O Globo
Malu Gaspar: Anular processos não apaga a história
É dos anos 90 uma das mais bem-sucedidas operações-abafa de um escândalo de corrupção na história brasileira. Numa quinta-feira de 1993, agentes da Polícia Federal descobriram no banheiro da casa de um diretor da Odebrecht em Brasília pilhas de documentos incriminadores. Havia de tudo nas 18 caixas e centenas de disquetes levadas pelos policiais: relatórios sobre negociações subterrâneas, contabilidade de doações não declaradas para campanhas eleitorais, listas de obras com os nomes de políticos, acompanhados de porcentagens e valores, até pedidos de liberação de verbas com assinaturas de prefeitos e governadores, já prontos para ser apresentados pelas próprias empresas à Caixa Econômica Federal.
Vivia-se o auge da CPI do Orçamento. A papelada deu origem a um relatório bombástico, lido em plenário pelo senador José Paulo Bisol, do PSB do Rio Grande do Sul. Bisol, porém, cometeu um erro primário ao propagar que um documento com o organograma formal da empreiteira era, na verdade, um mapa de organização criminosa.
Em sua reação, Emílio Odebrecht explorou o deslize ao máximo. Numa entrevista coletiva tão performática quanto a leitura de Bisol, acusou o senador de perseguição, ignorância e má-fé. O argumento colou na imprensa da época e mobilizou mais de 300 deputados e senadores para enterrar a CPI. Conseguiram. A única consequência prática do escândalo foi a popularização da expressão “trezentos picaretas”, cunhada pelo então oposicionista Luiz Inácio Lula da Silva para designar os parlamentares.
Dezesseis anos e um mensalão depois, em 2009, os alvos da Polícia Federal foram executivos e dirigentes de outra empreiteira, a Camargo Corrêa. A operação, batizada Castelo de Areia, pilhou um esquema de pagamento de propinas e desvios de recursos de obras como a Refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Segundo a investigação, o dinheiro desviado era remetido ao exterior por doleiros, usando empresas de fachada e contas offshore em paraísos fiscais. Mas a investigação acabou anulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A corte considerou que as provas coletadas não eram válidas porque a apuração começara a partir de uma denúncia anônima.
Em 2014, o esquema voltou à tona. Descobriu-se, de novo, que as empreiteiras patrocinavam campanhas eleitorais e interesses particulares de políticos de todos os calibres e partidos com o dinheiro desviado de estatais como Petrobras, Eletrobras e Transpetro. Batizado petrolão, o escândalo deu impulso à Operação Lava-Jato.
Dessa vez, as investigações foram mais longe. Renderam 295 prisões, 140 delações premiadas, a devolução de R$ 4,3 bilhões aos cofres públicos e impulsionaram um processo de impeachment. Mas, como nos outros casos, o dia da desforra chegou. A revelação dos desvios indicados nas mensagens de celular trocadas por procuradores — e captadas ilegalmente por um hacker — criou um clima favorável à anulação de condenações e denúncias.
Sob o argumento de que o foro em que tramitavam não era o correto, foram anuladas as condenações dos ex-presidentes Lula e Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco. O mesmo argumento levou à suspensão de ações contra o atual presidente da Câmara, Arthur Lira. Questões processuais já tinham enviado para a gaveta o processo contra o senador José Serra.
Todas essas decisões, comemoradas efusivamente por uns, discretamente por outros, têm enorme serventia político-eleitoral, ajudam a construir narrativas. Mas, embora a morte dos processos por inanição seja bastante provável, ainda é cedo para dizer que a Justiça tenha decretado a inocência de quem quer que seja. Fernando Collor de Mello, afastado da Presidência da República em 1992, só foi declarado inocente pelo Supremo — por falta de provas —em 2014.
Por ora, tais desfechos só provam mesmo duas coisas.
A primeira é que, no Brasil, quando o assunto é corrupção, a história se repete. Escândalos abalam a política, as investigações apontam culpados e, mais cedo ou mais tarde, os processos são sepultados por decisões judiciais que raramente entram no mérito das acusações.
A segunda, e mais importante, é que a história não se anula, muito menos a canetadas. Por mais que se queira esquecê-la ou distorcê-la, de tempos em tempos ela volta a nos assombrar. Quando isso acontece, acumulam-se os prejuízos, aumenta a insegurança jurídica e se reforçam narrativas políticas cada vez mais simplistas e muitas vezes irresponsáveis.
A história cobra um preço alto quando se ignoram suas lições. Quem paga somos todos nós. E não só com dinheiro, mas com um pedaço do nosso futuro.
Merval Pereira: Cabeça de juiz
A novela do julgamento de Lula pode chegar a um fim hoje, se o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a Segunda Turma, que decidiu pela suspeição do então juiz Sergio Moro, poderia fazê-lo mesmo antes de ser definida a questão da competência da Vara de Curitiba nos julgamentos da Lava-Jato.
Mas, como em cabeça de juiz ninguém sabe o que se passa, a dizer que julgam com independência — a evolução da tecnologia médica não permite mais dizer que não se sabe o que tem em barriga de grávida nem em fralda de bebê —, existem algumas situações peculiares neste julgamento de hoje.
O decano do STF, ministro Marco Aurélio, não concordou com a afetação do processo ao plenário, mas, vencido pela “douta maioria” — nesse caso não tão douta assim, na sua opinião —, já votou a favor da manutenção dos processos em Curitiba, e pode votar outra vez, já que disse que a suspeição de Moro é bem mais importante. O ministro é sempre elogioso ao trabalho de Moro na Operação Lava-Jato e, com seu voto, pode ajudar a impedir que seja confirmada a suspeição dele.
