O Globo
Malu Gaspar: Namorada de Wassef é a autora de requerimentos feitos no Planalto para a CPI da Covid
A assessora do Palácio do Planalto que redigiu os requerimentos apresentados por aliados de Bolsonaro na CPI da Covid, Thais Amaral Moura, é namorada de Fred Wassef, advogado da família Bolsonaro. Thais e Wassef têm sido vistos juntos em público desde fevereiro, em jantares e eventos do governo, e não escondem o relacionamento.
Ela é assessora especial da Secretaria de Assuntos Parlamentares da Presidência da República desde janeiro deste ano, quando foi transferida do Ministério do Turismo para a secretaria de Governo.
Segundo o portal da Transparência, Thais detém um DAS.5, segundo mais alto nível para os cargos comissionados, atrás apenas do DAS 6, remuneração normalmente reservada a secretários e ministros. Sua última remuneração líquida foi de R$ 16.240,60.
O GLOBO revelou na quarta-feira que foi Thais quem redigiu sete dos requerimentos apresentados à CPI pelos senadores Ciro Nogueira (PP-PI) e Jorginho Melo (PL-SC). A identificação de autoria aparece nos metadados dos documentos, registro que indica data e hora em que o arquivo foi criado, quem o criou e quantas modificações foram feitas.
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Os requerimentos escritos por Thais pediam a convocação de médicos defensores do uso de cloroquina no tratamento da Covid-19 para depor na CPI, além do prefeito de Chapecó, João Rodrigues, entusiasta do tratamento precoce. Com os depoimentos, o governo pretendia mostrar que o discurso de Bolsonaro a favor da coloroquina e da ivermectina se baseia na opinião de especialistas. Esses requerimentos específicos ainda não foram avaliados pela CPI.
Procurada ontem, por telefone, Thais disse que não comentaria nem os requerimentos e nem o relacionamento com Wassef. Afirmou apenas que, como servidora, não pode falar sobre assuntos internos do governo. Além de já ter defendido Jair Bolsonaro, Wassef advoga para dois dos cinco filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro e Jair Renan.
Depois de um período de ostracismo forçado, quando se descobriu que Fabrício Queiroz se escondia em seu sítio em Atibaia, Wassef voltou a ser visto com frequência em Brasília mais recentemente.
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Ele é visita frequente no Palácio do Alvorada e gosta de se mostrar influente junto ao clã Bolsonaro. “Nada mudou na minha relação com a família. Toda a imprensa sabe que sou advogado do Flávio e família e me tratam como tal”, declarou à revista Época em março passado.
Já Thais, formada em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, chegou a Brasília no início do governo Bolsonaro para trabalhar como chefe de parcerias e projetos na Embratur. Depois, foi diretora substituta no Departamento de Políticas e Ações Integradas e assessora especial do Ministro do Turismo.
Ela já estava na assessora na secretaria de governo quando a nova ministra, Flávia Arruda, assumiu o comando da pasta. No Palácio do Planalto, sua indicação para o cargo é atribuída ao senador Flávio Bolsonaro.
Com Mariana Carneiro
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Fonte:
O Globo
Fernando Gabeira: O general pulou a cerca
Tive um avô que comia doce escondido, fugindo das prescrições médicas. Lembrei-me dele quando o general Luiz Eduardo Ramos confessou que tomou vacina escondido, para respeitar a medicina e a ciência:
— Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, quero viver, pô.
As coisas mudaram no Brasil de hoje. Um general do Exército toma vacina escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma heresia.
O que o general esconde é para ele o impulso de qualquer ser humano. Se for um pouco mais longe, perceberá que está presente em todos os seres vivos.
O belo documentário sobre os ensinamentos de um polvo mostra suas estratégias de sobrevivência, ora caçando um camarão, ora escapando de um tubarão, ou mesmo colocando seus ovos em lugar seguro. Além de sobreviver, os seres vivos tendem a perpetuar sua espécie, general.
Na mesma gravação em que confessa sua escapada para a vida, o general Luiz Eduardo Ramos afirma que está na luta para convencer Bolsonaro a se vacinar também:
— Não podemos perder o presidente para um vírus desses.
Mas, de certa forma, o general e alguns eleitores de Bolsonaro já o perderam para o vírus desde o momento em que o presidente decidiu negá-lo. Bolsonaro não poderia combater o que não existe, o que não é mais do que uma gripezinha.
Um general sensato deveria parar para pensar um pouco na história. Num passado recente, os adversários eram postos na clandestinidade. Mas hoje é o próprio impulso vital que se torna clandestino no interior do governo.
Indo um pouco para trás, encontraremos presidente que se suicidou no auge de uma crise, mas nunca houve presidente que escolhesse o suicídio como um estilo de vida.
Depois de comandar o Ministério da Saúde, o general Pazuello, investigado por negligência nas mortes de Manaus, foi a um shopping center sem máscara.
