O Globo
Merval Pereira: Bolsonaro, refém do Congresso
Com as emendas impositivas, inclusive as de relator, o Congresso faz uma espécie de autogestão
Merval Pereira / O Globo
O presidente Bolsonaro chegou a uma encruzilhada na sua relação com a base parlamentar, em especial com os partidos do Centrão, mas também com o PSD de Gilberto Kassab, que trabalha para montar um partido tão forte que seja impossível ignorá-lo na composição de um futuro governo, que, ele garante, não será de Bolsonaro.
Um exemplo recente do desentendimento com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, ainda está na retórica, mas pode ser pólvora no relacionamento. Lira foi a um seminário em Lisboa organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), idealizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, e aderiu à tese do semipresidencialismo, que Gilmar defende há muito tempo.
Nesse tipo de governo, o presidente da República, eleito pelo voto direto, compartilha o governo com o primeiro-ministro, eleito pelo Congresso. Disse Lira numa palestra: “A previsão de uma dupla responsabilidade do governo, ou de uma responsabilidade compartilhada do governo, que responderia tanto ao presidente da República quanto ao Parlamento, pode ser a engrenagem institucional que tanto nos faz falta nos momentos de crises políticas mais agudas”.
Na primeira afirmativa, não houve a definição de um marco temporal para a eventual adoção do novo sistema de governo, e Bolsonaro sentiu cheiro de queimado. Lira, mais adiante, contemporizou, explicando que, se aprovado, o semipresidencialismo só poderia entrar em vigor na eleição presidencial de 2026. Nem precisava, pois já passou o prazo de um ano antes da eleição para mudar regras eleitorais.
Mas Bolsonaro não engoliu e até hoje reclama. Disse a seus seguidores ontem: “É uma coisa tão idiota que não dá nem para discutir”. Mas estava tão irritado com a ideia, mesmo para seu sucessor, que a comparou a “jogar fora das quatro linhas” e ameaçou combater os defensores da ideia, “o mesmo grupo de interesseiros de sempre”, na mesma medida, isto é, fora da Constituição.
O episódio, mesmo sem consequências concretas, demonstra que o presidente é refém do Centrão, em especial do presidente da Câmara, Arthur Lira, que faz o que quer. As críticas que Bolsonaro recebe são de outras vias — a sociedade protesta, a imprensa denuncia —, mas os políticos estão todos alinhados. Com o Centrão majoritário, Bolsonaro não tem lugar de fala, tem de aceitar o que o grupo quer e recebe favores quando os interesses coincidem.
O Congresso está muito independente do governo, não no sentido de defender teses e de se posicionar autonomamente em relação aos grandes temas nacionais, mas no de ter decisões próprias em vários assuntos. A situação piorou com a atuação mais destacada do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, potencial candidato a presidente do PSD de Kassab.
Agora, Bolsonaro nomeou um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Raimundo Carreiro, para a embaixada em Portugal, abrindo no tribunal uma vaga para a indicação do Senado. Bolsonaro quer um aliado a mais no TCU e pretende nomear seu líder do governo, Fernando Bezerra. Mas o presidente do Senado tem outro candidato, o senador mineiro do PSD Antonio Anastasia. A senadora Kátia Abreu, do PP, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, também está na disputa, mas Bolsonaro não quer nenhum dos dois.
O presidente, no entanto, não controla esse processo, assim como não consegue obrigar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a sabatinar André Mendonça, seu indicado para o STF. Pacheco, que pressionava o presidente da CCJ, senador Davi Alcolumbre, a marcar a sabatina, agora tem uma razão também para boicotar Bolsonaro, que realmente está refém de deputados e senadores.
Sempre o governo controlou o Congresso por meio dessas verbas secretas e otras cositas más. Mas, com as emendas impositivas, inclusive as de relator, o Congresso faz uma espécie de autogestão. Mesmo que ele esteja bem posicionado nas pesquisas eleitorais, a expectativa de poder de Bolsonaro vem caindo na visão dos políticos. Por isso, a dificuldade para conseguir a décima legenda é grande. Ele faz exigências como se fosse o Bolsonaro de 2018, mas o de 2022, no momento, não está bem na foto.
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Na coluna de domingo, sobre a diversidade na Academia Brasileira de Letras, não citei um registro histórico importante: entre 2016 e 2017, a ABL teve seu segundo presidente negro, o professor e escritor Domício Proença Filho.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/refem-do-congresso.html
Elio Gaspari: Propaganda transforma Planalto em casa da sogra
Palácios brasileiros passaram a ser tratados como propriedade privada há pouco tempo
Elio Gaspari / O Globo
O capitão mandou pendurar um painel de 10 metros por 2,5 no saguão do Palácio do Planalto. Chama-se “Brasil acima de tudo” e faz seu gosto. Bolsonaro também quer privatizar a Petrobras. É seu direito defender a ideia, tomando as providências que a lei determina. Não é seu direito, contudo, tratar o prédio onde trabalha como propriedade privada. Se o Instituto do Patrimônio Histórico não serve para proteger a arte do palácio presidencial, seria melhor fechá-lo.
Os palácios brasileiros passaram a ser tratados como propriedade privada há pouco tempo. Getulio Vargas pouco mexeu no Catete ou no Laranjeiras. No Alvorada de JK, a sala de jantar era iluminada por lâmpadas fluorescentes que arruinavam a maquiagem das senhoras. No governo de FHC, colocou-se uma grande escultura de madeira no jardim do Alvorada. Com a chegada de Lula, a peça foi retirada e acabou num galpão. No lugar, entrou um canteiro de flores vermelhas com a forma da estrela do PT. No Planalto, Nosso Guia instalou um pequeno museu com peças de sua vida. Lula se foi, e com ele a estrela de flores e o museu.
O presidente americano Ronald Regan comparou o palácio da “Alvarado” ao QG de uma companhia de seguros. Bolsonaro já havia exposto no saguão do Planalto, onde pôs o painel, as roupas que ele e sua mulher Michelle usaram no dia da posse. Elas continuam lá, afastadas.
Essas manifestações de falso gosto histórico ou artístico são bregas e constrangedoras. Os museus brasileiros conservam peças que poderiam ser emprestadas ao Planalto. Aquelas paredes não são molduras de painéis de propaganda política.
Os retirantes que somem
Saiu o primeiro dos dois volumes da biografia de Lula, escrita pelo jornalista Fernando Morais. Perto da metade de suas 468 páginas ocupam-se com minuciosas descrições de suas prisões, a de 2018, como ex-presidente, e a de 1980, como líder sindical.
É o livro de um biógrafo que gosta do seu personagem, circunstância que o enriquece. Em um parágrafo, ele conta a partida de Dona Lindu, em 1952, com seis crianças na caçamba de um caminhão do interior de Pernambuco a Santos. Lula tinha sete anos. Essa viagem de 13 dias teve algo de épico, sem conforto, com quase nenhuma comida e já foi contada muitas vezes. Dona Lindu e seus filhos estão imortalizados no Recife, num monumento aos retirantes nordestinos da época. Plantado num parque que leva o nome da matriarca, foi projetado por Oscar Niemeyer.
A história tem suas trapaças. Faltam no monumento aos retirantes, e em quase todas as descrições da viagem, Dorico, irmão de Lindu, a mulher, Laura, e mais suas duas crianças. Eles também vieram no pau-de-arara. Quando chegaram a Santos, foi Dorico quem chamou o táxi que os levou ao endereço de Aristides, o pai de Lula. Trabalhando como estivador, vivia com Mocinha, a prima de Lindu, com quem viera de Pernambuco. Isso foi revelado há anos pela jornalista Denise Paraná em seu excepcional “Lula, Filho do Brasil”.