O ministro Alexandre de Moraes disse na sessão anterior que não é possível afirmar que o julgamento pelo plenário significa desrespeito ao princípio do juiz natural: “A estrutura da Corte privilegia o plenário, e as turmas só foram criadas devido ao excesso de trabalho do tribunal”. Com essa posição, é provável que defenda que o plenário tem preferência às turmas. Mas não significa que concorde ou não com a suspeição de Moro.
A ministra Rosa Weber convocou para assessorá-la durante o julgamento do mensalão o juiz Sérgio Moro, que era famoso apenas no círculo jurídico como especialista em combate à corrupção, não a celebridade de hoje. Ela tem melhores condições que qualquer outro para julgar se Moro é um juiz suspeito.
O ministro Nunes Marques é contabilizado como um dos quatro votos certos a favor de que a Segunda Turma tinha condições de julgar a suspeição naquela sessão, pois votou na ocasião, embora contra, para surpresa do ministro Gilmar Mendes. Mas pode alegar que, hoje, com a decisão tomada pelo plenário sobre a incompetência da Vara de Curitiba, considera que aquela questão se sobrepõe à suspeição.
Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, o plenário não é órgão revisor das turmas. Mas, nesse caso, seria uma análise técnica, não uma revisão. *
Nesse caso, o resultado é imprevisível. Já temos três votos pela suspeição dados na Segunda Turma —Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — e um a favor de Moro, por Nunes Marques. Alguns ministros já se pronunciaram favoravelmente em várias oportunidades sobre a Operação Lava-Jato, como o presidente Luiz Fux e os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. Assim como fizeram, contra, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
Na visão de Fux, a discussão envolvida no caso é relevante, pois pode afetar outros processos da Lava- Jato e “atingir um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção”. A sombra que paira sobre o julgamento, os diálogos entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sergio Moro divulgados depois de ter sido roubados por um hacker, sofreu um golpe com o laudo da Polícia Federal afirmando que não há possibilidade técnica de atestar sua veracidade ou origem. O laudo não apagou da mente dos ministros a impressão causada, mesmo que digam que não o usaram nas decisões, mas colocou concretamente a possibilidade de que tenham sido alterados.
A suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá criará uma situação esdrúxula: o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento a Lula em troca de benefícios recebidos durante seu governo, será também absolvido, assim como o ex-executivo Agenor Franklin Medeiros, ambos condenados no mesmo processo. O mesmo acontecerá nos demais processos contra Lula, caso o benefício seja estendido a eles pelo ministro Gilmar Mendes, novo relator da Lava-Jato na Segunda Turma do STF.
Míriam Leitão: O Brasil pode ser o verde da Terra
Não há palavras que desatem os atos de Bolsonaro e de Ricardo Salles na área ambiental. O Brasil vai se sentar na reunião de hoje como vilão, quando poderia ser respeitado por ser o país que é: uma potência ambiental, dono da maior parte da maior floresta tropical, o G1 da biodiversidade. O presidente brasileiro prometerá aumentar a fiscalização mas, na verdade, ela está sendo desmontada. A carta dos servidores do Ibama mostra que eles estão sofrendo assédio. O ministro os impede de trabalhar. É também por cumprir seu dever que Alexandre Saraiva foi exonerado da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas.
Ibama, ICMBio, Funai estão sob ataque do presidente e do ministro do Meio Ambiente. O INPE foi ameaçado. O projeto de Bolsonaro de interferir na Polícia Federal deu certo e a exoneração de Saraiva é prova cabal. Com esse histórico, Bolsonaro não poderá falar que vai aumentar as ações de comando e controle na região. Não será crível.
Uma alta autoridade do governo brasileiro foi a uma reunião com um grupo de embaixadores dos Estados Unidos e países europeus. Várias autoridades foram chamadas no último mês. O relato do que foi dito lá mostra que não adianta ter conversa para inglês ver.
– Para minha surpresa o tom dos embaixadores foi duríssimo. A gente tem que agir rápido, a narrativa de que eles destruíram as florestas deles, e nós, não, é muito ruim. Se a conversa for pedir dinheiro, não vai pra frente. É preciso pôr em duas páginas quais são os compromissos para os próximos dois anos. Tem que levar algo concreto. Essa é a única forma de apaziguar e virar essa página — afirmou a autoridade.
O governo brasileiro foi avisado. Pelos embaixadores, pelos gestores dos grandes fundos globais, pelos bancos privados brasileiros, pelas grandes empresas, pelo agronegócio exportador. Bolsonaro insiste em seu projeto e tem ajuda. Salles é a motosserra. Ele diariamente derruba uma pedaço do edifício regulatório brasileiro com portarias e instruções normativas. Usa o espaço infralegal para conspirar contra as leis ambientais do país. Exatamente como avisou que faria naquela famosa reunião ministerial. A instrução normativa que obriga o fiscal a submeter a multa que aplicou a um superior hierárquico foi apenas uma de inúmeras normas. O vice-presidente Hamilton Mourão tem sido usado como um biombo. Ele conversa, ouve, impressiona bem, mas é deixado de lado. E, quando cobrado por algum interlocutor, diz que não tem poderes.
Salles usa também o truque de se apropriar de termos para impressionar. Quando ele fala de “bioeconomia”, não está se referindo ao conceito desenvolvido por alguns especialistas, como o climatologista Carlos Nobre, para defender uma nova economia a partir da nossa rica biodiversidade. A “bioeconomia” que Salles quer é a dos madeireiros e garimpeiros ilegais.
Quando Bolsonaro falar de regularização fundiária, os governantes estrangeiros devem saber que ele está se referindo aos projetos de legalizar a grilagem, como os que já apresentou ao Congresso. Quando falar em apoio às populações indígenas, ele está se referindo ao projeto já enviado ao Congresso que permite mineração, exploração de petróleo e pecuária em terras indígenas.
