O Globo
Dorrit Harazim: Fica para 2022
Era para ser um texto leve sobre o Dia das Mães — uma oportunidade rara neste espaço de saudar com delicadeza um domingo especial. Um domingo sem referências a desassossego, pandemia ou Bolsonaro. Era para ser um texto leve, também, em homenagem à radiação afetiva e contagiante de Paulo Gustavo, que deixou órfão um Brasil inteiro. Seu humor, humanidade, talento e coerência com a vida mereciam essa tentativa de leveza.
Mas não deu. Fica para outra vez.
A fuzilaria policial desencadeada quinta-feira na Favela do Jacarezinho, no Rio, nos faz retroceder com crueza ao cotidiano nacional. O horizonte ficou vermelho. Desta vez foram 28 os mortos (inclusive um policial civil) em operação planejada para eliminar alvos, não fazer prisioneiros. Assim, de uma só tacada, a série estatística sobre lei e ordem no estado, que já era estarrecedora, deu novo salto. Segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP), 20.957 pessoas morreram em confronto com a polícia do Rio entre janeiro de 1998 e março de 2021. Descascando melhor a frieza dessa matança, O GLOBO deu uma recalculada para mais perto: ao longo dos últimos 23 anos, a polícia do Rio matou, em média, uma pessoa a cada 10 horas.
Impossível chamar a isto de sociedade, nem de civilização ou exercício da lei.
Foi tudo tão abissalmente errado na execução da invasão ao Jacarezinho que nem sequer é necessário elencar, neste espaço, a cascata inteira de desvios. O importante é frisar que, à exceção de um ou outro detalhe, foi tudo planejado para terminar como terminou. A operação foi idealizada para ser espetaculosa, ao estilo tous azimuts da ocupação militar do Complexo do Alemão em 2010 — apenas sem apoio popular nem da mídia, como houve à época. Desta vez, os delegados encarregados de justificar a ação explicitaram um ato de fé. Ou, como apontou o advogado e filósofo Silvio de Almeida, um ato de afirmação de poder pela Polícia Civil — poder este que não se submete a nenhuma lei e que desconhece a Constituição. “Foi um recado, uma mensagem em forma de espetáculo, assinado com o sangue no chão e nas paredes das casas”, escreveu ele.
Nem todo o sabão do mundo será capaz de erradicar as manchas da violência de Estado impregnadas no Jacarezinho. Impossível esquecer o testemunho desamparado do pai de uma menina de 9 anos que teve, primeiro, o quarto invadido por um suspeito em fuga, já ferido; em seguida, pai e filha viram a policia irromper na casa à procura do invasor. A execução parece ter sido a frio, antes de os moradores conseguirem sair dali, rumo a um trauma indelével. “O maior desespero e a maior tristeza para um pai é não ter ideia de como fazer para salvar um filho. Não sei nem por onde começar”, disse ele. Referia-se ao futuro da filha. Vale para o futuro do Brasil negro, pardo, pobre e trabalhador.
Imagens de qualquer chacina, seja ela no Iraque, nos Estados Unidos ou no Rio de Janeiro, embolam qualquer estômago minimamente humano. Por vezes, olhando para além de paredes, pisos e camas tingidas de sangue, ou para além de mobiliários contorcidos pela violência, é possível entrever pedaços de um cotidiano destruído. Lana de Holanda, em seu perfil nas redes sociais, apontou para o esmero na decoração de uma sala ensanguentada — as plantas que adornavam prateleiras continuavam verdejantes. E um livro de Felipe Neto sem manchas permanecia numa bancada. Outro internauta notou o controle remoto da Sky em cima da mesma bancada, imaginando que aquela sala devia ser um local de alegria, de família assistindo a futebol, série ou filme.
Para o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, o caso é simples e segue a lógica da pena de morte seletiva que vigora no Brasil: “Era tudo bandido”. (Das 27 vítimas consideradas suspeitas, pelo menos 25 tinham passagem pela polícia, o que costuma ser suficiente para serem eliminados.) Felizmente, o entendimento do ministro do Supremo Edson Fachin foi outro, levando-o a solicitar à Procuradoria-Geral da República que investigue a ação num prazo de cinco dias. Segundo ele, haveria indícios que poderiam configurar ter ocorrido uma “execução sumária” no Jacarezinho.
Como falar de Dia das Mães num país onde a polícia e a milícia atiçadas pelo seu líder formam uma mesma tropa de combate à esperança? Não dá. Fica para 2022.
Fonte:
O Globo
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Míriam Leitão: Falsos remédios e muitos venenos
Cloroquina é o símbolo deste governo que sempre tem falsos remédios com efeitos tóxicos para os problemas do país. O Brasil está diante de um devastador retrocesso na educação por causa da pandemia, e a proposta pela qual o governo Bolsonaro se bate é o homeschooling. O país vive uma grave crise na democracia, em parte criada por este governo, mas Bolsonaro exige a volta do voto impresso e por ele ameaça até a realização das eleições. Em vez de uma política de segurança, o projeto que tem sido posto em prática é a liberação das armas. Para o trânsito, o projeto, felizmente atenuado no Congresso, foi o da menor punição para infratores e o fim da cadeirinha das crianças. Em cada área pode-se encontrar a solução “cloroquina”, um falso remédio, que é, na verdade, um veneno.
Na semana passada, a CPI mostrou o efeito da cloroquina na política de saúde brasileira. Ela impede que se desenvolvam boas práticas para enfrentar a pior pandemia em um século, passou a ser a peça central da política pública, a única questão que mobiliza o presidente e o entorno do Palácio. Por ela, um ministro foi demitido, outro pediu demissão, o terceiro se escondeu atrás do Exército e o quarto engasgou. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) fez seis vezes a mesma pergunta ao ministro Marcelo Queiroga, o senador Omar Aziz (PSD-AM), outras duas vezes. Queiroga não conseguia desengasgar e dizer se compartilhava ou não compartilhava da opinião do presidente sobre a cloroquina. “Apego ao cargo”, concluiu o senador Otto Alencar (PSD-BA). O remédio usado em caso de malária e lupus, com ineficácia comprovada para Covid-19, traz para o Brasil o pior dos efeitos colaterais. Por causa da obsessão do presidente, o país deixou de ter uma política de combate à pandemia. “Canalha”, disse Bolsonaro para definir quem discorda do uso da cloroquina. Um espelho o ajudaria a encontrar um bom destinatário para o adjetivo.