Morais fez duas referências nominais a Dorico, ambas mostrando que, anos depois, Dona Lindu e seus filhos moraram num quarto nos fundos de seu bar, em São Paulo.
A ausência de Dorico e sua família no monumento do Recife e nessa parte da história do garoto Luiz Inácio é um aspecto da vida dos retirantes dos anos 50. É a presença do ausente, aquele migrante que acaba engolido pela História, mesmo que seu sobrinho tenha sido presidente da República por dois mandatos.
O Touro de Ouro
Se o monumento a Dona Lindu, do escultor Abelardo da Hora, é uma homenagem ao andar de baixo, o Touro de Ouro que papeleiros puseram diante da Bolsa de Valores é um monumento à falta de imaginação do andar de cima de Pindorama. É um eco da escultura semelhante colocada em frente à Bolsa de Wall Street.
Madame Natasha lembra que no Brasil, e em português, touros nada têm a ver com Bolsas. Em Wall Street, o touro, “bull” em inglês, designa um mercado que o bicho joga para cima com seus chifres. Já um mercado em queda é chamado de “bear” (urso) porque empurra suas presas para baixo.
O touro de Wall Street é de bronze, com a cor do metal. O touro paulista é de fibra de vidro, pintada de dourado. De ouro era Baal, a divindade pagã que Moisés destruiu quando desceu do Monte Sinai.
Enquanto o Touro de Ouro foi para a frente da Bolsa, o urso dava o ar de sua graça e os papéis caíram abaixo da marca de novembro do ano passado.
O recado de Leite
Seja qual for o resultado da prévia tucana, o governador gaúcho, Eduardo Leite, deixou sua marca no debate presidencial. Anunciou que é contra a reeleição de presidentes, governadores e prefeitos. Tem autoridade para isso porque não disputou a reeleição em Pelotas, foi para o sereno e dois anos depois elegeu-se governador do Rio Grande do Sul.
Lula foi contra a reeleição, até que chegou sua hora. Bolsonaro também prometeu não disputá-la.
Todos os males da vida nacional, do descontrole dos gastos ao toma-lá-dá-cá, têm raízes estruturais e são ossos duros de roer. Só a reeleição pode ser cancelada com uma desambição exemplar e um ato parlamentar.
Nunes Marques, o quieto
Desde que chegou ao Supremo Tribunal Federal, o ministro Kassio Nunes Marques tem sido visto como uma figura silenciosa e dissidente, com jeito de penetra. Ele se tornou um discreto articulador nas escolhas do Planalto para o preenchimento de vagas no Judiciário.
Nisso ele é um mestre, tanto que chegou à Corte como um verdadeiro azarão.
Pesadelo diplomático
Depois que Bolsonaro foi aos Emirados Árabes para andar de motocicleta enquanto Lula era recebido como um chefe de Estado na Europa, um pesadelo diplomático assombra o Planalto. É a possibilidade dele ir aos Estados Unidos no ano que vem.
Se Lula se encontrar com metade das vítimas das caneladas do bolsonarismo, repetirá o êxito do périplo europeu.
Pastore tem sorte
O economista Affonso Celso Pastore, que está no círculo de colaboradores de Sergio Moro, sabe economia e passou pela presidência do Banco Central (1983-1985) com biografia imaculada, e é também uma pessoa de sorte.
Em 1982, quando participava de uma reunião do FMI em Toronto, saiu para almoçar e pediu ostras. Mordeu uma coisa dura e achou que tinha quebrado um dente.
Era uma pérola.
Um ano de Pix
As coisas podem dar certo. O Banco Central comemorou discretamente um ano de funcionamento do aplicativo Pix.
Sem marquetagens, mentiras ou pixulecos, ele já atendeu 104 milhões de pessoas, movimentando R$ 4 trilhões.
Teve falhas e foram corrigidas, pode melhorar e o BC está trabalhando nisso.
Missão para Mourão
Se o general da reserva Hamilton Mourão for um homem caridoso e tiver uma brecha na agenda, bem que poderia ir a Washington para almoçar com sua colega Kamala Harris.
Poderia explicar-lhe o que deve fazer para continuar viva numa Casa Branca habitada por um presidente cercado por fofoqueiros que não têm o que fazer e, se tivessem, seriam incapazes de enfiar um prego numa barra de sabão.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/propaganda-transforma-planalto-em-casa-da-sogra-25285090
Alessandro Vieira: Precisamos falar do Orçamento
Quadro atual traz dilemas que persistem desde a redemocratização
Alessandro Vieira / O Globo
Às vésperas da votação da PEC dos Precatórios no Senado, precisamos falar sobre o verdadeiro problema que ela traz à tona. Não é a PEC, muito menos o auxílio social que ela — em tese — torna possível. Não é só o orçamento secreto, ou as emendas distribuídas a alguns parlamentares “coincidentemente” próximo a votações importantes. A verdade é que precisamos falar sobre o Orçamento federal.
O Orçamento no Brasil não tem passado de uma peça de ficção. Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA), em tese, deveriam servir como norte para um planejamento de país: da Educação à Saúde, da Infraestrutura à Agricultura. No entanto o que temos visto governo após governo é um jogo de quebra-cabeça em que as peças não se encaixam e acabam por formar uma imagem turva do que gostaríamos de ser.
A ideia do ciclo de planejamento é bonita: começa com o PPA, quando o presidente eleito tem a missão de desenhar o país que pretende conduzir pelos próximos quatro anos. Ali, os ministérios descrevem suas diretrizes, objetivos e metas para aquele ciclo, que se inicia no segundo ano de cada mandato e se encerra no primeiro ano do mandato seguinte, trazendo o senso de continuidade. Seus programas e ações devem orientar a LDO, em que serão elencadas as políticas públicas a ser priorizadas para que as metas sejam cumpridas. A LOA completa o quadro. Ali se demonstra como o governo pretende pagar por aquilo que foi planejado para o ano seguinte.
O problema é que a teoria tem se mostrado ineficiente na prática, especialmente quando o governo se exime de qualquer responsabilidade sobre presente e futuro. Uma das principais alterações feitas por Bolsonaro na estrutura administrativa foi a incorporação do Ministério do Planejamento ao Ministério da Economia, uma estrutura que se tornou grande demais para a pequena capacidade de gestão deste governo. Em certa medida, perdeu-se a visão estratégica da economia e do próprio planejamento. Talvez tenha sido uma mostra do que se podia esperar.
No entanto o quadro atual traz dilemas que persistem desde a redemocratização. Por vezes, não é possível compreender os confusos Projetos de Lei do Congresso (PLNs) que buscam alterar a colcha de retalhos que virou o Orçamento público federal. A atenção de todos acaba se voltando mais para o não previsto, e o recurso discricionário (livre de definições prévias) se torna objeto principal, seja como RP2 (emendas discricionárias), RP9 (emendas de relator) ou a manobra orçamentária que surgir. Ocupam-se mais com o recurso que deveria apenas corrigir distorções do que com o que deveria balizar o funcionamento do país.
Então tem-se uma bola de neve: processos nada transparentes geram execuções obscuras, dificultam a fiscalização da execução e permitem o surgimento de esquemas que só mudam de nome, independentemente de qual partido esteja no poder. No passado, Anões do Orçamento, mensalão. Atualmente orçamento secreto (ou bolsolão). E nos atemos mais aos nomes que às soluções.