Apesar de tudo, a sociedade brasileira tem encontrado seu caminho para falar com o mundo. A Carta dos Governadores é resultado de lenta costura entre os chefes de executivo estaduais, iniciada pelo governador Renato Casagrande, do Espírito Santo. Na carta, eles fazem valer o princípio federativo. Lembram que representam mais de 90% do território nacional, propõem aumentar a “ousadia das NDCs”, (as metas nacionais), e dizem que os estados possuem fundos e mecanismos criados para “responder à emergência climática”.
Sugerem uma parceria para deter o desmatamento e para restaurar. Lembram que será preciso “reflorestar uma área do tamanho do território dos Estados Unidos” e, completam, “O Brasil pode ampliar o verde da Terra não apenas na Amazônia, mas também em biomas de grande capacidade de captura de carbono, inestimável biodiversidade e relevância socioeconômica como o Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e o Pantanal”. Os governadores entenderam. A mudança climática é também a oportunidade da nova economia. É o “green new deal”, um tempo aberto pra nós.
Zeina Latif: O presidente não sabe surfar
Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal, e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio
Empolgados com a expressiva alta dos preços de commodities, analistas apostam em um ciclo robusto adiante, em boa medida por conta das perspectivas de vacinação em massa no mundo. Os países emergentes se beneficiariam com o influxo de capitais estrangeiros, para além da melhora do saldo exportador.
Haveria mais investimento nesses setores e em ativos de risco, pela própria percepção de redução do risco nos países - como sugerem as elevadas correlações entre preços de commodities e o custo (spread) da dívida soberana ou o preço do seguro contra calote (credit default swap) de emergentes.
O otimismo tem contribuído para sustentar preços de ativos. Convém, no entanto, conter o entusiasmo, especialmente para o caso brasileiro.
O principal combustível para a alta das commodities é o comércio mundial, que exibiu recuperação em formato de “V” e embalou a alta de 68% nos preços de commodities entre o colapso de abril passado e março último, pelo índice do FMI. Certamente a elevada liquidez mundial tem sua contribuição, por se tratar de um preço de ativo.
A tendência, porém, é de desaceleração do comércio mundial, pois fatores transitórios explicam em boa medida sua recuperação: a recomposição de estoques de commodities pela China, os estímulos monetários no mundo e própria normalização de cadeias de valor.
Avanços adicionais dependerão de mais elementos, sendo que a superação da pandemia significará muito mais a reativação do setor de serviços do que de setores intensivos no uso de commodities, mais preservados na crise.
Vale lembrar que o comércio mundial estava estagnado antes da crise, em função do protecionismo no mundo e da desaceleração na China.
A China acelerou seus planos de rebalanceamento do modelo de crescimento voltado a setores intensivos em tecnologia, em detrimento da indústria tradicional -, aliás, a disputa tecnológica está no cerne da guerra comercial entre China e Estados Unidos. Esses segmentos, no entanto, não são intensivos na utilização de commodities e tampouco o retorno do maciço investimento estatal está garantido, ainda menos de forma tempestiva.
A complexidade da implementação e da maturação de projetos de tecnologia não se compara à de investimentos tradicionais em capital fixo. É natural, portanto, que ocorra uma desaceleração na China, inclusive pela acomodação na oferta de crédito após os estímulos recentes.
Em relação a agendas globais, ainda não chegou o momento do multilateralismo no comércio. O foco tem sido muito mais na questão ambiental, que ganhou ímpeto com Joe Biden. Mantém-se o quadro de protecionismo comercial, inclusive com risco de recrudescimento, por conta das exigências da agenda ambiental.
Mesmo que o ciclo de commodities perdure, é improvável que o Brasil consiga “surfar a onda” como no passado.
No primeiro governo Lula, isso foi possível. A política macroeconômica herdada de FHC foi fortalecida e houve avanço em políticas públicas que contribuíram para aumentar o potencial de crescimento de longo prazo do País e a emergência da nova classe média.
Apesar da crise política que interrompeu precocemente as reformas, o Brasil conseguiu se beneficiar do vento de popa do exterior, decorrente da entrada da China na OMC no final de 2001, e caminhou para conquistar o grau de investimento em 2008.
O quadro atual é outro. Já assistíamos à redução da participação do Brasil no investimento direto estrangeiro mundial e à saída de empresas do País. A má gestão da crise da pandemia agravou bastante a situação, sendo que a deterioração do regime fiscal em curso traz mais incertezas para o comportamento do dólar, das taxas de juros e da própria carga tributária no futuro.
Tudo somado, o cenário eleitoral ganha maior relevância no radar de empresários e investidores.
O governo está em um círculo vicioso de decisões equivocadas. O imbróglio do orçamento reflete erros passados na gestão da crise e sua suposta solução - que amplia os gastos públicos praticamente sem constrangimento, pendurando tudo na conta da covid-19 - produz outros tantos.
Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio.
Esse quadro reduz as opções para correções de rumo. Mesmo se houvesse interesse, o esforço teria de ser enorme diante da perda de credibilidade. As saídas se estreitam e o Brasil perde a onda.
Elio Gaspari: De Zappa@edu para Bolsonaro@gov
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente
Presidente,
O senhor implica com os diplomatas profissionais e chega a ironizar suas boas maneiras. Como disse um colega, alguns arrumam melhor os talheres numa mesa que os pronomes numa frase. Escrevo-lhe com a autoridade de quem, no século passado, serviu como embaixador em postos para os quais o creme de barbear chegava por mala diplomática (Pequim, Hanói, Maputo e Havana). Eu evitava usar smoking, porque seria confundido com garçom.
Amanhã o senhor começará a participar da Cúpula do Clima e terá momentos difíceis. Acho que posso ajudar com uma ideia simples: deixe a diplomacia com os diplomatas profissionais. Teste-os, enunciando uma tolice. Quem concordar, profissional não é.
