O Globo
Pablo Ortellado: Sem medo do voto impresso
Precisamos ter cuidado com as tomadas de posição automáticas e irrefletidas que adotamos em tempos de polarização. Nem tudo aquilo que Bolsonaro propõe é ruim, apenas porque ele propôs. É o caso do voto impresso auditável, uma proposta bastante razoável, que tem o respaldo de muitos especialistas e é adotada com bons resultados noutros países.
Embora a medida seja apropriada, ela certamente não é oportuna, seja porque não temos tido casos de fraude, seja porque a substituição dos equipamentos é cara e a implementação, demorada. E deveríamos ter outras prioridades em tempos de Covid-19.
O voto impresso tem muitos apoiadores no Congresso. A medida chegou a ser aprovada na minirreforma de 2015, mas foi derrubada depois pelo STF. Agora, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tenta aprová-la por meio de uma proposta de emenda à Constituição de autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF).
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, tem se esforçado em defender o legado da urna eletrônica, que pôs fim às fraudes recorrentes das cédulas de papel e aguentou bem o teste prático das eleições democráticas dos últimos 25 anos, sem que tenha mostrado problemas relevantes.
Mas, ainda que seja segura, ela tem problemas. Seu modelo de criptografia fechado tem sido alvo de críticas de especialistas, que defendem que um sistema aberto seria mais robusto porque permitiria uma auditoria permanente da comunidade acadêmica e de outros interessados.
Críticos também têm apontado que o sistema de impressão do voto, depositado automaticamente na urna, permitiria uma auditoria da máquina que não fosse apenas a inspeção do software, seria de melhor entendimento e transmitiria mais segurança aos eleitores.
Essa poderia ser uma discussão acadêmica sobre aperfeiçoamentos técnicos do sistema de votação, mas ela é hoje bem mais do que isso.
Desde as eleições de 2018, Bolsonaro tem criticado a confiabilidade da urna eletrônica sem que tenha apresentado qualquer evidência concreta de fraude. Apesar disso, acredita que ganhou as eleições passadas com uma margem maior que a oficialmente registrada e ameaça que, se o sistema de votação não for modificado, pode não aceitar o resultado das eleições, como fez Donald Trump.
Não está claro se o objetivo da proposta que está tramitando agora é realmente implementar o voto impresso auditável para as eleições de 2022 ou se é apenas um jogo de cena que permitiria a Bolsonaro dizer que tentou resolver o problema da confiabilidade das urnas, mas foi impedido pelo Congresso, pelo STF ou pelo “sistema”. Ainda que a proposta seja aprovada por Câmara e Senado antes de outubro deste ano, não seria viável implementar mais que um projeto-piloto para as próximas eleições.
Apesar de cara e apressada, pode ser conveniente aprovar a proposta de uma vez, dadas as circunstâncias políticas. No mérito, a proposta de fato aperfeiçoa o sistema de votação. E ela pode retirar dos autoritários um dos argumentos que seguramente serão usados para criar instabilidade nas eleições de 2022.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/sem-medo-do-voto-impresso.html
Míriam Leitão: O falso testemunho
Pegue-se de qualquer ponto o depoimento que o ex-secretário Fabio Wajngarten deu à CPI e é possível encontrar uma inconsistência. Foi tanta mentira e contradição que, durante a tarde, instalou-se uma discussão entre o presidente Omar Aziz e o relator Renan Calheiros. O relator queria prender. O presidente, não. Renan temia a desmoralização, Aziz disse que estava salvando a CPI. A prisão faria a Comissão Parlamentar escalar o grau de conflito. A não prisão daria a qualquer um o direito de mentir ali. Cada um dos dois tinha um ponto, não era fácil decidir. Senadores que a coluna ouviu acham que era caso de prisão. O senador Alessandro Vieira, que é suplente, quando acabou de interrogá-lo e pegar novas contradições, concluiu:
— Eu apenas reforço, e pode ser uma tendência desta comissão. Não há nisso ameaça. Há um justo alerta à testemunha. Cabe ao senhor presidente determinar se é o caso de prisão em flagrante por mentir à CPI. Essa decisão será constante. É impressionante vir aqui e agir com essa desfaçatez.