Ele manteve um nível de obediência total a Bolsonaro, mostrando-se o aliado fiel, aquele que marcha com seu líder ainda que seja para a sepultura.
A travessura do general Ramos é apenas uma das pequenas brechas em que a vida consegue penetrar o fúnebre edifício do governo Bolsonaro. Mas sua própria confissão indica como está enterrado nesse pântano cadavérico.
Ele não tem vergonha de querer viver como os outros seres humanos. Mas também não se orgulha disso nem celebra o ato vital de se vacinar. É apenas uma contingência, pô.
Aliás a expressão “pô” é uma forma simplificada porque achamos na imprensa que, depois de tudo por que passaram os brasileiros, ainda não podem ler certas palavras cruas.
De modo geral, não me interessam generais que se enterram ou mesmo os que põem rapidamente a cabeça de fora.
Eles são apenas a guarnição militar de um projeto de morte que, desvelado para a maioria do país, certamente não sobrevive depois de 22.
O problema é que esse projeto domina hoje o país onde vivo e se espalha além dos mais de 400 mil túmulos que cavou com a pandemia. Ele nos retira o Censo para que não saibamos exatamente quantos somos e que problemas concretos temos de enfrentar. Ele nos impõe e aprova um Orçamento com verdadeiros cheques em branco para políticos.
Enfim, não basta conduzir um projeto de morte, mas é necessário também romper com os elementos de orientacão e planejamento coletivos.
É como se tivéssemos que marchar de olhos fechados para o nosso próprio cadafalso. É um plano meticuloso que se estende à escuridão, ao imposto sobre os livros, para que se feche também essa janela para o mundo.
Houve um pastor que levou seus fiéis ao abismo nas Guianas. Chamava-se Jim Jones. Mesmo para alguém como eu, que não acredita em reencarnacão, as coincidências são assustadoras.
Durante muito tempo se pensou em suicídio coletivo, mas o que prevaleceu foi a tese do assassinato em massa.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-general-pulou-cerca.html
Rogério Furquim Werneck: Tensão política e reformas
Não falta quem nutra a fantasia de que, nos próximos meses, antes da completa mobilização de Brasília com as eleições de 2022, ainda haverá uma janela de tranquilidade política que permitirá engajamento efetivo do Congresso no avanço do programa de reformas. O mais provável, contudo, é que o paralisante clima de alta tensão política que hoje se vê no País perdure por muitos meses mais.
Com base em longo histórico de CPIs criadas com grande estardalhaço e que acabaram dando em nada, vem sendo arguido, agora, que a recém-instalada CPI da Pandemia pode perfeitamente se revelar um completo fiasco. Mas a verdade é que as peculiaridades dessa CPI tornam pouco crível o prognóstico de que, mais uma vez, a montanha acabará por parir um rato.
É preciso ter em conta que nesse momento dramático da evolução da pandemia e de indignação generalizada, com as proporções da devastação e a lentidão com que avança a vacinação, o objeto do inquérito permanecerá sendo uma questão crucial, de fácil entendimento, na qual a grande maioria da população terá grande interesse.
É bom também ter em mente que, tendo se permitido desmandos de toda ordem no enfrentamento da pandemia, o governo já não consegue esconder seu alarme com a instalação da CPI e com os danos políticos que dela poderão advir. E que, ao se deixar levar por reações completamente destrambelhadas, vem garantindo à CPI uma caixa de ressonância de enorme potência que, a mídia, por si só, jamais conseguiria replicar.
Contando com não mais que quatro senadores governistas, entre os 11 membros da Comissão Parlamentar de Inquérito, o Planalto não teve melhor ideia do que conseguir que um juiz federal de primeira instância concedesse grotesca liminar, determinando ao Senado que não permitisse que o senador Renan Calheiros fosse “eleito” relator da CPI, quando, de fato, a escolha do relator não é feita por eleição, mas pelo presidente da Comissão.
Ao ver a liminar solenemente ignorada, o senador Flávio Bolsonaro voltou suas baterias contra o presidente do Senado, acusando-o de irresponsabilidade e “ingratidão”, por ter acatado a decisão do Supremo que determinava a criação da CPI e desacatado a do juiz de primeira instância que impedia a “eleição” do relator.
Na situação em que está, não será com hostilização ostensiva do presidente do Senado e do relator da CPI que o Planalto conseguirá conter os danos políticos que a comissão de inquérito poderá lhe trazer.
Entre as reações desastradas à instalação da CPI, merece também destaque a impensada divulgação, pela “sala de guerra” montada no Planalto, de longa lista de nada menos que 23 flancos distintos pelos quais a postura do governo durante a pandemia poderia vir a sofrer censura na CPI.
Com justa razão, a lista foi logo vista no Senado como um roteiro de confissões de culpa no qual a comissão de inquérito poderia se basear, de início, para organizar o trabalho que tem pela frente.