Na diplomacia, não há lugar para ganhadores nem para perdedores. Isso é coisa de militares. Às vezes o vencedor finge que perdeu e dá ao perdedor a chance de dizer que ganhou. Conversa de diplomata? Talvez o senhor esteja entre aqueles que consideram o americano Henry Kissinger um grande diplomata. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas abandonou o Vietnã à própria sorte depois de massacrar parte de sua população numa guerra perdida. Eu vivi lá e sei o que houve. Grande marqueteiro, isso sim.
O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente. Depois de delirar na virtude de ser um pária, seu governo não deve apresentar contas. Sua carta ao presidente Joe Biden foi longa demais porque muita gente meteu a colher.
Nós já compramos causas perdidas. Apoiamos o colonialismo português na África, ficamos com os chineses de Taiwan, mesmo depois que os americanos se acertaram com a China. Votávamos nas Nações Unidas com Portugal por causa da pressão de meia dúzia de comendadores do Rio de Janeiro. Saímos dessa encrenca. Mais difícil foi aguentar as implicâncias com o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. O senhor implicou com a vacina chinesa. Para quê?
Diplomatas consertam vasos quebrados desde os tempos coloniais. Eles sabem lidar com o ritmo e o tom nas crises. Na questão da Amazônia, o Brasil precisa apenas voltar a ser ouvido. Deixamos de sê-lo porque deliramos. A irracionalidade não é invenção nossa. Veja o caso dos Estados Unidos na Amazônia. No século XIX, eles queriam mandar para lá seus negros. No início do XX, Henry Ford delirou querendo transformar um pedaço da floresta em seringal particular. Décadas depois, o bilionário Daniel Ludwig teve uma ideia parecida. Deliraram, deram-se mal e foram-se embora.
Existe um espaço enorme para negociarmos projetos relacionados com a Amazônia. Para um exportador de grãos que compete conosco no mercado internacional, vossa política ambiental é um presente.
Pelo que sei, há malandraços oferecendo pontes com a Casa Branca. Não caia nessa. O presidente Biden tem um jeitão de vovô, mas conhece Washington. Para seu caderno de notas: em abril de 1975, as tropas do Vietnã do Norte estavam entrando em Saigon, e discutiam-se recursos para resgatar os vietnamitas que haviam ajudado os americanos. O então senador Biden avisou:
— Voto qualquer quantia para tirar os americanos, mas não quero me meter com operações para retirar vietnamitas.
Eu servi lá e nos Estados Unidos. Sei quanto isso custou aos dois povos.
Atenciosamente,
Ítalo Zappa.
Bernardo Mello Franco: Os estribos do general
O novo ministro da Defesa está empenhado em agradar o chefe. Walter Braga Netto estreou no cargo com uma exaltação ao golpe de 1964. Em seguida, passou a usar cerimônias militares para endossar o discurso do capitão.
Ontem o general aproveitou a troca de comando do Exército para fazer mais um comício bolsonarista. Às vésperas da Cúpula do Clima, ele tentou rebater as críticas da comunidade internacional pela devastação da Amazônia. “Os brasileiros que estão presentes na região sabem que a floresta continua de pé”, afirmou.
A patriotada não apaga o que as imagens de satélite mostram ao mundo. Ao analisá-las, o Imazon constatou que o desmatamento em março foi o maior para o mês nos últimos dez anos.
Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que “é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso.
O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de “intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições”.
Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI.
O general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão “prontas” e “sempre atentas à conjuntura nacional”. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de “meu Exército”.
Braga Netto assumiu a Defesa no momento em que o presidente cobrava mais manifestações de apoio dos militares. Sua primeira medida foi derrubar o general Edson Pujol, que tentava controlar a exploração política da tropa.
Ontem o ministro se despediu do ex-comandante com um bordão da caserna: “Que nossos estribos se choquem em cavalgadas futuras”.
Vera Magalhães: Campeonato do fim do mundo
“Nesse campeonato do fim do mundo, quando você é muito bem-sucedido, você acrescenta meio grau na temperatura do planeta”, disse, de forma contundente, o escritor e líder indígena Aílton Krenak na última segunda-feira no centro do Roda Viva.
Para ele, é este campeonato que o Brasil, tendo Jair Bolsonaro e Ricardo Salles como técnico e auxiliar, resolveu jogar. E é na condição de líder da tabela desse torneio macabro que o país chega à Cúpula de Líderes pelo Clima, proposta por Joe Biden, que será anfitrião virtual de 40 chefes de Estado a partir desta quinta-feira para marcar a volta dos Estados Unidos à mesa das negociações climáticas, depois de quatro anos de abandono desta agenda por Donald Trump.
Todos os olhos do mundo antes da reunião estão postos sobre o Brasil. Os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia, as queimadas na floresta e também no Pantanal, o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e a reiterada disposição de Bolsonaro de liberar a exploração mineral e de madeira em reservas indígenas, rever demarcações e legalizar terras ocupadas ilegalmente na região amazônica são apenas alguns dos "feitos" pelos quais o presidente brasileiro deverá ser questionado por seus pares.
Embora mantenham a absoluta falta de compreensão a respeito da importância econômica central da agenda climática e ambiental em qualquer fórum global hoje, Bolsonaro e seus auxiliares terão mais uma mostra de sua inadequação para esse debate, pois as cobranças para que se endureça com eles vêm não apenas dos adversários de sempre, como lideranças ambientalistas como Krenak ou a jovem Greta Thunberg, ou artistas como Leonardo di Caprio ou Wagner Moura, mas dos empresários.
Escrevi a esse respeito aqui na coluna na semana passada, e retomo o fio desta meada: Salles só será ameaçado no cargo quando Bolsonaro sentir na pele o risco de mantê-lo, ainda que ele sempre tenha feito exatamente o que o chefe mandou.