Especialmente no pós-pandemia, precisamos de governantes que compreendam a importância do ciclo: planejar, executar, fiscalizar. Precisamos nos concentrar no que é essencial para garantir um mínimo de dignidade à população mais carente e criar as condições necessárias para que a nossa economia seja reconstruída. Precisamos de processos transparentes, de um Orçamento que possa ser revisto, mas que sirva como norteador real, e não fictício, de um projeto de país.
Com parlamentares mirando na poupança eleitoral e um presidente preocupado em manter seu poder de compra sob o Centrão, dificilmente teremos o melhor resultado. Ou começamos quanto antes a construir um país em bases verdadeiramente sólidas, ou tudo que teremos será uma nação sempre prestes a ruir.
*Senador (Cidadania-SE)
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/precisamos-falar-do-orcamento.html
Zumbi: acadêmicos negras e negros resgatam legado preto
Em artigos, historiadores negros refletem sobre eles
Flávia Barbosa / O Globo
RIO - Quando a Estação Primeira de Mangueira atravessou a Sapucaí em 2019 cantando os rostos, a força, a representatividade e o legado de Dandaras, Marias, Mahins, Marielles e malês, no arrebatador enredo “Histórias para ninar gente grande”, a escola de samba vestiu de arte o que para gerações de mulheres e homens é luta: a ressignificação da História do Brasil. De maioria negra, mas marcado profundamente pela escravidão e o racismo estrutural, o país, ao escrever a narrativa de sua construção como nação, negou olhar, voz e experiências aos pretos. Simbolicamente, à luz do grande público e em verde e rosa, naquele desfile o protagonismo foi devolvido.
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— Foi catártico. A abolição não era concessão da Princesa Isabel, tínhamos ali os abolicionistas negros, Luís Gama, José do Patrocínio. Quase morri com a ala da imprensa negra, ninguém sabe da atuação negra neste espaço. Mas eu mudaria o verso ‘histórias que a História não conta’ para ‘histórias que a nossa História já conta, escrita por pessoas negras do presente sobre pessoas negras do passado’ — afirma a historiadora Ana Flávia Magalhães, da Universidade de Brasília (UnB).
Ela é uma das fundadoras da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, que mobiliza cerca de 300 pesquisadores de todas as regiões com o objetivo de mudar o olhar sobre o estudo do povo negro no Brasil. Sai a historiografia clássica, escrita por profissionais majoritariamente brancos e interessada na escravidão, e entra uma abordagem focada na construção da liberdade, no pós-abolição e nas trajetórias individuais e coletivas.
Ampliam-se também os espaços de diálogo. A pesquisa rompe os muros das universidades, de onde o povo negro era estudado com distanciamento, e ganha a internet, com a coluna semanal “Nossas Histórias” e o programa mensal “Pensar africanamente”.
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— A historiografia escrita por estudiosos negros faz da ancestralidade objeto de estudo, utilizando a subjetividade de quem vive o racismo. Esta experiência muda a perspectiva — reflete Ana Flávia.— Há também forte impacto das ações afirmativas e da presença de professores das escolas públicas nas universidades neste olhar. Há muito repertório mobilizado.
A ancestralidade é, aliás, a força motriz do movimento. Em 1971, o Grupo Palmares propôs o dia 20 de novembro, morte de Zumbi, como data de celebração da Consciência Negra e do povo como agente de sua história, em contraposição à passividade e “desumanidade” do 13 de maio, dia da Abolição. A ideia ganhou força com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e foi lapidada pelo surgimento de importantes historiadores negros (e dos negros) na década de 1980.
Mas como consolidar uma História que mostre um Brasil mais negro, e portanto mais real? A Rede ressalta três caminhos importantes: a Educação antirracista, a visibilidade de personagens e trajetórias e o reconhecimento do patrimônio público. Em artigos, historiadores negros refletem sobre eles.
'Nossas heranças: os patrimônios negros no Brasil'
Os bens culturais são cruciais porque ajudam a transformar a visão sobre a identidade do país
Francisco Phelipe Cunha Paz e Mônica lima
RIO - Você sabia que é possível traçar uma história dos patrimônios negros no Brasil desde 1938, quando ocorreu o tombamento do acervo Nosso Sagrado - antiga Coleção do Museu da Magia Negra e primeiro bem etnográfico reconhecido — até 2017, quando o Cais do Valongo se tornou Patrimônio Mundial? Nesses 79 anos, as práticas de patrimonialização, como uma das formas de “usos do passado” têm sido disputadas pelos movimentos sociais negros, populações negras, Estado, intelectuais, acadêmicos e instituições de memória.
Desde os anos 1980, pressões desses sujeitos políticos têm exigido do Estado brasileiro mudanças nos valores e práticas das políticas públicas de memória, por entender que cumprem função estratégica na conquista de direitos e na luta contra o racismo. O reconhecimento de bens culturais de matrizes não-hegemônicas, negras e indígenas, especialmente, é fruto dessa pressão. Trata-se de uma dinâmica que tem acelerado até mesmo um processo interno de reelaboração técnica dos paradigmas de representação da nacionalidade por vias oficiais.
Tal processo produziu diversos patrimônios negros que hoje figuram na lista de patrimônios culturais nacionais, sejam como bens materiais ou tangíveis, tais como os Terreiros de Candomblé, templos católicos de irmandades negras e, mais recentemente, as Docas Pedro II e o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo. Há também os que foram reconhecidos como bens imateriais ou intangíveis, como as Celebrações: Bembé do Mercado (BA), Festa do Divino Espírito Santo de Paraty (RJ), o Complexo Cultural Bumba Meu Boi (MA); os Saberes: Mestres de capoeira, Baianas de acarajé, Sistema agrícola tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP); e as Formas de expressão: Samba de roda (BA), Tambor de crioula (MA), Marabaixo (AP), Carimbó (PA), Maracatu (PE), Matrizes do samba do Rio de Janeiro (RJ) e o Jongo do Sudeste, para citar alguns. No reconhecimento desses patrimônios, mobilizam-se fontes variadas, mas, sobretudo, conhecimentos e informações dos detentores desses bens culturais, seus formuladores e guardiões.
Se há uma narrativa que busca aprisionar os sujeitos negros no silêncio ou mesmo os apagar da memória e da história da sociedade, há outro discurso em que, de forma vigorosa, seus criadores atualizam e ritualizam ancestralidades africanas numa luta contra o esquecimento. São esforços por direito à memória e a uma narrativa do passado mais justa. E, principalmente, a construir suas próprias maneiras de lembrar, narrar e fazer uso desses passados.
Para a historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995), o negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo. Os patrimônios negros, valorados como herança no presente, reconstroem esse gesto, para além da dor e do trauma da colonização e da escravidão, mas sem negar ou diminuir seu impacto sobre nossos corpos e vidas. Por isso, significam tanto para a discussão da consciência negra, porque reposicionam a visão sobre a identidade brasileira.
*Francisco Phelipe Cunha Paz, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (Iphan),
**Mônica Lima, professora de História da África e Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA/UFRJ)
'O legado político das mulheres negras'
Marcha há seis anos foi singular por reivindicar atenção à tradição feminina em projetos emancipatórios
Mariléa de Almeida e Taina Silva Santos
CAMPINAS - Há seis anos, na antevéspera do Dia Nacional da Consciência Negra, mais de 50 mil mulheres negras marcharam até Brasília em protesto contra o racismo, a violência, a intolerância religiosa e pelo bem viver. Na frente do Congresso, a Marcha Nacional das Mulheres Negras questionou hierarquias construídas sob a dominação branca e patriarcal, reunindo trabalhadoras urbanas, camponesas, quilombolas, mulheres dos movimentos de luta pela moradia, religiosas de matriz africana e tantas outras.