Tudo indica que, ao longo dos próximos meses, a relação entre o Planalto e o Congresso estará dominada pelos atritos advindos da CPI. A composição da Comissão deixou mais do que claro o caráter flagrantemente minoritário do apoio parlamentar efetivo com que conta o governo.
Tendo isso em mente, alguém acredita mesmo que, a 17 meses das eleições de 2022, o Planalto terá condições de conduzir com um mínimo de sucesso a aprovação de reformas econômicas complexas no Congresso?
É dessa perspectiva que se deve avaliar a pretensão do presidente da Câmara, Arthur Lira, de retomar o esforço de aprovação, ainda que fatiada, da reforma tributária. Entre as muitas razões para ceticismo, não se pode deixar de mencionar que esta é uma agenda sobre a qual o governo tem mantido posições especialmente confusas.
É difícil que, logo agora, com o Ministério da Economia fragilizado, e já privado da colaboração da competente Vanessa Canado, o governo consiga se livrar das suas confusões e dar coerência a uma discussão séria sobre reforma tributária no Congresso.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/tensao-politica-reformas-24995416
Vera Magalhães: Para parar de contar cadáveres
Há 13 meses, nós, brasileiros, contamos cadáveres. Fazemos isso com as estatísticas dos mortos por Covid-19 e no seio de nossas famílias e círculos de amizade. Não precisava ser desta maneira. Muitos dos 400 mil “CPFs cancelados” na pandemia, no linguajar chulo e desrespeitoso chancelado pelo presidente da República, poderiam estar ativos se tivéssemos um governo decente. Não digo nem competente ou eficiente. É um mínimo de decência que falta a Jair Bolsonaro e a seu escrete mortífero.
O que fazer para atenuar essa rotina de empilhar corpos, retroceder em todas as áreas da vida nacional, adiar o futuro e colecionar traumas? É preciso agir imediatamente, em todas as frentes possíveis. É preciso responsabilizar Bolsonaro, Eduardo Pazuello e a cadeia de comando de ambos em todas as pastas que tenham contribuído, por ação e omissão, para atrasar nossa resposta ao vírus e desmontar nossa estratégia de enfrentamento.
O Sistema Único de Saúde, a despeito de seus problemas crônicos de financiamento e atendimento, tem capilaridade única no mundo, experiência em lidar com epidemias e profissionais de saúde pública treinados, que estão mostrando, mesmo diante de toda a adversidade, abnegação, garra, fibra e compromisso com a vida.
O Plano Nacional de Imunização é um edifício de glórias para o Brasil, que nos fez erradicar doenças ao longo de décadas e mostra incrível capacidade de realizar campanhas de imunização em massa.
Obrigar os responsáveis pelo mau uso do SUS e o desmonte do PNI a responder na Justiça é algo para já. Pode ser feito pelo inquérito conduzido no Supremo Tribunal Federal e pela CPI da Covid. Ambos têm instrumentos para solicitar documentos, perícias, levantar gastos, ouvir a cadeia de servidores do Ministério da Saúde, estados e municípios e apontar quem são os CPFs que têm de virar réus. Isso é tarefa de agora, não de depois, senhores Arthur Lira e Rodrigo Pacheco. Se Vossas Excelências acharam que poderiam postergar uma resposta ao morticínio de brasileiros aos milhares, enquanto negociam suas emendas e projetos de interesse de pequenos grupos, só por terem ascendido ao comando do Congresso com o apoio do Planalto, a resposta é não.
Além de responsabilização, é preciso exigir de Bolsonaro, enquanto ele continua ocupando a Presidência como o pior ser humano, eleito ou biônico, que já passou por lá, que pare de cometer desatinos retóricos e administrativos diários e cumpra seu dever constitucional de proteger a vida de seus concidadãos.
Isso significa destinar todos os recursos — orçamentários, diplomáticos, de logística, administrativos e políticos — para a compra imediata de vacinas em quantidade suficiente para imunizar ao menos 70% da população apta a recebê-las. Para isso, o Ministério da Saúde tem de ser instado (pelo Congresso, pelo Supremo) a fornecer um calendário realista de chegada de vacinas, distribuição e aplicação. Isso não pode ficar para 2022. Para isso existe a Justiça, para isso existe um Congresso que tem de estar disposto a votar recursos emergenciais para a compra de imunizantes.
A terceira frente de ação cabe à sociedade. Não é compreensível a letargia com que, a cada número redondo de pessoas que se foram, colocamos tarjas pretas em nossos perfis nas redes sociais e seguimos, entre negacionistas, meio comprometidos com as medidas sanitárias ou discípulos do Átila, mas sem exercer nosso dever cívico de dar um basta a essa gestão desastrosa, única no mundo em sua conjugação de pestilência verbal, inação administrativa e incompreensão histórica do que se passa no planeta. Até quando assistiremos a esse horror e admitiremos que o presidente siga em marcha batida ao precipício, levando cada um de nós de carona?
