O Globo

Míriam Leitão: A falha dos poderes é ameaça perigosa

A democracia brasileira, nos últimos dias, deu mais alguns passos na perigosa trilha em que entrou. O Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a insegurança jurídica, ao dar vários sinais de que os ministros tomam decisões que mudam a vida do país seguindo a lógica das brigas internas da corte. A Câmara entregou a Comissão de Constituição e Justiça a uma deputada que esteve em atos que propuseram rasgar a Carta e a Comissão do Meio Ambiente a quem faz parte da tropa antiambiental. O presidente mais uma vez ameaçou o país com a ditadura, contando para isso com o silêncio dos generais.

A decisão do ministro Edson Fachin obedece à lógica de que se o caso não é relativo à Petrobras não tem que ficar na 13ª Vara Federal em Curitiba. A dúvida que permanece é por que levar tantos anos para descobrir a procedência da tese sempre apresentada pelos advogados do ex-presidente. Fachin explicou em entrevista a Aguirre Talento e Bela Megale do GLOBO que o assunto havia sido mencionado, mas que ele não recebeu pedido direto da defesa de Lula até novembro de 2020. O ministro disse que a Justiça tem que ser imparcial e apartidária. É verdade. Mas também precisa ser tempestiva. A intempestividade pareceu mais um lance da briga entre duas das onze ilhas da corte

O ministro Gilmar Mendes afirma que é insuspeito. E explicou por quê: “ao contrário da ministra Cármen, dos ministros Lewandowski e Fachin, não cheguei aqui pelas mãos do Partido dos Trabalhadores.” Isso quer dizer que os outros três ministros são suspeitos em ações do PT? Ou que ele é suspeito para julgar os casos do PSDB? Ele acusa o ex-juiz Sergio Moro de ter se tornado inimigo do réu, quando ele próprio dá demonstrações constantes desse sentimento em relação ao ex-juiz e aos procuradores.

Depois do duelo jurídico entre Fachin e Gilmar para saber quem tem a última palavra no destino de um ex-presidente da República, outro conflito emergiu no plenário virtual do STF. Na quinta-feira, o ministro Marco Aurélio chamou o ministro Luiz Fux de autoritário e o ministro Alexandre de Moraes de xerife. Foi mais um sinal ruim. Não é a primeira vez que as divisões na mais alta corte são expostas, mas esta semana houve um concentrado de votos idiossincráticos e falas pontiagudas. Quem acredita na democracia defende o STF dos ataques bolsonaristas, mas, na devastação institucional em que vivemos, certos ministros deveriam entender que seus ombros envergam as togas não a título pessoal, mas em nosso nome.

A Câmara enfraqueceu o sistema de check and balances ao fazer duas escolhas para as comissões. Não é uma questão partidária que torna a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a pessoa errada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça. São as suas manifestações em rede, ou nas ruas. Ela é uma radical e por isso não terá o equilíbrio necessário. Kicis esteve em atos que pediram um novo AI-5, o Ato Institucional que fechou o Congresso e cassou deputados na ditadura. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) fará o oposto do que se espera de uma presidente da Comissão de Meio Ambiente. O governo está fazendo uma demolição do aparato legal que protege o meio ambiente. O legislativo precisava ser o freio e o contrapeso dessa ação de passar a boiada pela cerca das leis.

O executivo trabalha contra a democracia. Isso já virou rotina. Basta ouvir o que o presidente diz. Sua visão distorcida do artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas, é sempre jogada na cara do país como ameaça. Ele está tentando mudar o que quis dizer com “o meu Exército”, afirmando que se referia aos seus seguidores, mas a Arma nada fez para lembrar que ela pertence ao país.

Bolsonaro mostrou no Sebrae, no seu habitual tom colérico, que continua prisioneiro da visão conspiratória. Mentiu que o país está há um ano em lockdown e afirmou que isso está sendo feito para atingi-lo. “Até quando aguentaremos a irresponsabilidade do lockdown?” E tudo “só consegue atingir o presidente da República”. Bolsonaro chamou de “estado de sítio” as medidas protetivas tomadas em todos os países do mundo. Houve quem se iludisse, achando que a elegibilidade de Lula iria convencê-lo a mudar. Exceto por aceitar, enfim, a forma esférica da Terra, no resto Bolsonaro continua sendo negacionista. Ele ameaça a saúde dos brasileiros e a democracia. Quando os outros poderes falham, o país fica ainda mais vulnerável ao candidato a tirano que nos governa.


Elio Gaspari: O novo Lula é o mesmo

Ex-presidente reapareceu com um discurso simples e de essência racional

Para o bem e para o mal, o novo Lula é o mesmo. Numa trapaça da história, enquanto o ex-presidente falava, Eduardo Bolsonaro, o 03, mandava que as pessoas enfiassem as máscaras “no rabo”, e seu pai, delicadamente, colocava-a no rosto.

Lula reapareceu com um discurso simples e de essência racional . Na quarta-feira, o número de mortos bateu a casa dos dois mil, num total de 270.917 (a provável população do Brasil no final do século XVII). A “gripezinha” estava no “finalzinho”, e a “conversinha” da nova onda mostrou-se mais letal que a do ano passado. Lula chamou Bolsonaro de “fanfarrão” e seu governo de “incompetente”: “Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina, porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você da Covid.”

Mais: “O Brasil não é dele e dos milicianos.”

Sem a teimosia delirante do capitão, Lula também tem um pé em sua realidade paralela. Ele fala de uma “Petrobras bem dirigida, como foi no nosso governo”.

A boa gestão no petróleo explicaria “o golpe contra a Dilma, porque é preciso não ter petróleo aqui no Brasil na mão dos brasileiros. É preciso que esteja na mão dos americanos, porque eles têm que ter o estoque para guerra.” Até aí, trata-se de uma opinião, mas Lula foi adiante:

“A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina.”

A Alemanha não chegou a Baku porque foi detida em Stalingrado no início de 1943. A essa altura, os nazistas já haviam sido detidos às portas de Moscou, e os Estados Unidos já haviam entrado na guerra (dezembro de 1941) e quebrado a perna do poder naval japonês na batalha do Midway (junho de 1942). A partir do final de 1942, os alemães passaram a combater numa guerra que não poderiam ganhar, mesmo que tivessem chegado ao petróleo de Baku. Isso para não se falar na bomba atômica, cujo combustível era urânio.

Falando da eleição de 1989, Lula diz: “Não ganhei porque a Globo me roubou”. A edição do seu debate com Fernando Collor foi editada com viés contra Lula, mas foi ao ar depois da transmissão da versão integral, ao vivo. Collor teve 35 milhões de votos, contra 31 milhões de Lula, que só venceu em três estados (RJ, RS e PE).

A agência Lupa checou a fala de Lula e apontou devaneios que custariam caro a Jair Bolsonaro se tivessem partido dele:

“Fachin (reconheceu) que nunca teve crime cometido por mim.”

“FALSO. A decisão do ministro do STF Edson Fachin não cita, em nenhum momento, que o ex-presidente Lula nunca cometeu crimes. Ele apenas considerou que as ações do tríplex de Guarujá (SP), do sítio em Atibaia (SP) e do Instituto Lula não têm relação direta com a Petrobras e não deveriam ter tramitado na Justiça Federal de Curitiba.”

Afora casos como esses, Lula continua ligeiro. Ele já disse que Napoleão foi à China e que Oswaldo Cruz criou a vacina contra a febre amarela. Agora, referiu-se a um artigo de 2004 do juiz Sergio Moro, no qual ele teria escrito que “só a imprensa pode ajudar a condenar as pessoas.” No seu famoso artigo de 2004, Moro não disse isso. Foi preciso, referindo-se à Operação Mãos Limpas italiana:

“Os responsáveis pela operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da ‘mani pulite’ vazava como uma peneira.”

Lula não precisava ter exagerado.

Bolsonaro na disputa

Com Lula e Bolsonaro disputando uma eleição, os jornalistas e as agências de checagem trabalharão como nunca.

Lula viajou pela sua realidade paralela na quarta-feira, Bolsonaro reagiu na quinta e, como mostrou o repórter Mateus Vargas, contou cinco inverdades em menos de meia hora.

Disse que o número de mortos pela Covid está inflado. Contrariou um boletim do Ministério da Saúde.

Disse que que a Organização Mundial da Saúde condena o lockdown.

Disse que, desde o primeiro momento, tentou comprar vacinas. Anunciou seu veto à CoronaVac e recusou propostas da Pfizer.

Disse que o Supremo Tribunal Federal limitou a ação do governo. O que o STF fez foi garantir as iniciativas dos estados e municípios.

Disse que desde o primeiro momento agiu contra a Covid. Era a “gripezinha“ que provocava a “histeria” dos “maricas”.

Cármen e Nunes Marques

O pedido de vista do ministro Nunes Marques alegrou o Planalto, pois a suspeição de Sergio Moro seria mais uma cereja no bolo de Lula.

À primeira vista, as coisas são assim, mas se a ministra Cármen Lúcia mudar seu voto, acompanhando Gilmar Mendes, a manobra falha e carboniza Nunes Marques. A menos que ele se antecipe, condenando Moro.

STF em chamas

O tiroteio do ministro Marco Aurélio em cima dos colegas Luiz Fux e Alexandre de Moraes mostra que o Supremo Tribunal precisa de uma missão pacificadora. Esse foi o barraco público. Felizmente, aqueles que ocorreram no início da semana, com outras excelências, ficaram no escurinho da Corte.

A tensão decorre, em parte, da suspensão do convívio pessoal, provocado pela pandemia.

Mourão disse tudo

Na sua entrevista aos repórteres Gustavo Uribe e Leandro Colon, o vice-presidente Hamilton Mourão disse tudo:

“É aquela história: o povo é soberano. Se o povo quiser a volta do Lula, paciência. Acho difícil, viu, acho difícil.”

Lula 2022

Lula já avisou:

“Eu sou uma metamorfose ambulante”.

Vazou

No início da semana passada, alguns comissários bem informados já sabiam que o ministro Edson Fachin jogaria sua bomba sobre a política nacional.

Guedes na mesa

Nos últimos dias da semana passada, elevou-se a tensão no Palácio do Planalto. Sempre que isso acontece, sobra para o ministro da Economia.

Paulo Guedes terá dias difíceis, com uma janela de oportunidade. Como ele mesmo já disse, dependendo do desconforto, vai-se embora.

O grande chanceler

Com o Brasil assumindo a liderança do número de mortes diárias por Covid, o ministro Ernesto Araújo realizou seu sonho:

“Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, deixado de fora, do que ser um conviva no banquete no cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos.”

Mandato curto

Com a execução do vereador Danilo do Mercado (MDB-RJ), assumirá sua cadeira na Câmara de Caxias a suplente Fernanda da Costa, filha do traficante Fernandinho Beira-Mar, encarcerado em Mossoró (RN).

Seu mandato poderá ser curto.


Bernardo Mello Franco: O fantasma da polarização

A volta de Lula reabilitou um fantasma que assombrou a última corrida presidencial: a ideia de um país dividido entre dois extremos. Em 2018, a propaganda de Geraldo Alckmin martelou que era preciso evitar, a qualquer custo, a polarização entre Bolsonaro e PT. As duas forças foram apresentadas como “lados da mesma moeda: a do radicalismo”.

A retórica denunciava o desespero do tucano. O eleitorado do seu partido já havia aderido ao capitão, e ele terminou com menos de 5% dos votos. No segundo turno, os candidatos do PSDB esqueceram o discurso e correram para Bolsonaro. A carona ajudou a eleger João Doria e Eduardo Leite, que agora tentam se descolar da imagem do presidente.

A equivalência entre PT e Bolsonaro sempre foi conversa fiada. O partido de Lula tem muitos defeitos, mas nasceu na luta contra a ditadura e governou pelas regras da democracia. Quando Dilma Rousseff sofreu o impeachment, os petistas entregaram as chaves do palácio e foram para a oposição.

Bolsonaro é um antigo defensor do autoritarismo, da tortura e das milícias. Não moderou o discurso na campanha nem no governo, onde passou a flertar abertamente com um autogolpe.

Polarização não é sinônimo de duelo entre extremos. Como lembra o cientista político Cláudio Couto, PT e PSDB polarizaram seis disputas presidenciais sem que nenhum deles fosse extremista. O professor diz o óbvio. Mesmo assim, há quem insista na falsa simetria.

A deputada Joice Hasselmann, ex-líder de Bolsonaro, agora se apresenta como adversária do “bolsopetismo”. O termo não quer dizer nada, mas virou moda em rodas conservadoras. Na falta de um candidato competitivo, apela-se ao fantasma de 2018.

O retorno de Lula mostrou que não era difícil polarizar com um presidente que nega a ciência e debocha das vítimas da pandemia. Para o petista, bastou aparecer de máscara, defender a vacina e informar que a Terra não é plana.

OS TRÊS PATETAS

Na semana em que o Brasil superou a marca de duas mil mortes diárias pela Covid, os filhos do presidente se destacaram pelas seguintes ações:

Flávio, o Zero Um, comparou medidas para conter a pandemia ao massacre de judeus no Holocausto.

Carlos, o Zero Dois, deu chilique na Câmara Municipal e chamou um colega de “canalha” e “cabeça de balão”.

Eduardo, o Zero Três, divulgou o desenho de um Zé Gotinha miliciano, armado com um fuzil.

HELIO E A FRENTE AMPLA

Com a morte de Helio Fernandes, vai-se uma parte da História do Brasil no século XX. O jornalista resistiu a seguidos apelos para publicar suas memórias. Deixou um único livro, “Recordações de um desterrado em Fernando de Noronha”, além de milhares de artigos no baú da “Tribuna da Imprensa”.

Helio respirava política e trabalhou pela reconciliação de JK e Lacerda quando os dois rivais, que apoiaram o golpe de 1964, viram-se na mira da ditadura que ajudaram a instalar.

A primeira reunião da Frente Ampla ocorreu na casa do jornalista, no Rio, em 22 de agosto de 1966. O movimento foi sufocado pelos militares, e JK e Lacerda morreram sem ver a redemocratização do país. Helio morreu na mesma casa, na madrugada de quarta, aos 100 anos.


Merval Pereira: Política nos quartéis

Caminhamos para uma disputa eleitoral em 2022 com as Forças Armadas sendo utilizadas pelo presidente Bolsonaro como instrumento político, o que não dá certo em lugar nenhum do mundo democrático.

O presidente mistura a incitação de seus militantes contra governadores e o Supremo Tribunal Federal com uma suposta defesa dos militares.
“Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército, que tenho falado o tempo todo, é o povo. Sempre digo que devo lealdade absoluta ao povo brasileiro”, inclusive ao Exército, salientou. “Eu faço o que vocês quiserem. Essa é a minha missão de chefe de Estado”.

Numa irresponsável atitude política, ele tem lançado ao ar em suas lives ameaças e advertências: “Até quando nossa economia vai resistir? Que, se colapsar, vai ser uma desgraça. O que poderemos ter brevemente? Invasão aos supermercados, fogo em ônibus. Greve, piquetes, paralisações. Aonde vamos chegar?", perguntou recentemente.

Qualquer outro poderia ser acusado de estar encorajando populares a atitudes radicais, especialmente um presidente da República, cuja missão é liderar a sociedade diante de uma catástrofe como a pandemia de COVID-19.

Para complicar, Bolsonaro colocou em pauta o Estado de Sítio, medida drástica diante de um perigo iminente de declaração de guerra ou convulsão social. Justamente o que pode acontecer se o presidente da República continuar a incitar a população a não respeitar os atos dos governadores.

Toque de recolher, que alguns Estados como São Paulo estão adotando, e também o Distrito Federal, nada tem a ver com Estado de Sítio, e ele sabe disso, está apenas criando um clima de instabilidade no país, com objetivos evidentes.

A anulação da condenação do ex-presidente Lula por decisão monocrática do ministro Edson Fachin, tornando-o novamente elegível e, em consequência, forte candidato à sucessão presidencial, trouxe de volta os ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais, e a inquietação nos meios militares com a possibilidade de sua eleição.

Nas Forças Armadas – e no Exército em particular -, há muita rejeição a Lula e ao PT, e agora que os processos do ex-presidente voltaram atrás, vai ficar difícil se essa rejeição passar a ser uma arma da retórica de Bolsonaro sobre o Exército.

O presidente já esboçou uma “defesa” do General Villas Boas, muito criticado por ter admitido que o tuíte que soltou na véspera da sessão do Supremo que analisaria um habeas corpus a favor de Lula foi um aviso dos militares, cujos comandantes teriam sido consultados, para que não soltassem Lula.

Não creio que a maioria que votou a favor da manutenção da prisão do ex-presidente o tenha feito com receio de uma reação dos militares, cuja intervenção na decisão da Corte foi rejeitada, naquela ocasião, pelo decano do Supremo, ministro Celso de Melo, num discurso histórico.

Agora, com a decisão de enviar todos os processos de Lula para a Justiça do Distrito Federal, anulando as condenações sem anular as investigações e as provas, voltou o fantasma de Lula a atormentar os militares.

Bolsonaro aproveitou-se disso para sair em defesa do General Villas Boas, como se as críticas fossem uma ofensa pessoal, e não a manifestação democrática de repúdio a uma intervenção indevida. Além das mentiras, o mais grave das declarações de Bolsonaro é ele se referir ao “meu Exército”, um hábito que não é coibido.

Volta e meia Bolsonaro relembra ser o comandante em chefe das Forças Armadas – e realmente é -, como se o status concedido pela Constituição ao presidente da República lhe permitisse usá-las como instrumento político. Infelizmente, os militares não reagem a esse abuso, nem mesmo quando fez comícios em frente ao quartel general do Exército em Brasília, ou quando incentiva ataques ao Congresso e ao STF.

Por reação, imagino que militares de alta patente pudessem sair do ministério, para deixar claro que este não é um governo dos militares.

Essa utilização política das Forças Armadas nada tem a ver com a democracia. Os militares não podem se transformar em uma espada de Dâmocles sobre a política brasileira, escolhendo quem pode ou não pode concorrer à presidência da República. O comandante do Exército, General Pujol, tem razão quando diz que a política não deve entrar nos quartéis. Bolsonaro faz ouvidos moucos.


João Gabriel de Lima: Só os ingênuos acham que a campanha será em 2022

Se postulantes não colocarem logo os blocos na rua, Lula e Bolsonaro brincarão sozinhos o carnaval das eleições

A ideia de que é cedo para iniciar uma campanha presidencial, dado que temos uma pandemia para combater, é politicamente ingênua. Em democracias, os eleitores estão sempre julgando potenciais candidatos. Para os governantes, fazer a coisa certa em situações de crise é parte da campanha. Se os resultados aparecem, aumentam as chances de reeleição. 

O raciocínio vale para os opositores. Nas situações de crise, eles têm a oportunidade – e a obrigação – de fiscalizar e criticar. Devem também apresentar alternativas, para que o eleitor acredite que farão melhor caso conquistem o poder. 

Tal regra básica das democracias merece ser lembrada nesta semana, em que o ex-presidente Lula, para usar uma expressão dele próprio, colocou seu bloco na rua. Fez um discurso clássico de candidato dois dias depois da decisão do juiz Edson Fachin – tão clássico que não assumiu ser candidato. Em sua fala, colocou-se na posição de antagonista preferencial do atual presidente, Jair Bolsonaro – que está em campanha desde o primeiro dia de governo. 

O editor Daniel Bramatti, da área de jornalismo de dados do Estadão, analisou no domingo, dia 7, uma pesquisa em que Lula lidera o potencial de voto para 2022. Em segundo lugar aparece Bolsonaro. No levantamento feito pelo instituto Ipec, os dois têm uma certa folga sobre o segundo pelotão – composto por Sérgio Moro, Luciano Huck, Fernando Haddad e Ciro Gomes. Teríamos um segundo turno já desenhado para 2022? 

A resposta é não se considerarmos outra pesquisa – esta qualitativa, realizada nas classes A e B e patrocinada pela fundação alemã Friedrich Ebert. Ela mostra falta de convicção entre os potenciais eleitores de Lula e Bolsonaro. No levantamento, feito no fim do ano passado, o eleitor à direita já criticava Bolsonaro pelo desastre no combate à pandemia. 

Do outro lado, segundo a pesquisa, há desconforto com o projeto hegemônico do PT e a falta de renovação nas esquerdas. “Políticos jovens como Guilherme Boulos aparecem como opções até entre eleitores de centro”, diz a cientista política Camila Rocha, coordenadora do levantamento ao lado da socióloga Esther Solano. Ela é a personagem do minipodcast da semana. 

Camila Rocha transita por várias correntes ideológicas, com interlocutores à esquerda e à direita. Ela é autora de “Menos Marx, Mais Mises”, uma tese de doutorado sobre os liberais brasileiros da nova geração (um livro baseado na tese sairá no segundo semestre pela Editora Todavia). O sentimento que captou entre integrantes dos dois campos foi de “orfandade”. “Há ainda muitos eleitores em busca de candidatos que os representem”, diz Camila Rocha. 

O cruzamento das duas pesquisas, a quantitativa e a qualitativa, sugere que o presidente e o ex-presidente lideram porque foram os primeiros a “colocar o bloco na rua”. Os levantamentos mostram que muitos brasileiros votarão em Lula ou Bolsonaro. Há, no entanto, um enorme contingente em busca de alternativas. Cabe aos demais partidos suprir a demanda dos “órfãos”. No Brasil os pleitos são livres e quem não se apresenta ao escrutínio do eleitor não tem o direito de reclamar. Assumir a candidatura é o primeiro passo, mas não basta. É preciso apresentar ideias. 

Em plena pandemia, a campanha está a todo vapor. Se os postulantes não colocarem logo seus blocos na rua – e se não perceberem a urgência dessa tarefa –, Lula e Bolsonaro brincarão sozinhos o carnaval das eleições. 


Ascânio Seleme: Lula em 13 pontos

O discurso do ex-presidente foi o fato da semana, não custa destrinchar o seu teor para tentar melhor entendê-lo

fato da semana foi o discurso de candidato proferido pelo ex-presidente Lula dois dias depois de o STF ter anulado as penas a que foi condenado. Não custa destrinchar o seu teor para tentar melhor entendê-lo.

1 - Arrebentado (de tantas chibatadas); razão para ter mágoas - Lula se queixou por ter apanhado muito ao longo dos anos. É verdade, mas ele não disse que havia motivos para apanhar. Seu governo produziu o mensalão e iniciou a partilha da Petrobras entre o PT e os demais partidos da sua base. O ex-presidente também foi julgado, condenado e preso por se beneficiar de vantagens indevidas de empreiteiras. Isso dói e magoa. Contudo, ele disse que não tem mais espaço nem tempo para guardar rancor. Só mais adiante vai se saber se o Lulinha Paz e Amor voltou mesmo.

2 - Reconhecida sua inocência - Lula inventou que foi inocentado nos casos do tríplex, do sítio e do instituto que leva o seu nome. Suas condenações foram anuladas e ele deve ser julgado por outro juiz. Pode tanto ser inocentado quanto ter sua pena prescrita ou ser condenado outra vez. Além disso, os processos do mensalão e do petrolão geraram cassações de mandatos e prisões em escala industrial na base de seu governo e no da sua sucessora Dilma Rousseff.

3 - Marisa morreu por pressão (da Lava-Jato) - Chute do ex-presidente. Mas não se pode negar que a ex-primeira-dama estava muito angustiada e pressionada em razão dos escândalos em que o marido e os filhos estavam metidos.

4 - Prato de feijão e farinha; picanha e cerveja - Lula retomou o discurso contra a fome que ajudou a elegê-lo em 2002, aproveitando o empobrecimento generalizado dos brasileiros. Falou no idioma que mais se entende no Brasil. Tem um legado importante na questão da inclusão social no Brasil para explorar no futuro.

5 - Armas para PM e Forças Armadas - O candidato afagou as instituições oficiais de segurança para corretamente descer o pau na política armamentista de Bolsonaro.

6 - O planeta é redondo - Mesmo ao ridicularizar o terraplanismo e o olavismo de Bolsonaro, Lula usou um tom sério porque não era hora de fazer graça.

7 - Citações e agradeci mentos - Foi honesto ao não esconder seu apreço à esquerda global, que sempre esteve ao seu lado. Até o famoso Foro de São Paulo ele citou. Lula não é extremista, mas claro que é de esquerda.

8 - Não ao liberalismo econômico - O ataque de Lula a Guedes (“Esse governo não tem ministro da Economia”) mostrou que seu caminho será outro. Neste discurso, e no que fez no Congresso do PT de novembro do ano passado, o ex-presidente não deixou dúvida sobre seu apetite intervencionista. Usou ainda o desgastado discurso antiamericanista (“Quando é que eu vou acordar de manhã sem ter que pedir licença para respirar ao governo americano") que ainda agrada a uma grande parcela da população.

9 - Preço da gasolina - No mesmo tom intervencionista, Lula atacou o preço dos combustíveis (“Por que cobrar em dólar se o Brasil não importa gasolina?”) e ainda se apropriou do discurso bolsonarista a favor de caminhoneiros.

10 - Imprensa - Atacou jornais e jornalistas, mas elogiou a edição do Jornal Nacional do dia em que o ministro Edson Fachin anulou suas condenações. Deixou claro que gosta mesmo é de imprensa a favor, chapa branca. Já se viu isso antes, nenhuma novidade.

11 - Vacina e máscaras - Sua posição no quesito pandemia lhe deu tantos pontos que até Bolsonaro correu para usar máscara e falar em favor da vacinação. Um dos maiores líderes da história política do país deu um exemplo a ser seguido. Falou o que o Brasil precisa ouvir. Deixou Bolsonaro pequeno, insignificante.

12 - Conversar com políticos e empresários - Lula disse que vai usar a sua maior habilidade, falar com todo mundo. Das muitas diferenças que o separam de Bolsonaro, esta é a mais visível. Lula sabe conversar, e bem. Sabe negociar e, mesmo contrariado, sabe ceder.

13 - Convite para mudar o país - O tom de candidato esteve presente em todo o discurso, mas no final ele foi emblemático. No convite para mudar o país usou a conhecida fórmula de quem diz conhecer o caminho e pede apoio do povo para conduzir o país nessa direção.

Não acabou

Ninguém mais tem dúvida de que Sergio Moro extrapolou do seu papel de juiz na operação Lava Jato. Os diálogos com os procuradores da força tarefa deixam evidente a promiscuidade do relacionamento do juiz com os acusadores que formularam as denúncias. Até aqui, contudo, o argumento dos que apoiam a tese de que Moro deve ser considerado suspeito faz menção apenas ao julgamento e às condenações do ex-presidente Lula, em razão do teor das conversas reveladas na Vaza Jato. Mas há também quem queira ir mais longe. Aceitando-se a tese de que a operação foi feita para tirar Lula da eleição de 2018, todas as sentenças proferidas por Moro estariam contaminadas por esta premissa, alegam. Prender donos e executivos de empreiteiras, tesoureiros de partidos políticos, deputados, senadores, diretores e funcionários da Petrobras serviria para robustecer a denúncia contra Lula. Essa polêmica não vai acabar na segunda turma do STF, vai para o plenário.

Som de avalanche

Os números de Sergio Moro durante os anos em que julgou os casos da Lava Jato são impressionantes. Segundo o G1, o juiz proferiu 46 sentenças e condenou 123 réus, entre eles Lula, a 1.861 anos de cadeia antes de deixar a função para ser ministro de Bolsonaro. Advogados preveem que, quando Moro for considerado suspeito nos julgamentos de Lula pela segunda turma, uma avalanche de ações vai desabar sobre o STF para reverter penas em andamento e para tentar desbloquear bens congelados ou reaver somas subtraídas de contas privadas pelas sentenças do ex-juiz.

Outro lado

Chato para a defesa de Lula é ter que dividir seus argumentos com gente ilibada como Arthur Lira e Renan Calheiros, além, é claro, de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Sergio Cabral e outros tantos da mesma cepa. Mas, fazer o quê? É assim que se joga este jogo.

Supremo respeito

Você pode discordar do STF, você pode criticar o STF, mas você terá que respeitar e cumprir sempre as decisões do STF, que são terminativas. Os ministros não são santos, nem deuses, mas vestidos com a toga, depois de apontados pelo chefe do poder executivo e aprovados pelo poder legislativo, passam a ser os legítimos intérpretes da lei e da Constituição. Juízes passam, a instituição permanece.

Ódio por ódio

Se o ódio a Lula elegeu Bolsonaro em 2018, nada impede que o ódio a Bolsonaro eleja Lula em 2022. Mas o Brasil será feliz mesmo quando o seu presidente voltar a ser eleito por amor.

Nosso Rio 1

Menos de uma semana depois de impor algumas restrições no Rio como forma de preservar o funcionamento em condições próximas do normal da rede pública de saúde, Eduardo Paes flexibilizou as medidas. Fez um make up, aumentando por uma semana o decreto, mas errou majestosamente ao estender o horário de funcionamento de bares e restaurantes até as 21h. Acertaria se fosse mais rigoroso. Foi menos. Alegou que assim retira a pressão sobre o horário de rush e viabiliza economicamente os estabelecimentos comerciais. Em junho do ano passado, quando o Rio contabilizava menos de duas mil mortes por Covid, todo o comércio foi fechado. Hoje, a cidade registra o maior número de mortes do país, 19,2 mil, ou 70 a cada dia, e tudo bem. Paes diz que pode rever o plano “se houver alguma mudança brusca”. Precisa?

Nosso Rio 2

Anote. Havendo sol, as praias da cidade vão bombar neste último fim de semana de verão. Pistas fechadas, quiosques, barracas e ambulantes liberados. Vai ser uma festa. Ah, não, festas estão proibidas. Vai ser uma farra.

Nosso Rio 3

Bolsonaro, que atacou os governadores do Distrito Federal e de São Paulo por terem decretado toque de recolher e fechado lojas, bares, restaurantes e shoppings, deveria elogiar o prefeito do Rio. Ele merece.

Nosso Rio 4

Na Nova Zelândia, a primeira-ministra Jacinda Ardern voltou a decretar bloqueio total em Auckland porque três (eu disse três) novos casos de infecção foram registrados em fevereiro. Mas não se pode exigir tanto por aqui. Afinal, Rio é Rio e Auckland é Auckland.

Liberou geral

Nem parecia a mesma Anvisa que no ano passado suspendeu o andamento dos testes do Instituto Butatan com a Coronavac por causa do suicídio de uma das pessoas que estavam sendo testadas; ou a que negou o registro da Sputnik se antes não fossem feitos testes no Brasil. Na coletiva de ontem, a agência liberou geral. Convidou até mesmo uma vacina que não solicitou o registro a se apresentar para ganhar o seu aval. Inclusive o remédio do Trump foi liberado. Esse vai-e-vem, igual ao do capitão, mostra como a Anvisa se identifica com Bolsonaro.


Pablo Ortellado: Encantamento de Lula

O discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo embaralhou os cenários para as eleições de 2022 que indicavam uma recondução mais ou menos segura de Bolsonaro.

No discurso, o que mais se destacou foram as omissões. Lula, como era esperado, criticou a política econômica de Paulo Guedes e a política sanitária para combater a pandemia, mas em nenhum momento mencionou os ataques de Bolsonaro às instituições, tão comuns na retórica da esquerda. Essa omissão parece indicar que Lula e o PT descartam construir as condições para um impeachment antes de outubro de 2022 e que o objetivo, desde já, é construir a candidatura de Lula.

A segunda omissão no discurso de Lula foi Dilma Rousseff. O silêncio sobre a ex-presidente — que é considerada inepta, do centro à direita — e diversos acenos ao Centrão e ao mercado indicam para 2022 uma estratégia “paz e amor”, como a que adotou em 2002. Lula quis sinalizar ao mercado que sabe ser fiscalmente responsável e lembrar ao Centrão que é um negociador hábil e confiável.

A suspeição que está sendo lançada sobre a Lava-Jato parece estar escusando o ex-presidente. A troca de mensagens entre Moro e os procuradores mostrou um viés persecutório da operação contra o PT, além de articulações espúrias entre o juiz e o Ministério Público. Isso não apenas vem sendo utilizado juridicamente para anular as condenações, como politicamente para colocar sob suspeita as denúncias, liberando Lula da responsabilidade pela Petrobras ter sido desavergonhadamente assaltada durante sua administração.

Em 2018, liberais traumatizados com a política econômica de Dilma e punitivistas anticorrupção encantados pela Lava-Jato podiam considerar um segundo turno entre Lula e Bolsonaro uma “escolha difícil”. Agora, depois da péssima condução da crise sanitária por Bolsonaro e de seus ataques às instituições democráticas, a opção por Lula parece razoável.

Isso talvez explique as reações surpreendentes que o discurso despertou. Críticos antigos como Rodrigo Maia e Reinaldo Azevedo fizeram elogios rasgados ao ex-presidente, e influenciadores liberais no Twitter preferiram criticar as reações de Bolsonaro a condenar Lula.

Nada disso deve ser duradouro, mas, por um breve momento, abriu-se a possibilidade de Lula atrair o centro e até mesmo a centro-direita, encabeçando a tão propalada, mas tão pouco efetivada frente ampla.

Contra Lula, porém, pesa o antipetismo. Bolsonaro e outros setores da direita tentarão reativar o descontentamento com os escândalos de corrupção e reavivar a memória do fracasso da política econômica de Dilma Rousseff.

Com Lula na corrida, Ciro deve fracassar em se colocar como candidato da centro-esquerda, sendo empurrado para a sobrecarregada raia do centro e da centro-direita, onde já correm João Doria, Luciano Huck e Luiz Henrique Mandetta.

Se nenhum fato novo sobrevier, devemos ter novamente um segundo turno entre Lula e Bolsonaro. Três anos depois, estamos cada vez mais próximos de 2018.


Ruth de Aquino: Lula não é santo mas fez milagre

Nenhum cientista, nenhuma manchete, nenhum general, nenhum empresário, nenhum pastor, nenhuma recessão e nem mesmo os recordes sucessivos de mortos por Covid, nada disso produziu o milagre testemunhado pelo país nesta quarta-feira. Foi Lula quem “obrigou” Bolsonaro a usar máscara, defender vacinas e pedir imunizantes à China.

Nem mesmo a vacinação da mãe, Olinda, com a comunista Coronavac provocou essa transmutação radical de Bolsonaro. Lembram outubro de 2020? “A da China nós não compraremos, é decisão minha, mesmo se for aprovada pela Anvisa”. “Eu não tomo vacina (contra Covid), não interessa se tem uma ordem, seja de quem for, eu não vou tomar a vacina”. Sempre desencorajou uso de máscaras, à revelia do mundo. Citava “efeitos colaterais”. Seu filho Eduardo foi mais grosso em vídeo nas redes: “Enfia (a máscara) no rabo, gente, porra!” Que vergonha, deputado. Que vergonha. 

O discurso eleitoral de Lula no sindicato dos metalúrgicos, convocando a população a usar máscaras e se vacinar, mudou tudo. Bolsonaro se apresentou imediatamente depois em um bloco de mascarados. Disse que sempre foi a favor de se imunizar. O milagre estendeu-se aos filhos Flávio e Carlos, tocados com a anulação das condenações de Lula. “Nossa arma é a vacina” passou a ser o slogan da família. Cara de pau. A arma de Bolsonaro sempre foi o trabuco mesmo. Sua arma é a que cospe tiros, palavrões, bacilos e cloroquina. “Vacinaremos dezenas de milhões de brasileiros”. O verbo está no tempo errado. O futuro deveria ser pretérito. É imperfeito e condicional na voz de Pazuello, o general passivo da ativa. Pazuello não via o porquê de “tanta ansiedade e angústia” da nação em dezembro. E hoje? “O sistema de saúde não colapsou nem vai colapsar”. Que vergonha, ministro. Que vergonha.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o vice-presidente Mourão afirma que “faltou uma campanha intensiva de conscientização da população”. Não, Mourão, faltou conscientizar Bolsonaro e seu ministro da Saúde. Olhe agora Joe Biden nos Estados Unidos. Cem milhões de doses serão aplicadas nos 50 primeiros dias de governo e quase toda a população adulta estará vacinada até julho. Uma questão de liderança.

O Brasil ficou sem hospitais de campanha, sem leitos, sem oxigênio, sem vacina, limitado a jogar corpos em frigoríficos. Deveríamos vacinar, dia e noite, ao menos 1 milhão de brasileiros. É inadmissível interromper a imunização por falta de doses. 

Temos uma em cada quatro mortes por Covid no planeta. Somos o epicentro de uma calamidade sem controle. O STF precisa continuar a cobrar de Bolsonaro o repasse de recursos aos estados. O ministro Lewandowski deu prazo até o fim da semana. O STF precisa também cobrar explicações sem desculpas esfarrapadas. Qual é a culpa do Poder Executivo na tragédia, Supremo Tribunal Federal? Bolsonaro não quis ter vacinas já em dezembro. Semana passada, mandou comprar vacina na casa da tua mãe. 

Nunca foi tão fácil fazer oposição. É só ter bom senso. Contra o destempero, recomenda-se cautela. Lula se comparou no discurso a um escravo que leva 100 chibatadas. Disse que foi vítima do maior erro jurídico em 500 anos de história. Menos, Lula. Inspire-se nos líderes autênticos que saíram da prisão com maior estatura e modéstia, como Mujica e Mandela, e não nos populistas que se gabam demais e derrapam em mentiras. Você criticou o fanatismo dos bolsonaristas. Não estimule o fanatismo dos petistas. Não precisamos de santos. Precisamos de presidente. 


O Globo: Pressionado por Lula e pandemia, Bolsonaro recorre a militares, policiais e ao Congresso

Auxiliares do Planalto afirmam que a mudança de postura sobre vacina já vinha sendo discutida antes da decisão que deu de volta ao ex-presidente os seus direitos políticos

Daniel Gullino, Julia Lindner e Jussara Soares, O Globo

BRASÍLIA - Pressionado pelo agravamento da pandemia da Covid-19 e pela repercussão da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo político, o presidente Jair Bolsonaro faz movimentos para consolidar grupos que apoiam o governo. Ele forçou alterações na chamada PEC Emergencial para permitir a promoção de servidores, incluindo policiais; adotou a defesa da vacinação em massa, prioridade estabelecida pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao assumirem as casas; e oficializou a demissão de Fabio Wajngarten da Secretaria de Comunicação, que tinha entrado em rota de colisão com militares e com o ministro Fábio Faria. Seu substituto será o almirante Flávio Rocha.

Já de olho em 2022, o presidente confirmou ontem em sua live semanal que abriu conversas para uma volta ao PSL. Como O GLOBO mostrou, Bolsonaro, que também cogitava ingressar e assumir o comando de uma sigla nanica, passou a considerar que precisa de um partido com mais recursos financeiros. O PSL, junto do PT, tem a maior fatia do fundo eleitoral, por serem as maiores bancadas da Câmara.

Auxiliares do Planalto afirmam que a mudança de postura sobre vacina já vinha sendo discutida antes mesmo da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que deu de volta a Lula os seus direitos políticos, mas reconhecem que uma defesa enfática da imunização é um antídoto ideal para conter o desgaste e diminuir o impacto das críticas da oposição ao enfrentamento da pandemia.

Um integrante do alto escalão do Planalto relatou ao GLOBO que, antes de dar o aval para colocar em prática a “operação vacina”, Bolsonaro recebeu uma avaliação do monitoramento de suas redes sociais que indicavam que os seguidores, neste momento, clamavam mais por vacina do que por emprego. O presidente também passou a reforçar que a nova variante é mais letal e, portanto, concordou a adotar um “meio-termo”, dizendo que o investimento na imunização é o suficiente para manter a economia funcionando.

Com a aprovação da PEC que autoriza a retomada do pagamento do auxílio emergencial, Bolsonaro aposta que sua popularidade crescerá entre eleitores de renda mais baixa e em regiões mais pobres do país, onde historicamente Lula tem melhor desempenho. O esforço para manter a promoção de servidores, incluindo policiais e militares, é outro movimento para evitar uma debandada de sua base de apoio. Bolsonaro minimizou as modificações no texto.

— Estamos olhando on-line a votação da Câmara. Parece que algumas emendas foram acolhidas. Eu fiquei 28 anos dentro da Câmara, sei como funciona lá. Então, nós temos que ter vitórias e, às vezes, a gente não pode ganhar de três a zero, quatro a zero, cinco a zero... Se ganhar de dois a um é uma vitória — declarou Bolsonaro durante encontro virtual da Frente Parlamentar da Micro e Pequena Empresa de 2021.

O presidente oficializou, com publicação no Diário Oficial da União de ontem, a demissão do secretário especial de Comunicação, Fabio Wajngarten. Definida há duas semanas, a troca agrada ao ministro das Comunicações, Fábio Faria, e aos militares que colecionavam atritos com o então secretário, considerado de perfil mais “explosivo”. Wajngarten recusou a oferta de três postos no governo, incluindo o de assessor do Ministério do Meio Ambiente. Antes de sair, o ex-secretário integrou a comitiva que esteve em Israel para firmar acordos para testes do spray nasal contra Covid-19 no Brasil.

A Secom será comandada interinamente pelo secretário de Assuntos Estratégicos, o almirante Flávio Rocha, apontado como um conciliador no governo. A substituição é vista internamente com otimismo para buscar uma comunicação menos conflituosa do que na gestão de Wajngarten. Um ano antes da eleição e com a polarização antecipada com Lula, há um consenso interno que é preciso escolher as brigas e apostar mais na divulgação das ações do Executivo.

Diálogo com o PSL

Em transmissão ao vivo em suas redes sociais, o presidente admitiu que retomou as conversas com o PSL, seu antigo partido, para discutir uma possível filiação até o fim do mês. O chefe do Executivo destacou que só vai decidir após ouvir parte dos integrantes do PSL. Segundo ele, há uma “meia dúzia” de pessoas na legenda com quem ele não quer conversar porque “destruíram todas as pontes” de diálogo:

— E eu quero tomar a decisão depois de ouvir vocês (apoiadores), ou melhor, a grande maioria de vocês, porque tem meia dúzia lá que não dá para conversar, que destruíram todas as pontes ao longo dos últimos anos em causa própria, mas tudo bem. Então, eu espero brevemente decidir essa questão partidária.

Como mostrou O GLOBO, após o ministro Fachin anular as condenações de Lula, o que o tornou elegível em 2022, o presidente retomou negociação para se filiar ao PSL, partido pelo qual disputou o pleito em 2018, mas do qual saiu brigado um ano depois. A avaliação é que a entrada de Lula no páreo tornará mais acirrada a disputa no primeiro turno e, nessas circunstâncias, tempo de televisão e fundo partidário ganham mais relevância.


Míriam Leitão: Política dos governadores combate a pandemia e fortalece federação

Uma das raras notícias boas nesse tempo trágico é a união dos governadores. Eles começaram a se organizar em consórcios regionais e depois no Fórum para ocupar o espaço vazio criado pela omissão do governo federal. Nesse momento, a união dos governadores ajuda o país a enfrentar a catástrofe que já ceifou mais de 270 mil vidas, mas para além desse momento, isso ajudará a fortalecer a federação brasileira, dando aos entes federados mais noção do poder que têm. Disso sairá um equilíbrio maior de poder entre os estados e o governo federal. 

Na falta de uma coordenação geral,  a articulação entre os estados é bem-vinda. Governadores têm criado uma rede solidária. Princípio fundamental numa federação. Ao invés de cada um cuidar apenas do seu estado, estão construindo uma rede de ajuda mútua. Além disso, do ponto de vista da gestão criaram formas de que haja circulação rápida de informação entre eles e meios de negociação para a construção de consensos. O consórcio do Nordeste criou seu próprio comitê científico, e o Fórum de governadores fez manifestações importantes e está se articulando no Congresso para suprir as inúmeras e criminosas falhas do governo central.

Na democracia, é importante que nos momentos de emergência haja construção de consensos entre as autoridades passando por cima de suas diferenças partidárias ou regionais. E as autoridades dos estados federados vêm se comportando muito bem, exceto alguns. No Rio, infelizmente, o governador Cláudio Castro não assinou a carta e disse em resposta ao governador João Doria "da população do Rio cuido eu". Ele não está cuidando quando se desconecta do grupo de governadores e não adota as medidas necessárias para proteger a população.

O governador do Piauí, Wellington Dias, presidente do consórcio do Nordeste,  disse que a ideia é tentar adquirir vacinas de uma forma conjunta e transferir para o Programa Nacional de Vacinação. Isso é para evitar que sejam beneficiados apenas os estados mais ricos e que têm verba para compra da vacina. Dias tem sido o excelente porta-voz do grupo, por ser firme no principal - o alerta sobre os riscos da pandemia - mas evita conflitos desnecessários.

Tenho conversado com vários governadores e é interessante ver como eles têm negociado entre eles, aparando arestas, trabalhando pelos pontos em comum, mesmo quando há divergências. E eles não querem atuar contra o governo federal, pelo contrário, querem ser eficientes como gestores públicos na defesa da vida. Não é um movimento contra o governo, mas pela saúde dos brasileiros.


Ascânio Seleme: Lula foi ainda mais Lula

Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas ex-presidente foi mais longe

Retire os excessos de retórica e as figuras de linguagem, sublime os trechos destinados ao público interno e à militância. Ignore os erros involuntários e mesmo os estudados. Esqueça o tom de campanha. O resultado será um discurso grande, importante. Lula voltou com tudo. É verdade que o ex-presidente foi beneficiado pela torpeza e pela ignorância do seu oposto.

Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas Lula foi mais longe. Falou de política, economia, saúde; conversou com os brasileiros nos seus termos; mostrou que está pronto para negociar em todos os âmbitos; e apontou quem é o seu inimigo.

Isso, sem texto pronto, sem teleprompter, apenas com uma lista de tópicos em sua frente.

Com a mesma empatia de sempre, mas sério, sem se permitir às gracinhas habituais de seus discursos, Lula se posicionou de maneira inequívoca como uma opção para o Brasil e os brasileiros. Os diversos pontos do discurso, mesmo os que não pareciam apontar na mesma direção, tinham Bolsonaro como alvo. Mas sempre com postura presidencial.

Ao lembrar que a terra é redonda ou ao criticar a política de liberação de armas, o tom foi de compromisso, não de chacota. Mesmo ao defender uma política econômica não liberal, dizendo que o governo não tem ministro da Economia, o ex-presidente queria mesmo era mostrar seu apoio à política de distribuição de renda através do salário emergencial, substituto provisório do seu Bolsa Família.

A insistência ao tratar do coronavírus também tinha endereço. E o destinatário do Palácio do Planalto recebeu a mensagem no mesmo dia, se apresentando logo em seguida para falar sobre a vacinação e, incrível, usando máscara.

Aos brasileiros, Lula falou da fome, do preço da gasolina, da picanha na mesa do trabalhador, do seu eterno objetivo de chegar à raiz dos problemas nacionais por querer um mundo mais justo. Retórica, claro, mas que toca no coração das pessoas. Se Bolsonaro consegue acertar o estômago dos brasileiros com suas grosserias, Lula busca o coração com suas sutilezas. E é isso o que o distingue do outro.

Negociação com o Congresso, com toda a classe política, nas suas palavras, e com os empresários é aceno do Lulinha, Paz e Amor. O mesmo que disse não guardar mágoas, apesar das chibatadas que levou.

Os claros exageros, como a afirmação de que Marisa, sua mulher, morreu por causa da Lava Jato, serviram apenas para ele reiterar que apesar de tudo não tem mágoas. Porque, disse, não há espaço nem tempo para guardar ódio. Mesmo quando atacou injustamente jornais e jornalistas, ofereceu um afago ao defender a liberdade de imprensa e ao elogiar a edição de ontem do Jornal Nacional.

Aliás, uma frase do discurso explica o morde e assopra de Lula com relação à imprensa.

“A gente começa a gostar da vida quando está mais perto do céu”, disse o ex-presidente.

Pois Lula esteve muito perto do inferno, quando aliados seus, do seu partido e dos que o apoiavam, saquearam em conjunto a Petrobras. Também quando seu governo foi denunciado por pagar por apoio de partidos com dinheiro público, o famoso mensalão. Ou quando sua sucessora, Dilma Rousseff, quase quebrou o país. Ou ainda quando um apartamento e um sítio foram estruturados por empreiteiras para atender o gosto da sua família.

Nestes momentos em que esteve bem próximo do fogo eterno, Lula não gostava dos jornais e muito menos do JN.

Mas mesmo esse desvio pode rapidamente virar passado na retórica política de Lula. O que não mudou e não vai mudar, é a grandeza do seu discurso. Lula sabe com quem fala, sabe bem o que quer falar e sabe melhor ainda como falar. Bolsonaro não está mais só.


Carlos Andreazza: O discurso de Lula

Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.

Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.

Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.

Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.

Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.

Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.

É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.

Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram

com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.

É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.

Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.

É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.

Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.