Grandes empresas brasileiras sabem o quanto de prejuízo reputacional e de negócios enfrentarão quando se tornar um imperativo para vendas a certificação ambiental de produtos, algo cada vez mais comum. Vale sobretudo para o poderoso agronegócio, até aqui ainda um reduto de apoio ao bolsonarismo, mas que não rasga dinheiro.
A pressão mundial é para que Biden endureça o jogo com o Brasil, não aceitando fazer nenhum acordo com o governo do capitão a não ser que o país reveja sua doutrina ambiental e se comprometa com metas objetivas e mensuráveis de redução de desmatamento e de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.
Bolsonaro ficará ainda mais exposto pelo fato de que os anfitriões querem marcar sua “volta ao jogo” com a assunção de metas ousadas e o anúncio de investimento pesado em conter o aquecimento global, para além da mera retórica.
Sabemos como o presidente brasileiro costuma se comportar em eventos mundiais como a Assembleia Geral da ONU ou o Fórum Econômico Mundial de Davos: como um peixe fora d’água, alguém que sabe que não tem o que dizer para além das quatro linhas das redes sociais e do cercadinho do Alvorada, onde fica seguro na companhia dos seus seguidores fanáticos.
Sem o “amigo" Donald Trump a chancelar o desdém e o discurso negacionista em relação ao Meio Ambiente, Bolsonaro ficará completamente isolado na cúpula. O discurso proferido nesta terça-feira pelo ministro da Defesa, Braga Netto, na linha “a Amazônia é nossa”, mostra que o nacionalismo mofado é a tônica em todas as áreas do Executivo, não só na pasta de Salles.
Parece ingênua, portanto, qualquer esperança de que o Brasil vá ao encontro munido de novos propósitos para deixar a liderança da peleja do fim do mundo. Só fará isso se levar um cartão vermelho de Biden.
Carlos Andreazza: Breve roteiro para a CPI
Participei, ontem, do podcast “O assunto”, comandado por Renata Lo Prete. O tema: a CPI da Covid no Senado. Mais precisamente: as questões a serem investigadas na CPI. São muitas. E merecem desenvolvimento em texto; sobretudo porque clareiam um padrão.
Começo com o caos em Manaus. Está documentado que o Ministério da Saúde fez escolhas ali. Nada a ver com lentidão em dar respostas. Escolhas consistentes com o conjunto de posições que tomou ante a pandemia; conjunto com que o governo Bolsonaro opera — o padrão — para prolongar a permanência do vírus entre nós, o que garantirá as condições de desordem radical em que o bolsonarismo prospera.
Escolhas. Por exemplo: mesmo informado de que faltaria oxigênio, promoveu, às vésperas da desgraça, uma caravana pela cidade para difundir a adoção de tratamento precoce. E, no dia mesmo do colapso, mandou 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina ao Amazonas. (Os responsáveis por essa ode a um medicamento ineficaz continuam no ministério; razão mais que suficiente para que Marcelo Queiroga também seja ouvido na CPI.)
Sobre cloroquina/hidroxicloroquina, precisa ser chamado o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, para esclarecer a produção de milhões de comprimidos, com recursos para enfrentamento à peste, pelo laboratório do Exército.
Outra escolha do governo em Manaus: só transferir internados a outras cidades se “em situação extremamente crítica” — esta sendo aquela em que, segundo uma servidora do Ministério da Saúde, os hospitais estivessem “todos superlotados”, com “pacientes dentro de ambulâncias, indo a óbito”. Isso compõe apenas modesta porção dos motivos para inquirir Pazuello, embora não me possa esquecer das acusações — sem nome — que fez ao se despedir. Quem seria a liderança política cujos pedidos não republicanos teria se negado a atender?
Tão importante quanto investigar as escolhas do governo ante a barbárie em Manaus será analisar as várias versões oficiais — informadas e remendadas, inclusive ao Supremo — sobre as datas em que o ministério teria sido notificado sobre a crise iminente. Alguém mentiu. Há um vaivém inaceitável, que sugere trabalho para apagar rastros que comprovariam negligência.
Também será relevante apurar por que chegamos à falta de medicamentos para entubação se havia notificações formais projetando essa escassez desde maio de 2020. E se sabemos que o ministério cancelou, em agosto do ano passado, uma importação desses insumos, mesmo alertado pelo CNS sobre a projeção de insuficiência. Nada se fez. Até a situação atual.
Há as perguntas óbvias: por que o governo se negou, entre agosto e setembro de 2020, a assinar um contrato que teria nos valido doses de vacina já em dezembro, três milhões até março de 2021? Três milhões a mais de doses até o primeiro trimestre deste ano; e isso no momento em que (ainda) dependemos de Fiocruz e Butantan; e isso quando sabemos que o ministério — tendo, afinal, assinado com a Pfizer — há pouco comemorou a antecipação da entrega de um lote do imunizante outrora desprezado. Para maio...
Poderíamos ter três milhões de doses até março, mas ora celebramos um fração disso prevista para o mês que vem. Não me esqueço da justificativa para a recusa: o Brasil não aceitava uma cláusula por meio da qual o laboratório não se responsabilizaria por eventuais efeitos colaterais da vacina; dispositivo idêntico, porém, não tendo sido problema quando do acordo com AstraZeneca/Oxford.
No ano passado, o governo se jactava do que seria sua estratégia para a aquisição de imunizantes: fechar convênios bilaterais (apesar de só ter fechado um em 2020). Não havia estratégia, mas postura contaminada pela pregação ideológica contra o tal globalismo. Razão por que o Brasil, podendo contratar cobertura vacinal para 50% de sua população, optaria por aderir ao consórcio multilateral Covax, liderado pela OMS globalista, com a cota mínima, de 10%. (Convoque-se Ernesto Araújo.)
