depois, a constatação é que fomos derrotados. E não há nem choro nem indignação, só letargia.


Merval Pereira: Os extremos se encontram

O conselheiro da Petrobras Marcelo Mesquita, em entrevista à GloboNews, fez um comentário lateral sobre a crise na estatal, com a tentativa do governo Bolsonaro de controlar os preços dos combustíveis, que se torna fundamental quando se olha o quadro de maneira mais abrangente. Disse ele que “se fosse o PT, nós sabemos que teríamos esse problema há dois anos”, referindo-se à política do governo Dilma Rousseff na mesma direção.

Não é à toa que o PT está defendendo a intervenção do governo, e até mesmo o ex-ministro Aloizio Mercadante elogiou o general Joaquim Silva e Luna como “um militar nacionalista”. Há muitos pontos de contato entre visões de mundo autoritárias. Lula deu uma entrevista recente apoiando Bolsonaro quando ele critica o jornalismo profissional. Os dois se sentem atingidos pelas críticas e denúncias.

Tanto Bolsonaro quanto o PT consideram que o indutor do crescimento nacional é o governo e usam as estatais com tal objetivo, mesmo que já tenha sido provado na prática que o resultado é nulo. Mesquita lembrou que a Petrobras teve que pagar US$ 3 bilhões para encerrar uma ação de investidores internacionais (class action), quando o governo Dilma segurou o preço dos combustíveis com o intuito de conter a inflação.

Noutros governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, houve essa tentativa, frustrada, uma das vezes quando o ex-ministro José Serra era candidato à Presidência em 2002 e queria que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, segurasse os aumentos de combustíveis durante a campanha.

Agora o presidente Bolsonaro anuncia que vai “colocar o dedo” na eletricidade, o que geralmente dá choque nos governantes que tentam. Também a ex-presidente Dilma controlou o preço da eletricidade na canetada, e o resultado foi que, mais adiante, o repasse teve que ser feito de maneira mais acentuada, e até hoje a Eletrobras ainda sofre com o rombo provocado naquele tempo.

Na medida provisória que permite ao BNDES estudar a privatização da estatal de energia — o que parece mais um gesto simbólico do que realidade —, há o sistema de capitalização com a intenção desfazer o rombo nas tarifas das usinas da Eletrobras da época de Dilma. Com isso, a empresa pode vir a recuperar sua capacidade de investimento. Mas técnicos admitem que um impacto para cima nas tarifas haverá, seja ela privatizada ou não.

As trapaças da sorte levaram a que tanto Bolsonaro quanto o PT tivessem inimigos comuns, como o ex-ministro Sergio Moro, e métodos semelhantes para tentar se livrar das acusações de corrupção que atingem Lula e Flávio Bolsonaro. O caminho da anulação de provas, ou de julgamentos, leva ao mesmo objetivo: conseguir nos tribunais superiores (STJ e STF) a alforria dos seus.

A razão pela qual a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou as provas contra o hoje senador Flávio Bolsonaro, uma justificativa insuficiente do juiz de primeira instância para autorizar quebra de sigilo, é uma tecnicalidade semelhante à que levou à anulação do processo conhecido como Castelo de Areia, que envolvia empresários e políticos: a investigação se originou numa denúncia anônima.

Mas, quando se quer beneficiar alguém, aceitam-se até provas ilícitas, como no processo que julga uma denúncia de parcialidade contra o então juiz Sergio Moro. A decisão da 2ª Turma do Supremo, que deve ser contra ele, vai anular a condenação do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá e poderá levar de roldão todos os demais julgamentos em que ele foi condenado. E até outras condenações de réus da Lava-Jato.

Assim como a anulação das provas pode levar a investigação contra Flávio Bolsonaro à estaca zero. É possível ampliar o entendimento da lei, como a Operação Lava-Jato fez durante cinco anos, com bons resultados. Mas também usar provas ilegais, como os diálogos entre os procuradores e o então juiz Moro, para absolver condenados. Mesmo que, sabendo da discutível utilização dessas provas, elas não apareçam nos votos dos ministros da 2ª Turma do STF, elas já foram divulgadas largamente para criar um clima contrário ao juiz. O mesmo que acusam os procuradores e o próprio Moro de ter feito. Desde que Bolsonaro partiu para a confrontação com Moro, surgiu um campo enorme de interesses comuns entre Lula e ele.


Vera Magalhães: Karol Conká, Bolsonaro e o foco da indignação

Desde a edição que tinha o Diogo Alemão e a Siri, sei lá em que ano, não assito mais Big Brother Brasil. Quem me acompanha nas redes sociais sabe que tem poucos temas em que eu não meta a colher de pau, mas pode procurar por lá e não vai ver nenhum pitaco meu sobre as tretas da Karol Conká.

Inclusive apliquei inúmeros filtros para não ser bombardeada pelo assunto, todos eles inúteis diante da recorrência doentia na TL. Parece que a falta de abraço, de festas, de Carnaval levou as pessoas a só se preocuparem com uma coisa. Mas será essa a coisa mais importante para mobilizar a indignação do Brasil e suscitar a formação da tão sonhada e tão utópica frente ampla nacional?

Não, não sou dessas que acham que realities são entretenimento ruim, que quem fala sobre isso é alienado etc. Acho que ali se mostram, mesmo, muitos dos comportamentos que vemos todos os dias em casa, nas famílias, no trabalho, na política, e que essa lupa posta na maneira como as pessoas agem para manipular umas às outras e se dar bem é muito interessante, fonte inesgotável de entretenimento e didática.

Mas não acho que a Karol Conká seja a maior vilã do Brasil, merecedora de 99,17% de rejeição, algo bastante irracional, e alvo preferencial das frustrações da sociedade. Na minha casa, a eliminação dela (que sim, eu estava assistindo, vencida finalmente pelo hype) foi seguida de -- atenção -- FOGOS DE ARTIFÍCIO. Talvez os guardados pelos palmeirenses pela não vinda de mais um Mundial.

Não existe o menor propósito nisso quando se vê que o presidente da República, este sim responsável por decisões de vida e morte para a população, que jurou respeitar a Constituição, que tem o poder de derrubar com uma fala o valor da maior empresa do Brasil, ainda tem entre 33% e 40% de pessoas que dizem que seu governo é ótimo ou bom.

Sob qual aspecto? Por qual métrica? Qual o critério usado?

A economia está arrasada, somos um dos países que menos vacinaram sua população, não temos vacinas em quantidade suficiente num futuro próximo, não sabemos de onde vamos tirar dinheiro para bancar um urgente e atrasado auxílio emergencial, a Petrobras sofreu intervenção, o presidente emitiu quatro decretos ilegais para liberar armas e munições a granel na sexta-feira de Carnaval, o STJ acaba de começar a melar a investigação de um esquema milionário de peculato envolvendo o filho do presidente e também senador Flávio Bolsonaro, há um deputado federal da cozinha do presidente preso por ameaçar o Judiciário e a democracia...

A lista é infinita e de extrema gravidade.

Diferentemente dos chiliques e das vilanias de Karol, não se restringem a um grupo selecionado pela Globo para um confinamento que por si só já tem o poder de alterar o discernimento de quem se submete a ele e ainda vê a perspectiva de ficar milionário.

Esses atos são cometidos por uma pessoa investida pelas urnas do mais alto cargo do país. Que não foi eleita pela maioria da população, governa para uma parcela imensamente menor dela e age apenas pensando na manutenção do poder, ainda que para isso seja necessário tentar mudar o regime, conforme deixou escapar em um de seus ataques verborrágicos.

O que Karol fez com Lucas, Bolsonaro faz diariamente contra minorias do País. Suas milícias virtuais investem contra a honra de ex-aliados, da imprensa, de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos, de ativistas. Sem que o brasileiro médio, esse que tem a pachorra de ir para a janela soltar rojões na eliminação de uma rapper num reality, mova sequer a pestana de preocupação.

Está descalibrado o senso de justiça do brasileiro. Está desalinhada sua capacidade de reconhecer o que tem potencial de causar dano real ao país. 

O governo tenta retirar as fontes de financiamento do SUS e do Fundeb enquanto a pessoa está com o dedo formigando de tanto votar na Karol. 

Existe uma síndrome grave num país anestesiado para mais de 250 mil mortes que se choca a esse ponto com cenas de um BBB. 

É preciso dar às coisas o peso que elas têm, sob pena de seguirmos até 2022 com os canais interditados para o enfrentamento cívico a um governo ineficiente, inepto e que causa prejuízos ao país em todas as áreas.

O que eu chamo de enfrentamento cívico? Que as instituições exerçam na plenitude seu papel, que a imprensa acompanhe com diligência cada ato do Executivo e cobre o presidente sobre suas obrigações, a começar pela de colocar de pé um Plano Nacional de Imunização que não seja um fracasso como esse que está aí, que os partidos se conscientizem da sua função de apresentar ao país alternativas de um projeto para tirá-lo do atoleiro e que a sociedade pare de perder tempo com distrações e cobre seus direitos e as obrigações do presidente.

Depois que tudo isso estiver arrumado, podemos todos ligar a TV para exercer nosso direito à distração. Mas sem pesos e medidas essa distração se transforma em catarse coletiva e abre espaço para o linchamento. Esse caminho é apenas uma das degenerescências que o fundo do poço da política que vivemos faz parecer normal. Acreditem: não é. 99,17% de ódio em cima de uma pessoa não eleita e rojões (!!!) nas janelas do Brasil numa eliminação de BBB são sintomas de histeria nacional.