O Globo
Zeina Latif: Haverá apoio para aventuras?
A eleição presidencial está distante, mas contamina o cenário econômico. Mostra disso é que não cessam as pressões por mais gastos na novela do orçamento, em meio à crescente fragilidade do governo.
Difícil é distinguir o que é fruto da intenção de alavancar Bolsonaro e o que são os interesses paroquiais de parlamentares que reconhecem o risco político de ser aliado do presidente.
Os presidentes que buscam a reeleição costumam ser os favoritos nas corridas eleitorais. Contam com o poder de usar a máquina pública em seu benefício e têm maior potencial de apoio, que se traduz em arrecadação de recursos de campanha e tempo de TV.
Bolsonaro, que ainda procura um partido para chamar de seu, provavelmente não contará com as mesmas vantagens, a depender do cenário de baixa aprovação em 2022. O cacife de um político decorre de sua perspectiva de poder.
Seu ponto de partida é bem menos favorável. A avaliação positiva do governo estava em 30% em meados de março (Datafolha), inferior aos cerca de 42% dos ex-presidentes em período equivalente.
Em termos líquidos, o degrau é maior: -14% (30% menos 44% de ruim/péssimo) ante cerca de +25% dos antecessores. E a aprovação seguiu em queda, segundo a pesquisa Exame-Ideia: 23% para avaliação bom/ótimo no dia 22 de abril ante 27% em 25 de março.
O espaço para melhora adiante parece limitado. O presidente pouco conseguirá capitalizar o avanço da vacinação, pois esta nunca foi sua bandeira, pelo contrário. Além disso, a Coronavac de João Doria e a CPI da Covid poderão atrapalhar suas pretensões.
Na economia, mesmo considerando um cenário otimista de controle da pandemia até 2022 – algo improvável segundo muitos especialistas -, há limites para uma puxada do mercado de trabalho, variável chave para a aprovação de qualquer governo.
Mesmo com a renovação de medidas de socorro, não será possível repetir, nem de longe, a dose de estímulos de 2020, que totalizaram 10% do PIB, incluindo recursos do Tesouro e crédito direcionado. Vale notar que, em sua maioria, são medidas de curto alcance para preservar o consumo de famílias e evitar demissões.
Nada que gere ganhos mais perenes, como no caso de ações para treinar a mão de obra ou financiar a inserção tecnológica de pessoas e empresas. Soma-se a isso a necessária alta de juros pelo Banco Central, cujo efeito máximo sobre a economia se dará em 2022.
É verdade que o relaxamento do isolamento social irá beneficiar os segmentos de serviços que mais contratam, mas muitos indivíduos estarão à margem do mercado de trabalho por falta de qualificação adequada às exigências da tecnologia.
Difícil reverter o quadro observado em 2020, quando o número de ocupados com ensino superior completo cresceu 7,6%, enquanto os demais amargaram com o recuo de 13,2%. Está contratada a piora adicional dos indicadores de desigualdade, um combustível extra para a insatisfação social.
Adicionalmente, a busca de ganhos de produtividade pelas empresas reduz o potencial de contratações no curto-médio prazo. A indústria, por exemplo, retomou os patamares de produção pré-crise, mas pouco contratou.
Fevereiro registrou recuo de 10,8% no número de ocupados na comparação anual. O mesmo ocorreu em outros setores, como apontou Naercio Menezes Filho, no Valor.
A baixa popularidade tende a afastar mais apoiadores e aliados. Não à toa o mercado financeiro especula precocemente como seria o governo Lula.
Os mares também serão revoltos em outras frentes. Com o desgaste de Paulo Guedes, incluindo as polêmicas que pululam nas redes sociais, talvez o presidente busque outro Posto Ipiranga, repetindo o gesto de Dilma na campanha ao descartar Guido Mantega em seu segundo mandato.
Qualquer que seja o desfecho, é improvável que consiga repetir a fórmula de 2018, com um futuro ministro amealhando o apoio de investidores e empresários. Seu descompromisso com reformas afasta bons nomes.
A bronca no exterior com Bolsonaro tampouco ajuda. Constrangimentos e retaliações ao governo poderão crescer. Não haverá sua foto ao lado de líderes de países com interesses no Brasil.
São muitos pratos a equilibrar. Na falta de malabaristas competentes, cresce o risco fiscal, com terrível legado para o próximo governo. Fica a dúvida: quanto o Centrão vai topar a aventura para apoiar um candidato mais fraco do que supunha, em meio ao escrutínio de investidores?
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/economia/havera-apoio-para-aventuras-25003196
Bernardo Mello Franco: Aposta na morte
No primeiro depoimento à CPI, Luiz Henrique Mandetta resumiu a atitude de Jair Bolsonaro na pandemia. Em vez de se guiar pela ciência, o presidente escolheu o caminho do negacionismo. Sabotou as medidas de distanciamento, receitou remédios milagrosos e tapou os ouvidos para as más notícias.
Mandetta evitou o embate direto, mas reforçou a principal suspeita da oposição. No lugar de combater o vírus, o capitão apostou na tese da imunidade de rebanho. Distribuiu cloroquina e mandou a população voltar às ruas antes da chegada da vacina. Foi uma aposta na morte, que ajuda a explicar as mais de 410 mil vidas perdidas até aqui.
O ex-ministro contou que o chefe tinha um “assessoramento paralelo”. Um dos conselheiros era o vereador Carlos Bolsonaro, suspeito de comandar a máquina de fake news do governo. Ontem o Zero Dois tuitou que o depoente deveria sair preso do Congresso. Se a CPI avançar sobre as milícias digitais, a maldição ainda pode se voltar contra ele.
Mandetta economizou nos adjetivos para Bolsonaro, mas soltou a língua ao criticar Paulo Guedes. Definiu o ex-colega como um personagem “desonesto intelectualmente” e “pequeno para estar onde está”. O ataque amplia o desgaste do ministro da Economia, que vem perdendo sustentação política e agora deverá ser convocado à CPI.
A sessão de ontem também serviu para mostrar o despreparo da tropa governista. Na véspera do depoimento, o ministro Fábio Faria enviou a Mandetta, por engano, uma das perguntas que seriam feitas pelo senador Ciro Nogueira. Ao revelar a gafe, o ex-ministro expôs mais uma trapalhada do Planalto.
Não foi a única do dia. O general Eduardo Pazuello virou piada após apresentar uma desculpa mambembe aos senadores. Ele pediu para adiar seu depoimento porque teve contato com pessoas infectadas pela Covid-19. Há poucos dias, foi flagrado sem máscara num shopping. Desprezou a ameaça do vírus, mas está morrendo de medo da CPI.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/aposta-na-morte.html
Vera Magalhães: CPI não pode ser placebo
Não foi à toa que senadores até respiraram aliviados com o atestado que Eduardo Pazuello apresentou para fugir da raia e não depor hoje. A CPI da Covid, se ouvisse o ministro da Saúde responsável pelo maior número de mortes que tivemos até aqui sem nenhum preparo, como se viu nesta terça-feira, ajudaria a narrativa do governo de que não há crime, omissão nem sequer erro na condução dos protocolos de saúde.
Para que não seja um placebo de açúcar, esta CPI precisa urgentemente entender que, sem um corpo técnico consistente, não irá a lugar algum.
Na CPI dos Correios, a última de fato robusta que tivemos no Congresso, e lá já se vão 11 longos anos, a “batcaverna”, como chamávamos a assessoria técnica que carregava o piano, era a área mais frequentada por jornalistas que publicavam as informações exclusivas resultantes de quebras de sigilos, cruzamentos de saques no famoso Banco Rural etc.
Numa investigação sobre pandemia, os técnicos necessários para que os senadores não paguem mico com perguntas sem pé nem cabeça não são os mesmos de CPIs anteriores. Mais que auditores da Receita ou delegados da Polícia Federal, é preciso que presidente, vice e relator requisitem infectologistas, sanitaristas e especialistas em saúde pública e no funcionamento do SUS para auxiliá-los.
Há também que fazer uma lição de casa mínima. O Tribunal de Contas da União já produziu cinco relatórios de acompanhamento das ações do Ministério da Saúde ao longo da pandemia. O último, que detalhei no meu blog no GLOBO, tem 96 páginas e se detém sobre questões como a ausência de uma campanha de comunicação eficiente da pandemia, a falta de protocolo necessário para o tratamento da Covid-19, a ausência de testagem, a falta de rastreamento de contatos e de previsão orçamentária para fazer frente a gastos importantes no enfrentamento da emergência sanitária.
Os relatórios dizem respeito às gestões dos três ministros da Saúde anteriores a Marcelo Queiroga. Sugerem punições a eles e a subordinados. Portanto, já constataram falhas, omissões e a desobediência em implementar recomendações.
Esses textos deveriam estar na mesa de cada um dos senadores, anotados com canetas marca-texto por seus auxiliares, transformados em requerimentos de informação para a solicitação de documentos (que, aliás, estão enumerados ali) e para a cobrança de providências concretas. Nada disso foi feito até aqui.
Diante da falta absoluta de compreensão dos meandros administrativos de uma pasta complexa e capilarizada como a Saúde, e das atribuições de cada um dos entes federativos, os senadores só conseguem reproduzir a cantilena tosca segundo a qual ou a culpa é toda de Bolsonaro ou toda dos governadores e prefeitos. Assim não se avançará um milímetro, e até o despreparado e incapaz Pazuello, um general que se pela de medo de se sentar num banco de CPI, tem chance de se sair bem.
Mesmo para a oitiva de executivos da Pfizer será necessário que os integrantes da CPI estudem bem mais. É preciso estabelecer a cronologia e a cadeia de comando que levou o governo Bolsonaro a abrir mão de comprar uma vacina que já era promissora quando lhe foi oferecida, pois isso, sim, foi um ato deliberado que levou a mortes e ao atraso na imunização da população brasileira, ambos fatos mensuráveis.
Esse é o caminho para que a CPI não fique só no gogó e produza um relatório capaz de embasar uma denúncia do Ministério Público Federal e uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF). Não por outra razão, os senadores precisam atuar em consonância com o STF, onde há um inquérito em andamento sobre o tema. Uma visita do comando da CPI ao ministro-relator desse inquérito, Ricardo Lewandowski, pode estabelecer um intercâmbio de informações entre as duas instâncias que apuram o assunto.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/cpi-nao-pode-ser-placebo.html
Fernando Gabeira: O general pulou a cerca
Tive um avô que comia doce escondido, fugindo das prescrições médicas. Lembrei-me dele quando o general Luiz Eduardo Ramos confessou que tomou vacina escondido, para respeitar a medicina e a ciência:
— Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, quero viver, pô.
As coisas mudaram no Brasil de hoje. Um general do Exército toma vacina escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma heresia.
O que o general esconde é para ele o impulso de qualquer ser humano. Se for um pouco mais longe, perceberá que está presente em todos os seres vivos.
O belo documentário sobre os ensinamentos de um polvo mostra suas estratégias de sobrevivência, ora caçando um camarão, ora escapando de um tubarão, ou mesmo colocando seus ovos em lugar seguro. Além de sobreviver, os seres vivos tendem a perpetuar sua espécie, general.
Na mesma gravação em que confessa sua escapada para a vida, o general Luiz Eduardo Ramos afirma que está na luta para convencer Bolsonaro a se vacinar também:
— Não podemos perder o presidente para um vírus desses.
Mas, de certa forma, o general e alguns eleitores de Bolsonaro já o perderam para o vírus desde o momento em que o presidente decidiu negá-lo. Bolsonaro não poderia combater o que não existe, o que não é mais do que uma gripezinha.
Um general sensato deveria parar para pensar um pouco na história. Num passado recente, os adversários eram postos na clandestinidade. Mas hoje é o próprio impulso vital que se torna clandestino no interior do governo.
Indo um pouco para trás, encontraremos presidente que se suicidou no auge de uma crise, mas nunca houve presidente que escolhesse o suicídio como um estilo de vida.
Depois de comandar o Ministério da Saúde, o general Pazuello, investigado por negligência nas mortes de Manaus, foi a um shopping center sem máscara.
Ele manteve um nível de obediência total a Bolsonaro, mostrando-se o aliado fiel, aquele que marcha com seu líder ainda que seja para a sepultura.
A travessura do general Ramos é apenas uma das pequenas brechas em que a vida consegue penetrar o fúnebre edifício do governo Bolsonaro. Mas sua própria confissão indica como está enterrado nesse pântano cadavérico.
Ele não tem vergonha de querer viver como os outros seres humanos. Mas também não se orgulha disso nem celebra o ato vital de se vacinar. É apenas uma contingência, pô.
Aliás a expressão “pô” é uma forma simplificada porque achamos na imprensa que, depois de tudo por que passaram os brasileiros, ainda não podem ler certas palavras cruas.
De modo geral, não me interessam generais que se enterram ou mesmo os que põem rapidamente a cabeça de fora.
Eles são apenas a guarnição militar de um projeto de morte que, desvelado para a maioria do país, certamente não sobrevive depois de 22.
O problema é que esse projeto domina hoje o país onde vivo e se espalha além dos mais de 400 mil túmulos que cavou com a pandemia. Ele nos retira o Censo para que não saibamos exatamente quantos somos e que problemas concretos temos de enfrentar. Ele nos impõe e aprova um Orçamento com verdadeiros cheques em branco para políticos.
Enfim, não basta conduzir um projeto de morte, mas é necessário também romper com os elementos de orientacão e planejamento coletivos.
É como se tivéssemos que marchar de olhos fechados para o nosso próprio cadafalso. É um plano meticuloso que se estende à escuridão, ao imposto sobre os livros, para que se feche também essa janela para o mundo.
Houve um pastor que levou seus fiéis ao abismo nas Guianas. Chamava-se Jim Jones. Mesmo para alguém como eu, que não acredita em reencarnacão, as coincidências são assustadoras.
Durante muito tempo se pensou em suicídio coletivo, mas o que prevaleceu foi a tese do assassinato em massa.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-general-pulou-cerca.html
O Globo: ‘Tenho que lutar dez vezes mais do que pensei’, diz Guedes
Thiago Bronzatto,, Marcello Corrêa e Manoel Ventura, O Globo
BRASÍLIA — O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma medir em percentual o apoio de Jair Bolsonaro à agenda liberal. Nas eleições de 2018, era 100%. Depois, passou para 99% — e, aos poucos, essa taxa foi caindo. Até que, agora, está em 65%, embora nos momentos mais críticos o presidente tenha bancado o seu Posto Ipiranga no cargo.
Em entrevista ao GLOBO, Guedes reconhece que a aderência ao seu plano de trabalho em Brasília é menor que imaginava. “Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar”, afirma o ministro.
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Apesar disso, ele diz que não pensa em desistir. “Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande”, afirma. E garante que não ficará só na defensiva — quer partir para o ataque com a sua equipe, colocando em prática medidas para reduzir o desemprego e a pobreza.
Guedes entrou na mira de senadores oposicionistas da CPI da Covid-19. Para ele, a comissão parlamentar de inquérito faz parte do jogo democrático, mas pode atrapalhar o andamento das reformas no Congresso.
Nesta entrevista, o ministro também antecipou medidas para incentivar a geração de empregos no país e criticou o questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da autonomia do Banco Central.
Como o senhor vê o andamento da agenda econômica?
Eu tinha três hipóteses quando eu vim para cá. Uma, que o presidente ia apoiar o programa de uma aliança de conservadores e liberais. O presidente ia apoiar o programa liberal na economia. O presidente mesmo brinca que já foi 99%, agora é 97%, ele fala. Aí eu brinco: “Não, presidente, o senhor está em 65%”. A segunda hipótese é que temos um Congresso reformista, que ia nos ajudar a fazer as reformas. E não era só o Congresso. É o Congresso, o Supremo e a mídia, que era a minha terceira
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Como o seu trabalho se adapta a esse processo de reavaliação?
Na nossa democracia, eu continuo apostando. Eu só estou recalibrando. Eu tinha uma fé um pouco ingênua de que tudo seria muito mais rápido e de que as transformações seriam muito mais profundas. Eu estou só recalibrando tudo um pouquinho para baixo, mas sem mudar em nada a direção, a esperança. Só está me dando mais resiliência. Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar. Porque a aderência é um pouco menor do que eu pensei. Mas sem reclamação. É a democracia. Nas horas críticas, o presidente sempre nos apoiou. E o Congresso reformista tem nos ajudado também. Eu acredito na dinâmica de uma grande sociedade aberta.PUBLICIDADE
Mas por que a aderência é menor?
No capítulo um, o presidente está atento a dimensões políticas que arrefecem os impulsos de transformação. Você quer fazer uma transformação rápida, privatizar rapidamente. (Alguém diz) “Espera aí, tem um efeito político, uma reclamação aqui, outra ali”. Isso não é uma reclamação. É um reconhecimento de que quem manda é a política. E não é só o presidente. Eu, por exemplo, parti para uma reforma que teria capitalização na Previdência, e o Congresso disse “não”.
Por isso que eu atenuei um pouco o entusiasmo inicial. Porque tanto o presidente quanto o Congresso e a mídia vieram com menos ímpeto na direção das transformações. Aí o trabalho tem que ser muito maior para um resultado menor. Talvez essa seja a experiência de todo mundo que já passou pelo governo um dia. Quem está de fora olhando acha que tudo é mais simples.
Para o senhor, esse esforço vale a pena?
Sem falsa modéstia, eu sei que fui crucial em momentos decisivos. Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande. Não só com a pessoa que confiou em mim, que foi o presidente. Mas principalmente com quem ele representa, que são 200 milhões de brasileiros. A nossa velocidade de resposta à crise, a nossa capacidade de fazer uma política econômica integrada, tudo isso só foi possível porque tinha esse comando único na economia.
O senso de responsabilidade e o compromisso com os brasileiros que estão lá fora são muito maiores que a preocupação de ficar bem na fotografia. É muito simples falar: “Não privatizaram duas ou três empresas, vou sair porque não estão me atendendo”. Como é que vai sair no meio de uma pandemia, com pessoas morrendo? Você está no meio de uma guerra e vai pensar: “Não estou bem na foto”?.
Não é razoável. Se tem gente que diz que eu fui avalista, tenho que ter um compromisso de entregar isso na próxima eleição do jeito que peguei. Eu peguei uma democracia e entregarei uma democracia. Peguei uma inflação alta e entregarei uma inflação mais baixa. Peguei o país crescendo 1% e o entregarei crescendo 3%. Peguei o país com 12 milhões de desempregados e o entregarei com dez. Temos que ter compromisso de melhorar o país.
Como o senhor recebe as críticas de que o seu plano não saiu do papel?
É um negacionismo dizer que não temos plano, que não estamos fazendo nada, que promete e não entrega. Isso dói. Isso é uma falta de reconhecimento ao trabalho, uma negação de coisas que são autoevidentes e empíricas. “Eles não fizeram”. Não fizeram o quê? A reforma da previdência? “Ah não, mas o Temer ia fazer”. Por que não fez? É uma negação dos nossos méritos. Nosso programa é reconhecido por todos e dizer que não o conhece é negacionismo ou uma desonestidade intelectual. Até as pedras sabem do nosso programa.
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O senhor perdeu os seus principais secretários. Por que houve mudanças em sua equipe?
Nós jogamos dois anos na defesa. Agora nós vamos para o ataque. Quais foram os dois anos na defesa? Controle na dinâmica de gastos do governo. Fizemos a reforma da Previdência, derrubamos a dívida/PIB e o déficit no primeiro ano. No primeiro ano de governo, o déficit primário era 2% do PIB e caiu pela metade. A dívida era 76,4% do PIB e caiu para 75,4%.
Não demos aumentos de salários por três anos e nenhum governo fez isso. Jogamos na defesa, travando as despesas. Depois de dois anos jogando assim, há desgastes naturais na equipe. O que aconteceu agora foi uma reavaliação do grupo, o que no setor privado acontece com uma frequência. Isso estava marcado para acontecer no início de 2020, mas a pandemia chegou. Nós não recuamos na nossa política e não nos retiramos de combate.
Nós podemos ser derrotados, mandados embora, aniquilados, vencidos. Mas não tem rendição. O lema do grupo é: “Não desistimos”. Então, se alguém desistir sai do grupo. O Salim (Mattar, ex-secretário de Desestatização) desistiu.
Há uma pressão política para recriar o Ministério do Planejamento?
Durante a campanha e logo depois da eleição do presidente, houve um esforço enorme para não deixar juntar os ministérios. Houve muito lobby contra a fusão dos ministérios, particularmente em relação ao Ministério da Indústria e Comércio. Agora, há, sim, algumas pressões para desmembrar.
Mas o presidente não conversa sobre isso comigo. Ele nunca conversou sério disso comigo. Ele só brinca. Fala: “Olha, você sabe que, volta e meia, tem pressão política aí para fazer isso”. Eu falo: “Eu sei, presidente”. Mas a nossa capacidade de implementar uma política consistente, como estamos fazendo, depende de estar junto. Se tiver comando duplo, triplo na economia, rapidamente vamos para a desorganização. Aí, você diz assim: “Bom, o Ministério do Planejamento não fez falta no Orçamento?”. Nenhuma.
E qual foi o problema do Orçamento?
O governo achou o eixo político de sustentação e começou a avançar. Aí veio o primeiro exercício de fazer o Orçamento juntos. Nesse exercício conjunto, o time mostrou seu desentrosamento. Eu falo que toda informação tem um sinal e um barulho. O barulho é que tem uma crise terrível, tremenda. A informação é que é o primeiro Orçamento elaborado por uma nova configuração política. É uma coalizão política tentando dar seus primeiros passos juntos. E isso está muito claro hoje. Alguns atores se excederam durante a elaboração do Orçamento.PUBLICIDADE
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O senhor disse que os chineses teriam ‘inventado’ o vírus da Covid-19. Essa declaração criou um ruído e o colocou no foco da CPI da Covid…
Criou. Desde o início do governo, falei que o Brasil ia dançar com todo mundo. Nunca houve movimento meu contra a China. Eu considero aquele comentário meu dentro de um contexto. Eu quis dar o exemplo de quando a economia de mercado é forte e robusta, ela consegue se adaptar em pouco menos de um ano e criar uma vacina ainda mais eficiente do que as vacinas produzidas na própria região que está muito mais habituada a esse tipo de doença. Aí desvirtuam tudo. Eu, aliás, tomei a CoronaVac.
Como o senhor vê a possibilidade de ser convocado pela CPI da Covid?
Eu fui nove vezes ao Congresso em tempo real durante a pandemia. Se me chamar, vai ser a décima vez. Eu quero elogiar a comissão mista (da Covid-19)do Congresso sob orientação do senador Confúcio Moura e do deputado Francisco Júnior. A CPI é parte do jogo democrático. Dito isso, usar isso que eu falei para confundir com CPI, eu acho um oportunismo. Quero fazer uma reflexão.
Estamos em meio à pandemia. Isso é equivalente a fazer um tribunal de guerra durante a guerra contra o vírus. Para mim, é inédito. Você acha que a classe política vai sair bem disso? Foi o que eu sempre falei: subir em cadáveres para fazer política numa hora dessas… Acho que a população brasileira não vai apreciar isso. Ela quer resolver o problema. Ela quer a preservação da vida e dos empregos.
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A investigação da CPI não é importante para corrigir os rumos das políticas públicas contra a pandemia?
Eu acho que levantar o tema, de que nós vamos fazer uma CPI, já estimularia a correção de rumos. Temos um desafio difícil pela frente: evitar que a politização da crise piore a gestão da crise. Vacinação em massa e reformas é o ganha-ganha. Acho que precisa desse equilíbrio: de um lado, vamos fazer a CPI que eles acharem que é oportuno fazer, mas, por outro, não paralisem as reformas.
Temos nos próximos 90 dias as reformas administrativa e tributária e os marcos regulatórios para destravar os investimentos. Quer fazer a agenda de CPI, pense que estamos no meio de uma pandemia. Faça, mas com alguma moderação para não desorganizar tudo. Tanto as medalhas quanto as avaliações nos tribunais de guerra são feitas logo após a guerra.
De que maneira o atraso da vacinação em massa penalizou a retomada do crescimento econômico?
É claro que durante uma guerra há falhas. Nós, por exemplo, lançamos um programa de crédito no início que não funcionou bem.
A autonomia do Banco Central, já aprovada, está sendo questionada no STF por PT e PSOL e até mesmo pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Como o senhor vê isso?
Acho que merece um alerta muito sério. Estamos dessincronizando o ciclo político da gestão monetária. Há muitas acusações a governos passados que usaram o Banco Central para reeleição. Você vê a ironia. Quando você faz uma política de Estado, vem a própria oposição, o PT, e questiona a política de Estado. Eu não vou questionar a PGR. Com Justiça, a gente não fala nada, só olha. Mas eu acho que merece uma profunda reflexão. Quando há aumentos setoriais e transitórios de preços, como que impede que se transformem em alta generalizada de preços? É justamente um Banco Central independente.
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O governo pretende ampliar o Bolsa Família, mas ainda há o desafio dos trabalhadores informais. Qual é o plano para lidar com o desemprego e o aumento da pobreza?
A primeira coisa é a vacinação em massa. A segunda medida estamos chamando de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP). Da mesma forma que se dá R$ 200 para uma pessoa que está inabilitada receber o Bolsa Família, por que não poderia dar R$ 200 ou R$ 300 para um jovem nem-nem? Ele nem é estudante nem tem emprego. Ou seja, é um dos invisíveis.
Agora, esse jovem vai ter que bater ponto e vai ser treinado para o mercado de trabalho. Ele vai ser servente de pedreiro, mecânico… É uma oportunidade. Ele é a vítima da nossa legislação trabalhista. Quando você bota lá o salário mínimo, um rapaz filho de uma classe média, que estudou em uma boa universidade, fala duas línguas, ele consegue emprego com salário mínimo.
Qual seria a contrapartida da empresa?
Zero. Ajuda o Brasil, treina o menino. Estamos estudando. Isso deve vir rápido para esse segmento dos invisíveis. Temos que erradicar a miséria. A grande lição do ano passado foi que, com o dinheiro que vai direto para quem precisa, tivemos a maior redução de pobreza em 40 anos. Essa lição não pode ser esquecida. Vamos ter que reforçar o Bolsa Família e criar os programas de inclusão produtiva.
O maior exemplo de compromisso com a saúde é que eu falei que tem que criar voucher. Acho natural que, com as novas tecnologias, as pessoas queiram viver 100 anos. O grande desafio é como ajudaremos nesse sentido as camadas mais frágeis. Por que um sujeito rico se interna no (hospital) Albert Einstein e o pobre tem que ficar numa fila do SUS durante dez dias? Se o pobre tiver um voucher e não tiver vaga no SUS, ele vai na rede privada. São soluções privadas efetivas para problemas públicos gravíssimos.
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, determinou a realização do Censo pelo IBGE. Como o senhor vai responder a isso?
O nosso Orçamento enviado ao Congresso tinha previsão dos recursos para o Censo. O Congresso, acredito que pensando na pandemia, e não nas verbas, deve ter achado sensato tirar (do Orçamento). Se fizemos a previsão é porque sabemos a importância de ter o Censo para orientar políticas públicas. E esperamos agora, depois da decisão do ministro Marco Aurélio, a orientação da Advocacia-Geral da União (AGU). Imagino que o Congresso tenha visto o Censo como elemento de risco para a pandemia. Mandar um pesquisador de casa em casa para fazer perguntas pode criar um agente de transmissão do vírus.
Fonte:
O Globo
Merval Pereira: Histórias exemplares
Nesses depoimentos, o que mais se ouve são duas palavras: liderança e governança. O comentário é de José Augusto Coelho Fernandes, pesquisador que conduz as trinta entrevistas com formuladores e gestores de políticas públicas que compõem a série de podcasts sobre a “arte da política econômica no Brasil”, a ser lançada na próxima semana pelo IEPE/ Casa das Garças, um dos principais think tanks do país.
Na série, temos depoimentos importantes que podem ser usados para comparação com o que está sendo feito no atual momento. A negociação incessante com o Congresso, no lançamento do Plano Real, e a atuação em equipe com autonomia na crise energética de 2001, são exemplares.
Atores importantes da cena econômica nos anos recentes, Maílson da Nóbrega, Edmar Bacha, Pérsio Arida e Gustavo Franco abrem o primeiro mês da série, com relatos sobre os anos de aprendizado dos planos e reformas, com o fim da conta movimento entre Banco do Brasil e Banco Central, a criação da Secretaria do Tesouro, até desembocar no Plano Real, suas reformas econômicas e privatização, regime de metas de inflação e câmbio flutuante.
No desenrolar da série, ouvem-se relatos sobre gestão de crises, desafios de governança, construção e desenho de instituições. A série se encerra com o depoimento do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Inaugurando a série específica sobre o Plano Real, o economista Edmar Bacha, presidente da Casa das Garças e membro da Academia Brasileira de Letras destaca o papel do Departamento de Economia da PUC RIO nas discussões sobre as causas da inflação e as políticas para o seu controle, o aprendizado com as experiências fracassadas de estabilização no Brasil e no mundo, como o Plano Cruzado.
O Plano Real foi produto de muitas discussões acadêmicas que desaguaram num conjunto de etapas que se inicia pela consolidação fiscal e termina com o lançamento da nova moeda, o Real. No caminho, um plano intensivo em negociações com o Congresso, principalmente para a aprovação das medidas de transição para a nova moeda e a criação do fundo social de emergência.
A tarefa ficou a cargo de Bacha, que era chamado de “senador” pelos companheiros de equipe, a tal ponto chegou sua dedicação. Ele diz que o grande trunfo negociador esteve na oferta de um produto de alta demanda da população – a inflação baixa- e, na expectativa dos efeitos desse novo ambiente sobre o crescimento do salário real e a popularidade dos políticos que o apoiavam.
Engenheiro eletrônico e ex-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente relata a sua experiência na administração pública brasileira, especialmente na crise de energia em 2001, que ele admite ter acontecido por desconhecimento do governo da complexidade do sistema hidroelétrico brasileiro.
O conhecimento da real situação teve impacto sobre as expectativas, queda de popularidade do governo e gerou forte preocupação na sociedade. A primeira percepção é que a reação exigia uma coordenação geral, que ficou a cargo de Parente, visto que não se tratava apenas de um contratempo no Ministério de Minas e Energia, e sim de um fato com impacto geral na economia e sociedade.
A mesma percepção não teve o governo Bolsonaro, embora estivesse mais bem informado sobre as consequências da pandemia da COVID-19. Nos debates, ficou demonstrada a importância da autonomia, já que sem ela não se poderia resolver o problema. Em segundo, era preciso ter poder, ou seja, as propostas seriam terminativas, de modo que não sofressem o processo de análise comum no governo.
Por fim, propunha-se a criação de uma câmara de gestão da crise, a qual viria a ser importante no processo de comunicação com a sociedade. A ideia era, sob a gestão de Parente, reunir representantes dos órgãos federais que tivessem relevância no assunto, como do Ministério da Fazenda e do Planejamento, da ANEEL e da ONS. Convocou-se também o professor e consultor empresarial Vicente Falconi, bem como Mauro Arce, secretário de energia de São Paulo. A decisão inicial foi a de o governo assumir a responsabilidade da falha e, a partir dessa medida, buscar, a todo custo, a transparência e disponibilidade diária para responder às indagações da imprensa sobre a crise de energia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/historias-exemplares.html
Míriam Leitão: Centro não é o ponto entre dois extremos
Na disputa entre Lula e Bolsonaro não há dois extremistas. Há um: Bolsonaro. O centro deve procurar seu espaço, seu programa, seu candidato, ou seus candidatos, porque o país precisa de alternativa e renovação. Mas não se deve equiparar o que jamais teve medida de comparação. O ex-presidente Lula governou o Brasil por oito anos e influenciou o governo por outros cinco. Não faz sentido apresentá-lo como se fosse a imagem, na outra ponta, de uma pessoa como o presidente Jair Bolsonaro.
O PT jogou o jogo democrático, Bolsonaro faz a apologia da ditadura. A frase que abre esse parágrafo eu disse em 2018, em comentários e colunas, no segundo turno das últimas eleições. Era a conclusão da análise dos fatos e das palavras dos grupos políticos que disputavam a eleição. Fui hostilizada por dirigentes petistas do Rio dentro de um avião, processei por difamação um servidor do Planalto no governo Dilma. Sou vítima de constantes fake news e agressões do gabinete do ódio do governo Bolsonaro. Já fui criticada em público pelo ex-presidente Lula mais de uma vez e fui vítima de mentiras sórdidas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Poderia com base nisso afirmar que os dois são iguais? Objetivamente, não. Seria falso. Posso concluir que ambos não gostam de mim, mas isso é o de menos. Não é uma questão pessoal.
Em dois anos e quatro meses, Bolsonaro superou as piores expectativas. Na pandemia, ele mostrou seu lado mais perverso. A lista é longa. Deboche diante do sofrimento alheio, disseminação do vírus, criação de conflitos, autoritarismo. O país chegou ao número inaceitável de 400 mil mortos com um presidente negacionista ameaçando usar as Forças Armadas contra a democracia. Em Manaus, no último fim de semana, ele repetiu que poderia lançar os militares contra as ordens dos governadores. “Se eu decretar, eles vão cumprir”. Esse clima de beligerante intimidação prova, diz um general, uma “necessidade doentia de demonstrar ter poder”. Segundo essa fonte, “cada vez que se declara detentor dessa suposta força, demonstra na verdade não tê-la”. Seja qual for a análise da mente distorcida do presidente, o fato é que ele ameaça o país com a ruptura institucional no meio de um doloroso sofrimento coletivo.
O ex-presidente Lula teve uma política ambiental de excelentes resultados na gestão da ministra Marina Silva e do ministro Carlos Minc. O país viu avanços na inclusão de pobres e negros. Na economia, houve erros e acertos. No campo institucional, escolheu ministros do Supremo qualificados e nomeou procuradores-gerais da lista tríplice. Bolsonaro quer devastar a floresta, capturar as instituições e seu governo exibe preconceito como se fosse natural.
Bolsonaro faz ataques sistemáticos aos veículos de imprensa e aos jornalistas. Lula ameaçou impor o que ele chamou de “regulação da mídia”, mas recuou diante da resistência dos órgãos de comunicação. Ameaças nunca devem ser subestimadas, mas as instituições sabem lidar com um governante que tenha um mau projeto. Mais difícil é se defender de um inimigo da democracia como Bolsonaro.
As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal tiraram as penas que recaíram sobre Lula e ele tem dito que foi inocentado. Tecnicamente sim, porque não é mais um condenado pela Justiça. O PT defende a tese de que foi tudo uma conspiração contra o partido. Falta explicar muita coisa, mas principalmente a materialidade do dinheiro que foi devolvido por corruptos e corruptores ao poder público.
Bolsonaro usou o sentimento anticorrupção sem o menor mérito, como se vê na sucessão de rachadinhas, funcionários fantasmas, pagamentos em dinheiro vivo e transações imobiliárias que rondam a família. Isso sem falar nas relações estreitas com personagens obscuros, como o miliciano Adriano da Nóbrega.
Partidos de outras tendências políticas devem trabalhar para oferecer alternativas ao eleitor brasileiro, porque a democracia é feita da diversidade de ideias e de propostas. O erro que não se pode cometer é dizer que essa é a forma de fugir de dois extremos. Isso fere os fatos. Não existe uma extrema-esquerda no país, mas existe Bolsonaro, que é de extrema-direita. No governo, ele multiplicou as mortes da pandemia e sempre deixa claro que se puder cancela a democracia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/centro-nao-e-o-ponto-entre-dois-extremos.html
Bernardo Mello Franco: A aventura de Witzel
Terminou mal a aventura de Wilson Witzel, o Breve. O ex-juiz experimentou uma ascensão meteórica na política. Em poucas semanas, passou de candidato nanico a governador eleito do Rio. Depois de um ano e oito meses no poder, ele foi afastado sob suspeita de corrupção. Na sexta-feira, teve o mandato cassado em definitivo.
Witzel se tornou uma unanimidade ambulante. Em junho de 2020, a Assembleia Legislativa aprovou a abertura do processo de impeachment por 69 votos a 0. Em setembro, repetiu o placar para ejetá-lo da cadeira. Varrido do palácio, ele passou a ser julgado por um tribunal misto. Desembargadores e deputados também concordaram no veredicto: 10 a 0 a favor da cassação.
No início do ano, o governador havia sido derrotado em outra votação unânime. Por 13 a 0, os ministros do Superior Tribunal de Justiça aceitaram denúncia que o acusa de desvios na saúde. Numa inversão de papéis, o ex-juiz virou réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Witzel foi um fenômeno típico das eleições de 2018. Com discurso moralista, vestiu-se de verde e amarelo e surfou a onda conservadora que consagrou Jair Bolsonaro. No último debate na TV, ele demonizou a política e descreveu sua campanha como “uma luta do bem contra o mal”. “Sou um cidadão como você: indignado. Indignado com tanta corrupção”, bradou.
Deslumbrado com o poder, o ex-juiz nunca se preocupou em nomear bons secretários ou montar uma base de apoio na Assembleia. Também não disfarçou a intenção de usar o governo do Rio como um trampolim para concorrer ao Planalto. A soberba cobraria um preço alto. Quando caiu em desgraça, ele não encontrou ninguém para defendê-lo.
Apesar do isolamento, o governador manteve a empáfia até o fim. No dia da votação na Alerj, comparou-se a Tiradentes e Jesus Cristo. Na sexta-feira, descreveu o tribunal do impeachment como uma sucursal do Estado Islâmico. “Hoje não sou eu que sou cassado, é o Estado democrático de direito”, delirou.
O caso de Witzel evidencia o risco de entregar o poder a aventureiros. Sem passado na política, o ex-juiz se limitou a dizer que era diferente de tudo o que estava aí. A retórica seduziu quase cinco milhões de eleitores, que entregaram o Palácio Guanabara a um ilustre desconhecido.
Os desvios na saúde não são a única herança maldita do governador cassado. Ele deixa em seu lugar outro político sob investigação, que também foi alvo de buscas da PF. No fim de março, Cláudio Castro ofereceu mais um cartão de visitas. Dois dias depois de pedir que a população evitasse aglomerações, promoveu uma festa para celebrar o próprio aniversário.
Desde que assumiu o poder, o novo governador se comporta como um súdito da família Bolsonaro. Na ânsia de agradar o capitão, já chegou a desautorizar medidas de distanciamento social. Em entrevista à revista “Veja”, o dublê de político e cantor gospel explicou como foi parar na chapa de Witzel. “Virei vice porque não tinha outro”, admitiu.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/aventura-de-witzel.html
Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi
Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.
No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.
No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html
Ascânio Seleme: Adicto à mentira
A imagem é constrangedora. Daquelas que causam vergonha alheia. Cercado por uns dez assessores, Jair Bolsonaro acena para um ponto à sua frente onde imagina-se estar reunida uma multidão. Eleva os braços como se fizesse louvação aos céus, ou a Deus. Se curva num movimento que parece ser em deferência ao povo com o qual estaria se comunicando. O cinegrafista, que deveria ter parado de filmar neste ponto, segue gravando enquanto o capitão passa por ele e avança. E então, percebe-se que não havia multidão alguma no local para o qual Bolsonaro endereçava seus salamaleques. Havia apenas um helicóptero, três ou quatro aspones e um militar. Era um aceno cinematográfico. Ou fake, se preferir.
Bolsonaro precisa disso? Não. Ele sempre encontra aglomerações de desmascarados para gritar “mito” onde quer que vá. Os iludidos de sempre estão em todos os lugares, prontos para aplaudir o exterminador de futuro que enxergam como um salvador da pátria. Desnecessário discorrer sobre a ignorância dessa gente, não é esse o objetivo. O que se quer dizer aqui é que os acenos efusivos para uma inexistente multidão provam o que já se sabia. Bolsonaro é um adicto à fake news. Ele não consegue se livrar desse vício, como se fosse uma praga que rogaram contra ele e que pegou.
Viciado em mentira desde antes de se candidatar a presidente, foi exemplo para os seus quatro zeros e para os seus seguidores radicais e fiéis. Viraram todos mentirosos contumazes, como ele. Bolsonaro mente para o eleitor e para quem nem ainda vota. Mente para os inimigos e adversários, assim como mente para os amigos e companheiros. Mente para parentes. Mente para os filhos, que passam a mentira para frente. Mente por email e nas redes sociais. Mente ao vivo ou grava mentiras. Mente no privado e no público. Mente digital e analogicamente.
O grupo de checagem Aos Fatos (www.aosfatos.org) contou 2.919 declarações falsas ou distorcidas de Bolsonaro desde a sua posse até a data da última atualização, em 28 de abril passado. Foram 848 dias, ou 3,44 mentiras a cada dia. E estas são apenas as públicas, feitas em discursos, entrevistas, através das suas redes sociais ou colhidas no cercadinho do Alvorada, onde ele mente para os seus seguidores mais entusiasmados. No privado deve ter mentido outras tantas milhares de vezes. O presidente do Brasil é um mentiroso.
De acordo com o volume das suas mentiras pode-se aferir o que mais incomoda o presidente. Um sinal, talvez, de que ele esteja entendendo onde vai mal, apesar de seu reconhecido déficit cognitivo. De 9 de abril do ano passado até o último dia 10 de março, Bolsonaro mentiu 88 vezes sobre a decisão do STF de considerar legítimo que governadores e prefeitos também adotem medidas restritivas para conter a pandemia. O capitão repetiu que o tribunal retirou dele a responsabilidade para atuar contra a doença e a transferiu aos outros entes da federação. Trata-se do famoso “tirar o seu da reta”. No caso, com uma mentira grossa.
O homem que cometeu mais de duas dúzias de crimes de responsabilidade, que ameaçou inúmeras vezes a democracia e que tem 116 pedidos de impeachment na gaveta do presidente da Câmara, teme os efeitos da pandemia sobre o seu futuro. Por isso sobre ela mente mais. Claro que não vai parar por aí, seu vício é maior do que ele próprio. Novas lorotas já estão sendo engendradas nas salas anexas ao Gabinete do Ódio no Palácio do Planalto, e em breve ganharão a luz do dia. E tem também, claro, as mentiras espontâneas, que saem da cabeça aturdida de Bolsonaro. Estas são mais estúpidas e patéticas, e por isso menos eficientes.
Soldadinhos de chumbo
O ministro Luiz Eduardo Ramos tomou vacina escondido por medo do presidente Bolsonaro. Ele pode dizer outra coisa, que foi em respeito ao chefe, que não queria incomodar sua excelência, que era para evitar aborrecimento. Bobagem. O poderoso general estava com medo do capitão. Aliás, Ramos morre de medo de Bolsonaro. No Palácio todo mundo sabe disso. Braga Netto também se pela de medo e igualmente tomou a vacina escondidinho.
Atacar e bajular
O que quer o presidente do Clube Militar, o general da reserva Eduardo José Barbosa? Talvez um cargo no governo. Ou apenas puxar o saco mesmo. Como mostrou Lauro Jardim, o militar da reserva comparou Renan Calheiros e Omar Aziz, relator e presidente da CPI, a Marcola e Fernandinho Beira-Mar. Pela modalidade dos crimes destes, era mais fácil compará-los aos milicianos do Planalto Central. No ano passado, do alto das suas pantufas, Barbosa disse que isolamento social é igual a socialismo.
Abundância
A CPI vai navegar com abundante vento de popa. Seus membros nem precisam se esforçar para encontrar elementos e provas que apontem para os (ir)responsáveis que ampliaram a catástrofe por “ação e omissão”. Além dos 23 crimes já delimitados pela Casa Civil, a CPI tem que acrescentar no seu cardápio a entrega de cloroquina em aldeias indígenas e a falta de vacinas para a segunda dose em cidades de 18 estados. E estas faltam por que? O Ministério da Saúde mandou os municípios usarem todas as doses enviadas porque chegariam mais a tempo do reforço. Era chute.
Polêmica
Até a família real da Jordânia usa a vacina Sputnik V. No Brasil, a Anvisa proibiu sua importação por estados e municípios alegando ausência de documentos e garantias dos fabricantes que atestem a sua segurança. Enquanto isso, faltam vacinas e o número de mortes diárias no Brasil continua na casa do milhar. Se a Anvisa estiver certa, estarão errados 62 países que aprovaram e estão aplicando em suas populações a Sputnik V.
Ao vivo
A eficiência de uma CPI depende muito da sua divulgação. Se ficar apenas em flashes, pode perder o vento a favor. Quem sabe faz ao vivo.
Manda, mas…
Depois da demissão do superintendente da Polícia Federal do Amazonas Alexandre Saraiva, não resta mais dúvida de que Bolsonaro conseguiu mesmo colocar no comando do órgão um delegado que come na sua mão. A esta altura já deve estar recebendo todos os dados que pedir, sobre qualquer inquérito, principalmente os dos seus zeros. Ocorre que, além de você e eu, tem gente dentro da PF vendo a mesma coisa. E coletando elementos inflamáveis que podem se tornar atômicos de uma hora para a outra.
Nosso Rio
O prefeito Eduardo Paes parece não gostar de prestar contas aos vereadores, eleitos como ele. Nos seus primeiros dois mandatos, 2.539 requerimentos de informação só foram respondidos por força judicial nos últimos dias de governo. Já não valiam nada. Agora, 14 vereadores pressionam o presidente da Câmara, Carlo Caiado, para acionar Paes mais uma vez na Justiça. Ele está sentado novamente sobre algumas dezenas de requerimentos enviados ao seu gabinete desde o início do governo.
Eduardo Cunha
Eduardo Cunha foi solto da prisão, embora esteja em casa há oito meses e de onde não pode sair. Sua prisão era temporária, ainda assim o outrora homem mais odiado do Brasil ficou enjaulado três anos e meio. Quem mais falta soltar da turma do primeiro escalão do Rio? Sérgio Cabral não tem como. Ao contrário de Cunha, já foi condenado e só sai depois de cumpridos os requisitos do Código do Processo Penal. Deve demorar um pouco mais.
Petistas bolsonaristas
O episódio do vereador do interior de Minas, que com um facão abriu um caixão lacrado para provar (?) que o defunto não morrera de Covid, confirma a bagunça político-partidária do país. Depois da barbaridade filmada, William Faria, que era vereador do PT, foi expulso pelo diretório regional do partido em razão do ato horrendo típico do bolsonarismo. Já em Santa Catarina, sindicatos ligados ao PT negociam com bolsonaristas para impichar o governador Carlos Moisés. Em troca, ganhariam a presidência da companhia de energia estadual.
Censo 2020
Os dados coletados pelo Censo são sempre muito úteis para a gestão pública. E servem também para fins políticos e eleitorais absolutamente legítimos. Como o governo conhece bem o status da nação, graças à capilaridade de sua estrutura, a oposição tem no Censo uma das suas principais ferramentas para entender o seu país e de que precisa a sua gente. Mandou bem na despedida o ministro Marco Aurélio.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/adicto-mentira-24997558V
Pablo Ortellado: Anvisa mostra independência
A não aprovação da importação da vacina russa Sputnik V mostrou que a agência brasileira mantém sua integridade e autonomia institucional, a despeito das pressões políticas que vêm de todos os lados: da opinião pública, que exige mais vacinas; dos governadores —muitos deles de esquerda —, que compraram milhões de doses; de setores do bolsonarismo que querem fazer da Sputnik “a vacina do Bolsonaro”, para se contrapor à “vacina do Doria”; além da própria Rússia.
Em seu parecer, a Anvisa apontou deficiências técnicas nos estudos clínicos, entraves para inspecionar a fabricação da vacina e, o mais grave, a presença de vírus replicante nas vacinas, o que poderia colocar em risco a saúde de quem as toma.
A decisão da Anvisa foi amplamente respaldada pela comunidade científica brasileira. O perfil da Sputnik no Twitter alegou, porém, que a vacina já foi aprovada em 61 países. O diretor da Anvisa Alex Campos respondeu que se trata de “países sem tradição de maturidade e robustez regulatória”. A Anvisa repassou seu parecer com observações sobre os vírus replicantes à OMS, que também está analisando a aprovação da vacina.
O atropelo no desenvolvimento da Sputnik tem sido alvo de críticas da comunidade científica desde o ano passado. A vacina foi registrada na Rússia antes da conclusão dos estudos clínicos da fase 1 e 2, e sua aprovação em outros países —como a Argentina — foi feita antes da conclusão da fase 3. Um estudo publicado na prestigiosa revista “The Lancet”, posterior ao registro, mostrou, no entanto, a eficácia da vacina.
A adoção da vacina na América Latina foi objeto de uma reportagem do jornal espanhol “El País”, que mostrou como a Argentina, depois de uma aprovação atropelada, promoveu a vacina junto a países ideologicamente alinhados, como México e Bolívia. O jornal “The New York Times” também fez uma reportagem sobre como a Rússia tem usado a vacina como instrumento de diplomacia, priorizando parceiros estratégicos à custa de sua própria população. Documentário recente de Álvaro Pereira Jr. mostrou a maneira agressiva como o governo russo restringe o acesso a informações sobre a Sputnik V.
Críticos da decisão da Anvisa têm alegado que a não aprovação da importação da Sputnik é resultado de pressão dos Estados Unidos. Em documento oficial da era Trump, o Departamento de Saúde americano relata que mandou um enviado ao Brasil para persuadir as autoridades brasileiras a rejeitar a vacina russa. A decisão recente da Anvisa, segundo esses críticos, seria fruto dessa pressão.
A suspeita, no entanto, não é apoiada por outros fatos. Em primeiro lugar, os argumentos da Anvisa para rejeitar a importação foram fortemente respaldados por especialistas. Além disso, se houvesse viés político nas decisões da Anvisa, ela jamais teria aprovado a CoronaVac, desenvolvida na China em parceria com o Instituto Butantan, ligado ao Estado de São Paulo, governado por João Doria. Ambos, China e Doria, são adversários declarados do presidente Bolsonaro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/anvisa-mostra-independencia.html
Bernardo Mello Franco: Os valores de Guedes
Paulo Guedes perdeu a aura de superministro, mas continua a ser o homem certo para o cargo que ocupa. Nenhum outro economista espelharia tão bem os valores e princípios do bolsonarismo. Ou a ausência deles.
Em dois anos e quatro meses no poder, Guedes já ofendeu mulheres, servidores públicos e pobres em geral. A lista de insultos voltou a crescer na terça-feira, em reunião do Conselho de Saúde Complementar.
Sem saber que estava sendo gravado, o ministro disse que “o chinês inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva do que a americana”. A frase criou um novo atrito diplomático com o maior parceiro comercial do Brasil.
Guedes também reclamou do envelhecimento da população, um fato que deveria ser comemorado. “Todo mundo quer viver cem anos”, resmungou, acrescentando que não haveria como atender a todos no setor público.
A queixa revela desprezo pelos idosos mais pobres e insensibilidade com o morticínio no país. Um estudo de Harvard mostrou que a pandemia reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em quase dois anos.
O ministro não pode culpar a câmera indiscreta pelo seu festival de preconceitos. Em eventos públicos, ele já fez coisas como chamar servidores de “parasitas” e dizer que a primeira-dama da França “é feia mesmo”.
Em outra palestra, apontou o que via como efeito indesejado do dólar baixo: “Empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada”. Ele sugeriu que as trabalhadoras deveriam se contentar com passeios mais modestos: “Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu”.
Na reunião de terça, Guedes reclamou que o Fies bancou a faculdade de “filho de porteiro” que tirou zero no vestibular. A história é inverossímil porque o programa exige nota mínima para conceder bolsas. Mas a mentira não é o pior da fala ministerial.
Em novembro, o jornal “El País” entrevistou Gabriella Juvenal Figueiredo, mestranda em história da arte na Espanha. Filha de um porteiro e uma doméstica, ela relatou uma vida de discriminação por estudar entre jovens da elite. “Infelizmente, tive de aprender a sobreviver ao lado dessas pessoas que te olham por cima do ombro”, disse.
Ao contar o que enfrentou, Gabriella resumiu os valores de Guedes.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/os-valores-de-guedes.html