Há também o episódio CoronaVac, vacina que, até este abril, respondia por mais de 70% das aplicações no Brasil. Um imunizante atacado pelo próprio presidente. A desculpa: o brasileiro não seria cobaia nem teria o seu dinheiro posto na frente por uma vacina ainda não certificada pela Anvisa; e isso como se alguém defendesse vacinar cidadãos antes do aval da agência, e como se o contrato obrigasse pagamento anterior à certificação sanitária do imunizante.
Em 2021, porém, o critério mudou; e se passou a fazer o certo: firmar convênios com laboratórios variados, antecipando-se à avaliação da Anvisa, de modo a ter previsibilidade e ganhar tempo. Foi assim com o imunizante Sputnik V, para cuja aquisição o governo de repente se esqueceu daquele antigo rigor; sendo mesmo o caso de apurar se o lobby da farmacêutica que o fabricará aqui não teria colaborado para a postura expedita.
Registre-se que a representação — que a chegada — desse imunizante no país coincide com a campanha parlamentar, promovida pela base do governo, e sem que Bolsonaro voltasse a temer pelo uso de seu povo como cobaia, para que a Anvisa amolecesse seus controles ou fosse mesmo tornada prescindível; o que também coincide com o projeto para que empresas privadas pudessem comprar vacinas.
Ah, são tantas as questões... Espero ter ajudado.
Míriam Leitão: Os vários pontos de atrito em Brasília
O governo usou ontem a tática de tentar adiar a instalação da CPI para continuar seu bombardeio ao possível relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O grupo dos sete senadores, de oposição e independentes, já está trabalhando na estrutura dos trabalhos e na lista de possíveis convocados. O ex-ministro Pazuello pode ir até mais de uma vez. Primeiro, como testemunha, depois, como investigado. Em outra frente, parlamentares e embaixadores se reuniram para discutir a cúpula do clima. O cantor Caetano Veloso compareceu, como representante da sociedade civil, e deu um recado direto aos diplomatas dos Estados Unidos e países europeus. “Salles é o antiministro e este governo ataca a Amazônia.”
Os dias estão intensos em Brasília nesta semana, com um feriado no meio e uma agenda lotada. A instalação da CPI se desdobra em várias reuniões e negociações sobre a ordem dos trabalhos e dos convocados. “Não temos tempo a perder”, disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele acha que tem que começar pelos ex-ministros da Saúde. Mas há na CPI quem defenda que se chame primeiro os cientistas para mostrar, com dados, como chegamos até aqui e quais são os riscos. A convocação de Paulo Guedes é a dúvida do momento. O ex-ministro Pazuello pode ser convocado mais de uma vez, explicou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ele pode falar primeiro como testemunha. Depois, com o andar da CPI, pode ser novamente convocado, mas como investigado.
Neste início de semana, em que ocorrerá a cúpula do clima, o procurador Lucas Furtado, do MP junto ao TCU, fez uma representação para que o tribunal requeira junto à Casa Civil o afastamento do ministro Ricardo Salles. Essa seria uma medida cautelar até que o tribunal decida sobre várias representações já apresentadas mostrando os erros, desvios de função e políticas danosas ao meio ambiente impostas pelo ministro.
Numa terceira frente o governo negociava o Orçamento. Ou melhor, era pressionado. Se adotasse a estratégia proposta pelos técnicos do Ministério da Economia, ficaria mais fraco no Congresso. A saída arquitetada é vetar partes, preservar a maioria das emendas parlamentares e liberar despesas do controle do teto. Ou seja, está sendo feita uma operação no Frankenstein orçamentário de 2021, para preservar emendas, com medo de uma reação dos parlamentares em ambiente já tenso com a CPI. Ontem, em uma live da XP Investimentos, a ministra Flávia Arruda, da Secretaria de Governo, falou em R$ 100 bilhões a mais fora da meta de primário. Depois, recuou e disse que não havia recebido as contas.
No próprio grupo de oposição mais os independentes há dúvidas. O senador escolhido para ser o presidente da CPI é definido por um senador como “imprevisível”. Esse parlamentar diz que o grupo dos sete na verdade é seis mais um. Sobre o possível relator, Renan Calheiros, ontem foi dia de ataques da milícia digital contra ele. O argumento dos bolsonaristas de que ele seria suspeito por ser pai do governador de Alagoas é fácil de ser rebatido, segundo me disse um dos parlamentares. “A CPI desde o começo foi para investigar as origens, causas e omissões do governo que fizeram o país chegar onde está. O foco é esse”, disse.Ouvi também o senador Randolfe Rodrigues. Ele diz que não há razão para adiar o início dos trabalhos e afirma que o ataque contra Calheiros veio de endereço certo:— O ataque vem das milícias bolsonaristas nas redes sociais e é coordenado diretamente do gabinete do ódio por Carlos Bolsonaro. Eles querem atrasar para tentar desgastar ao máximo o senador Renan Calheiros.
Randolfe esteve em reunião com os embaixadores dos EUA, da União Europeia, Alemanha, Noruega e do Reino Unido para discutir a cúpula do clima e os acordos com o Brasil. Além dele, estavam o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) e o senador Jaques Wagner (PT-BA) e representantes da sociedade civil. No meio, Caetano Veloso.
— A reunião era para deixar claro que somos a favor de recursos para o Brasil, mas queremos acompanhar a aplicação desse dinheiro, e que o dinheiro pode ir também para estados e municípios. Mas quem falou de forma mais clara foi o Caetano. Ele definiu Salles como o antiministro do Meio Ambiente, lembrou que este governo é negacionista e tem o objetivo de devastar o meio ambiente — disse o senador.
Esses mesmos embaixadores se reuniram com autoridades do governo brasileiro. Uma dessas autoridades me disse que nunca viu Estados Unidos e Europa tão unidos numa questão como nesta cúpula do clima.