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-que-fazer-para-parar-de-contar-cadaveres.html
Malu Gaspar: O circo da CPI começou, mas o impeachment ainda está longe
O senador Renan Calheiros abriu o espetáculo e foi ao ataque logo na primeira sessão da CPI da Covid:
— Não foi acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, evidentemente. Há culpados por ação, omissão, desídia ou incompetência. E eles, em se comprovando, serão responsabilizados.
Citando os ditadores sanguinários Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet, Renan disse que “os crimes contra a Humanidade não prescrevem jamais”. Não chegou a chamar Jair Bolsonaro de genocida, mas lançou mão de um “vidas negras importam” inédito em sua retórica. Com os holofotes do picadeiro voltados para ele, falou com a segurança de quem tem a maioria na comissão — apoio de 7 dos 11 titulares — e colheu os esperados louros, especialmente na opinião pública.
Mas quem espera que esteja aberto o caminho para o impeachment deve ter em mente que o desempenho de Renan obedece a uma agenda bem clara, ao mesmo tempo pessoal e política. Do lado pessoal, vai saborear a revanche contra Bolsonaro, Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco, que há dois anos o tiraram do comando do Senado.
Na agenda política, é fazer sangrar o governo sem necessariamente chegar ao impeachment — seguindo o roteiro que interessa ao seu maior aliado, o ex-presidente Lula. Para o petista, o melhor dos mundos é polarizar a eleição de 2022 com um Bolsonaro enfraquecido, mas não com uma candidatura de centro-direita — que tende a ganhar espaço se Bolsonaro estiver fora do páreo.
Não parece, hoje, uma missão difícil. A CPI começa prometendo um palco iluminado a oposicionistas e independentes. Além de terem formado um bloco coeso, enfrentam um governo desarticulado politicamente e consumido por disputas internas. Um exemplo: o vazamento, nesta semana, da relação de 23 pontos fracos do governo na CPI elaborada na Casa Civil, vista como espécie de roteiro para o trabalho da oposição. No Palácio do Planalto, dá-se como certo que foi obra de fogo amigo, disparado por rivais do ministro da Casa Civil, o general Luiz Eduardo Ramos — o mesmo que foi pilhado dizendo ter tomado a vacina contra a Covid-19 escondido, por orientação da chefia.
O périplo que Lula fará em Brasília, na semana que vem, tem tudo para exacerbar o sentimento que anda rondando os profissionais da política: que Bolsonaro chegará nanico em 2022, sem apoio popular, sem um partido forte e sem conseguir usar a máquina no modo tradicional para se reeleger. Não porque não queira, mas por não ter competência para fazê-lo. “Bolsonaro hoje não consegue tapar nem um buraco de rua”, me disse outro dia um ativo integrante do Centrão.
Claro que esse tipo de previsão, a 18 meses das eleições, não quer dizer grande coisa. Mas serve para mostrar que a emergência de Lula como candidato com perspectiva real de poder mexe com os instintos mais primitivos do Centrão. O primeiro sinal é visível em Ciro Nogueira (PP-PI). Ex-lulista convertido ao bolsonarismo, nem mesmo ele se apresenta na CPI com o empenho e a verve necessários para defender o governo.
Mas Bolsonaro não está morto. Ao repisado axioma de que nunca se sabe como as CPIs terminam, agregue-se a constatação de que CPIs são maratonas, e não corridas de 100 metros rasos. Se durar todo o prazo permitido, a atual só termina em outubro deste ano. Até lá, muita coisa pode acontecer.
Bolsonaro pode ser politicamente inábil aos olhos dos decanos da CPI, mas não chegou aonde chegou na base da inocência. Ele tem consciência de que a faixa presidencial protege até mesmo quem não sabe usá-la bem. Não dispõe de muita folga orçamentária e pode não ter competência para “tapar buraco de rua”, mas cederá o que for necessário para evitar o impeachment. E, se não tem maioria na CPI, ainda comanda a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República, que neste momento têm, espalhadas pelo país, dezenas de investigações contra prefeitos e governadores sobre desvios de recursos do combate à Covid-19.
Na segunda-feira, véspera da instalação da CPI, a PGR denunciou o governador do Amazonas, Wilson Lima, seu vice e outros 16 componentes de sua gestão por formação de organização criminosa e desvio de dinheiro público durante a pandemia. Se as operações se multiplicarem nos próximos meses, produzindo prisões em série, denúncias e delações premiadas, Bolsonaro terá uma ferramenta de pressão sobre a CPI e uma narrativa nas eleições. Para alguém acostumado a botar fogo no circo, pode ser o suficiente para chegar vivo a 2022.
Fonte:
O Globo
Míriam Leitão: O pacto do foco na CPI da Covid
A maioria da CPI vai trabalhar para a produção de provas, usando os depoimentos, mas principalmente a busca de documentos. A ideia que eu ouvi de senadores é que o tempo está a favor da CPI porque, a cada dia, o próprio governo fornece mais indícios com suas falas e trapalhadas. O grupo governista já tem uma divisão, apenas três assinaram ontem o mandado de segurança impetrado contra a relatoria de Renan Calheiros. A estratégia oficial tem sido insistir nessa briga, acusar governadores, defender a ida de médicos que prescrevem remédios ineficazes. Isso alimenta a milícia digital, mas não tem resultado prático e jurídico.
Há um “pacto do foco”, me explicou um dos senadores com os quais conversei. E o foco está sobre as ações e omissões do governo federal nesta pandemia, como diz o fato determinado. Houve pelo menos 11 oportunidades de compra de vacina que o governo desperdiçou, há inúmeros indícios de prevaricação e negligência na gestão da pandemia que já se aproxima de 400 mil mortos. Há até a atitude do presidente, um governante que nunca visitou um hospital e tratou de forma desumana o sofrimento do país. “Vamos parar com mimimi, vão ficar chorando até quando?” Existe uma coleção interminável de falas absurdas, mas também dados concretos sobre erros e omissões.
O governo adiou a compra de vacinas e as desqualificou. Como acaba de ser repetido pelo ministro da Economia em relação à coronavac. Há informações de que no kit intubação houve um movimento do governo para compra através da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Só que ele poderia comprar até US$ 40 milhões, mas reduziu, deliberadamente, o total das aquisições para algo como US$ 2 milhões. Existem dados concretos das despesas do governo em remédio com ineficácia comprovada. Mesmo que os senadores governistas sustentem a tese de que esses remédios do “tratamento precoce” são uma liberdade do médico, não há justificativa para fazer com eles uma política pública, se nenhum outro país fez isso.
— Quais são as armas da CPI? Os fatos — diz um dos senadores.
A linha governista desenhada até agora é amadora, na definição de um dos senadores. O mandado de segurança que foi parar na mesa do ministro Ricardo Lewandowski continua na linha de arguir a suspeição do senador Renan Calheiros em abstrato. O impedimento só faz sentido diante de um fato concreto. Além disso, eles devem repetir na sessão de hoje a estratégia de tumultuar, protelar e empurrar a CPI sobre os governadores. Dificilmente vai funcionar. Alguns senadores defendendo a tese de que se convide, por exemplo, o governador Wellington Dias, coordenador do Fórum, ou que se requisite as informações dos órgãos de controle sobre os repasses, mas a maioria da CPI está determinada a não perder o foco.
Entre o grupo majoritário, dos independentes e oposicionistas, há diferença de abordagem. Alguns defendem que haja sub-relatorias, outros acham que isso só dispersa. Alguns preferem o caminho mais técnico e sóbrio para o início dos trabalhos, outros são mais políticos. Mas todos estão preparados para as estratégias que os governistas podem usar. Alguns dos senadores na comissão são políticos experientes e dificilmente se deixariam enrolar, como Renan Calheiros, Omar Aziz, Otto Alencar e Tasso Jereissati.
Entre os governistas, o senador Ciro Nogueira fez alguns movimentos de se separar dos outros três. Ciro Nogueira já foi da base de sustentação de governos petistas e começa a ser hostilizado nas milícias bolsonaristas, acusado de traidor. Ele votou em Omar Aziz e não assinou o mandado de segurança. Ele é do centrão, está fazendo as contas de para onde sopra o vento.
Os governistas também vão tentar desqualificar os depoentes que falarem algo contra o governo. Isso não confunde, por exemplo, uma pessoa como o ex-ministro Mandetta, que está sendo alvo dos bolsonaristas.
Em resumo, o clima na CPI é de definição de estratégia. Hoje, Renan Calheiros apresenta o plano de trabalho e haverá o requerimento para a convocação dos três ex-ministros da Saúde e do atual titular da pasta. Os governistas preparam seu espetáculo. Vão fazer barulho. Mas o fato é que, como definiu um experiente senador, “o governo está assombrado”. Outro me disse que “o tempo está a favor de quem quer investigar.”
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-pacto-do-foco-na-cpi-da-covid.html
Merval Pereira: Isolado no mundo
Além do erro primário de ter deixado para comprar vacinas de última hora, ficando exposto à vontade do vendedor e do mercado mundial, o Palácio do Planalto, justamente por desdenhar a vacinação em massa como solução para a pandemia de Covid-19, deixou de planejar ações, não apenas de logística, mas também geopolíticas, que nos levaram a ser um país pária num mundo globalizado, quer queiram os Bolsonaros da vida ou não.
Estamos diante de um quadro de isolamento nunca antes enfrentado, com agentes públicos desqualificados para superá-lo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que a cada dia se encolhe mais, acabou contagiado pela mediocridade do governo que pretendia controlar no seu superministério.
O tratamento dado à China no governo Bolsonaro é ridículo, para dizer o menos. Assumimos uma guerra que não é nossa, é dos Estados Unidos, passamos a dar estocadas no nosso maior parceiro comercial e segunda economia do mundo, consumidora voraz de commodities, que já começou a retaliar. Aumentou em 300% a importação de soja dos Estados Unidos e reduziu a do Brasil.
Outras retaliações virão, e é impressionante que um técnico bem formado como Guedes se deixe levar pela idiossincrasia do presidente em relação ao comunismo chinês, desqualificando a vacina chinesa contra a Covid-19 para enaltecer o poder da livre-iniciativa americana, que teria produzido uma vacina mais eficaz que a chinesa.
Acontece que a vacina da Pfizer não é americana, mas alemã, e o Brasil quase só tem a CoronaVac para vacinação interna — apenas 20% das doses são da Oxford/Astrazeneca . Por si, seria razão suficiente para um governo normal ter cuidados especiais com esse parceiro tão importante. Guedes pediu desculpas devido à reação diplomática da China, que tem em suas fábricas o insumo necessário para a fabricação da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, e na Fiocruz, do Rio.
Até o momento, a maioria dos brasileiros não pode viajar porque ser brasileiro, hoje, virou motivo para bloquear a entrada na maioria dos países do mundo, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Quando a situação se normalizar, só os felizardos que tiverem a sorte de se vacinar com a AstraZeneca poderão viajar para a Europa, mas não para os Estados Unidos, que só aceita as vacinas da Moderna e da Jansen, americanas, e da Pfizer, alemã.
Essas são questões de geopolítica que deveriam estar sendo analisadas desde o início da pandemia. O governo Trump, negacionista como o de Bolsonaro, não deixou de comprar vacinas em abundância, mais até do que a necessidade da população dos Estados Unidos, e agora está distribuindo doses da vacina para países necessitados, mas o Brasil não está nessa primeira leva.
A solidariedade internacional com a Índia, que vive uma crise humanitária de proporções inéditas, é muito maior do que com o Brasil, mesmo o primeiro-ministro Narendra Modi sendo um político direitista que idolatrava Trump. Mas, ao contrário de Bolsonaro, não foi ingênuo a ponto de não cumprimentar o presidente eleito Joe Biden.
A Índia também tem uma importância na geopolítica internacional que o Brasil não tem, o que não recomenda uma política externa maniqueísta e não pragmática. Não há como não admitir que, nessa geopolítica internacional, países como o Brasil precisam se impor por seu soft power, que no nosso caso é muito bem representado pela cultura — música, cinema, futebol — e passou a ser um instrumento fundamental de nossa política externa, explorado na atuação exitosa de nossas Forças Armadas nas missões de paz da ONU.
Um governo cheio de generais que comandaram as Forças brasileiras nas missões das Nações Unidas para estabilização do Haiti já deveria ter entendido que a posição do Brasil no mundo depende de fortalecermos nossas vantagens comparativas, como deveríamos fazer no meio ambiente, e não na confrontação.
Roberto DaMatta: Somos todos pacientes
Para José Paulo Cavalcanti, Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg e Joaquim Falcão
O dicionário “Aurélio” revela o amplo significado da palavra “paciente”. Uma palavra fundamental por sua capacidade de desmontar bate-bocas, inibir impaciências em filas, adiar vinganças e apaziguar minha angústia diante deste claro endoidecimento do Brasil.
Somos todos pacientes porque haja paciência para suportar o hospício desta psicose jurídico-política. De um lado, um enorme ressentimento porque o “povo”, que já foi puro e sagrado, teve motivos para eleger um presidente querelante, sabotador e autoritário; do outro, um surto suicida incapaz de apaziguar um sistema obsessivamente legalista em que a forma pode valer mais que o “objeto” ou substância (falando francamente: que o crime).
A palavra paciente é parte do linguajar jurídico, mas creio que seria absurdo ou despropositado chamar assassinos, genocidas e ladrões — gente como Capone, Eichmann, Goebbels, Stálin, os torturadores do regime militar, os assassinos do menino Henry, os larápios confessos da Operação Lava-Jato e Derek Chauvin, o policial que matou com óbvio viés racista George Floyd — de “pacientes”.
Uma palavra que invoca neutralidade não deveria ser usada como sinônimo de quadrilheiros. Sobretudo de gente que traiu o seu voto. Mas cabe perguntar: quando um réu vira paciente? A resposta é clara: quando ele é importante!
Aliás, se ele é o dono da grande fazenda, nem poderia ser julgado. Chamá-lo, pois, de paciente fatalmente revela a parcialidade e a lealdade do tribunal às convenções estruturais do “sistema brasileiro”, ancoradas na cautela dos compadrios, dos favores e do “você sabe com quem está falando?”, ou julgando... Essa “medida cautelar da paciência” explicita como o que conta não é o crime, mas quem o cometeu.
Trata-se de mais uma jabuticaba expressiva do jeitinho brasileiro.
Uma amiga americana compara com brilho Trump e Bolsonaro. Mas é provável que Donald seja mais facilmente explicável que Jair.
A palavra-chave nessa comparação é o compromisso e a lealdade a uma tradição democrática e republicana. É a fidelidade com a liberdade e com a igualdade como valores. Biden e Harris fazem parte dessa lista, que tem desacordos, mas não tem dúvida relativamente às complexas e duras exigências deste regime inacabado por definição chamado democracia.
Aqui no Brasil, ainda não concordamos se não seria melhor continuar mais ou menos numa realeza ibérica (franquista ou salazarista), mais ou menos populista-socialista e mais ou menos liberal-aristocrática, mas sempre autoritária, ou se vamos continuar como frustrados republicanos, arcando com o difícil compromisso de fazer valer a lei para todos — sobretudo, para nós mesmos!
E, por último, mas não por fim: se vamos cobrar coerência da instituição guardiã da Constituição, o STF.
As diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos são grandes, mas nada no campo do humano é impossível. Os americanos têm uma Constituição pioneira, pequena e inteligível; aqui, um oceano de leis complementares e de privilégios impede a clareza. Eles começaram republicanos, e nós fomos um pouco de tudo. Lá, trata-se de manter continuidade; aqui, de liquidar antigos privilégios; lá, quanto mais privilegiado, mais se é responsável perante a lei; aqui, o justo oposto. Lá, um federalismo localista obriga a julgamentos com início, meio e fim; aqui, há o recurso que engaveta os processos, tirando a confiança na maior das igualdades: a equidade perante a lei.
A melhor prova é o caso Floyd. Lá, está resolvido! Aqui, o STF anula sentenças e suspeita de um movimento anticrime fundamental para corrigir as trapaças do populismo, as sobrevivências do fidalguismo e o retorno do filhotismo. Lá, o trabalho é um chamado; aqui, foi e ainda é estigma e cicatriz da escravaria.
Aqui, o ministro Gilmar Mendes afirma, com maestria sociológica, que o governo do PT engendrou um “plano perfeito” de poder. Num texto magistral, esse paladino da coerência continua: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de Cleptocracia”. Onde foi parar esse juiz? Será que ele foi canibalizado por sua imparcialidade?
Para concluir, lembro uma outra pérola do mesmo magistrado em sua resposta a um colega: “O moralismo é a pátria da imoralidade”.
Como um velho acadêmico metido a cronista em pleno processo de cancelamento, digo apenas que a incoerência como um valor é, sejamos modestos, a terra da injustiça.
Elio Gaspari: O caos de Bolsonaro
No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico
Outro dia, o capitão perguntou:
— O que eu me preparo?
E respondeu:
— Não vou entrar em detalhes, um caos no Brasil.
Em março do ano passado, Bolsonaro reclamava da “histeria” diante do vírus, levantava o estandarte do Apocalipse, com uma frase que explica seu comportamento diante da pandemia:
— Vai ter um caos muito maior se a economia afundar. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.
Entre as duas referências de Bolsonaro ao caos, morreram perto de 400 mil pessoas, e a população aguentou o tranco com sofrimento e paciência.
Todos os povos e governos sofrem com a pandemia. No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico. Fritou três ministros da Saúde, combateu o distanciamento, menosprezou as máscaras e enalteceu as virtudes da cloroquina.
Uma coisa é um governo que se acautela diante do risco de um caos. (Nesse caso, os detalhes são bem-vindos.) Bem outra é apreciar o caos, até mesmo desejando-o.
Em apenas uma semana, o governo de Bolsonaro produziu alguns episódios sinalizadores de um governo que, até mesmo por inépcia, patrocina o caos.
O programa Pátria Solidária, aninhado no Palácio do Planalto com o objetivo de recolher doações para enfrentar a pandemia, gastou R$ 9,6 milhões para fazer propaganda de si e arrecadou R$ 5,89 milhões.
A Secretaria de Comunicação do Planalto não comentou a discrepância. Até há bem pouco tempo, ela era dirigida pelo doutor Fabio Wajngarten. Ele acabara de dar uma entrevista contando que, em setembro, tentou apresentar ao Ministério da Saúde uma proposta do laboratório Pfizer. Já haviam morrido 123 mil pessoas:
— Se o contrato da Pfizer tivesse sido assinado em setembro ou outubro, as vacinas teriam chegado no fim do ano passado. (...) Incompetência e ineficiência.
Dias depois, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi fotografado num shopping center de Manaus sem máscara, fazendo piada com a transgressão:
— Onde se compra isso?
O general estava nas redes, e seu sucessor, Marcelo Queiroga, de máscara, contava que faltavam vacinas para a segunda dose em alguns estados porque eles seguiram a recomendação do ministério de avançar sobre os estoques.