O texto de abertura da carta do movimento deu o tom do debate: “Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha inspiradas em nossa ancestralidade que nos fez portadoras de um legado capaz de ofertar concepções que inspirem a construção e consolidação de um novo pacto civilizatório”. Há séculos, mulheres negras têm dado respostas aos mecanismos de exclusão de uma sociedade marcada por sistemas violentos de discriminação.
O protagonismo político das mulheres negras é perceptível em diversos momentos da história do Brasil, por meio de articulações estabelecidas dentro e fora dos espaços de sociabilidade negra. Estudos históricos apontam a importância das mulheres africanas e afro-descendentes na sustentação de famílias negras na escravidão e na liberdade e na formação de linhagens longevas nos campos e nas cidades. Ademais, elas estabeleceram redes por meio dos ambientes de trabalho, de forma que a atuação no comércio proporcionou recursos para a compra de número considerável de alforrias e ocupação de espaços sociais no mundo livre.
Desse modo, os agenciamentos contemporâneos das mulheres negras em defesa da vida e da liberdade não representam uma novidade. O que torna o momento atual singular é que, coletivamente, elas reivindicam o reconhecimento público de uma tradição feminina negra na criação de projetos emancipatórios para suas comunidades e o próprio país. Tal atitude foi impulsionada pelos aportes oferecidos pelos feminismos negros, mulherismo africana e toda gama de conhecimento criado por mulheres negras de diferentes classes sociais. Ao valorizar dimensões da vida como o cuidado, o afeto e a transmissão das experiências negras, o pensamento feminino negro torna visível a radicalidade política do seu legado.
A marcha exprime continuidades e descontinuidades de um longo processo, tornando-se, portanto, um acontecimento incontornável para a compreensão do presente e a ampliação de repertório de sujeitos centrais da luta antirracista e do país. A esse respeito, sumarizou Luiza Bairros (1953-2016): “Não tem mais como você pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Desconsiderando a mulher negra. Sem isso você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada. E a marcha está dizendo isso”.
Mariléa de Almeida, doutora em História (Unicamp)
Taina Silva Santos, mestranda em História (Unicamp)
'História do Brasil ensinada pelo Movimento Negro'
Amilcar Pereira e Stephane Ramos
Crianças e jovens de diferentes cores de pele precisam aprender sobre a trajetória de lideranças pretas brasileiras
RIO - Quando perguntados sobre personalidades do movimento negro em sala de aula, estudantes lembram de Martin Luther King, Malcolm X ou Panteras Negras. As referências para pensar o antirracismo são sempre as vindas dos Estados Unidos, como se não houvesse movimento negro com força no Brasil. O diagnóstico feito por Jéssika R. S. Silva, professora de História da rede estadual do Rio de Janeiro e doutora em Educação pela UFRJ, aponta para uma lacuna de toda a comunidade escolar.
O que muitos alunos, mães e pais não sabem é que o movimento negro no Brasil, a exemplo da Frente Negra Brasileira (FNB), maior organização política do tipo na primeira metade do século 20, foi fonte de inspiração para a luta dos negros americanos. Nessa mesma linha, a Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, foi uma conquista do movimento negro deste país. Algo que o movimento negro nos Estados Unidos nunca conseguiu alcançar.
Angela Davis, intelectual ativista americana de longa trajetória, já afirmou em diversos momentos o quanto ela aprende com as pautas e ações organizadas pelo movimento negro daqui. Em sua avaliação, Lélia Gonzalez (1935-1994), pensadora negra feminista brasileira, lhe ensinou muito mais do que ela teria a nos ensinar.
Embora ainda não reconheçamos amplamente as organizações e as lideranças do movimento negro brasileiro — por nome e sobrenome — nas escolas e na sociedade como um todo, temos lidado com os resultados de suas ações. A lei citada e as políticas de cotas para negros e negras nas universidades e serviços públicos são fortes expressões dessa agência histórica.
Como essas conquistas foram possíveis? As respostas demandam o nosso conhecimento das diversas trajetórias de luta da população negra brasileira, porque elas dão a medida do que nós somos como Nação, porque são parte incontornável da História do Brasil. As crianças e jovens nas escolas, negras em sua maioria, precisam saber que a luta antirracista aqui produziu lideranças e organizações negras como Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento (1914-2011), Oliveira Silveira (1941-2009), Carlos de Assumpção (1927-), Lydia Garcia (1938-), Ana Célia da Silva (1940-), Edson Cardoso (1949-), Sueli Carneiro (1950-), Zélia Amador (1951-), a FNB, o Movimento Negro Unificado (MNU), entre tantos outros sujeitos individuais e coletivos que têm ajudado a mudar o Brasil por meio da luta antirracista.
A Rede de HistoriadorXs NegrXs tem se somado a esses esforços em suas ações internas e externas para aquilo que o MNU já reivindicava em sua Carta de Princípios de 1978: “a reavaliação do papel do negro na História do Brasil”. Isso significa que as vidas negras precisam ocupar os currículos, as escolas e qualquer espaço na proporção de sua real relevância! Estamos atuando para efetivamente fazer valer a máxima: Vidas Negras Importam!
Amilcar Pereira, doutor em História (UFF) e professor da Pós-Graduação em Educação e em Ensino de História (UFRJ)
Stephane Ramos, doutoranda em História (UnB) e mestre em História Comparada (UFRJ)
Leia mais
Nossas heranças:'Nossas heranças: os patrimônios negros no Brasil', por Francisco Phelipe Cunha Paz e Mônica lima
Marcha histórica:'O legado político das mulheres negras', por Mariléa de Almeida e Taina Silva Santos
Na escola:'História do Brasil ensinada pelo Movimento Negro', por Amilcar Pereira e Stephane Ramos
Elio Gaspari: A China jogou pesado
Pequim aderiu à diplomacia de segunda
Elio Gaspari / O Globo
A revelação veio do repórter Marcelo Ninio. Depois que a China suspendeu a importação de carne bovina brasileira, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, pediu hora para falar ao telefone com seu equivalente, e Pequim respondeu que ele estava sem espaço na agenda. No pedido, não se havia especificado dia nem hora. A resposta esfarrapada foi grosseria inédita para uma diplomacia experimentada como a do Império do Meio.
De um lado, ela mostra como a China é capaz de jogar bruto quando acha que está numa posição de força. De outro, ensina que o governo do capitão cultiva malcriações delirantes, mas é, acima de tudo, disfuncional.
A China embargou as importações de carne bovina no início de setembro, acompanhando uma iniciativa pontual do governo. Suspendeu as vendas por causa da ocorrência de dois casos da doença da vaca louca. Desde então, foram remetidas informações às autoridades sanitárias chinesas, mostrando a natureza isolada dos episódios. Passaram-se mais de dois meses, e o embargo continua. Se o ano terminar sem que a barreira seja levantada, a pecuária brasileira poderá perder até R$ 10 bilhões em negócios.
O recurso a embargos comerciais como forma de pressão diplomática é coisa velha. O pelotão palaciano acredita em mulas sem cabeça e cultivou a crença segundo a qual os chineses precisam das proteínas brasileiras. Os fornecedores da Europa e do Cazaquistão agradecem, pois estão ocupando o espaço aberto no mercado chinês.
A disfuncionalidade do governo brasileiro tem de tudo. Já houve um chanceler que dizia ser um pária orgulhoso, e o presidente diz o que lhe vem à cabeça. O Itamaraty perdeu a relevância nas negociações internacionais. Foi substituído por uma diplomacia de compadrio de maus resultados. Joe Biden está na Casa Branca, e Steve Bannon, guru de Trump e de Bolsonaro, está sem o passaporte. O embaixador do Planalto para a África do Sul (Marcelo Crivella) está no sereno, sem agrément. O telefonema do capitão ao presidente Cyril Ramaphosa resultou num desprestígio inútil. O caso do embargo ilustra quanto custa desprezar a máquina institucional do Estado.
A funcionalidade exigiria que o assunto, apesar da natureza comercial, fosse coordenado pelo Itamaraty. Ministros de outras pastas ajudam, orientam, mas não devem tomar iniciativas. Quando a ministra Tereza Cristina anunciou, em meados de outubro, que estava disposta a ir a Pequim para negociar o fim do embargo, foi para a chuva. Ao pedir agenda para um telefonema a seu colega chinês, molhou-se. É verdade que não lhe restavam outros caminhos, pois a embaixada do Brasil em Pequim ficou sem canais para cuidar de um assunto como o embargo, já que o Planalto já fez sucessivas malcriações com a embaixada chinesa em Brasília. A reciprocidade, como o hábito de escovar os dentes, faz parte do cotidiano da diplomacia.
O tranco chinês era coisa previsível, questão de quando e como. O silêncio numa questão que envolve o agronegócio e o Ministério da Agricultura indica que há um certo método do jogo bruto. Deram um joelhaço nos aliados potenciais numa negociação racional. Foi o recado de uma diplomacia de segunda classe, recíproco, porém de má qualidade.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/a-china-jogou-pesado-25279360
Biden e Xi trocam gentilezas e citam necessidade de evitar conflito
Trato afável de presidentes em sua mais longa conversa sinaliza redução de tensões na rivalidade entre as potências
O Globo e agências internacionais
PEQUIM E WASHINGTON - A mais longa conversa entre Joe Biden e Xi Jinping desde que o democrata chegou à Casa Branca começou cordial, com ambas as partes trocando gentilezas e sinalizando uma redução de tensões nas relações entre as potências.
As negociações, que começaram pouco antes das 22h de segunda-feira no Brasil, têm o objetivo de definir os termos de competição entre os países. O encontro virtual acontece menos de uma semana depois de as potências anunciarem um inesperado acordo de cooperação na área climática durante a COP26.
Os primeiros momentos do diálogo em vídeo dos dois líderes foram observados por um pequeno grupo de repórteres, que se juntaram a Biden, a seu secretário de Estado, Antony Blinken, e outras autoridades americanas na Casa Branca. Autoridades americanas disseram que o diálogo deve durar várias horas. Quase todo o encontro acontece a portas fechadas.
Biden falou primeiro, e disse que são necessárias medidas de "contenção" que funcionem como “grades de bom senso”, porque "a competição entre os dois países não deve se transformar em um conflito".
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O presidente americano fez referência à sua antiga relação com Xi. Quando era vice-presidente de Barack Obama, Biden várias vezes se encontrou com o líder chinês, a quem considerava um parceiro de trabalho
— Talvez eu deva começar de forma mais formal, embora você e eu nunca tenhamos sido tão formais um com o outro — disse Biden a Xi.
Xi, por sua vez, disse estar muito feliz em ver Biden, a quem chamou de "velho amigo". O líder chinês afirmou que os dois lados devem "melhorar sua comunicação e cooperação".
— Uma relação saudável e estável entre a China e os Estados Unidos é necessária para promover o desenvolvimento respectivo da China e dos EUA, manter um ambiente internacional pacífico e estável e lidar de forma eficaz com os desafios globais, como a mudança climática e a Covid-19 — afirmou Xi segundo a mídia estatal chinesa.
A despeito da troca de cordialidades, espera-se que Biden pressione Pequim em áreas como comércio e questões de segurança. Logo antes do encontro, Biden afirmou a repórteres que iria abordar áreas de preocupação para Washington, incluindo direitos humanos e outras questões na região do Indo-Pacífico.PUBLICIDADE
Os Estados Unidos e a China, as duas maiores economias do mundo, trocam acusações que envolvem desde as origens da pandemia de Covid-19 até um avanço de tecnologias militares por ambas as partes.
Mesmo assim, nenhum dos lados deseja que a competição evolua a ponto de gerar um conflito, e ambos entendem ser necessário manter o diálogo para isso. Assessores de Biden apresentam a cúpula como uma oportunidade para tentar evitar uma escalada das tensões, especialmente em relação a Taiwan, ilha que a China considera uma província rebelde.
Segundo os assessores, Biden deixará claro na conversa que os EUA pretendem criar salvaguardas comuns para evitar erros de cálculo ou mal-entendidos entre as partes. Um funcionário disse também que não se deve esperar grandes resultados da reunião.
Biden e Xi conversaram por telefone duas vezes desde a eleição do americano. A última conversa foi no dia 9 de setembro, em uma chamada de 90 minutos que um oficial americano disse que abordou questões econômicas, a mudança climática e a pandemia.
Ainda não há comunicados conjuntos nem individuais do encontro. Esta notícia será atualizada quando houver mais informações.
Merval Pereira: A mesma linguagem de Jair Bolsonaro
Bolsonaro não é mais o mesmo porque não encontra uma legenda que aceite suas condições
Merval Pereira / Globo
A demonstração exemplar de que o presidente Bolsonaro já não é mais o mesmo está contida na discussão virtual de baixo calão que teve com seu grande líder político Valdemar da Costa Neto, dono de fato e direito do Partido Liberal (PL). Estou falando do ponto de vista de poder, e não de ideologia, pois Bolsonaro, como admitiu recentemente, sempre foi do Centrão, embora figura do baixo clero que nunca teve expressão política nos nove partidos dos quais já fez parte.
Não é mais o mesmo porque não encontra uma legenda que aceite suas condições, e nem conseguiu criar a sua própria, num quadro partidário que tem mais de 35 partidos em ação, e outros tantos pedindo registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com o PSL, seu último partido, por cuja legenda elegeu-se presidente da República, a briga foi pelo butim partidário. Junto com o PT, o PSL é o partido mais rico com os fundos partidário e eleitoral, graças ao tsunami eleitoral liderado por Bolsonaro em 2018.
Mas o partido tinha e tem dono, Luciano Bivar, que não deu a chave do cofre, agora milionário, para o clã guloso. No PL, que também tem um cofre recheado, a briga, aparentemente, foi pelos palanques regionais, mas indiretamente também pela bufunfa. Quem indica o candidato a governador de São Paulo, por exemplo, coloca a mão em mais dinheiro.
A briga foi feia, com direito a troca de xingamentos e palavrões, em negociação nada republicana. Nessa queda de braço, porém, Valdemar da Costa Neto tem mais bala na agulha. Preso no mensalão, continuou a mandar no PL de dentro da cadeia, da mesma maneira que os chefões dos comandos criminosos mandam suas orientações da própria prisão. Livre, leve e solto, com influência fundamental no Centrão, por que abriria mão de seu poder para dar parte dele a Bolsonaro e seus filhos ?
Boi preto conhece boi preto, como dizia outro grande parlamentar do baixo clero, Clodovil Hernandes, que, aliás, terminou sua carreira política no Partido da República (PR), que depois integrou-se ao PL. O sentido da frase eternizada por Clodovil deixou de ter um restrito cunho de gênero para um significado mais amplo, de que pessoas da mesma laia se reconhecem.
A vida dos Bolsonaro não será fácil também no PP, outro partido que controla o Centrão, com interesses políticos amplíssimos. Ambos já fizeram parte da base aliada de Lula, Dilma e Temer, e por isso têm interesses regionais diversificados, que abrangem também o PT. Inclusive porque, com a decadência da popularidade de Bolsonaro e o ex-presidente Lula liderando as pesquisas de opinião, não é possível, nessa concepção inortodóxica de coalizão do Centrão, fechar portas para uma provável mudança de rumo.
Se não chegar a um acordo com partidos controladores do Centrão, Bolsonaro terá que aceitar ir para um partido com menos tempo de televisão e menores fundos partidário e eleitoral, tudo o que ele não quer, mesmo sendo presidente da República. Perderá, também, poder político dentro do Congresso. Em 2018, Bolsonaro concorreu pelo então nanico PSL por não ter grandes opções. Hoje, está de olho grande na fenomenal massa de dinheiro que autorizou para os partidos, que agora, com o dinheiro sobrando devido à PEC dos Precatórios, vai ser maior ainda.
Mas Bolsonaro, que já é refém de sua base aliada na concertação política, sem voz de comando real, submetendo-se às vontades do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, agora ficará sem legenda partidária de peso, sujeito a chuvas e trovoadas no decorrer da campanha. Mesmo que se submeta ao comando real de Valdemar da Costa Neto, à medida que sua popularidade for sofrendo baixas, a debandada das seções regionais de sua suposta aliança nacional será a mesma, no sentido inverso, que ele provocou em 2018.
Acabou sendo apoiado por deputados de vários partidos, que oficialmente apoiavam outros candidatos. O eleitor foi se aproximando de Bolsonaro na proporção em que ele se tornou a alternativa para derrotar o PT. Em 2022, ele será alvo também dessa rejeição. Apoiar Lula contra Bolsonaro é uma opção que pode se apresentar a parte do eleitorado, o mesmo que em 2018 fez o contrário. Ou não apoiar nenhum dos dois, desde que um candidato alternativo se firme.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/mesma-linguagem.html
Com PP, PL e Republicanos, Bolsonaro terá verba de campanha 30 vezes maior
Adesão do Centrão garante R$ 376 milhões à campanha de reeleição do presidente
Jussara Soares, Daniel Gullino e Bernardo Mello / O Globo
BRASÍLIA E RIO - Com filiação ao PL prevista para o próximo dia 22 e uma aliança apalavrada com PP e Republicanos, o presidente Jair Bolsonaro vislumbra uma estrutura com capilaridade e dinheiro em caixa para tentar a reeleição, num cenário bem distinto ao de 2018. A tríade de partidos deve dispor de cerca de R$ 376 milhões de fundo eleitoral em 2022, segundo levantamento do GLOBO com base na lei orçamentária do ano que vem. O montante é 30 vezes maior do que somou na última campanha a coligação entre o então nanico PSL e o PRTB, partido do vice-presidente Hamilton Mourão.
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Estimado na proposta do governo em R$ 2,1 bilhões, o valor do fundo eleitoral ainda pode mudar durante a tramitação do Orçamento. O Congresso chegou a aprovar um fundo de R$ 5,7 bilhões, vetado por Bolsonaro. Considerando a estimativa atual, o PL deve contar com R$ 127 milhões. Já o PP e o Republicanos receberiam R$ 143 milhões e R$ 106 milhões, respectivamente. Em 2018, PSL e PRTB somavam R$ 12,8 milhões do fundo eleitoral, dos quais cerca de R$ 500 mil foram repassados para a campanha de Bolsonaro. Dentro dessa estrutura de campanha, o presidente atribui até hoje sua vitória ao trabalho nas redes sociais, liderado por um dos filhos, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), com o suporte da agência AM4, acusada posteriormente de financiar disparos em massa.
Se antes Bolsonaro criticava o fundo eleitoral e dizia ter intenção de se filiar a um partido pequeno, para ter controle total da montagem de candidaturas em 2022, mais recentemente ele foi convencido por outro filho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), a selar a aliança com o Centrão, que tem maiores recursos para bancar despesas de propaganda e viagens pelo país. Como presidente, Bolsonaro só pode viajar em voos da Força Aérea Brasileira e acompanhado por seguranças da Presidência, mesmo na campanha eleitoral — neste caso, os valores precisam ser ressarcidos ao erário.
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Em meio ao desgaste na imagem do governo e de olho numa polarização com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro também busca maior exposição no horário eleitoral em 2022. Integrantes do Centrão que fazem parte do governo, como o ministro Fábio Faria (Comunicações), que costura se filiar ao PP, defendem que Bolsonaro precisa de tempo de TV porque “vai ter muita coisa o que mostrar”. Só o PL já deve garantir cerca de 51 segundos, em um bloco de 12,5 minutos. Caso a coligação com PP e Republicanos seja confirmada, esse número pode chegar a 2 minutos e 20 segundos.
A combinação de fundo partidário com tempo de TV pode ser musculatura política de que Bolsonaro precisa para compensar a queda de popularidade que vem sofrendo nos últimos meses e que o fez aderir ao Centrão, grupo criticado por ele durante a campanha de 2018 e no início de governo.
— Esse é um governo que tem que mudar de estratégia agora, porque se elegeu no contrapé da política. Ou seja, no “não à política”, e agora precisa mostrar o que fez por ela ou com ela — afirma o cientista político Humberto Dantas, gestor de Educação do Centro de Liderança Pública.
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A tríade de partidos também oferecerá capilaridade política a Bolsonaro: juntas, as legendas somam 1.210 prefeituras, 116 deputados e 12 senadores. Pessoas envolvidas no projeto da reeleição dizem que os caciques de PL, PP e Republicanos tendem a organizar os palanques regionais, além de acompanhar a estratégia nacional, enquanto Bolsonaro e os filhos devem atrair para si as diretrizes e o tom da campanha.
Em 2018, as três siglas integraram a coligação de Geraldo Alckmin (PSDB), que contou ainda com partidos como PSD e DEM, e totalizou mais de cinco minutos de tempo de TV, cerca de metade da duração de cada bloco. Apesar da estrutura, Alckmin teve menos de 5% dos votos válidos.
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Do outro lado da disputa, Lula também costura alianças, mirando siglas como PSB e PCdoB, podendo somar um volume de recursos similar ao da chapa de Bolsonaro. Sem o presidente, o PSL encaminhou fusão com o DEM para gerar o novo União Brasil, responsável por cerca de R$ 335 milhões do fundo eleitoral. A nova sigla estuda lançar o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas também avalia alianças com partidos como Podemos, que apresentou o também ex-ministro Sergio Moro como pré-candidato, e PSDB.
— O alinhamento para alianças tem que estar conectado a princípios apresentados por Moro, como combater a corrupção como meio de viabilizar reformas — afirmou a presidente do Podemos, Renata Abreu.
Outras siglas da terceira via, como PSD e MDB, que pretendem lançar, respectivamente, os senadores Rodrigo Pacheco (MG) e Simone Tebet (MS), podem formar coligações nas quais agregariam, cada um, cerca de R$ 150 milhões de fundo.
Mais distante do PSB após a volta de Lula e com impasses, especialmente no plano econômico, para se coligar na terceira via, Ciro Gomes pode repetir 2018, quando firmou aliança apenas com o Avante, e sair em campanha basicamente com recursos do PDT.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/com-pp-pl-republicanos-bolsonaro-tera-verba-de-campanha-30-vezes-maior-que-de-2018-1-25276578
Baixa aprovação de Bolsonaro põe em risco projeto de reeleição
Série de pesquisas indica que Bolsonaro está aquém de índices que presidentes e governadores tinham 12 meses antes do pleito
Bernardo Mello / O Globo
RIO — Restando cerca de um ano para a eleição de 2022, e com a avaliação positiva num patamar de 20%, segundo a pesquisa Datafolha mais recente, o presidente Jair Bolsonaro disputará novo mandato diante de um histórico desfavorável para governantes com taxas de aprovação semelhantes. Levantamento da consultoria Ideia Big Data para o GLOBO mostra que, desde 1998, quando a reeleição passou a ser permitida, presidentes e governadores que foram reconduzidos costumavam ter taxas de ao menos 40% de aprovação numa janela que compreende os 12 meses antes da votação.
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Em 2018, ano em que pela primeira vez o presidente, Michel Temer (MDB), declinou de tentar outro mandato mesmo podendo concorrer, Bolsonaro chegou ao segundo turno e elegeu-se numa campanha com condições adversas. Além de pouca estrutura partidária com o então nanico PSL, Bolsonaro era o candidato com maior taxa de rejeição, sempre próxima a 40%, durante todo o primeiro turno. Para 2022, em que pesem as avaliações negativas de sua gestão, o presidente aposta no lançamento do Auxílio Brasil, programa que ocupará o lugar do Bolsa Família, para melhorar seu patamar de aprovação.
Metodologia
O levantamento da Ideia Big Data considerou as medianas — isto é, o valor intermediário, dentro de um conjunto de pesquisas — das taxas de aprovação de governantes que tentaram a reeleição. No caso de governadores, considerando pesquisas realizadas entre 12 e 9 meses antes da eleição, a mediana de avaliação positiva dos reeleitos foi de 41%. Já os não reeleitos eram aprovados por 27% a 30% do eleitorado.
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Nas três reeleições presidenciais desde 1998, a aprovação dos ocupantes dos cargos ficou acima de 30% no período de um ano que antecedeu os pleitos — a de Bolsonaro, hoje, é de 23%. A exceção, de acordo com o levantamento, foi a reeleição em 2006 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aprovado por 29% no fim de 2005. Às vésperas da eleição, porém, o petista chegou a 44%.
O diretor-executivo da Ideia Big Data, Mauricio Moura, vê pontos em comum entre o salto de Lula e o efeito buscado por Bolsonaro com o Auxílio Brasil. Com a imagem do governo desgastada à época pelo mensalão, Lula experimentou uma guinada positiva em paralelo à expansão do Bolsa Família, implementado por seu governo em janeiro de 2004. O programa, que beneficiava 8 milhões de famílias ao fim de 2005, ampliou gradativamente seu alcance até chegar a 11,2 milhões de famílias em julho de 2006, sem mexer no valor do benefício.
Bolsonaro, por sua vez, aposta no aumento do benefício para R$ 400 por família até o fim de 2022, mas sem planos de expandir a base atendida, que será menor do que no auxílio emergencial. Hoje, o Bolsa Família atende 14,6 milhões de famílias. A expectativa é que o Auxílio Brasil chegue a 17 milhões; a diferença corresponde à fila já existente para cadastro no programa. O auxílio emergencial, que também inclui desempregados e trabalhadores informais, tem hoje 39,4 milhões de beneficiários.
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— Além de uma aprovação muito menor que seus antecessores, Bolsonaro tem um saldo muito negativo entre aprovação e rejeição. Se ele apenas voltar a um patamar de 30% de aprovação, como já esteve antes, não é o suficiente. Precisaria ampliar um pouco também a faixa de eleitores que o consideram regular — avalia Moura.
Em setembro, o Datafolha mostrou que a avaliação negativa do governo era de 53%, mais de 30 pontos percentuais acima do índice de aprovação (22%).
Outras variantes
Especialistas têm avaliado que apenas o incremento do novo Auxílio Brasil, em um cenário de alta de preços, pode não ser suficiente para aumentar a popularidade de Bolsonaro. Segundo o IBGE, a inflação acumulada de 12 meses chegou a 10,6% em outubro, que registrou sua maior variação mensal desde 2002.
O cientista político Jairo Pimentel Jr. lembra que, em 2020, Bolsonaro já teve queda na popularidade após a redução pela metade do auxílio emergencial, originalmente de R$ 600, e da queda de quase 30 milhões no número de pessoas atendidas.
— Ainda que o auxílio emergencial tenha trazido um pico de popularidade a Bolsonaro em 2020, hoje ele tem cinco pontos a menos de avaliação positiva em relação ao período que antecedeu os pagamentos — afirma.
A socióloga Esther Solano aponta ainda uma percepção de “insegurança” das famílias por conta da migração de programas sociais. Em meio à tentativa de aprovar a PEC dos Precatórios — agora no Senado —, que abrirá espaço fiscal para o programa, o governo adiou o reajuste de R$ 400 do Auxílio Brasil para dezembro.
Vera Magalhães: Cristiana Lôbo
Cristiana, ao ser precursora da análise política na televisão já depois dos 40 anos, quebrou muitas barreiras
Vera Magalhães / O Globo
Peço licença aos leitores deste espaço para fazer uma pausa nas análises da política e da economia para render uma homenagem. Nós, jornalistas, somos bichos por vezes arrogantes, sabe-tudo demais, para reverenciar aqueles e aquelas que vieram antes de nós abrindo portas, roçando o caminho, ensinando o riscado. E ontem nós perdemos, o Brasil perdeu, uma dessas jornalistas que foram guias de muitas gerações, inclusive da minha.
Cheguei a Brasília aos 26 anos, já com quatro anos de cobertura de política na bagagem, mas crua de tudo. Já naquela época, 1999, os grandes nomes da análise política eram de mulheres: Dora Kramer, Eliane Cantanhêde, Tereza Cruvinel, Helena Chagas e ela, Cristiana Lôbo.
Eu olhava para aquelas grandes damas do jornalismo político, cujos nomes e fotos encimavam as principais colunas dos jornais, e as achava inalcançáveis.
E, das muitas coisas que trabalhar em Brasília ensina, uma é que lá está todo mundo ralando no dia a dia do Congresso, nos quebra-queixos no Planalto, fazendo portaria em ministérios, levando chá de cadeira em gabinetes.
Em todos esses espaços, Cristiana sobressaía com seu humor irreverente, sua crítica ácida aos poderosos, sua análise arguta e rápida e, em igual medida, sua generosidade genuína com os colegas mais jovens, recém-chegados ou que ela mal conhecia.
Essa não é uma qualidade abundante no jornalismo, ou ao menos não era nas redações eminentemente masculinas, competitivas e dominadas pela cultura do grito como exercício de poder de onde eu vinha, em São Paulo.
O aprendizado que tive com a Cris e com essas outras mulheres — sobretudo com uma delas, Renata Lo Prete, minha chefe, mentora e depois, hoje e para sempre irmã — foi a tradução na prática de uma palavra cujo significado demorei a absorver: sororidade.
Cristiana, ao ser precursora da análise política na televisão já depois dos 40 anos, quebrou muitas barreiras ao mesmo tempo. A primeira, de gênero. Se, no jornalismo impresso, as mulheres já davam a letra, como eu disse, na TV os espaços ainda eram fechados à opinião feminina, principalmente num tema espinhoso como a política.
Outra barreira foi a do etarismo. Hoje não é incomum que jornalistas que fizeram sua carreira escrevendo sejam convocadas para a frente da tela depois dos 40, mas isso foi revolucionário nos anos 1990, e todas nós, que chegamos depois, devemos muito a ela, Míriam Leitão e outras pioneiras.
A aridez, a pressa e o ódio reinantes no ambiente virtual, onde estrategicamente a imprensa foi escolhida pelos políticos, e mais acentuadamente pelo bolsonarismo, como inimiga pública número um, impedem que mostremos ao leitor, espectador e ouvinte que somos de carne e osso.
Assim como em qualquer ramo da atividade humana, também o jornalismo é feito a partir do trabalho de geração após geração, cada uma com seus desafios, suas características e, sobretudo, seu legado para as próximas.
Se somos muito pródigos em apontar tendências na política, na economia e nas artes, em cobrir fatos que se tornarão históricos dali a alguns anos e em destacar profissionais de relevo em múltiplas atividades, ainda somos muito tímidos, por vezes pouco generosos, em contar a história dos homens e mulheres que constroem o edifício da imprensa brasileira.
A morte prematura da Cristiana deixou muito clara a importância que ela teve nessa construção. Perdemos uma referência e uma incentivadora do nosso trabalho.
Homenagear quem veio antes de nós é um reconhecimento de que não seríamos quem somos se não tivéssemos tido pessoas a nos pegar pela mão. Essa é uma lição que procuro pôr em prática dia a dia no meu trabalho. E esta coluna é um agradecimento a ela, que fará tanta falta, e a todos esses homens e mulheres que me estenderam a mão.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/cristiana-lobo.html
Merval Pereira: Cristiana Lobo, vai fazer falta
Cristiana Lobo tinha parâmetros rigorosos para comparar os políticos
Merval Pereira / O Globo
Conheci Cristiana na sucursal do Globo em Brasília no final dos anos 1970, começava seu trabalho de repórter política na capital, vinda de Goiás. Sempre foi a mesma, alegre e irreverente, amando o que fazia. Gostava das intrigas no Congresso, aprendeu cedo a entender o que era notícia, o que era boato; o que era manipulação, o que era informação. E nunca perdeu uma visão irônica da atividade política, embora entendesse que era ali, com seus defeitos e qualidades, que o destino do país era traçado.
Por sorte, conviveu logo no início da carreira com gente como Ulysses Guimarães, Thales Ramalho, Tancredo Neves, Petronio Portella, Tasso Jereissati, Miro Teixeira, e conheceu os ex-presidentes Fernando Henrique e Lula no início de suas carreiras políticas. Tinha parâmetros rigorosos para comparar os políticos. Ultimamente, antes de adoecer, tinha uma visão cética da política, mas ao mesmo tempo era pragmática para aceitar o material humano que tinha para trabalhar, e convivia com essa diferença de qualidade com um humor característico.
Nos tornamos amigos e sempre admirei a maneira como ela entendia política, como era engraçada ao comentar certas coisas do tema, como não se deixava levar por enganações, tentativas de desinformar, de plantar notícias, sabia quem era quem. Mesmo quando o político não era confiável, sabia quando falava a verdade, porque conhecia os bastidores. Era uma pessoa muito interessante, de inteligência rápida.
Desabrochou na Globonews, o jeito descontraído de lidar com a política ficou exposto. Além de ser uma das pioneiras entre as mulheres comentaristas políticas na televisão, sua espontaneidade, a maneira direta de falar, foi uma novidade, uma revolução na abordagem política. E foi até o fim na visão crítica, mas, gostando muito da Política, entendia que o Congresso é uma instituição da qual não se pode abrir mão, mas precisa ser visto com olhar crítico sempre, para não nos perdermos nessas manobras diárias.
Era muito interessante conviver e fazer coberturas com ela. Muito gentil, mesmo quando falava certas verdades que não podiam ser contestadas, era de maneira doce. Mas sabia ser ferina quando queria. Gostava de trabalhar, do ambiente político, daquela intrigalhada toda de Brasília. E nunca mudou esse jeito, só foi aprimorando a sagacidade. Tinha muita informação para trabalhar, e compreender quem é quem, como se fazia política. Se tivesse tido tempo para escrever suas memórias, seria um livro sensacional.
Gostava tanto de eleição que queria saber bastidores até do pleito na Academia Brasileira de Letras (ABL). E sempre tinha seus favoritos.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/vai-fazer-falta.html
Governistas já têm saída para continuar pagando emendas do orçamento secreto
Solução proposta aos parlamentares é distribuir o dinheiro diretamente por meio dos ministérios
Mariana Carneiro / Coluna Malu Gaspar / O Globo
Enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal formavam maioria para suspender os pagamentos das emendas do orçamento secreto, na tarde da terça-feira, ministros e parlamentares governistas já acertavam no Congresso um caminho alternativo para manter os repasses.
A solução que está sendo proposta aos parlamentares agora é distribuir o dinheiro diretamente por meio dos ministérios, aos quais seria transferida a verba antes reservada para as emendas de relator, conhecidas como RP9. No esquema que líderes governistas e ministros de Jair Bolsonaro estão visando, o dinheiro sairia por meio de um outro carimbo de despesa, a RP2.
Por essa modalidade, quem decide para onde vai o dinheiro são os ministros e não o relator, o caso do orçamento secreto. Segundo os governistas, o uso desse canal permitiria que as emendas já empenhadas, ou comprometidas, e que já começaram a ter a verba liberada, tenham o pagamento finalizado. Além disso, seria possível transferir também para essa rubrica do orçamento o dinheiro que já foi reservado para 2021 e ainda não foi empenhado.
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Não é pouca coisa. Dos R$ 16,8 bilhões reservados para as emendas de relator neste ano, restam ainda cerca de R$ 7 bilhões intocados. Se essa alternativa avançar, o dinheiro pode voltar para as mãos do governo.
Na prática, o controle da verba vai deixar de ser exercido pela cúpula do Congresso, especialmente pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e passará a depender de Jair Bolsonaro e seus ministros, que estão bastante animados com essa possibilidade. "Nem toda notícia que parece ruim é verdadeiramente ruim", disse um ministro sob reserva.
A transferência da verba de uma rubrica para outra não é automática. Para que ela seja possível, o governo tem que enviar um projeto de lei solicitando o cancelamento da verba do orçamento secreto e sua realocação na conta de despesas diretas do governo federal. O projeto tem que ser aprovado pela maioria dos votos em uma sessão do Congresso Nacional de que participam deputados e senadores.
Na noite desta terça, integrantes do governo já tinham desenhado até a tática para abreviar essa etapa legislativa. A ideia é incluir a conversão em algum dos projetos de lei que tratam de orçamento e que já tramitam na Câmara, como o que destinará cerca de R$ 3 bilhões do Bolsa Família, hoje parados no cofre, para repasses a estados e municípios pelo Ministério da Cidadania, comandado por João Roma.
Feirão de emendas: Oferta por voto a favor da PEC chegou a R$ 15 milhões, mas deputados podem não ver a cor do dinheiro
Antes, porém, vai ser preciso que Lira, Pacheco e os ministros de Bolsonaro cheguem a um acordo sobre como será decidido o destino desse dinheiro. Isso porque ninguém acredita que a cúpula do Congresso vá abrir mão facilmente do poder que tinham até a decisão da ministra Rosa Weber, na última sexta-feira.
Lira manejava os recursos de acordo com a própria agenda, além de gerenciar as pautas de interesse do governo na Câmara. Só para a cidade de Barra de São Miguel (AL), governada por seu pai, ele enviou R$ 3,8 milhões de reais, como revelou O Globo.
Portanto, embora ao longo da tarde de terça-feira as lideranças no Congresso tenham procurado aparentar tranquilidade, no fundo todos eles já sabem: uma disputa de poder sobre os bilhões do espólio do orçamento secreto está prestes a começar.