Foi uma semana dilacerante. O país perdeu um artista querido que lotava cinemas e teatros, que nos fazia rir em momento que tanto precisamos. Perdemos Paulo Gustavo com 42 anos e uma vida pela frente e isso nos lembra que a morte por Covid está ficando mais jovem. No dia mesmo em que seu corpo era cremado, o Rio viu mais uma chacina. Jacarezinho foi palco de um horror de país em guerra. O governador Claudio Castro disse que a operação da Policia Civil, que vitimou um policial e 27 moradores, foi fruto de ação de inteligência. A identidade dos moradores mortos não havia ainda sido divulgada, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, definiu-os como “tudo bandido”. Mais tarde, repetiu que eram todos “marginais”. Se forem, então, podem ser executados, sem direito a um processo? As leis brasileiras não têm pena de morte, mas para o vice-presidente pessoas podem ser mortas, sem direito a um processo. Para completar, Mourão disse que no Rio “é a mesma coisa que se a gente tivesse combatendo no país inimigo. Quase a mesma coisa.”
A solução cloroquina que ele oferece aqui é letal. Em vez de uma política de segurança, execução em massa, suspensão do devido processo legal, e a transformação do Rio em território inimigo. Mourão pelo visto quer mostrar a Bolsonaro que merece continuar sendo seu vice. Compartilha dos mesmos valores. Resta perguntar à dupla o que fazer com a milícia nesse “país inimigo”.
Durante a semana em que a CPI exibiu uma radiografia de como o governo tem contribuído para o aumento do contágio e das mortes por Covid-19, Bolsonaro esteve sob o comando do filho Carlos. Para tentar desviar a atenção posta na CPI, Bolsonaro empilhou absurdos. Ameaçou baixar um decreto autoritário, atacou o principal parceiro comercial do Brasil e fornecedor de insumos para vacinas e disse que pode não haver eleições, se não for aprovado e implantado o voto impresso.
Bolsonaro quer impor uma pauta estranha às urgências do país, em todas as áreas. Mais de cinco milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação durante a pandemia, e, quanto mais pobre, menos o aluno está aprendendo. Estamos vivendo uma tragédia que recai sobre uma geração inteira de estudantes. Mas a solução cloroquina é permitir que um grupo de fanáticos tenha o direito de aprisionar a cabeça dos filhos numa educação medieval, que elimina a escola. Assim é o governo Bolsonaro. Tóxico.
Fonte:
O Globo
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Bernardo Mello Franco: A polícia não mata sozinha
Uma operação com blindados e helicópteros aterrorizou o Jacarezinho e deixou 28 mortos no maior massacre da história do Rio. Na manhã seguinte, a Polícia Civil só havia identificado a vítima que usava farda. Sem conhecer as outras 27, o vice-presidente Hamilton Mourão sentenciou: “Tudo bandido”.
O general está afinado com a tropa no poder. O governador Cláudio Castro, aliado do Planalto, classificou a matança como fruto de um “detalhado trabalho de inteligência”. O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, fez piada com o relato de uma viúva. Há poucos dias, seu pai ergueu um cartaz com a inscrição “CPF cancelado”. O capitão é um velho defensor de milícias e grupos de extermínio.
“A polícia não mata sozinha. Esse tipo de discurso legitima a barbárie e a violência policial”, afirma o advogado Joel Luiz Costa, coordenador do Instituto de Defesa da População Negra. Criado no Jacarezinho, ele voltou à favela horas depois do banho de sangue. Percorreu as vielas, ouviu testemunhas e saiu convencido de que ocorreu uma chacina.
Em 2018, o Rio elegeu um governador que se fantasiava de soldado do Bope e mandava a PM atirar “na cabecinha”. Seu substituto é mais discreto, mas quer provar que também tem DNA bolsonarista. Ao exaltar a inteligência da polícia, Castro ofende a inteligência alheia. A operação deveria cumprir 21 mandados de prisão, mas só cumpriu três. Além de produzir uma carnificina na favela, feriu dois passageiros dentro de um vagão de metrô.
Representantes da OAB e da Defensoria Pública apontam outros abusos. Os policiais modificaram cenas e removeram os corpos sem perícia. Depois levaram mais de 24 horas para entregá-los ao IML. Testemunhas relataram execuções sumárias e uso desproporcional da força. Apesar de tudo, a polícia se sentiu autorizada a comemorar a operação.
Na quinta, uma entrevista sobre o caso virou comício bolsonarista. O subsecretário Rodrigo Oliveira reclamou do “ativismo judicial” e disse que os defensores dos direitos humanos têm “sangue do policial nas mãos”. O delegado Felipe Curi julgou e condenou os 27 mortos pelos colegas. “Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante”, afirmou.
O chefe do setor que deveria investigar o massacre já se convenceu de que não há o que apurar. “Não houve execução. Houve sim uma necessidade real de um revide a uma injusta agressão”, disse o diretor do Departamento de Homicídios, delegado Roberto Cardoso. As declarações mostram o caso não pode ficar nas mãos da Polícia Civil.
Além de ignorar regras e protocolos, a matança pisoteou a decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe operações em favelas durante a pandemia, salvo em casos excepcionais. Numa clara provocação, a polícia batizou a ação no Jacarezinho de “Exceptis”. Os responsáveis pela barbárie também não fariam isso sozinhos. Eles sabem que têm cobertura para desafiar o Judiciário e as leis.
Fonte:
O Globo
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Merval Pereira: Paradoxos da regressão
O formidável Tim Maia eternizou uma máxima brasileira que demonstra como, entre nós, o paradoxal acaba sendo normalizado, às vezes em decorrência de uma afabilidade presumida. “Prostituta tem orgasmo, traficante cheira e cafetão se apaixona”, repetia às gargalhadas. Eram tempos outros, em que ainda se acreditava que o país era abençoado por Deus. Bonito por natureza continua sendo, mas com um governo que não sossega enquanto não torná-lo feio, degradado, desesperançado.
André Trigueiro, meu colega da Globonews especialista em meio-ambiente, cunhou uma dessas frases que refletem o estado das coisas, com a amargura que a frase de Tim Maia não tinha. “Funai intimida indígenas. Fundação Palmares rechaça movimento negro. Ministério do Meio Ambiente intimida fiscais do Ibama”. É um retrato do país hoje, quando se distorce a função na medida dos interesses regressivos de setores da sociedade que não querem se enquadrar nos códigos modernizantes que regem o mundo ocidental.
No caso do desmatamento, o país, que já teve voz importante na questão, hoje é tido como vilão contra o meio-ambiente, a ponto de as exportações brasileiras estarem em xeque. Delegado da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, que apreendeu toneladas de troncos arrancados ilegalmente, acabou sendo afastado da função, e a carga liberada.
Teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal com uma notícia-crime contra o ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, e presidente do Ibama Eduardo Bim, e o senador de Roraima Telmário Mota que, juntamente com outros deputados e senadores da região, pressionaram o ministério do Meio-Ambiente a favor dos madeireiros.
Já o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um negro racista, desde que assumiu o cargo, vem dando declarações contra os movimentos negros, que seriam “uma escória maldita”, e classificou Zumbi como “um filho da puta que escravizava negros”. Tomou decisões polêmicas, como mandar retirar da lista de “personalidades negras” da Fundação nomes como Marina Silva, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Madame Satã, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Elza Soares.
Sérgio Camargo foi considerado “inapto” para a função pela ONU, que enviou uma carta ao governo brasileiro questionando ações da Fundação, como a redução das áreas quilombolas. Já a Funai tem na sua origem o Serviço de Proteção ao Índio, criado pelo Marechal Rondon mas, no governo Bolsonaro, começou a ser desmontada.
Um dos primeiros atos do novo governo foi passar a demarcação de terras indígenas e de quilombolas para o ministério da Agricultura, o que não aconteceu porque o Congresso mudou a medida provisória para manter o controle no ministério da Justiça. A ação da Funai, porém, vem sendo muito criticada, inclusive nessa pandemia, por não ter lutado para que os indígenas e quilombolas tivessem prioridade para a vacinação.
Para completar, a própria Funai pediu à Polícia Federal que abrisse um inquérito contra a líder indígena Sônia Guajajara, que foi intimada a prestar depoimento sobre as críticas feitas contra o Governo federal em um documentário da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que ela coordena.
O documentário “Maracá” retrata, em episódios, a maneira como os índios estão sendo tratados nessa pandemia, e foi considerado pela Funai uma ação de “calúnia e difamação”, e não um protesto daqueles que deveria proteger. O juiz Frederico Botelho, de Brasília, mandou arquivar o inquérito e disse que houve uma tentativa de usar a Lei de Segurança Nacional contra a líder indígena.
Esses paradoxos regressivos têm provocado até mesmo problemas familiares. O pai de Sérgio Camargo é um tradicional e importante líder negro e, embora não o critique, diz que tem uma “distância de ideias, um valor bastante fundo”. A filha de Regina Duarte, a também atriz Gabriela Duarte, deixa claro que não compartilha as mesmas bandeiras ideológicas da mãe. E o embaixador aposentado Luiz Felipe Seixas Correa considerava que, à política externa que seu genro Ernesto Araújo comandava, faltava clareza.
Essa distorção dos organismos institucionais existentes tem provocado uma regressão cultural marcante nesses dois anos e meio de governo Bolsonaro, fazendo com que o país perca o papel de destaque que já teve nessas e em outras áreas, como a da cultura, cujo secretário, Mario Frias, diz que o governo não tem obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à Lei Rouanet.
Fonte:
Vera Magalhães: Os 3 caminhos da CPI para ‘encher o saco’ de Bolsonaro
Jair Bolsonaro pode se preparar para continuar irritado. A CPI da Pandemia pretende juntar munição para “encher o saco” do presidente, como ele demonstrou temer em seu mais recente ataque verborrágico.
Transcorrida a primeira semana de depoimentos da CPI da Pandemia, os senadores do chamado G7, o grupo dos independentes e oposicionistas que tem a maioria na comissão, já definiu três linhas principais de investigação que podem levar à responsabilização de Jair Bolsonaro e de Eduardo Pazuello, em cuja gestão à frente do Ministério da Saúde ocorreu a disparada do número de mortes e casos de covid-19.
São os seguintes os eixos a partir do qual devem ser organizados os depoimentos, e que deverão nortear também o relatório final de Renan Calheiros:
1) a recusa reiterada na compra e no financiamento de vacinas, conjugada com a falta de esforços para sua análise e aprovação pela Anvisa.
Alguns dos depoimentos da semana que vem vão aprofundar as apurações para chegar à cadeia de comando da ordem para não adquirir vacinas que foram oferecidas ao governo federal pela Pfizer e por outros fabricantes.
São os do ex-secretário de Comunicação da Presidência Fábio Wajngarten e dos representantes da Pfizer, Carlos Murillo e Marta Diéz. A ideia é traçar a cronologia exata das tratativas entre a empresa e o governo federal, bem como quais integrantes dos diversos ministérios participaram e opinaram contra a aquisição antecipada dos imunizantes.
2) gasto de recursos públicos para a produção e a aquisição de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19, bem como a adoção de protocolo para seu uso precoce e o envio de grandes quantidades para Estados e municípios.
A ideia aqui é deixar provado que Bolsonaro priorizou a compra, fabricação e indicação de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina à aquisição de vacinas, comprovadamente mais eficazes para conter a pandemia.
A adoção do protocolo do chamado “kit covid” para casos leves e iniciais da doença, à revelia de evidências científicas e depois da recusa de dois ministros em consigná-lo também deve ser apontada como irregularidade e imputada ao presidente e a Pazuello.
3) ações do presidente para estimular a chamada “imunidade de rebanho” em Estados e municípios, com incentivo à tese de que quanto antes maiores parcelas da população contraíssem o vírus mais rapidamente a pandemia seria debelada.
A tese anticientífica de que seria possível atingir imunidade de rebanho sem vacina foi defendida por governistas como o deputado Osmar Terra, e a necessidade de “enfrentar” o vírus foi repetida por Bolsonaro seguidas vezes.
De acordo com os senadores, as aglomerações defendidas ou promovidas pelo presidente, inclusive em solenidades oficiais, e as vezes em que ele recorreu a STF para tentar sustar medidas de distanciamento social adotadas por governadores e prefeitos entram nesse quesito.
Um depoimeto chave para tentar construir esta tese será o do vice-governador do Amazonas, Carlos Almeida Filho, segundo quem Manaus foi usada como “laboratório” da tese de imunidade de rebanho, o que teria criado o ambiente propício à mutação do coronavírus e o surgimento da variante P1.
Fonte:
Ascânio Seleme: Privatizando o SUS
O governo federal está realizando consulta pública para implantar uma certa “Política Nacional de Saúde Suplementar para o enfrentamento da Pandemia da Covid-19” que, na visão de especialistas e instituições dedicadas à saúde pública, significa um pedido de autorização para “privatizar” o SUS. A consulta foi autorizada pelo Consu, o Conselho Nacional de Saúde Suplementar, formado pelos ministros da Saúde, da Casa Civil, da Economia e da Justiça, assumindo competência que tecnicamente deveria ser da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo dois grupos de estudos, um da Faculdade de Medicina da USP e outro do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, o governo está aproveitando a pandemia para “passar a boiada” em favor das operadoras de planos de saúde.
A consulta, lançada na plataforma digital Participa + Brasil, da Presidência da República, tem 18 pontos. Segundo o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da USP (Geps) e o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ (GPDES), todos os pontos atendem aos interesses privados das operadoras em detrimento do interesse coletivo. Ao instituir a política, a consulta propõe integrar as ações da saúde suplementar ao SUS. Segundo os dois grupos, as práticas da saúde pública e da complementar são heterogêneas e muitas vezes divergentes, o que inviabiliza esta integração. A menos que se queira transformar o SUS numa “rede protetora das operadoras privadas”.
O governo propõe em sua consulta pública garantir o atendimento à saúde em “prazos razoáveis”. De acordo com análise feita pelo Geps e pelo GPDES, a ideia por trás deste ponto é remover o artigo 3º da Resolução Normativa 259 da ANS, que definiu prazos máximos para o atendimento e que “é uma pedra no sapato para a comercialização de planos de cobertura restrita”. A consulta também sugere proporcionar um ambiente de entendimento para solucionar conflitos entre operadoras e prestadores de serviços de saúde. Significa, segundo a análise dos grupos, aumentar a interferência dos planos nas condutas de médicos e outros profissionais de saúde.
Um dos pontos críticos é o que estabelece que um dos objetivos da política é “contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor de saúde privada do país”. Para Geps e GPDES, “não há justificativa para o apoio governamental ao setor privado”. Está se oferecendo “suportes públicos para ampliar a privatização da saúde”. O que é ilegal e imoral num país tão desigual quanto o Brasil. Em outro ponto, a consulta propõe “estabelecer ações que visem o desestímulo ao atendimento de beneficiários de planos de saúde no SUS, no limite das coberturas contratadas”. De acordo com Januário Montone, primeiro presidente da ANS ainda no governo de Fernando Henrique, “querem baratear os planos para garantir maior acesso à população, reduzindo a cobertura e impondo limites de utilização”.
Há ainda diversas armadilhas enumeradas na análise da proposta feita pelos grupos da USP e da UFRJ e publicada em seus sites no dia 5 de maio. Uma delas é a inversão de valores hierárquicos, ao submeter a Agência Nacional de Saúde ao Conselho de Saúde Suplementar. O artigo 5º da proposta em consulta afirma que as ações da política nacional serão elaboradas pela ANS e “aprovadas” pelo Consu. O Conselho é um órgão político, sem qualificação técnica, ao contrário da Agência. Segundo Januário Montone, o Consu “perdeu sua finalidade com a criação da agência reguladora no ano 2000 e acabou sendo absorvido pelo Conselho Nacional de Saúde”.
Montone afirma “que esse plano tenta solapar os mais de 20 anos de regulação do setor de saúde suplementar”. Ele lembra as muitas medidas introduzidas na regulação do setor pela Lei Geral dos Planos de Saúde, como a proibição de restrições ao acesso aos planos, o direito à assistência de urgência e o ressarcimento ao SUS de custos gerados por detentores de planos. “Diziam que o mercado ia quebrar. Não quebrou. Em 2019 sua receita foi equivalente a 72% do orçamento do SUS, somando União, estados e municípios”. Para os grupos da UFRJ e da USP trata-se de “mais uma ofensa à saúde e à vida” que não pode ser tolerada. Diante disso, o governo recua ou tenta contradizer tantas constatações. Vai ser difícil.
Não ouse, canalha
Não se trata de ciclotimia. Tampouco deve-se creditar exclusivamente ao zerinho mais ridículo e ao seu gabinete do ódio. A recaída grotesca de Jair Bolsonaro, com novo ataque ao Supremo Tribunal Federal e à democracia, é apenas um reflexo de seu caráter. Essa é a sua essência. Ele se julga acima de tudo. Uma vez eleito, em razão de um gigantesco equívoco nacional, Bolsonaro entendeu erroneamente que podia tudo. Achou estar ungido de um poder que a Constituição não lhe deu, não dá a ninguém, nem nunca dará. Por isso ameaça da maneira mais sórdida as instituições. Sua última foi afirmar que, com o apoio das Forças Armadas, descumpriria uma hipotética orientação judicial contrária a um suposto decreto seu proibindo governadores e prefeitos de baixarem restrições para o controle do coronavírus. Ele que não ouse. Será rechaçado e varrido.
Piada global
Aliás, quem será que municiou este homem com a ideia de que a China está se preparando para uma guerra bacteriológica, química e radiológica contra o planeta? Deve ter sido com aquele alucinado que desrespeitou o Senado ao fazer um gesto de supremacista branco enquanto o presidente do Congresso falava, na véspera da demissão de Ernesto Araújo do Itamaraty. O Brasil, que se tornou um pária global em razão das suas ações e omissões no combate à pandemia, agora virou piada internacional.
Off label
Um dia pousou na mesa de Bolsonaro uma minuta de decreto que o autorizaria a fraudar a bula da cloroquina para introduzir efeitos inexistentes contra a Covid. Foi o que ouvimos de Luiz Henrique Mandetta na CPI. O crime foi evitado pelo presidente da Anvisa. Vejam só, nem o almirante Barras Torres conseguiu atender o biruta do terceiro andar na sua mais ordinária tentativa de enfiar cloroquina na goela dos brasileiros. Daí passou-se a usar o termo off label, que designa o medicamento cuja indicação para o uso diverge do que consta da bula. Parece bonito, é em inglês. Os ignorantes adoram e repetem.
Troca-troca
Mandetta trocou pelo menos três vezes de máscara durante o seu depoimento à CPI da Pandemia. O presidente da Comissão, senador Omar Aziz, passava álcool em gel na sua máscara sempre que um assessor se aproximava para passar alguma informação. Cada um se cuida como pode.
Mãe Joana
Pelas contas do Ecad, órgão arrecadador de direitos autorais, há 6.478 músicas nacionais que têm a palavra “mãe” ou “mamãe” no título. Entre elas consta “Casa da mãe Joana”, de Marília Mendonça. Ao contrário do que sugere, a música não trata do governo Bolsonaro, mas sim de um coração partido.
Ordem para matar
A chacina do Jacarezinho teve o OK de um governador recém confirmado no cargo pelo impeachment do titular, daquele que queria matar bandido com “tiro na cabecinha”. A chacina se deu apesar de o STF ter proibido operações em favelas durante o transcorrer da pandemia de coronavírus. Além da incompetência, da arrogância e da brutalidade criminosa da polícia, a ação foi ilegal. E daí? Daí que o governador Cláudio Castro deverá prestar contas ao Supremo. Desobedecer ordem do tribunal é crime e pode resultar no afastamento do mandatário. Mais um.
O carismático
O governador que autorizou a matança no Jacarezinho é bolsonarista, o que talvez explique a truculência da operação. Mas, por outro lado, Cláudio Castro é católico da linha carismática, vai à missa todos os domingos e canta no coro da igreja. O governador cristão vai carregar para o resto da sua vida o recorde de mortos na história das ações da polícia do Rio.
E se fosse milícia?
A matança do Jacarezinho não ocorreria se a boca de fumo e o aliciamento de menores fosse num condomínio da Zona Sul, na Zona Oeste ou mesmo em área urbana da Zona Norte. Mas na favela invisível tudo pode, menos se ela for dominada por milícias. Como você acha que a polícia agiria se jovens estivessem (e estão) sendo recrutados em áreas da milícia? Não agiria. Os policiais poderiam encontrar muitos ex-colegas, parceiros de sueca e sinuca. Não daria certo.
O guarda da esquina
Foi em Minas que se comprovou a máxima do mineiro Pedro Aleixo de que um dos muitos perigos da ditadura reside na autoridade que se auto confere o guarda da esquina. Viu-se isso no domingo passado em Belo Horizonte, mesmo com o país vivendo a plenitude do seu vigor democrático. Um grupo de policiais militares, liderados pelo deputado estadual Bernardo Bartolomeu (Novo), invadiu um apartamento e prendeu um homem que estaria jogando ovos sobre manifestantes bolsonaristas que se aglomeravam no Centro da cidade. Os militares cometeram um crime ao invadir uma casa sem mandado judicial e por motivação esdrúxula. Sentiram-se respaldados porque temos o presidente que temos e ainda foram estimulados por um deputado pé de chinelo que tem a cara velha do Novo.
Erros na primeira
Na primeira página do GLOBO de quinta-feira, duas fotos chamavam a atenção. Na do alto, Jair Bolsonaro liderava um grupo de mais de 20 negacionistas na descida da rampa do Planalto. Na outra, senhoras aplaudiam Paulo Gustavo. Na de Brasília, faltou um dos mais importantes terraplanistas do círculo íntimo (ops) de Bolsonaro. Osmar Terra não estava lá. Na de Niterói, no primeiro plano, uma mulher sem máscara liderava o lamento pela morte do humorista causada pela Covid.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/privatizando-sus-1-25008683
Bernardo Mello Franco: Tropa de trapalhões
Em duas semanas, o Planalto já acumula ao menos sete vexames na CPI da Covid. A série começou quando o UOL publicou uma planilha da Casa Civil com 23 acusações contra o governo. A lista foi redigida para ajudar os bolsonaristas. Ao vazar, virou arma para a oposição.
Na semana passada, O GLOBO revelou que requerimentos assinados por senadores governistas foram produzidos em computadores da Presidência. Os registros eletrônicos mostram que os parlamentares atuaram como laranjas do capitão.
Nesta terça, o ex-ministro Henrique Mandetta expôs mais uma lambança. O ministro Fábio Faria enviou para o celular dele, por engano, uma pergunta que seria feita pelos aliados de Bolsonaro.
No dia seguinte, os governistas protagonizaram outro papelão: tentaram impedir as representantes da bancada feminina de falar. Os senadores Ciro Nogueira e Marcos Rogério se esforçaram para calar as colegas no grito. Foram desautorizados até por Soraya Thronicke, uma bolsonarista de carteirinha.
O general Eduardo Pazuello ainda não deu as caras, mas já acumula dois vexames na CPI. Na terça, apresentou uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento. Disse que teve contato com dois coronéis contaminados, embora não tenha se prestado a fazer um teste de Covid-19.
Ontem o drible se transformou em escárnio. Enquanto dizia estar isolado no hotel de trânsito do Exército, o general fujão recebeu a visita do ministro Onyx Lorenzoni.
O sucessor de Pazuello protagonizou a sétima trapalhada governista. Num depoimento arrastado, Marcelo Queiroga deixou dezenas de perguntas sem resposta. A cada enrolação, evidenciava o medo de dizer algo que desagradasse o chefe.
“O senhor é médico, fez o juramento de Hipócrates, mas não consegue responder àquilo que eu pergunto”, protestou o senador Otto Alencar. Queiroga continuou a embromar e voltou para casa com o apelido de ministro Rolando Lero.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tropa-de-trapalhoes.html
Vera Magalhães: O Brasil involuiu 20 anos
O isolamento brasileiro diante da histórica decisão do governo dos Estados Unidos de apoiar a suspensão temporária de patentes de vacinas para Covid-19 é especialmente emblemático porque nos permite fazer um retrato de hoje e de exatos 20 anos atrás, quando vivemos uma epopeia oposta da diplomacia brasileira e cravamos uma das nossas principais vitórias em organismos multilaterais, justamente no tema de patentes para remédios.
Foi em novembro de 2001, ainda sob os escombros do 11 de Setembro, que a mesma OMC, palco da guinada de Joe Biden, aprovou, em sua 4ª Conferência Ministerial realizada em Doha, no Qatar, uma resolução proposta inicialmente pelo Brasil prevendo que, em casos de epidemias, os países-membros da organização poderiam flexibilizar as regras de patentes previstas no Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio e Saúde Pública (conhecido como Trips).
A resolução foi o marco final do que ficou conhecido como “guerra das patentes”, uma ofensiva do governo FHC em várias frentes (diplomática, econômica e de comunicação) para pressionar a indústria farmacêutica a baixar preços dos medicamentos que compunham o coquetel anti-Aids, fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, ameaçando com a quebra das patentes.
Corta para 2021, quando um desarvorado Itamaraty foi pego totalmente de surpresa pela mudança de posição dos Estados Unidos, que passaram a apoiar a proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul no fim de 2020, e apoiada por mais de 100 países, para a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19 enquanto durar a pandemia.
Isso ajudaria a aumentar a produção de vacinas e a equalizar sua aplicação no mundo. Dados mostram que mais de 80% das doses aplicadas até hoje se concentram em países ricos.
O Brasil, que nem é rico nem está bem na fila da vacina, achou por bem fincar pé na posição anterior e ver a caravana global passar diante dos seus olhos, com grande possibilidade de até a União Europeia evoluir para acompanhar a posição americana.
Uma coisa era a discussão posta até o anúncio da posição dos Estados Unidos, em que o Congresso brasileiro discutia a quebra das patentes em território nacional: essa medida, isoladamente, teria pouco efeito prático, pois nossa capacidade de produção própria de vacinas, como temos visto, é pequena, ainda mais sem transferência de tecnologia. Além disso, havia setores fortes da diplomacia defendendo que isso poderia nos criar embaraço com os grandes fabricantes, atrasando ainda mais a chegada de imunizantes ao país.
Mas o cenário muda drasticamente com o apoio da Casa Branca à suspensão temporária das vacinas, ainda mais porque ele levará a uma pressão dos demais países também sobre os Estados Unidos e demais países ricos para a disponibilização imediata do excedente de vacinas que compraram, para a transferência de tecnologia a países pobres e para o fim de medidas protecionistas para a exportação de insumos destinados à produção desses imunizantes.
É desesperador que o Brasil opte por ficar falando sozinho diante de uma resolução com tamanho impacto histórico, geopolítico e econômico.
A desorientação demonstrada pela diplomacia brasileira nesse episódio é fruto e sinal do desmonte da política externa promovida pela nuvem de gafanhotos bolsonarista. É da mesma cepa dos sucessivos surtos que fazem o presidente insistir em brigar com a China neste momento grave em que dependemos dos chineses para a chegada de insumos para nossas poucas vacinas.
Vinte anos depois de brilharmos nos palcos internacionais com políticas de saúde pública e de diplomacia internacional arrojadas e inovadoras, estamos no cantinho da vergonha.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-brasil-involuiu-20-anos.html
Malu Gaspar: CPI da Covid revela homens ainda menores do que pensávamos
‘Um homem pequeno para estar onde está’ foi a expressão usada por Luiz Henrique Mandetta no depoimento à CPI da Covid. O ex-ministro da Saúde se referia ao ex-colega da Economia, Paulo Guedes, que o acusou de “pegar R$ 5 bilhões” e não comprar vacinas quando elas ainda nem existiam. Mandetta falou só de Guedes, mas bem poderia ter usado o aposto para outros personagens.
No momento em que Mandetta se apresentava à CPI, homens de confiança do presidente da República trabalhavam nos bastidores para ajudar outro ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, a escapar do próprio depoimento. Estavam alarmados com o que viram no treinamento aplicado a ele no final de semana. O general que, no poder, se acostumou a dar entrevistas coletivas em que só falava o que queria e não respondia a pergunta nenhuma tremeu diante da simulação de um pelotão agressivo de senadores ávidos por um embate.
Acuado, o mesmo Pazuello que dias antes circulava sem máscara num shopping center de Manaus, despreocupado com a pandemia, escondeu-se atrás do Exército. Coube a um general assinar um ofício avisando à CPI que ele não compareceria, por ter tido contato com coronéis contaminados com o coronavírus.
O ex-ministro da Saúde não apresentou atestado médico, nem lhe ocorreu fazer um teste para eliminar a hipótese de contaminação e se liberar para prestar esclarecimentos à CPI o mais rapidamente possível. Mas ganhou duas semanas para tomar coragem e responder às perguntas dos senadores.
No dia seguinte, diante de plateia amiga no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro adotou postura combativa. Disse que estava pronto para garantir por decreto “o direito de ir e vir”, contra medidas de isolamento social determinadas por governadores. Em mais uma de tantas indiretas contra o Supremo Tribunal Federal, disse que, se baixar o tal decreto, “não será contestado por nenhum tribunal, porque ele será cumprido”.
No mesmo tom ameaçador de sempre, chamou de canalha “aquele que é contra o tratamento precoce e não apresenta alternativa” e criticou o pedido da CPI para que informasse onde esteve nos finais de semana em que circulou pelos arredores de Brasília sem máscara e sem tomar cuidados preventivos contra a disseminação do coronavírus. “Não interessa onde eu estava. Respeito a CPI, estive no meio do povo, tenho que dar exemplo”, afirmou o presidente, exaltado. “Vou continuar andando em comunidades em Brasília.”
Não parecia o mesmo Bolsonaro que, há duas semanas, telefonou ao governador de Alagoas, Renan Filho, pedindo para ajudá-lo no diálogo com seu pai, o relator da CPI, Renan Calheiros. Ou que, em visita fora da agenda, perguntou ao antecessor José Sarney: “O Renan é mesmo muito amigo do Lula?”. Embora se tratasse de uma pergunta inútil — ou alguém acredita que Sarney responderia que “sim, são muito amigos, falam sempre ao telefone, tocam de ouvido”? —, foi uma indagação reveladora dos contornos que o espírito combativo do capitão assume nos bastidores.
Na CPI, em público, o que se viu foram senadores recitando perguntas já enviadas prontas pelo governo ou por médicos pró-cloroquina, enquanto os ex-ministros Mandetta e Nelson Teich demonstravam claramente que houve, sim, uma concertação do Palácio do Planalto contra o isolamento social, pela adoção do tratamento precoce como política pública e de confronto às recomendações preconizadas pela ciência.
“A verdade, ela vai triunfar!”, proclamou em defesa do tratamento precoce o senador Eduardo Girão, que é empresário e ex-presidente de clube de futebol, mas fala como se entendesse de assuntos médicos. E que se proclama independente, mas atua como integrante da tropa de choque de Bolsonaro.
Sim, todos queremos que a verdade triunfe. É muito cedo, porém, para dizer que é isso o que acontecerá. Difícil, também, prever se a CPI da Covid resultará mesmo em punição aos responsáveis pelos fracassos e desídias que custaram milhares de vidas nesta pandemia. Mais arriscado ainda seria antever se haverá vontade política para produzir um impeachment.
Mas já é possível adaptar ao momento atual um velho ditado popular — aquele que diz que é quando a maré baixa que se vê quem está sem roupa. A CPI da Covid ainda está começando, mas uma coisa ela já conseguiu. Agora que a maré baixou bastante, a gente constata que os homens pequenos são ainda menores do que conseguíamos ver.
Fonte:
O Globo
Míriam Leitão: O presidente e o delito continuado
O que a CPI mostrou até agora foi que o presidente Jair Bolsonaro impediu dois ministros da Saúde de agirem conforme as orientações técnicas e científicas durante a pandemia. O ato foi continuado. O ex-ministro Nelson Teich repetiu ontem diversas vezes a informação de que ele não concordava com a recomendação de uso da cloroquina e, por divergir disso, saiu. O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta entregou carta a Bolsonaro, fez cenário, mostrou a gravidade da crise e teve que enfrentar uma assessoria paralela no Planalto que queria o uso da cloroquina. Não aceitou e, por isso, foi demitido. As orientações dos ministros poderiam ter salvado vidas.
O presidente da República amarrou a mão de seus ministros, os impediu de agir, não ouviu técnicos, ignorou a ciência, desafiou a medicina e impôs a sua forma de conduzir o país numa pandemia. E isso está nos levando à morte. Bolsonaro deu várias vezes sinais explícitos de que aposta na tese perigosa de ampliar a contaminação para chegar ao fim mais rápido da pandemia. Ontem, Nelson Teich foi claro: “Essa tese de imunidade de rebanho, onde você adquire a imunidade através do contato e não da vacina, isso é um erro.”
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou que a crise seria longa, trágica, mataria, no pior cenário que fez, 180 mil brasileiros em 2020. Foram 11 mil a mais. Disse que não havia remédio, portanto era para seguir o que sempre foi usado nas epidemias de doenças infecciosas: o distanciamento social. O presidente o ignorou. Nem mesmo a máscara ele adotou. Pelo contrário, quem entra no Planalto é até constrangido a tirar a máscara, como me disse uma autoridade. Da mesma forma que o general Eduardo Ramos tomou vacina escondido, o código perto de Bolsonaro é esconder a máscara. Essa é a lógica tacanha de quem preside o país.
Mandetta diz que foi chamado a uma reunião no terceiro andar, gabinete do presidente, e lá viu a minuta de um decreto que imporia a mudança da bula da cloroquina. Estavam presentes pessoas estranhas ao governo, mas que o presidente ouvia sobre saúde, em vez de o ministro. Presente também o filho Carlos, que participa de reuniões ministeriais com direito a assento na mesa. Tudo era o retrato de um governo distorcido.
Teich contou que num dia houve uma live em que o presidente garantiu que ampliaria o uso da cloroquina e, no dia seguinte, ele falou a mesma coisa em uma declaração na saída do Alvorada. Isso sem a aprovação do ministro da Saúde. Foi essa a sequência final dos eventos que levou Teich a sair do governo, 29 dias depois de ter entrado.
Nesses dois dias da CPI ficou claro que o único ministro da Saúde que ele permitia ficar no cargo era um que aceitasse dizer a frase: “Senhores, é simples assim: ele manda, eu obedeço.” A propósito, Teich aceitou o general Pazuello como seu secretário-executivo, e com a experiência da proximidade disse que ele não tinha o conhecimento técnico suficiente em gestão de saúde para ocupar a posição de ministro da Saúde.
Pazuello ocupou o cargo, no meio de uma pandemia, porque era o único a aceitar o cabresto do presidente. Cabresto que ele tenta impor ao país com seu mandonismo agressivo. Ontem foi mais um dia de ameaças institucionais ao país, gritadas no meio de um evento oficial. Disse que vai baixar um decreto contra as medidas protetivas adotadas por prefeitos e governadores.
— Se baixar esse decreto, ele será cumprido e não será contestado, não ousem contestar — berrou Bolsonaro, querendo dizer que a Justiça não poderia revogar tal ato.
Ontem também o presidente fez novo ataque à China, insinuando que o vírus teria sido parte de uma guerra química, bacteriológica.
Poderia ser só insensatez, mas é muito mais. Bolsonaro está acuado. Está ficando claro que ele cometeu delito continuado na gestão da pandemia. Derrubou os ministros que queriam nos conduzir para um cenário de menos mortes e mais proteção, impôs um que seguiu todas as suas ordens e que agora está se escondendo na barra da farda do Exército. O comando de Bolsonaro foi claro: exposição ao vírus, cloroquina e ameaças autoritárias. Enquanto a CPI fazia nova radiografia do seu absurdo modo de governar, Bolsonaro deu mais um dos seus gritos. Queria distrair a atenção. O risco é o país não reagir a esse candidato a ditador.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-presidente-e-o-delito-continuado.html
Merval Pereira: Bolsonaro no limite
Por mais que o Exército faça para se distanciar de Bolsonaro, o presidente faz questão de incluí-lo em suas ameaças, voltando a confrontos institucionais que já o colocaram em desacordo anteriormente com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e o ex-comandante do Exército e general Edson Pujol. Voltou a chamar de “meu Exército” os militares que, segundo ele, podem sair às ruas para proteger o direito de ir e vir em caso de lockdown. E nenhum juiz ousará contestar essa decisão, garantiu em sua retórica abusiva.
A convocação do ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello pela CPI quase se transformou em princípio de crise, não fosse a iniciativa do senador Omar Aziz, presidente da CPI, de ligar ao novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, para esclarecer que Pazuello era convocado na qualidade de ministro civil, e não de general da ativa.
O novo comandante era chefe do Departamento do Pessoal do Exército, encarregado da logística de combate à Covid-19 dentro da corporação, e agiu de acordo com as orientações médicas. Por isso, Pujol certa vez deu o cotovelo para Bolsonaro, que lhe estendia a mão e ficou irritado.
O próprio general Paulo Sérgio escreveu um artigo em que se rejubilava pelo fato de a pandemia, no Exército, estar sendo muito menos letal entre os seus do que na média brasileira, justamente por seguirem orientações científicas. O artigo, que também provocou a ira de Bolsonaro, não impediu que a antiguidade se impusesse na escolha do novo comandante do Exército e mostra bem a diferença de visão entre os dois.
O presidente está claramente a perigo, se sentindo acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI da Covid. Mais uma vez está escalando a retórica que domina, a da ameaça e do extremismo, para tentar criar uma situação crítica que obrigue as Forças Armadas a se posicionar. Aproveitando um discurso em cerimônia do Palácio do Planalto sobre a tecnologia 5G — que nada tem com o tema que abordou —, Bolsonaro deu um jeito de voltar a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir a autonomia de governadores e prefeitos na definição de medidas restritivas durante a pandemia, que ele considera uma “excrescência”, por ter dado “competências esdrúxulas” a eles.
O ex-ministro Pazuello se preparava justamente para atacar o Supremo em seu depoimento na CPI, que acabou adiado por incapacidade do convocado de postar-se minimamente bem diante de seus arguidores. Bolsonaro é capaz de fazer um ato extremo, como ameaçou, com o objetivo de criar uma situação-limite e confrontar instituições como o STF para testar sua força popular. As manifestações do fim de semana a seu favor, em várias capitais, devem tê-lo convencido de que ainda é capaz de acionar multidões para reforçá-lo no poder.
Trata-se de movimento perigoso porque, estando acuado, é capaz de transpor a linha da legalidade.
Pode ser só uma bazófia, mas pode perfeitamente se transformar em realidade diante dos fatos, que estão sempre contra ele nos últimos tempos. Com essas bravatas, é possível acelerar um processo de impeachment, que está latente na CPI. Está protegido pela pandemia, que impede as pessoas de ir à rua. Mas, nesse ritmo, provoca ações de seus seguidores e dos contrários. E, se isso acontecer, as instituições terão que funcionar, inclusive o Exército, que terá de dizer se está do lado da democracia ou de um presidente claramente desequilibrado, que tenta fazer tudo para criar um ambiente político que facilite o autoritarismo.
A sorte é que, aparentemente, ele é minoria. A questão é saber se irá até o final, se testará nas ruas sua força. O mais grave, diante da falta de vacinas e do tamanho da tragédia que vivemos, é voltar a pensar alto besteiras como uma guerra biológica da China, que teria “inventado” o vírus da Covid-19 para poder crescer economicamente e superar seus competidores ocidentais. São os ecos ainda da visão conspiratória do ex-ministro Ernesto Araújo, que ficou no inconsciente dos remanescentes do governo e levaram o ministro Paulo Guedes a repetir a besteira numa reunião que era transmitida.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/bolsonaro-no-limite.html
Malu Gaspar: Exército trabalha para descolar imagem de Pazuello de militares na CPI da Covid Visualizações: 34
O Exército vem trabalhando nos últimos dias para impedir que o depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Covid prejudique a reputação da força. O comandante do Exército, general Paulo Sergio Nogueira de Oliveira, conversou sobre o assunto na segunda-feira à noite com o presidente da CPI da Covid, Omar Aziz.
Nos últimos dias, também fez chegar a Pazuello recados para que o ex-ministro não associasse sua atuação no ministério aos papéis que desempenhou no Exército. Temia-se, inclusive, que Pazuello pudesse comparecer de farda à CPI – o que foi desencorajado nas mensagens enviadas ao ex-ministro.
Pazuello tranquilizou os interlocutores e prometeu ir ao Senado à paisana. Mas o comportamento do ex-ministro nos treinamentos prévios à CPI, no final de semana, deixou os militares preocupados.
Num dos momentos de maior tensão, o ex-ministro se exasperou e começou a dizer que não iria admitir ser abandonado, por que estava cumprindo uma missão como oficial da ativa.
A expressão acendeu um alerta no Exército, preocupado com a forma como Pazuello pudesse descrever sua atuação no ministério. Foi por isso que, além de reforçar a ordem para que Pazuello não ostentasse seu vínculo com a força no depoimento, o comandante Paulo Sérgio decidiu também procurar o senador Omar Aziz.
Na conversa, na segunda-feira à noite, Aziz garantiu que a CPI ouviria Pazuello como ministro e não como general ou militar – a pessoa física e não a pessoa jurídica, como ele mesmo disse na conversa, segundo fontes próximas a Aziz.
O presidente da CPI e o comandante do Exército se conhecem há muitos anos. O senador foi governador do Amazonas quando o general era comandante da 12ª Região Militar, com sede em Manaus. O general Paulo Sérgio passou dez anos na Amazônia em diferentes funções.
Na conversa com Omar Aziz, o comandante também informou em primeira mão ao presidente da CPI que Pazuello talvez não pudesse prestar ao depoimento porque dois coronéis com quem ele tinha estado no final de semana estavam com suspeita de Covid.
Um desses coronéis é Elcio Franco, ex-secretário-executivo de Pazuello, que também acompanhou o treinamento do ex-ministro no Palácio do Planalto, no final de semana. A suspeita de Covid foi depois confirmada, e Pazuello conseguiu adiar o depoimento para o dia 19 de maio.
Fonte:
O Globo