Merval Pereira: ‘Kigali já’
A Câmara dos Deputados tem uma oportunidade rara de ajudar a recolocar o Brasil no mapa da comunidade internacional em relação à política ambiental com a ratificação, no dia 22, o Dia da Terra, da Emenda de Kigali, um adendo ao Protocolo de Montreal para redução do uso de substâncias com elevado potencial de efeito estufa nas geladeiras, freezers e aparelhos de ar condicionado vendidos no país.
Hoje, 100% do mercado japonês e a maior parte dos países europeus já adotam fluidos refrigerantes de baixo potencial de aquecimento global. Essas tecnologias começam a dominar outros mercados robustos, como o chinês e o indiano. EUA e China anunciaram apoio em conjunto à Emenda de Kigali. Sua aprovação será um aceno diplomático ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que encaminhou ao Senado americano uma orientação por sua aprovação, e também aos demais países da OCDE que estão entre os 119 que já aderiram à emenda.
Biden convidou o presidente Bolsonaro e outros 39 líderes mundiais para o encontro virtual denominado “Cúpula dos Líderes sobre o Clima”, nos dias 22 e 23 de abril, preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, prevista para acontecer de 1º a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia. A ratificação da Emenda de Kigali seria um trunfo para o governo em relação à redução do impacto ambiental e abriria para a indústria brasileira créditos a fundo perdido do Fundo Multilateral para implementação do Protocolo de Montreal, estimados em US$ 100 milhões, para modernizar fábricas e gerar empregos.
O projeto já passou por todas as comissões da Câmara, mas está parado há um ano, sem que seja colocado para votação em plenário. Um manifesto de entidades da indústria e de defesa da eficiência energética, de sustentabilidade e dos direitos do consumidor foi enviado ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira. Coordenador de energia e sustentabilidade do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), uma das organizações signatárias do manifesto “Pela aprovação de Kigali já!”, Clauber Leite diz que a expectativa é que a Câmara sinalize o compromisso do país com a agenda mundial de sustentabilidade apoiando a ratificação.
Além do Idec, apoiam o manifesto entidades como a Abrava (Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento), Eletros (Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos), Fecomércio-SP, Centro Brasil no Clima, Climate Policy Initiative, Instituto Ethos, entre outros. A emenda estabelece metas de redução dos gases hidrofluorocarbonetos (HFCs) em geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.
Os mais utilizados no Brasil são até duas mil vezes mais prejudiciais ao efeito estufa que o dióxido de carbono. “Essa modernização permitiria que a indústria brasileira ficasse alinhada às inovações já presentes em mercados como norte-americano, europeu, chinês e indiano”, diz a carta.
A indústria diz que aprovação da emenda evitará que o Brasil se torne um dos últimos destinos de aparelhos obsoletos, que aquecem o planeta e têm baixa eficiência energética, elevando os gastos das famílias, do governo, da indústria e das empresas em geral com a conta de luz.
O uso de aparelhos eficientes resultaria num impacto de R$ 57 bilhões no Brasil até 2035, de acordo com um estudo do Instituto Clima e Sociedade (iCS) em cooperação técnica com o Lawrence Berkeley National Laboratory (LBNL). Do total, R$ 30 bilhões deixariam de ser gastos na geração de energia elétrica, e outros R$ 27 bilhões seriam economizados pelos consumidores na conta de luz.
“A proteção do planeta precisa ser compatível com o desenvolvimento econômico, e a busca pela eficiência energética e por produtos mais inteligentes é o melhor caminho para aliar essas duas agendas fundamentais”, diz a coordenadora da Iniciativa de Eficiência Energética do iCS, Kamyla Borges, advogada e uma das líderes do movimento pela Emenda de Kigali.
Malu Gaspar: Nas redes bolsonaristas, suposto complô para matar o presidente vira denúncia bombástica
O vídeo em que a jornalista Leda Nagle repercute a postagem de um perfil falso do diretor-geral da Polícia Federal sobre uma suposta conspiração do STF e de Lula no atentado contra Jair Bolsonaro em 2018 incendiou as redes bolsonaristas nesta segunda-feira.
O vídeo de pouco mais de 2 minutos surgiu nas redes logo pela manhã, quando Leda leu os tuítes da conta falsa de Paulo Maiurino, já suspensa pelo Twitter, em uma live privada.
"Minha Nossa Senhora do perpétuo socorro (…) Eu não sei o que fazer, fico tão assustada com isso tudo! Porque isso não é política, né? Isso é tudo, menos política", disse a jornalista, depois de ler toda a postagem falsa em nome de Mairuino.
Imediatamente, foram disparadas mensagens em massa reproduzindo a fake news, e apontando Leda Nagle como a responsável pela suposta apuração.
“A ordem para matar Bolsonaro partiu do STF e Lula! Diretor da Policia Federal Paulo Maiurino fez declaração que pode provocar uma intervenção no país, assistam! Fonte: Jornalista Leda Nagle”, diz um texto replicado em vários grupos.
No início da tarde, Polícia Federal informou que o perfil do diretor, Paulo Maiurino, havia sido falsificado. Leda Nagle chegou a se desculpar publicamente por ter divulgado a informação falsa, mas era tarde.
A narrativa da conspiração foi multiplicada ao longo de todo dia, acompanhada de memes e reproduções de mensagens com apelos por uma ruptura institucional e ataques críticas ao STF e ao PT.
Numa delas, Adélio Bispo, preso pela facada que deu em Bolsonaro durante a campanha de 2018, aparecia dizendo "eram 11, mas só um deu a ordem".
“Estamos neste momento em guerra. Conforme o chefe da Polícia Federal, foi o STF quem mandou matar Bolsonaro. Exigimos o fechamento e a prisão de todos os membros do STF que estão por trás desse crime”, escreveu um bolsonarista em caixa alta.