Wajngarten negou que tivesse dito à “Veja” que foi incompetência do Ministério da Saúde. A “Veja” postou o áudio em que ele dizia “incompetência, incompetência”. A senadora Leila o colocou para ser ouvido. Ele disse que fez 11 campanhas vinculadas à pandemia. O senador Humberto Costa mostrou que algumas eram para estimular as pessoas a saírem para as ruas. O senador Tasso Jereissati perguntou sobre a campanha “O Brasil não pode parar”. Ele alegou desconhecimento, dizendo que em março do ano passado estava em casa com covid. Na época, deu entrevista a Eduardo Bolsonaro dizendo que de casa continuava trabalhando e aprovando campanhas.
“Eu sou uma prova viva de que mesmo testado positivo, a vida segue normal, tenho feito calls com ministros, com a Secom, tenho aprovado campanha, tenho conversado com os criativos das agências. Então a vida segue”, disse ele ao filho do presidente. Terminou dizendo que a pandemia não era essa “agonia que uma parte da mídia anda veiculando”.
Wajngarten entrou em contradição até com o que disse durante o depoimento. Afirmou que não negociara com a Pfizer. Repetiu várias vezes para o senador Renan Calheiros que apenas fizera três contatos, para ajudar o Brasil a ter “a melhor vacina do mundo”. Depois, relatou diálogos próprios de negociação. Disse, por exemplo, que em determinado momento eles ofereceram apenas 500 mil doses:
— Eu disse a eles que isso é menos do que um bloco da Avenida Paulista e que a conversa não continuaria se eles não mudassem de postura. Vi que havia um espaço para negociação.
Ao falar das cláusulas “leoninas” do contrato da Pfizer que justificariam o que ele mesmo denunciara como incompetência, ou seja, o atraso no acordo com a farmacêutica, ele disse que consultara o jurista Ives Gandra, pai, para saber o que era o contrato de adesão. E que Gandra dissera que isso jogaria toda a responsabilidade sobre o governo brasileiro, por eventuais efeitos adversos. Ao senador Alessandro Vieira, ele contou que falou sim com Ives Gandra, mas apenas “ontem” (terça-feira).
— Então, o senhor apontou que esse foi o motivo para não comprar a vacina, mas só ontem o senhor ficou sabendo disso com o Gandra? — perguntou Vieira.
— Eu não o conhecia.
O que houve foi o seguinte. Numa briga interna do governo, Wajngarte desentendeu-se com o marqueteiro do general Pazuello, conhecido como Markinhos Show. Pazuello, ao sair, insinuou que houve gente querendo “pixulé” na compra de vacinas. Wajngarten então deu a entrevista à “Veja” atacando o Ministério da Saúde. Chamado à CPI, foi com a missão de blindar o presidente e sem compromisso de dizer a verdade, apesar da obrigação legal de fazê-lo. Que ele mentiria ficou claro logo no início, quando o senador Renan Calheiros perguntou que impacto tinha, na opinião pública, aquela sucessão de falas “estapafúrdias” do presidente contra a vacina e a favor de aglomeração. Wajngarten, que se apresentara como especialista em análise de dados na área da comunicação, soltou a frase: “Não sei qual o alcance de uma fala presidencial.” Era mentira, evidentemente. O que seria um dia a favor do governo acabou virando contra pelo volume das falsidades. Por isso o senador Flávio Bolsonaro desembarcou na comissão. Para criar conflito. Foi quando chamou Renan de “vagabundo”. O depoimento foi enviado ao Ministério Público.
Fonte:
O Globo
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Malu Gaspar: Então fica combinado assim. Está liberado mentir na CPI
Então fica combinado assim: de agora em diante, está liberado mentir em sessão de Comissão Parlamentar de Inquérito. Também não tem problema chamar o colega parlamentar de “vagabundo” para melar um depoimento. E tudo bem escancarar ao distinto público a constatação de que, afinal, a apuração das responsabilidades pelo descaso no combate à pandemia da Covid-19 só não é mais importante que uma ampla gama de conveniências políticas.