Bolsonaro sonhava com crises antes mesmo da pandemia. Com ela, transmutou-se num São Jorge cavalgando o cavalo branco para matar o dragão e salvar a princesa. Ela está lá, de máscara, e o dragão não apareceu. Os desconfortos que afligem o governo decorrem da armadura desconjuntada do Santo Guerreiro, de sua lança torta e de uma sela visivelmente desconfortável.
A marquetagem do Pátria Solidária, as revelações de Wajngarten, a conduta de Pazuello e a falta de vacinas refletem um caos que está no governo, não vem de fora dele.
A Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil de Bolsonaro encaminhou a 13 ministérios uma pauta de 23 perguntas que poderão aparecer na CPI da Covid, pedindo pronta resposta.
Lê-las é um passeio pelo caos da desarticulação e da falta de gestão do governo. Algum membro da CPI bem que poderia devolvê-las, perguntando por que a curiosidade só surgiu agora.
Nas próximas quatro quartas-feiras, o signatário usufruirá o isolamento e o ócio, sempre pesquisando as virtudes da cloroquina.
Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid
Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.
Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.
Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.
A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.
É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.
Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.
O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.
No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.
Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.
Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.
Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI
A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.
A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.
Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.
Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.
“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.
Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.
O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.
No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.
Vera Magalhães: Caem todas as máscaras
Os ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos merecem ser convocados para depor na finalmente instalada CPI da Covid só com base nas declarações estarrecedoras que, sem saber que eram gravados, emitiram na reunião desta terça-feira do Conselho Nacional de Saúde Suplementar.
Num dos ataques verborrágicos que sempre tem e, depois de flagrado, diz ter sido mal interpretado, o ministro da Economia do Brasil diz, numa só tacada, que os chineses inventaram o coronavírus (teoria conspiratória sem comprovação), mas produziram vacinas ruins, piores que as dos americanos, para combatê-lo.
A vacina chinesa CoronaVac é uma das poucas de que os brasileiros dispõem para se proteger do vírus. Só está disponível por ação do governo de São Paulo e do Instituto Butantan, porque o governo a que Guedes serve boicotou sua aprovação e disse por muito tempo que não a compraria.
Teve de comprar porque o presidente Jair Bolsonaro, chefe de Guedes, optou por não comprar as vacinas “melhores”, da Pfizer, quando lhe foram oferecidas com antecedência e em larga escala. Tudo isso será objeto de escrutínio da CPI.
O ministro da Economia do Brasil também lamentou o aumento na expectativa de vida, atribuindo a ele, e não ao show de incompetência do governo de que faz parte, a falta de insumos, leitos e vacinas. É um escárnio inconcebível diante de quase 400 mil mortos pela covid-19.
O colega de Guedes na Casa Civil, general do Exército brasileiro Luiz Ramos, também no quentinho de uma reunião que imaginava não estar sendo registrada em áudio, confessou uma molecagem: ter tomado vacina escondido (!) porque seria a orientação do governo.
Aqui escancara outra razão por que a CPI tem de existir, e por que ele tem de se sentar no banco dos depoentes: além de boicotar a compra de vacinas, o governo de que Ramos e Guedes fazem parte difundiu desinformação que alarmou a população, reduziu a confiança na imunização como forma de debelar a pandemia e não promoveu a campanha de informação e conscientização que era seu dever produzir. Esses itens constam da tabela que a Casa Civil que Ramos produziu, um dos poucos documentos que atestam afirmações reais sobre o governo já produzidos na era Bolsonaro.
Longe do confessionário dos homens públicos de Brasília, um ex-companheiro de primeiro escalão de Guedes e Ramos, o general Eduardo Pazuello, escolheu a dedo a cidade que vivenciou o maior caos do morticínio de Covid-19, Manaus, para ser um fanfarrão e desfilar sem máscara num shopping center.
O homem que assinou o protocolo indefensável do tratamento precoce com cloroquina, que, segundo o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, foi o grande responsável pela não aquisição de vacinas, que negligenciou os avisos sobre a falta iminente de oxigênio na mesma Manaus em que tira sarro na cara dos brasileiros enlutados, tem de se sentar logo no banco da CPI para prestar contas sobre sua atuação criminosa à frente de um ministério para o qual nunca poderia ter sido nomeado num país decente, por um presidente que levasse uma emergência sanitária a sério.
Não foi só Pazuello que tirou a máscara diante do país. Guedes e Ramos, com suas falas indignas, também foram desmascarados, ainda que a contragosto, diante da sociedade. O que mais se pode esperar deste governo, que, mesmo com uma investigação contra si instalada no Senado Federal, age com tamanha desídia?
Nada parece chamar esses homens à responsabilidade. Diante desse quadro de cinismo de Estado, é sinal da nossa desgraça que seja alguém com o currículo de Renan Calheiros a comandar as investigações. Não terá sido a primeira vez. Os que hoje condenam Renan há muito pouco tempo chamavam Eduardo Cunha de herói pela condução do impeachment de Dilma Rousseff. As máscaras estão todas no chão. Que se punam os culpados.