“As suspeitas de envolvimento do STF na tentativa de assassinato do presidente, se confirmadas, poderão levar a uma reviravolta completa na atual organização política do Estado Brasileiro. E muitas, muitas prisões serão efetuadas”, apostou outro apoiador do presidente, com mais de 10 mil seguidores no Twitter, em publicação replicada em vários grupos do WhatsApp.
No Telegram, um áudio apócrifo contava sobre um suposto relato do senador Roberto Rocha (PSDB-MA) e de um integrante “barra pesada” do Gabinete de Segurança Institucional que "revelava" outros mandantes da falsa conspiração: Jean Wyllys, José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso.
À noite, quando diversas reportagens denunciando as fake news já haviam sido publicadas, o teor das postagens se inverteu.
Aí, o link mais compartilhado era o de uma postagem em um site bolsonarista acusando "gabinete de ódio" da esquerda de “linchar” Leda Nagle e promover fake news a respeito dela.
Em outro vídeo bem popular, o jornalista Alexandre Garcia, também ligado a Bolsonaro, defende a colega. "A ironia disso é que muita gente que está caindo de pau sobre ela inventa notícia todos os dias. Não tem moral para gozar alguém que foi enganada."
Junto com as postagens, uma mensagem bastante reproduzida dizia: "Leda Nagle, o Brasil te Ama".
Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa: ‘Uma morte social mais inquietante’
‘O barulhento Dionísio, convém não esquecer, é ao mesmo tempo o deus do amor e da morte.’ O alerta do sociólogo Michel Maffesoli, em “A sombra de Dionísio”, tornou-se mais atual do que nunca nesta nova Era da Peste. Na madrugada do domingo do carnaval que não houve, 14 de fevereiro, um repórter de São Paulo registrou, caprichando na precisão: “As mais de 237.489 mortes não conseguiram deter realizadores de bailes funk, nos bairros de Itaquera e Guaianases”. Somos os mesmos que nossos ancestrais do século 14.
A Peste chegou à Europa em 1348, junto com embarcações dos comerciantes italianos provenientes do Mar Negro e de Bizâncio. Espalhou-se rapidamente, seguindo as rotas comerciais: cidades do Mediterrâneo, Europa Central e, na sequência, o Norte e as planícies russas. Tudo isso até 1352. As festas da Peste foram documentadas por cronistas da época.
Cerca de um terço da população europeia, algo em torno de 8 milhões de almas, pereceu em apenas uma década. Depois, a epidemia repicou várias vezes, em ondas sucessivas que voltaram a afligir cidades já açoitadas. Os habitantes de Florença logo entenderam os perigos da aglomeração humana, como relata Giovanni Boccaccio (1313-75) no “Decamerão”. Bactérias só foram observadas três séculos mais tarde, mas já se sabia, à época, que a água era fonte de infecções. Tal como na Peste do Vírus dos nossos dias, os ricos fugiram rumo às suas villas, no entorno rural, distanciando-se dos “ares pestilentos”.
Os demais — comerciantes, artesãos e o proletariado original —ficaram, por falta de alternativa. E morreram, às centenas, diariamente. A morte distingue classes, mas, paradoxalmente, opera como grande evento nivelador, que lembra a todos sobre a vanidade da vida. No século da Peste, emergiram, em diferentes pontos da Europa, representações da “Dança Macabra” em que cardeais, príncipes e damas dançam com esqueletos.
Dança e vinho. A festa, celebração da dialética entre vida e morte, acompanhou a pandemia, tanto nas villas do isolamento quanto nas cidades pestilentas. Festejava-se por ainda viver. Rompiam-se as regras para confrontar a morte ou desafiar Deus. Hoje, atribuímos a Covid-19 ao vírus — isto é, às armadilhas da seleção natural. Na peste bubônica, como alguns o fazem ainda agora, creditava-se o horror à vontade de Deus, que castigava os humanos ímpios. Daí, um passo adiante, alguns chegavam à descrença.
Gargalhar na cara do inevitável, do Juízo Final. Dançava-se ao som da música não religiosa, que florescia em formas inovadoras, como o rondó e a balada. Sob o medo da morte, o frenesi da festa resgatava as interações socais que conferem sentido à vida. A música secular difundiu-se justamente no rastro da Peste, rodando as engrenagens do individualismo moderno, com seu “eu lírico”.
Triunfo de Dionísio, o feio e coxo, sobre Apolo, certinho e áureo. Vida e morte: as festas dionisíacas originais, da velha Grécia, terminavam com o sacrifício um tanto violento de um boi, que seria comido por todos num grande ato de restauração e congraçamento. Na festa, “o que importa é a pulsão irreprimível do querer viver que, ao manifestar-se, não mais receia assimilar as ‘pequenas mortes’ sucessivas — ‘sabendo’ que, assim, se protege ritualmente de uma morte social bem mais inquietante” (Maffesoli). Carpe diem.
As autoridades medievais bem que tentaram controlar, mas fracassaram. Os escassos cronistas da época concordam na avaliação de que o comportamento das pessoas ficou pior, não mais piedoso. Dizem, hoje, cenhos carregados, que aglomerar para trabalhar é virtuoso, mas a aglomeração de folguedos atenta, no mínimo, contra um protocolo sanitário e moral. Na Peste, nem todos festejavam. Havia, claro, os que se fechavam nas igrejas, rezando pelo perdão divino — e contribuindo igualmente para os contágios. Os cultos coletivos, antes como agora, não foram proibidos.
Pandemias são continuidade, mais que ruptura. A Grande Peste medieval ajudou a descolar o indivíduo da coletividade, a disseminar a economia monetária e sua riqueza portátil. A festa é parte dessa história, tão antiga e tão próxima.*Sociólogo e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais;
**Historiadora e editora-executiva do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos