O Globo

Judith Butler: 'Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados'

'Bolsonaro e Trump são os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes', afirma Judith Butler

Filósofa americana, que participa nesta quarta (24) de seminário virtual sobre feminismo, fala sobre as perdas da pandemia agravadas pela desigualdade e o novo livro que chegará ao Brasil, em julho, pela Boitempo

Renata Izaal, O Globo

Na última vez em que esteve no Brasil, em 2017, Judith Butler foi alvo de petições on-line e ações judiciais de grupos conservadores que tentaram impedir sua vinda ao país para um seminário sobre democracia. Ela veio, cumpriu sua agenda, mas, na volta para casa, foi agredida no Aeroporto de Congonhas por quem acredita que a filósofa americana é a fundadora da “ideologia de gênero”.

Mas Butler não fundou coisa nenhuma. O que ela fez, de modo muito resumido, foi teorizar sobre o gênero como algo socialmente construído, uma performance. Sua obra, na verdade, é muito mais extensa e avança sobre política e democracia; violência de Estado; luto; poder, discurso e sexualidade; sionismo e a questão palestina.

Hoje, às 14h, Butler voltará a se encontrar com o Brasil, mesmo que remotamente. Ela vai discutir feminismo, corpo e território com a cantora, compositora e ativista Preta Ferreira, dentro da programação do ciclo de debates on-line “Feminismo para os 99%”, realizado pela Boitempo. O encontro será transmitido no canal no YouTube da editora, que publicará, em julho, o livro mais recente de Butler. Em “A força da não violência”, ela critica o individualismo na ética e na política e defende a “igualdade radical” para que se possa construir algo bom juntos.

Em uma breve entrevista, Judith Butler, que leciona na Universidade da Califórnia, Berkeley, reflete sobre pandemia e luto, o negacionismo de Bolsonaro e de Trump e vibra com o feminismo latino-americano: “Movimentos como o Ni Una Menos e o Las Tesis me tocam e inspiram muito”, afirma.

Seu novo livro defende uma igualdade radical, mas a pandemia tem aprofundado as desigualdades em todo o mundo. Como analisa a crise atual e suas possíveis consequências?

Acho que estamos vendo com mais clareza do que nunca as desigualdades econômicas e raciais que foram geradas pelo capitalismo global, além da situação terrível imposta a mulheres, pessoas trans e não binárias, que foram confinadas nas casas onde sofrem violência e degradação. É ainda mais doloroso ver os lucros das farmacêuticas. Mas, mesmo assim, também vivemos num tempo em que a ação contra as mudanças climáticas é imperativa, em que a luta pelas vidas negras soa mais alto e é mais persuasiva, e em que as várias formas de feminismo conquistam apoio. Não está claro em qual direção o mundo irá, mas a sensação de que as lutas estão entrelaçadas me dá esperança.

O luto é um tema importante em sua obra e tem sido debatido na pandemia, que trancou as relações nos meios digitais e impediu tantas despedidas. Qual o impacto disso?

Tem sido devastador para tantas pessoas não poderem se aproximar dos que estão morrendo, terem apenas o Zoom como um meio para o luto e, ao final, serem deixadas com um isolamento que é insuportável e debilitante. Precisamos uns dos outros para vivermos o luto. É importante estar perto fisicamente e regenerar o sentido de uma vida conjunta a partir dessa perda devastadora e, agora, rápida. A arte pública que marca as nossas perdas vai continuar sendo importante, assim como as pequenas reuniões e, eventualmente, as grandes.

Manifestações, como as do movimento Black Lives Matter, foram ao mesmo tempo atos públicos de luto e protesto. Sabemos que tantas pessoas não precisavam ter morrido, que elas sofreram da perda de cuidado adequado com a saúde e que as razões para isso foram a marginalização social, o racismo e a desigualdade econômica. Então teremos que refletir sobre a morte que poderia ser evitada: quem ou o que deixou tantas pessoas morrerem?

O governo dos Estados Unidos levou muito tempo para organizar sua resposta à pandemia, já o brasileiro ainda não o fez adequadamente. Isso é uma forma de violência?

Talvez tenhamos que revisar o nosso entendimento de assassinato, ou que aceitar que há muitas maneiras de lidar com a morte. Esta última está distribuída por toda a sociedade, e os trabalhadores só têm valor quando são produtivos. É o momento para uma renovação das ideias socialistas, começando com uma renda nacional garantida. Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados. Com isto, quero dizer: se, em algum momento, eles sentem vergonha, a superam por meio do sadismo. São os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes.

Trump não se encerra com a eleição de Biden e Kamala.

É ótimo que Trump tenha saído. Mas o que seu governo deixou claro é que a supremacia branca, o masculinismo (ideologia que prega a superioridade dos homens e a exclusão das mulheres), a transfobia, a homofobia e o antifeminismo têm raízes profundas na cultura americana. Nossa luta será longa.

Depois da agressão que sofreu no Brasil em 2017, você ainda acompanha o que se passa no país?

Sim, acompanho a situação política no Brasil e as operações do movimento contra a ideologia de gênero. O incidente comigo foi pequeno se comparado com o que aconteceu com feministas e pessoas LGBTQIA+ que perderam suas vidas para a violência, o abuso sexual, o racismo e a transfobia. A questão é: por que é permitido que essas violências aconteçam? Temos que perguntar sobre polícia e complacência do Estado e sobre as notícias falsas e fomentadoras de ódio geradas on-line.

A América Latina tem sido apontada como o epicentro do feminismo hoje. Você concorda?

Movimentos como o Ni Una Menos (que, desde 2015, organiza manifestações contra a violência de gênero na Argentina) e o Las Tesis (coletivo chileno que criou performance contra a cultura do estupro reproduzida em diversos países) me tocam e inspiram muito. São corajosas, enfurecidas e alegres, e o feminismo precisa envolver todo esse arco afetivo para conseguir apoio e exemplificar a nova forma de vida que substituirá a violência, a exclusão e a desigualdade.


Bernardo Mello Franco: A corrupção de Moro

A Segunda Turma do Supremo concluiu que Sergio Moro violou o dever da imparcialidade ao condenar o ex-presidente Lula. A decisão esvazia o mito que começou a ser inflado em 2014, quando o ex-juiz emergiu à frente da Lava-Jato. A pretexto de combater a corrupção, ele fez política com a toga e corrompeu o sistema judicial.

Nos últimos sete anos, Moro e a Lava-Jato se tornaram personagens centrais da vida brasileira. A República de Curitiba implodiu os partidos tradicionais e deu impulso ao impeachment de Dilma Rousseff. Dois anos depois, ajudou um populista de extrema direita a vestir a faixa presidencial.

Jair Bolsonaro passou a campanha de 2018 fazendo juras à Lava-Jato. Nem precisava. A operação prendeu e tirou de campo seu principal concorrente. Às vésperas do primeiro turno, ainda divulgou uma delação para beneficiá-lo.

Antes de subir a rampa, o capitão ofereceu a Moro o cargo de ministro da Justiça. O juiz abandonou a carreira e correu para se juntar ao novo governo. Quando ele rasgou a fantasia, sua atuação política já estava mais do que escancarada. Bastava querer ver.

Ontem a ministra Cármen Lúcia lembrou que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, garantiu a todos um julgamento justo e imparcial. Processos inquisitoriais, em que o juiz se confunde com a acusação, atentam contra as bases da democracia.

A professora Eloísa Machado de Almeida, da FGV Direito SP, diz que o Supremo demorou a reconhecer a suspeição de Moro. “Era inevitável que o tribunal fizesse isso, depois de chancelar por tanto tempo os erros e abusos da Lava-Jato”, afirma.

Ela considera que a operação está “pagando por seus deméritos”. “Muita gente séria avisou que isso iria acontecer. Os fatos levam a crer que Moro não estava fazendo Justiça. Ele foi um juiz parcial, que direcionou os processos por interesse próprio”, sentencia.

A decisão do Supremo reforça os sinais de uma mudança de ventos no país. A ministra Cármen Lúcia, que costumava endossar as condenações de Curitiba, alterou o voto para reconhecer a suspeição de Moro. À noite, panelas que já bateram contra Lula abafaram o pronunciamento de Bolsonaro.


Vera Magalhães: Bolsonaro fora do segundo turno?

Cresce nos meios políticos e entre os analistas a crença de que o segundo turno de 2022 pode se dar sem a presença de Jair Bolsonaro. Não é por outra razão que dia sim, outro também, o presidente aumenta a estridência de suas declarações e as ameaças a adversários com supertrunfos como o estado de sítio.

Mas como se daria esse cenário do presidente fora da reta final da disputa? Como o impeachment ainda parece uma possibilidade pouco provável, não pela falta de crimes de responsabilidade a granel, mas de apetite do Congresso, coragem das forças econômicas e perda mais significativa de respaldo popular (que pode vir e puxar as outras duas variáveis), a construção tem de ser pela política.

A volta de Lula ao tabuleiro eleitoral, anabolizada na tarde desta terça-feira pelo julgamento do habeas corpus de sua defesa pela Segunda Turma do STF, que reconheceu a suspeição de Sergio Moro para julgá-lo, foi o primeiro fator a ameaçar a presença garantida de Bolsonaro na “final” no ano que vem.

Embora as pesquisas ainda sejam muito equilibradas e mostrem resultados numericamente divergentes quanto a quem levaria a melhor entre os antagonistas Bolsonaro e Lula, a se manter o caos na pandemia e, consequentemente, na economia, a balança tende a pender para o lado do petista mais e mais.

Outro fator a ameaçar a reeleição do capitão é o desejo manifestado nessas mesmas pesquisas por boa parte do eleitorado de votar em alguém que não seja nem Bolsonaro nem um petista (lembrando sempre que Lula está elegível hoje, mas seus processos serão reiniciados, não se sabe de que ponto, pela Justiça Federal no DF).

Até aqui a dúvida dominante era a respeito de quem enfrentaria Bolsonaro no returno: Lula ou um candidato alternativo? Agora não é absurdo pensar na possibilidade de o confronto decisivo ocorrer entre o petista e essa terceira via.

Não, isso ainda não está dado. Bolsonaro tem pelo menos 22% de apoio ainda declarado, de acordo com o mais pessimista dos levantamentos de opinião. Mas é algo possível de construir pela política, caso os partidos acordem do sono letárgico em que parecem hibernar, em meio à situação mais caótica em todas as frentes que o Brasil já enfrentou.

Também é um movimento que já está em marcha em amplos setores da sociedade, como mostram indicadores tão distintos como o manifesto com mais de mil assinaturas dos economistas em prol da racionalidade no trato da pandemia, os panelaços de “Fora Bolsonaro”, as reações ao estado policialesco contra adversários do presidente e o crescente desconforto até no apalermado Congresso Nacional com o desgoverno reinante e o galope descontrolado de mortes em todo o território nacional.

Aconteceu o mesmo com Donald Trump. Por lá, a pandemia foi um fator a galvanizar esses descontentamentos, que estavam difusos, e a forçar a oposição do Partido Democrata a se unir em torno de Joe Biden.

Aqui começam timidamente ensaios de arranjos de chapas que pudessem limpar o meio de campo de muitos candidatos perna de pau nas pesquisas e fazer surgir uma dupla competitiva. Nos últimos dias, fui procurada por articuladores de partidos com composições as mais diversas. Alckmin-Mandetta? Alexandre Kalil-Luiza Trajano? A mais manjada Luciano Huck-Moro? Em cada uma há senões, guerras de egos, vetos dentro desse e daquele partido e hesitação dos envolvidos. Mas o que há mesmo é a falta, até aqui, de consciência por parte do establishment político não petista de que é possível construir essa alternativa, desde que o diálogo comece agora, seja sistemático, envolva setores amplos da sociedade civil para além dos partidos e contemple uma alternativa concreta de projeto de país para reconstruir o que foi destruído por Bolsonaro.


Carlos Andreazza: A era dos xerifes

Os únicos crescimentos em V hoje no Brasil são o da presença do Centrão no governo e o do recurso à Lei de Segurança Nacional. Herança do estado de direito segundo a ditadura militar, a LSN está na moda de novo. Não poderia ser diferente. Há muito vivemos sob o espírito do tempo autoritário, o principal condicionante da depressão política cujo maior produto (até aqui) é Jair Bolsonaro na Presidência. Aquele Messias que diz: “Enquanto vivo for, enquanto eu for o presidente, porque só Deus me tira daqui, eu estarei com vocês”.

Só Deus — nem uma eleição, nem um impeachment — o tira do trono; brada aquele que afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que o pleito de 2018 fora fraudado.

Pode piorar.

Não se chega a um presidente abertamente golpista — um investidor no caos, que tanto mais prosperará quanto mais forem as instabilidades e os conflitos — sem um longo percurso de permissões à violência. Pode piorar. (Enquanto isso, Fux — num gesto de bravura institucional — telefonará para saber se o discurso golpista pode se materializar em golpe; de resto, como se a dilapidação autocrática da democracia liberal precisasse de tanques nas ruas.)

Pode piorar. O encadeamento do esquema é lógico. Se a mentalidade dominante é a autoritária, influentes serão — mais oferecidos estarão — os instrumentos arbitrários. E então temos um presidente que, citando estado de sítio diariamente, apropria-se do Exército, forja governadores como tiranos e prega o armamento da população — instigando a desobediência civil — como maneira de resistir aos usurpadores imaginários da liberdade.

Se a mentalidade prevalecente é a discricionária, mais tentados seremos às soluções exorbitantes. Encaixa-se nessa concepção prepotente —em que a boa causa legitima se diluírem as fronteiras entre acusação e juízo — a forma como o lavajatismo compreende a Justiça. E, se nos sentimos à vontade ante o uso de ferramentas abusivas — justiceiras — contra adversários, porque, afinal, são adversários (a linguagem vigente os torna inimigos), então teremos entrado na cancha em que gente como Bolsonaro, o que faz “qualquer coisa pelo povo”, joga em casa.

O bolsonarismo — fenômeno reacionário de natureza populista-autocrática — será o dono da bola se as regras forem as autorizadas pela Lei de Segurança Nacional. A LSN é um paraíso para a equiparação entre a pessoa do governante e a representação do Estado; do que se desdobra a fé antidemocrática, exercida por alpinistas como o ministro da Justiça, de que a proteção à honra de Bolsonaro equivalha à guarda do próprio Estado brasileiro. E daí — numa corrida por quem pode mais — não haverá limites.

Decorrem dessa distorção o inquérito intimidador contra Felipe Neto (referiu-se ao presidente como genocida) e a ação contra um tocantinense que veiculou outdoor em que chamava Bolsonaro de pequi roído; para ficar apenas em dois casos recentes. Ambos atos do mais óbvio exercício da liberdade de expressão. Atos cujos conteúdos, porém, podem, sim, ofender a honra; ofensas contra as quais existe o Código Civil. Ponto final. Tudo o mais sendo tentativa — pelo Estado — de amedrontar. Ou alguma dessas manifestações — por agressiva que seja — tem potencial atentatório contra a segurança do presidente? Ou alguma dessas expressões investe contra a ordem política republicana? Não.

As falas do deputado Daniel Silveira, sim. Enquadram-se na LSN. Falas de alguém com mandato, agente que se exprime desde dentro da democracia representativa, que atacou um Poder da República. Mas é muito perigoso que a captura do crime de Silveira e os gatilhos para a prisão do parlamentar (de flagrante muito duvidoso, depois improvisada numa espécie de flagrante permanente) baseiem-se numa lei que, como próprio a mecanismos autoritários, molda-se a qualquer ímpeto ressentido e vingador, cujo alcance se estica para chegar a qualquer um, a depender do mendonça de turno na esquina.

Está aberta a pista — e já bem movimentada, com convites a toda sorte de aventureiro — para o baile em que Bolsonaro e seus silveiras são os melhores e mais experientes dançarinos. E a culpa aqui — pelo salão encerado e escancarado — é compartilhada entre Congresso e Supremo.

Da parte do Parlamento, porque ainda não jogou no lixo a LSN, em cujo espaço deveria erguer uma robusta legislação de defesa do estado democrático de direito — um marco destinado a tipificar os crimes contra a democracia e esclarecer os modos como um senador ou deputado, sem mais meios de deturpar a liberdade de se expressar, podem ser presos, inclusive provisoriamente, e cassados; com o que, ademais, se valorizaria o espírito republicano da imunidade parlamentar.

Da parte do STF, porque tem origem no tribunal o revigoramento da LSN, a excrecência que ancora o inquérito dito das Fake News, aquela doença totalitária, um enclave censor — já censurou uma revista — baixado de ofício e sem objeto investigado definido, ali onde tudo cabe, por meio do que o Supremo se impõe ao mesmo tempo como vítima, investigador, promotor e julgador.

Um péssimo exemplo. Que atiça qualquer empoderadinho com distintivo. Chama os revanchistas e oportunistas a expor os dentes. E desbasta o terreno em que a barbárie fareja as carnes. Aí está. Vai piorar.


Merval Pereira: Quem estica a corda?

Do jeito que a coisa vai, o Exército brasileiro será colocado à prova muito em breve, quando o presidente da República resolver decretar o estado de sítio, ou estado de defesa, ou qualquer medida emergencial para calar os que o criticam e controlar as instituições. O ex-comandante do Exército e general Eduardo Villas Bôas revelou em entrevistas que a instituição foi sondada por emissários petistas para apoiar a decretação de estado de defesa durante a tramitação no Congresso do processo de impeachment que acabou tirando Dilma Rousseff da Presidência da República. O general disse que assessores militares no Congresso foram procurados, mas o Exército rechaçou a sondagem.

A ex-presidente negou ter acontecido tal episódio e desafiou Villas Bôas a revelar quem foi o emissário petista, mas não obteve resposta. De qualquer maneira, no relato do general, um ícone do Exército, autor de um famoso tuíte, às vésperas do julgamento de um habeas corpus para Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), interpretado como pressão sobre os ministros para que não soltassem o ex-presidente, o Exército brasileiro rejeitou uma tentativa de golpe, o que seria uma atitude em defesa da democracia e do estado de direito.

O que se coloca hoje é qual seria a atitude do Exército, do qual Bolsonaro é oriundo e de cujo governo diversos militares, inclusive da ativa, fazem parte, se o presidente tentasse recorrer a uma regra constitucional excepcional para impedir que seus adversários políticos se pronunciem ou que manifestações a favor do impeachment prosperassem?

O presidente Bolsonaro usa o que chama de “meu Exército” para respaldar suas sandices, como fez domingo, em frente ao Palácio da Alvorada, saudado por centenas de apoiadores. Voltou a chamar os governadores e prefeitos que estão decretando medidas de restrição social, e em alguns casos lockdown, de “tiranetes ou tiranos” que, segundo ele, “tolhem a liberdade de muitos de vocês”.

Anteriormente, ele já dissera que estava chegando o momento “de tomar medidas duras” e comparou o fechamento de comércio e outros estabelecimentos a uma medida de exceção como o estado de sítio. Mais uma vez, fazendo prognósticos sombrios sobre fome dos cidadãos, perguntou: “Será que o governo federal vai ter que tomar uma decisão antes que isso aconteça? Será que a população está preparada para uma ação do governo federal dura no tocante a isso?”.

No domingo, retomou o tema, afirmando que poderiam contar “com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”. O presidente voltou a advertir que “estão esticando a corda” e que faria qualquer coisa “pelo meu povo”. Esse discurso delirante leva novamente à discussão sobre a tendência de Bolsonaro usar o Exército como arma de ataque aos que considera seus inimigos, agora sendo a vez de governadores e prefeitos. Tendo entrado no Supremo contra medidas de isolamento social adotadas no Distrito Federal e nos estados da Bahia e do Rio Grande do Sul, o presidente Bolsonaro faz uma pegadinha com os ministros.

Ele sabe que a tendência é negarem seu pedido, ou simplesmente nem o examinarem, pois o Supremo já decidiu sobre o assunto, dando poderes aos estados e municípios para tomar as medidas necessárias, sem retirar do Executivo qualquer iniciativa que deva ser adotada. Quer simplesmente Bolsonaro reafirmar sua tese de que o STF e os governadores não o deixam governar, uma tese mentirosa e perigosa, pois pode embasar a tentativa de golpe que ameaça sempre.

O fato é que Bolsonaro, com o desastre que patrocina no combate à Covid-19, está perdendo apoio, o que demonstra a carta dos economistas divulgada na coluna de domingo, que desmascara a tese de que é a esquerda que está contra seu governo. E também apoio político, pois até mesmo o Centrão já está temeroso de continuar uma aliança acriticamente, só pensando nas benesses imediatas, sem medir as consequências de longo prazo de estar abraçado a um presidente que pode naufragar nessa travessia.


Míriam Leitão: Carta mostra o erro econômico

O Ministério da Economia também errou na condução do combate à pandemia. Durante muito tempo, o ministro Paulo Guedes reforçou o equívoco do presidente de que havia uma dicotomia entre economia e saúde, em nenhum momento o Ministério conseguiu passar para o resto do governo qual deveria ser a estratégia econômica de combate ao vírus. E aceitou que o Brasil chegasse tarde ao mercado de vacinas. A carta dos economistas mostra que houve erro econômico, de avaliação, de decisão, de análise de custo-benefício.

Economistas que trabalharam em governos diferentes, que estiveram no Banco Central em diversos momentos e até com pensamentos divergentes assinaram a carta sobre a qual o colunista Merval Pereira falou na coluna dele no domingo. “Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade”, diz o texto. Agora Paulo Guedes fala em vacinação em massa como a melhor política fiscal e econômica, mas como se fosse um expectador e não pudesse ter influenciado na correção de rotas meses atrás. Com argumentos econômicos, os signatários criticam o caminho escolhido pelo governo Bolsonaro, o dos “falsos dilemas”, dos “debates estéreis” e do insistente negacionismo.

Os casos dos Estados Unidos e do Reino Unido ensinam que políticas rigorosas de distanciamento social e uma liderança firme derrubam os números de infecção e mortes. Os Estados Unidos chegaram a 4.000 mortes, o Reino Unido, a 1.800. No fim de semana, eles reduziram aos patamares de 400 e 40 mortes por dia, respectivamente. Nos dois países houve correção de rotas do governo, num caso pela troca de presidente e, no outro, pela mudança radical de atitude do primeiro-ministro. O caso de Israel indica que, mesmo depois de vacinar metade da população — agora já quase 70% estão vacinados por lá — é preciso esperar umas seis semanas para controlar a pandemia. Mesmo quando se avança na vacinação dos mais velhos as mutações atingem os jovens e continuam contaminando. A luta é árdua.

O centro da carta dos economistas é a de que, numa crise deste tamanho, não ter uma liderança forte faz muita falta. No nosso caso é pior porque o governo atua do lado errado, está remando contra. O governo agrava todas as crises, inclusive a econômica. Bolsonaro não mudou, tanto que está com ação do Supremo contra governadores e, no domingo, comemorou seu aniversário fazendo mais ameaças ao país com o uso da imagem das Forças Armadas. O documento surgiu espontaneamente, segundo contam os signatários, e só foi possível ter tantas adesões porque tocou num nervo exposto. O Brasil virou o epicentro da crise sanitária global. “Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção de população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior”, escreveram no documento. “Impressiona a negligência com as aquisições das vacinas”, diz.

Guedes ecoou algumas vezes o presidente, como quando acompanhou um grupo de empresários em procissão até o STF, defendendo a abertura imediata da economia, ou no preconceito em relação à China, como demonstrou naquela reunião ministerial de abril de 2020. Outras vezes, ele não se envolveu, mas deveria. Se percebia que o Ministério da Saúde estava à deriva, numa questão que era central na equação econômica, deveria ter agido. Isso tinha que ter acontecido em meados do ano passado, quando países e fornecedores de vacina estavam ofertando o produto.

“A relação custo-benefício da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta absoluta de prioridade atribuída à vacinação”, diz a carta dos economistas.

A tentativa do setor de comunicação do Planalto de apagar a história recente e dizer que o presidente sempre defendeu a vacina só daria certo se houvesse uma amnésia coletiva. O país viu as inúmeras vezes em que Bolsonaro combateu a vacina, alimentou mentiras sobre efeitos colaterais, tratou o imunizante como produto do “inimigo”, seja a China, seja o governador de São Paulo. Os economistas, na carta, mostram que faltou também inteligência econômica no combate à pandemia.


O Globo: Supremo deve derrubar trechos da Lei de Segurança Nacional

Datada da ditadura militar, norma foi usada por governo para reprimir manifestantes

Carolina Brígido, O Globo

BRASÍLIA — O Supremo Tribunal Federal (STF) deve derrubar trechos da Lei de Segurança Nacional por considerá-los incompatíveis com a Constituição de 1988. Editada em 1983, durante o regime militar, a norma tem sido usada pelo governo federal e por autoridades locais para coibir manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro. Em caráter reservado, ministros do Supremo consideram que o governo tem feito uso muito amplo da norma, de forma a restringir a liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal. A data do julgamento ainda será definida.

Entrevista:'Usar a lei assim é calar a crítica', diz pesquisadora da Lei de Segurança Nacional

Em uma live no sábado, o ministro Ricardo Lewandowski disse que a lei é um “fóssil normativo” e que o Supremo tem um encontro marcado para avaliar a constitucionalidade da norma.

— A Lei de Segurança Nacional foi editada antes da nova Constituição, da Constituição cidadã, da Constituição que traz na sua parte vestibular um alentadíssimo capítulo relativo sobre direitos e garantias fundamentais. O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível com não apenas a letra da constituição, mas com o próprio espírito da Constituição. É um espectro que ainda está vagando no mundo jurídico e precisamos, quem sabe, exorcizá-lo ou colocá-lo na sua devida dimensão — disse Lewandowski.

Durante um julgamento em 2016, o ministro Luís Roberto Barroso deu declaração no mesmo sentido:

— Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira. Há, no Congresso, apresentada, de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e da Instituições, que a substitui de maneira apropriada.

Outros ministros consultados em caráter reservado pelo GLOBO consideram exagerado o uso da lei pelo governo em eventos recentes. Na semana passada, o Ministério da Justiça processou o autor de um outdoor em Tocantins que comparava Bolsonaro a um pequi roído.

O youtuber Felipe Neto foi acionado pela polícia do Rio de Janeiro por ter chamado Bolsonaro de genocida. Na semana passada, um grupo de manifestantes que estenderam cartazes em frente ao Palácio do Planalto usaram a mesma palavra e também foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

Há, porém, uma pedra no caminho do Supremo. Os dois inquéritos mais polêmicos que tramitam na Corte, o das fake news e o dos atos antidemocráticos, foram abertos com base na Lei de Segurança Nacional. Há também uma decisão recente, e não menos polêmica, baseada na mesma norma: a ordem de prisão expedida pelo ministro Alexandre de Moraes contra o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).

Leia mais:PSDB vai ao Supremo contra Lei de Segurança Nacional

Como um tribunal que faz uso da Lei de Segurança Nacional poderia derrubar trechos dela? Entre os ministros do Supremo, há uma espécie de consenso no sentido de que a norma é importante para garantir a democracia e a integridade das instituições. A ideia seria banir apenas trechos que ameaçam a liberdade de expressão e de informação. Portanto, outros trechos continuariam intactos.

Existem hoje no STF duas ações contestando a constitucionalidade da Lei de Segurança Nacional. Uma foi proposta pelo PTB e pede para que a norma toda seja considerada inconstitucional. Em outra ação, o PSB contesta apenas artigos que restringem a liberdade de expressão dos cidadãos - especialmente contra os governantes. O PSB pondera que a lei é um instrumento importante na proteção da democracia - e cita a prisão de Daniel Silveira como exemplo, como forma de amparar a atuação do Supremo.

O relator das duas ações é o ministro Gilmar Mendes, que pediu informações ao Congresso Nacional e à Presidência da República antes de tomar uma decisão. Ele pode julgar sozinho os pedidos de liminar, ou levar as ações ao plenário do STF, composto de onze ministros. Não há previsão de quando isso acontecerá.

Em uma terceira vertente, a Defensoria Pública da União entrou com um habeas corpus coletivo no Supremo pedindo o fim de todos os processos iniciados com base na norma. Ainda não foi sorteado um relator para o caso.

De tempos em tempos, autoridades lançam mão da Lei de Segurança Nacional, em especial para coibir manifestações. Foi feito isso nos protestos de 2013 contra a corrupção e também nos atos de 2014 contra a realização da Copa do Mundo no Brasil. Recentemente, o governo federal e autoridades locais têm usado a norma contra professores, jornalistas, opositores políticos e críticos em geral do presidente da República.

Veja também:Ex-ministro do STF diz que Lei de Segurança Nacional tem 'extrapolação' e deveria ser revista pelo Congresso

Logo que assumiu o Ministério da Justiça, André Mendonça defendia que a Lei de Segurança Nacional não poderia ser usada amplamente para coibir críticos do governo. Depois que o STF começou a usar a norma nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos - e, especialmente, depois da prisão de Daniel Silveira -, Mendonça mudou de ideia. A pedido do próprio Bolsonaro, resolveu atuar no caso do pequi e também contra outros manifestantes.

Um dos artigos mais controvertidos da lei é o 26, que fixa pena de um a quatro anos de reclusão contra quem caluniar ou difamar os presidentes dos Três Poderes. A mesma pena cabe para quem, conhecendo o caráter ilícito da prática, a divulga.

A polêmica está no fato de que é uma pena maior do que a estabelecida no Código Penal para os mesmos crimes, mas praticados contra qualquer pessoa, sem especificar se é autoridade ou não. No Código Penal, o crime de calúnia gera pena de seis meses a dois anos de detenção. A difamação é punida com três meses a um ano de detenção.

Embora ministros do Supremo considerem esse trecho ofensivo à Constituição Federal, Alexandre de Moraes usou ele como um dos argumentos para mandar prender Daniel Silveira.


Demétrio Magnoli: O maior erro de Biden

Joe Biden imagina-se, com boas razões, na posição ocupada por Franklin Roosevelt em 1933. Seu pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão aquecerá uma economia que já retomou a expansão, direcionando-a para tecnologias transformadoras. Seus primeiros gestos diplomáticos revitalizam as alianças transatlântica e transpacífica que sustentam a influência global dos EUA. Mas nada disso minimizará as consequências de um pecado capital: seu governo segue o roteiro do nacionalismo vacinal de Donald Trump.

O nacionalismo vacinal é a regra entre os países ricos. O Canadá comprou vacinas para imunizar cinco vezes sua população, mas enfrenta dificuldades com o lento fornecimento de doses. A União Europeia adquiriu vacinas em abundância, mas o fez tarde demais e enfrenta carência de imunizantes. Por isso, em desespero, ameaça invocar o Artigo 122 do Tratado da UE, uma lei extraordinária, para impedir a exportação de doses da Oxford/AstraZeneca produzidas em seu território ao Reino Unido. O governo britânico, que aplicou rapidamente a primeira dose em dois quintos da população, impôs um controle oculto à exportação de vacinas.

“As vacinas são para braços americanos primeiro”, declarou Biden, alinhando-se ao nacionalismo vacinal de Trump. Os EUA utilizam a Lei de Produção de Defesa, instrumento criado durante a Guerra da Coreia (1950-53), para impedir exportações de imunizantes sem autorização federal. O America First não terminou com a troca de comando na Casa Branca, mas retraiu-se à esfera da vacinação.

Há exceções pontuais dignas de nota. O Quad, articulação de segurança patrocinada pelos EUA que abrange Japão, Índia e Austrália, prometeu fornecer um bilhão de doses aos países do Sudeste Asiático, num gesto de contenção da influência regional da China. Há pouco, Washington concordou em remeter suas doses estocadas da Oxford/AstraZeneca ao Canadá e ao México. Nesse caso, a “generosidade” é apenas uma extensão do nacionalismo vacinal: a reabertura da fronteira norte depende da imunização no Canadá, e a pandemia só poderá ser declarada extinta nos EUA quando o México vacinar a maior parte de sua população.

A vacinação em massa nos EUA, além de medida sanitária urgente, é parte da estratégia geopolítica de Biden, que depende de uma pujante retomada do crescimento econômico. Mas o nacionalismo vacinal implica renúncia à projeção de influência americana em vastas áreas do mundo em desenvolvimento. China e Rússia agem, agressivamente, para preencher o vácuo.

Três vacinas de origem chinesa (Sinopharm, Sinovac e Cansino) são os principais imunizantes aplicados em parte do Sudeste Asiático, no Paquistão, na Turquia e em países da África do Norte. A Sputnik V, de origem russa, também difundiu-se por países da Ásia Central e do Oriente Médio, da África e mesmo da Europa Central (Hungria e Sérvia).

Pior para os EUA, do ponto de vista geopolítico, é o sucesso da diplomacia vacinal chinesa e russa na América do Sul. O Brasil vacina essencialmente com o imunizante da Sinovac, algo que obrigou o governo Bolsonaro a desistir da aventura insana de barrar a chinesa Huawei do leilão de 5G. No Chile, único país que imuniza velozmente na região, mais de 90% das doses aplicadas são da vacina da Sinovac, sobrando à da Pfizer/BioNTech cerca de 8%. A Argentina, por sua vez, depende principalmente da Sputnik V.

A vacina da Pfizer/BioNTech é quase exclusivamente aplicada em países ricos. A vacina da Moderna não foi nem sequer oferecida a países em desenvolvimento. A África do Sul adquire o imunizante da Oxford/AstraZeneca por mais de duas vezes o preço pago pela União Europeia. A África inteira, com população de 1,3 bilhão, só garantiu 300 milhões de doses para os próximos meses.

Tedhros Adhanom, da OMS, descreveu o cenário como um “fracasso moral catastrófico”. Na hora decisiva da pandemia, o abandono do mundo em desenvolvimento pelos EUA e por seus aliados europeus tende a provocar, ao lado do “fracasso moral”, uma marcante redução da influência global das potências ocidentais. A sombra destrutiva de Trump ainda pesa sobre a Casa Branca.


Fernando Gabeira: Para dizer nunca mais

Tanto falamos numa frente para combater Bolsonaro, centro, centro-direita, centro-esquerda, empurra para lá, empurra um pouco para cá, tentamos encher com nossos desejos e preconceitos o ônibus que nos levaria para longe dessa grotesca versão de governo.

Olhando o cotidiano, observo que essa frente até mais ampla e generosa do que projetamos acabou se formando em torno do tema crucial: a rejeição ao papel de Bolsonaro na pandemia.

Mesmo os presidentes do Senado e da Câmara, eleitos com o apoio de Bolsonaro, tentam se distanciar dele quando o tema é a Covid-19.

De certa maneira, a maioria compreendeu Bolsonaro: 56% dos entrevistados na pesquisa do Datafolha o consideram incapaz para dirigir o país.

Isso pode ser uma boa notícia para as eleições. Mas seria um erro monumental pensar em eleições quando temos diante de nós um caminho complexo e tortuoso como o combate à pandemia.

O líder do governo disse, no auge dos recordes letais da pandemia no Brasil, que a situação do país é “até confortável”. É uma declaração estapafúrdia, que os fatos esmagam. Noto, entretanto, que mencionou na mesma fala a existência da oposição a Bolsonaro.

Ocorreu-me pensar que o líder considera que a oposição verbal a Bolsonaro é também algo que está dentro da zona de conforto.

A existência de uma pandemia devastadora e de uma frente ampla contra Bolsonaro pede mais que uma oposição verbal. Ele se incomoda quando o chamam de “genocida” ou mesmo de “pequi roído”.

Certamente, vai se incomodar mais quando essa frente ampla multiplicar suas ações em todos os níveis do combate à pandemia.

Quando escrevi que os governadores e a sociedade deveriam avançar no caso das vacinas, alguns acharam que não havia salvação fora do poder federal. Felizmente, a realidade mostrou que é possível agir. Governadores do Nordeste conseguiram fechar negócio para comprar 37 milhões de doses da Sputnik V. Na verdade, a realidade já mostrara antes disso que foi a iniciativa de São Paulo que garantiu afinal a maior parte das vacinas que imunizam neste momento cerca de 5% da população.

Ficou evidente também que o governo não tem o monopólio das relações externas. Na verdade, seria um absurdo colocá-las nas mãos de um chanceler extremista como Ernesto Araújo.

O caminho diplomático não se resume a comprar vacinas. Os governadores tentam convencer a OMS da urgência da remessa da compra de três milhões de doses, já efetuada junto ao Covax, consórcio que busca democratizar a venda de vacinas.

Lula propôs que Biden se encontre com outros líderes mundiais e discuta esse ponto central das vacinas no mundo. Aliás, Biden já participou de um encontro para garantir vacinas a alguns países asiáticos.

Os Estados Unidos têm 30 milhões de doses da vacina de Oxford estocadas em Ohio. Ela ainda não foi aprovada pelas autoridades sanitárias de lá. Parte será doada ao México.

A vacina de Oxford seria útil aqui. Poderíamos comprá-la, se for o caso, ou mesmo pagar com as doses que a Fiocruz produzirá no segundo semestre. Essas manobras diplomáticas não são simples. Mas os governadores poderiam tentar.

Tudo o que fizermos agora, seja no nível diplomático, seja no da própria sociedade, é um ato dessa frente ampla que se formou não apenas contra a Covid-19, mas contra seu principal aliado objetivo: Jair Bolsonaro.

Não importa o que aconteça lá na frente. Quando tivermos eleições, certamente a frente ampla terá amadurecido não só a ponto de ajustar as contas com Bolsonaro na Justiça, mas também para redefini-lo como o adversário comum.

A realidade nos trouxe uma tragédia que pode nos custar meio milhão de mortos. Mas, depois dela, saberemos dizer: nunca mais. 


Elio Gaspari: Jennifer Doudna, a Decodificadora

Livro é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza.

Está nas livrarias “A Decodificadora”, de Walter Isaacson (foto). Num tempo de Covid, Bolsonaro, cloroquina e “gripezinha”, é uma vacina para a alma. Conta a vida da cientista americana Jennifer Doudna, prêmio Nobel de Química do ano passado.

Quando parece que o mundo vai acabar, algo de bom acontece. Em junho de 1940, os alemães haviam entrado em Paris, mas a americana Sylvia Beach resolveu reabrir sua livraria Shakespeare & Co. Vendeu apenas um exemplar de “...E o Vento Levou”. Dias depois, Hitler visitou a cidade, mas alguém estava lendo uma boa história.

Jennifer Doudna pesquisou um método de edição de genomas chamado CRISPR. Em português, “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”. Felizmente, mesmo com um tema agreste, Isaacson é capaz de lidar com essas coisas de forma compreensível. Com sucesso, já contou a vida de Steve Jobs e Albert Einstein. Grosseiramente, o CRISPR é um método de “copia e cola” de sequências genéticas. Graças a ele, criaram-se vacinas contra a Covid em menos de um ano.

“A Decodificadora” é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza. Quando criança, no Havaí, ela viu o mistério das plantas “não me toques”, aquelas que abrem e fecham suas folhas ao passar dos dedos.

Num mundo em que um presidente de Harvard disse que mulheres não têm aptidão para a ciência, Doudna ralou, mas mostrou o tamanho da bobagem. (O economista Larry Summers perdeu o emprego.)

Isaacson publicou sua biografia de Steve Jobs quando todo mundo estava familiarizado com os computadores. “A Decodificadora” apareceu no meio de uma pandemia e explica o mundo das vacinas, mas ainda parece difícil entender um universo com DNA, RNA de interferência ou as bactérias que se defendem de vírus. Mesmo assim, algum esforço ajuda as pessoas a se proteger de algo pior: a superstição.

No dia 12 de março do ano passado, Jennifer Doudna ia buscar o filho num torneio de robótica, quando recebeu uma mensagem avisando que o evento havia sido cancelado e todos os jovens deviam voltar para casa. Era o lockdown.

Naquele mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro dizia, no Palácio da Alvorada:

— Eu acho... Eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.

Quando Bolsonaro expunha suas crenças, na Alemanha, o casal de médicos Ugur Sahin e Ozlem Türeci firmou uma parceria com a Pfizer para produzir uma vacina que transporta informações genéticas, o tal RNA Mensageiro. A dupla sabia que o Coronavírus resultaria em algo muito diferente das “outras gripes”. Sua vacina já foi aplicada em cerca de 20 milhões de pessoas. Em novembro, a empresa fundada pelos dois valia US$ 21 bilhões. Tornaram-se uma das famílias mais ricas do país e continuam no mesmo apartamento. O casal contará sua história num livro que sairá no fim do ano.

(O Ministério da Saúde brasileiro só comprou vacinas da Pfizer na semana passada.)

Boa ideia

Corre no Conselho da Justiça Federal do STJ uma ideia que parece boa, simples e barata. É a criação de Varas de Inquérito.

Sem precisar criar um só cargo, separam-se nas ações penais os juízes que cuidam de inquéritos e aqueles que prolatam sentenças. Na prática, se o Sergio Moro estivesse numa vara de inquérito, poderia fazer tudo o que fez, mas quando chegasse a hora da ação penal, o caso iria para outro juiz.

Essa mudança pode ser feita sem grandes sobressaltos e sem novas despesas. Tem a vantagem de impedir o surgimento de novas repúblicas de Curitiba ou, pelo menos, tornar mais difícil o seu aparecimento.

Santos Cruz

Para quem sonha com a possibilidade de trazer o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz para uma disputa eleitoral, vale a pena lembrar que lhe foi oferecida a candidatura a prefeito do Rio, e ele recusou.

General em armação política é coisa que não acaba bem. O vice-presidente Hamilton Mourão não é metade do que lhe disseram que seria.

Há cerca de meio século, um pedaço da oposição transformou o general Euler Bentes Monteiro em candidato na eleição (indireta) de 1978.

Euler era um oficial de vitrine, rigoroso, cordial e bom administrador. Perdeu, foi para seu sítio e morreu em 2002. A oposição que havia cortejado estava no poder e mal se lembrou dele. Seu obituário foi noticiado abaixo do registro da morte da inesquecível porta-bandeira Mocinha, da Mangueira.

Bolsonaro x Lula

Quando Jair Bolsonaro disse, com toda naturalidade, que Lula ficará inelegível, mostrou que acredita num salto triplo carpado, partindo das virtudes contorcionistas do ministro Nunes Marques.

Se ele pular logo, ficará feio. Se demorar, poderá ser tarde.

Datafolha no Planalto

Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.

Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.

Com 79% dos entrevistados achando que a peste esta fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.

Bolsonaro e o sítio

Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.

No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá, e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.

Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é.

No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.

As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.

Em 1981, procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.

Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.

Isolamento social

Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.

Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.

Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos 15 já foram embora.


Míriam Leitão: A palavra que habita em nós

Genocídio. Por que a palavra ficou tão presente na vida brasileira? Porque ela é usada quando um povo está morrendo. Nós estamos morrendo. Todas as outras palavras parecem pálidas. Prisioneiros de uma armadilha institucional e trágica, os brasileiros morrem diariamente aos milhares. Os remédios usados no tratamento extremo, a intubação, estão acabando, e o país está numa macabra contagem regressiva de quantos dias durarão os estoques. O que acontecerá se os medicamentos acabarem antes de serem repostos? Seremos intubados sem sedativos ou sufocaremos? Nós não estamos apenas morrendo. Caminhamos para morrer em maior número e de maneira mais cruel. Que nome deve ser usado? Genocídio.

A palavra habita nossas mentes porque estamos vendo os fatos, temos consciência do destino. Objetivamente, é a única que temos para descrever os eventos deste tempo. Quem se ofende com ela, se fosse pessoa com sentimentos humanos, teria reagido para evitar a tragédia. Nós sabemos sinceramente que nada podemos esperar de quem empurrou o país para este momento de barbárie.

A armadilha em que estamos é que não há remédio institucional fácil, e suficientemente rápido, para neutralizarmos o agente de nossa própria morte. Não temos legítima defesa. Os democratas respeitam as regras do jogo constitucional. O constituinte não pensou que haveria um tempo assim tão perigoso em que o governante atentaria contra a vida coletiva. Na Constituição está escrito que a saúde é um direito do povo e um dever do Estado. Esse é o primeiro princípio, de uma infinidade de outros, que está sendo quebrado.

O presidente da República convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal para participar de um comitê de combate à pandemia. Estranho, porque ele nunca combateu a pandemia. Ao mesmo tempo, ingressou no Supremo contra três governos estaduais que tomaram medidas para reduzir a circulação de pessoas e, portanto, do vírus. O ministro Luiz Fux perguntou aos colegas se devia ir e recebeu a aprovação. Fux vai para um “diálogo institucional”, mas já avisou que não participará de uma comissão formal. Não existe meia entrada nessa reunião. Jair Bolsonaro está em litígio com os governadores. Se o STF vai julgar essas ações não pode participar de diálogo algum. É uma armadilha. Mais uma.

O que mais ele terá que fazer? Quantas mortes serão suficientes? Quanto fel ele ainda terá que destilar? Até quando os poderes da República vão acreditar que estão diante de um governo normal, com o qual se pode ter diálogo?

Desde o início desta pandemia o presidente da República escolheu seu lado. Não é o da vida. Diariamente ele maquina o mal. Ficou contra cada medida que poderia evitar mortes. Seu governo se nega a fazer a coordenação que, numa federação centralizada como a nossa, cabe à União. Ele não apenas se omite, ele age. Bolsonaro sabota a ação do aparato de Estado que o país construiu. O Ministério da Saúde é uma sombra do que foi, do que poderia ter sido nesta crise. A demolição institucional continua sendo executada com crueldade.

O presidente é pessoa de extrema perversidade. Mas um perverso com método. Ele apostou, desde o início, que a melhor forma de se salvar é defender que a economia deve continuar funcionando. Calculou que a imunidade coletiva chegaria e nesse momento ele diria que estava certo desde o início. Então a raiva da população ferida poderia ser dirigida contra os outros. Que outros? Todos. Governadores, prefeitos, ministros do Supremo, adversários políticos, jornalistas. Qual a variável de ajuste dessa equação? Os mortos. Podem ser quantos forem até que se atinja a imunidade coletiva que, na sua visão, viria da contaminação em massa. Bolsonaro certa vez comparou o coronavírus à chuva. “Ela vai molhar 70% de vocês”. Bolsonaro está errado desde o início. A ciência nos ensina que diante deste vírus mutante e mortal a imunidade coletiva só virá com a vacinação em massa.

O presidente adotou conscientemente o caminho de nos levar para esta exposição máxima ao vírus porque desta forma se chegaria, na cabeça dele, ao fim da pandemia. O caminho está errado sob todos os pontos de vista: médico, científico, humano. Ele está nos levando para a morte. Qual é a palavra exata? Genocídio.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro é tetra

Jair Bolsonaro é tetra. Eleito com discurso moralista, o presidente já tinha três filhos sob investigação. Agora vê o quarto, Jair Renan, entrar na mira da Polícia Federal.

Aos 22 anos, o caçula da família virou alvo de inquérito por suspeita de tráfico de influência. Ele tem usado o sobrenome para abrir portas em Brasília. Circula com empresários, recebe presentes e se reúne com autoridades fora da agenda oficial.

Em agosto passado, o Zero Quatro esteve com o secretário especial da Cultura, Mario Frias. O jovem disse ter tratado de interesses do setor de games. Dois meses depois, seu pai reduziu as alíquotas do IPI sobre jogos eletrônicos. Na contramão do aperto fiscal, a União abriu mão de arrecadar cerca de R$ 80 milhões até 2022.

Em novembro, Jair Renan levou empresários ao gabinete do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. O grupo queria apresentar um projeto de habitação popular a ser financiado pelo governo. A pasta informou que o Zero Quatro esteve no encontro “na qualidade de ouvinte”.

Ao que tudo indica, um ouvinte bem remunerado. Reportagem do GLOBO revelou que a empresa presenteou Jair Renan com um carro elétrico avaliado em R$ 90 mil. A firma ainda doou placas de granito para o escritório da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, registrada em nome do caçula do presidente.

A troca de favores também marcou a inauguração do negócio de Jair Renan. A “Folha de S.Paulo” mostrou que a Astronauta Filmes registrou a festa sem cobrar pelo serviço. Em 2020, a produtora recebeu ao menos R$ 1,4 milhão dos cofres federais.

O advogado do clã, Frederick Wassef, nega qualquer irregularidade. No ano passado, ele negou ter escondido Fabrício Queiroz na sua chácara em Atibaia.

A abertura de inquérito na PF faz de Jair Renan o quarto filho do presidente sob investigação. Flávio Bolsonaro, o Zero Um, já foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Carlos, o Zero Dois, é suspeito de reproduzir o esquema da rachadinha na Câmara Municipal. Eduardo, o Zero Três, é alvo de uma apuração preliminar da Procuradoria-Geral da República pela compra de imóveis com dinheiro vivo.

Os quatro casos têm a marca do patriarca da família. Bolsonaro ensinou os filhos mais velhos a transformar a atividade parlamentar num negócio lucrativo. Em 28 anos na Câmara, ele também nomeou funcionários fantasmas e engordou o patrimônio com transações em espécie. No caso de Jair Renan, a lição foi pelo exemplo. O caçula ainda não entrou na política, mas já ganha dinheiro com o nome do pai.

O mundo de Guedes

É comovente o esforço de Paulo Guedes para se eximir de responsabilidade pela combinação de inflação, recessão e aumento da pobreza. Em entrevista ao jornal espanhol “El Mundo”, o ministro culpou a oposição pelo derretimento da moeda brasileira. Disse que há uma campanha orquestrada para manchar a imagem do país no exterior. No Chile de Pinochet, onde ele viveu nos anos 80, o governo não precisava se preocupar com essas coisas.