Qualquer brasileiro medianamente informado sabe que o destino mais provável de uma CPI é terminar em pizza. Mas as cenas exibidas ao vivo e em cores durante o depoimento do ex-secretário de Comunicação do governo federal Fabio Wajngarten, na CPI da Covid, elevaram a expressão popular a um novo patamar.
Primeiro por causa da insistência do ex-secretário em desdizer tudo o que havia afirmado à revista “Veja” em abril, numa entrevista cheia de recados subliminares ao presidente da República e ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.
Em seis horas de exposição, Wajngarten recusou-se a repetir que o governo poderia ter comprado vacinas meses antes do que de fato ocorreu, negou ter afirmado que houve “dolo, incompetência ou as duas coisas” na ação do ex-ministro da Saúde e, mais de uma vez, tentou sepultar a versão de que Bolsonaro o havia autorizado a negociar a aquisição dos imunizantes, passando por cima do colega de Esplanada Pazuello.
Recorrendo à desculpa de que estava doente, negou também ter aprovado a campanha publicitária que se opunha ao isolamento social, mesmo depois que vídeos daqueles dias o mostraram dizendo que continuava trabalhando normalmente, de casa.
Mas o recuo mais importante talvez tenha sido o menos notado pelos senadores: depois de afirmar à “Veja” ter guardado e-mails, registros telefônicos e até cópias de minutas contratuais para comprovar que trabalhou pela compra das vacinas da Pfizer, Wajngarten sustentou na CPI que não dissera nada daquilo e que não tinha nada.
Não é possível garantir que a nova postura tenha a ver com as mensagens que o ex-secretário recebeu nos últimos dias de emissários de Bolsonaro, mas é altamente provável que tenha sido essa última declaração a senha que acionou o resgate providenciado pelo filho Zero Um do presidente.
O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) chegou a tempo de ver o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), recusar-se a prender Wajngarten, delegando ao relator, Renan Calheiros (MDB-AL), a iniciativa de fazê-lo. Renan, que até então insistia na prisão, recuou de repente com um “não vou fazer, em respeito a Vossa Excelência”. Assim, abriu o flanco para Flávio chamá-lo de “vagabundo” e dar a deixa para Aziz decretar o final da sessão.
Findo o espetáculo, não faltou quem justificasse a atitude de Aziz como um movimento estratégico para não desmoralizar a CPI e deixar aberta a possibilidade de prender Pazuello mais adiante.
Considerando que a Advocacia-Geral da União está trabalhando para conseguir um habeas corpus que garanta ao ex-ministro da Saúde o direito de ficar calado — expediente bastante comum em CPIs —, dificilmente Pazuello terá chance de mentir como fez Wajngarten.
É claro que a investigação continua, a política é um jogo de estratégia, e a realidade brasileira não autoriza ninguém a alimentar ilusões quanto à pureza d’alma dos nossos parlamentares. Seria ingênuo imaginar que os veteranos da CPI não se guiem por uma teia de interesses que extrapolam a preocupação com a saúde dos brasileiros. Entram no cálculo desde a compra de tratores com dinheiro do Orçamento até o posicionamento mais conveniente aos diferentes partidos na disputa presidencial de 2022.
Mas a política também é feita de símbolos, e, nesse particular, a mensagem de ontem é inequívoca. Desde que tenha uma tropa de choque a seu favor, qualquer futuro depoente da CPI da Covid pode ficar à vontade para mentir quanto quiser sem ser incomodado.
Fica difícil imaginar desmoralização maior para uma Comissão Parlamentar de Inquérito que se propõe a apurar responsabilidades e a revelar a verdade, mas se acovarda diante de transgressões tão toscas e evidentes.
Fonte:
O Globo
Merval Pereira: Mentiras perigosas
Que o ex-secretário de Comunicação de Bolsonaro Fabio Wajngarten mentiu na CPI da Covid, disso não há dúvida. A partir daí, é possível detectar como os senadores estão despreparados para os interrogatórios e prospectar um resultado muito mais político do que real, se não mudarem de postura. Um resultado político pode ser sem grande valia, pois a própria característica da decisão poderá dar ao presidente Bolsonaro uma escapatória, atribuindo às acusações da CPI um teor eleitoral.
Poucos foram como o senador Tasso Jereissati, que citou uma campanha de volta ao trabalho — “O Brasil não pode parar”—, claramente negacionista, feita pela Secom, em contraposição ao depoimento do ex-secretário, que se apresentou como um seguidor da ciência e favorável às medidas de prevenção, como o distanciamento social.
Frequentemente as perguntas dos senadores eram confusas, inclusive as do relator Renan Calheiros, que, por precipitação, perdeu um grande momento quando pediu ao depoente que enviasse à CPI os e-mails que ele dissera à revista “Veja” ter “guardado”. A primeira reação de Wajngarten foi concordar, com um gesto de cabeça, para logo em seguida se aproveitar da confusão reinante para dizer que os tinha guardado no computador da Secom.
Mandar prender um depoente, mesmo que ele seja um mentiroso evidente como Fabio Wajngarten, não resolveria a situação da CPI, mas criaria um fato político que poderia reverter até mesmo em favor do governo Bolsonaro. Mesmo que a lei permita que se dê voz de prisão durante o depoimento, as mentiras de Wajngarten foram tantas e tão evidentes que dispensam essa medida extrema.
Chega a ser patética a falha do ex-secretário de Comunicação ao garantir que nunca discutiu nenhuma campanha com o presidente Bolsonaro. Deu-se um poder que nenhum secretário de Comunicação tem, nem mesmo no menor município do país. Uma secretaria de Comunicação existe para explicar aos cidadãos a política do presidente da República, que guia as ações de um governo. Nem Goebbels, na loucura do nazismo, teve tanto poder quanto Wajngarten atribuiu-se ridiculamente.
Foram demitidos sumariamente os que tentaram sair da linha de orientação de Bolsonaro, um governante que sabidamente não admite contestações. Mesmo em governos democráticos, e não é o caso deste de Bolsonaro, ministros discordam entre si, mas a última palavra é do presidente.
Tomada uma decisão, o ministro que publicamente a criticar estará fora. Disputas entre ministros e ministérios são comuns, e muitos saem ao perder a capacidade política de defender internamente suas ideias. Foi o caso de Wajngarten, que tinha muito poder até a chegada ao governo do ministro da Comunicação, Fábio Faria, que o dispensou depois de muitos atritos entre os dois.
Mesmo a carta da farmacêutica Pfizer que ele entregou à CPI, considerada por seu presidente, senador Omar Aziz, o grande achado do dia, já era de conhecimento de todos, e provavelmente o diretor da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo, que deporá hoje, daria conhecimento dela à CPI.
No início do interrogatório, ninguém tinha a íntegra da revista “Veja” para confrontá-la com o depoimento de Wajngarten. Parece que os senadores estavam certos de que o depoimento seria uma confirmação da entrevista à revista e não se prepararam para uma reviravolta.
Em beneficio dos senadores, é raro que uma pessoa dê uma entrevista tão explícita quanto a que Wajngarten deu à “Veja” e depois tente tirar dela o teor explosivo que contém. Quando, já ao final da sessão, o senador do Cidadania Alessandro Vieira leu integralmente as respostas do depoente, é que ele foi obrigado a admitir algumas críticas.
O final da sessão deu-se em clima de baixaria, com o bate-boca em que ambos, os senadores Flávio Bolsonaro e o relator Renan Calheiros, se xingaram de “vagabundo”, sem que houvesse condições de definir quem tinha razão. Ou se os dois estavam certos.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/mentiras-perigosas.html
Bernardo Mello Franco: Engavetador em campanha
Um assessor parlamentar deposita R$ 89 mil na conta da primeira-dama. Quando a história vem à tona, o presidente diz que o dinheiro era para ele. Ao ser questionado sobre o motivo dos cheques, o político se descontrola. Fecha a cara, solta palavrões e ameaça agredir o jornalista com um soco na boca.
A pergunta do repórter do GLOBO ganhou as redes sociais: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”. Nove meses depois, Jair Bolsonaro ainda não se dignou a respondê-la. Se depender da Procuradoria-Geral da República, continuará em confortável silêncio.
Na segunda-feira, o procurador Augusto Aras rejeitou abrir inquérito sobre o caso. Ele afirmou ao Supremo que não vê “lastro probatório mínimo” contra o capitão. O parecer contrariou o advogado Ricardo Bretanha Schmidt, autor do pedido de investigação. “Quando se trata do presidente, a PGR nunca tem disposição de elucidar os fatos”, protesta.
Desde que foi nomeado por Bolsonaro, Aras se comporta como um aliado do governo. Virou o novo engavetador-geral da República, título inaugurado por Geraldo Brindeiro na Era FH. O procurador já arquivou múltiplas representações contra o presidente. Entre outras coisas, recusou-se a investigar os desmandos na pandemia e o uso da Lei de Segurança Nacional contra opositores.
Em janeiro, a submissão de Aras ao Planalto tirou seus colegas do sério. Numa cobrança pública, seis integrantes do Conselho Superior do Ministério Público escreveram que ele “precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal”. Em outra frente, a Associação Nacional dos Procuradores da República afirmou que “a sociedade brasileira não admite omissão neste momento”.
A fidelidade de Aras a Bolsonaro tinha um motivo conhecido: ele sonhava ser nomeado ministro do Supremo. Como o capitão prometeu a vaga a um jurista “terrivelmente evangélico”, o procurador teve que mudar os planos. Virou candidato a um segundo mandato na PGR. Em 2019, ele convenceu o presidente a nomeá-lo fora da lista tríplice. Agora está em campanha para repetir a dose em setembro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/engavetador-em-campanha.html
Vera Magalhães: Haja trator para tanto escândalo
Tratores são, como o nome indica, veículos de tração, responsáveis por movimentar cargas muito pesadas, de difícil deslocamento. Haja trator superfaturado para empurrar Jair Bolsonaro até o fim do mandato com tanto escândalo, tanto fracasso e tanta incompetência.
O escândalo do tratoraço, revelado pelo “Estadão”, que começou a puxar o fio da meada de um mecanismo novo de apropriação do Orçamento da União por pequenos grupos para dar sustentação a um governo insustentável, é a chave para ajudar a responder, juntamente com o fanatismo de um setor da sociedade, à pergunta de um milhão de dólares: por que Bolsonaro não cai?
O ministro Luiz Eduardo Ramos costuma se gabar de que, depois de sua passagem pela Secretaria de Governo da Presidência, a máxima segundo a qual não havia articulação política no Planalto foi derrubada.
Agora se sabe com que expedientes.
Uma engenhosa urdidura permitiu que o Centrão caísse no colo do presidente, e lá vai permanecer enquanto houver trator para arrancar. A base desse arranjo foi a criação de um tipo de superemenda (a RP9, domínio do relator do Orçamento), usada como uma conta-mãe de que parlamentares aliados sacam nacos para suas bases à custa de fidelidade nas votações e mediante ofícios por baixo dos panos.
Esse tipo de emenda chegou a ser vetado por Bolsonaro, aconselhado à época, em 2019, por aqueles que viam no expediente o que ele é: uma burla à fiscalização da aplicação das verbas orçamentárias pelos órgãos de controle e uma forma de injetar dinheiro público mais rápido e sem restrições nas bases de deputados e senadores leais.
O que se seguiu foi um roteiro sórdido, em que o Congresso não derrubou o veto, não aprovou um projeto, o PLN4, que o regularizaria de novo, mas passou a usar a superemenda a rodo.
O fio puxado pelo tratoraço deve revelar outros “aços” em pastas espalhadas pela Esplanada e suas estatais e autarquias, igualmente aparelhadas e desviadas de sua finalidade, como a Codevasf, a meca do tratorista Rogério Marinho.
Não foi à toa o silêncio de Paulo Guedes quando questionado por quatro horas a respeito do tema nesta terça-feira na Câmara: além de ser um esquema com todas as digitais de seu desafeto no Ministério, o tratoraço é tudo aquilo que o ministro da Economia, em sua ilusão de que ser liberal bastaria, achou que Bolsonaro enterraria na relação entre dinheiro público e política. Não só não enterrou, como aperfeiçoou.
Hoje a Codevasf virou uma estatal anabolizada, outra antítese da cantilena liberal com que Bolsonaro ludibriou o Posto Ipiranga e boa parcela do eleitorado.
O Centrão, que não se ilude com ninguém e só apoia quem lhe dá algo em troca, esperou calmamente a diatribe de “não preciso da velha política” do capitão passar e agora vive a febre do maquinário agrícola sem medo de ser feliz.
O que pode estragar a festa dos tratoreiros? Uma investigação mais a fundo do esquema, que comprove: 1) que o Orçamento secreto é uma forma de burlar a execução orçamentária; 2) desvio de finalidade de empresas públicas, como a Codevasf; 3) corrupção explícita, desvio de recursos na ponta do que é enviado via RP9 para as bases dos parlamentares; 4) favorecimento a empresas ligadas aos políticos na compra de serviços e maquinários.
Tudo isso está quicando, pronto para ser descoberto. O Tribunal de Contas da União já tem uma investigação aberta sobre irregularidades na Codevasf (quem se lembra dos Correios como piloto do mensalão, ou da Petrobras do petrolão?). Cabe à imprensa vasculhar os ofícios em todas as pastas e rastrear os recursos enviados pelo Orçamento secreto a estados e municípios. Quando esse edifício começar a ruir, os que subiram na boleia dos tratores serão os primeiros a descer, e a blindagem de Bolsonaro começará a ceder.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/haja-trator-para-tanto-escandalo.html
O Globo: Agendas indicam que governo priorizou vacina indiana sem autorização à da Pfizer com registro
Malu Gaspar, O Globo
Nenhuma outra empresa se reuniu mais com representantes do Ministério da Saúde para tentar vender ao Brasil uma vacina contra o coronavírus do que a multinacional americana Pfizer. Mas nenhuma outra obteve resultados tão eficientes quanto a Bharat Biotech, representada no Brasil pela importadora paulista Precisa Medicamentos. É o que mostram os dados da agenda do Ministério da Saúde, obtidos via LAI e por pesquisa nos registros públicos da pasta.
Enquanto a Pfizer, que obteve registro definitivo para sua vacina em fevereiro, esperou sete meses, participou de dez reuniões e teve que recorrer a muita gente no governo para conseguir fechar um contrato – incluindo o ex-secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, que depõe hoje à CPI da Covid –, a Precisa fez apenas seis reuniões e liquidou a fatura em menos de quatro meses.
Os registros do Ministério da Saúde só estão disponíveis para os meses de setembro em diante. A agenda dos meses anteriores desapareceu depois que um hacker alegadamente invadiu o site do Ministério da Saúde.
Quando a negociação com os representantes da Bharat começou, em novembro, a Covaxin ainda era uma vacina em estágio inicial de desenvolvimento. Ainda assim, em fevereiro o ministério fechou um contrato de R$ 1,6 bilhão para o fornecimento de 20 milhões de doses da vacina indiana para o Brasil. O valor já foi empenhado, ou seja, reservado pela pasta, mas só poderá ser repassado de fato aos fornecedores após a eventual aprovação emergencial ou o registro definitivo do imunizante pela Anvisa.
O contrato com a Pfizer foi fechado em março. A primeira remessa de doses da vacina, com um milhão de unidades, chegou ao país no último dia 29. O ministério assinou ontem o segundo contrato, para o fornecimento de mais 100 milhões de doses. Neste segundo lote, no entanto, as entregas devem ocorrer apenas a partir de outubro.
Já a fórmula indiana até hoje não chegou ao Brasil. O desembarque dos primeiros lotes estava previsto para março. Pouco antes do vencimento do prazo de entrega, a diretora técnica da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades, disse em audiência o Senado Federal que o governo da Índia priorizaria o Brasil na entrega de doses. Posteriormente, o prazo foi revisto para abril, e a promessa novamente não foi cumprida.
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No fim de março, a Anvisa negou a certificação de boas práticas de fabricação ao seu desenvolvedor, o laboratório Bharat Biotech, por conta de riscos sanitários e ausência de controle de qualidade após visitar suas instalações.
A certificação da fábrica é uma das etapas necessárias para a Anvisa conceder a autorização de uso emergencial, mas não é a única. É preciso também demonstrar a eficácia e a segurança da vacina por meio de dados de estudos clínicos.
O Ministério da Saúde pediu à Anvisa a autorização do uso emergencial da Covaxin um mês após adquirir as doses do imunizante, mas a agência anunciou que os dados estavam incompletos e, até agora, não há previsão para uma conclusão definitiva. Em depoimento à CPI da Covid na última terça-feira, o diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, disse que a reguladora não recebeu informações suficientes para liberar o uso da fórmula.
Além da indefinição na situação da vacina, outro fator pesa contra a Precisa. O dono da empresa, Francisco Maximiano, é o mesmo da Global Gestão em Saúde, alvo de uma investigação do Ministério Público Federal em Brasília por suspeita de improbidade administrativa na gestão do ex-ministro da Saúde Ricardo Barros (PP-PR), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara. A apuração do MP busca verificar por que a empresa recebeu R$ 19,9 milhões de reais para fornecer medicamentos de alto custo para doenças raras que nunca chegaram ao SUS.
Segundo os registros compilados pela coluna, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não participou de nenhuma reunião nem com o representante da Pfizer e nem com os da Precisa. Nos dois casos, a discussão dos contratos de vacinas ficava sempre a cargo do então secretário-executivo Élcio Franco e do secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros.
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O que fica claro pelas agendas e pela ata de uma das reuniões da Precisa com o ministério da Saúde é que, enquanto a Pfizer recebia negativas e questionamentos da gestão de Eduardo Pazuello, o governo federal abriu as portas para a Bharat.
No contrato assinado em 25 de fevereiro, o Ministério da Saúde se compromete a pagar R$ 80 por dose da Covaxin – R$ 24 a mais do que o preço da dose oferecido pela Pfizer na cotação do dólar à época da assinatura.
A conflituosa negociação entre o Ministério da Saúde e o laboratório americano, que se arrastou por meses e adiou o início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, é o principal tema do depoimento que o ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten dará à CPI da Covid nesta quarta-feira.
O imunizante da Pfizer já havia completado a última fase de testes quando o governo federal iniciou as tratativas com a Bharat, em novembro. Naquele momento, ofícios enviados pela multinacional americana prometiam 70 milhões de doses, com a pronta entrega das primeiras unidades em dezembro de 2020.
Segundo arquivos do governo, o primeiro contato com a Bharat ocorreu em novembro do ano passado. A empresa indiana foi representada por dois integrantes da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades e Túlio Silveira, em um encontro com o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, e o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Lauricio Monteiro, entre outro quadros do Ministério da Saúde. Segundo a ata da reunião, Medeiros manifestou o interesse do governo na Covaxin e solicitou “maiores detalhes sobre a capacidade produtiva, bem como qual é a estrutura logística, preço da dose”, além de outros dados técnicos.
Àquela altura, a Covaxin sequer havia chegado à fase 3 dos ensaios clínicos, quando a eficácia do imunizante é testada em grandes grupos de voluntários.
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No início de dezembro, a Pfizer divulgou na prestigiada revista New England Journal of Medicine que sua vacina era 95% eficaz contra a Covid-19, um patamar de proteção que surpreendeu a comunidade científica. Mas isso não foi suficiente para deslanchar as propostas oferecidas pelo laboratório ao Brasil.
No início do mês, pressionado pelo anúncio do governo paulista de que o Butantan aplicaria as primeiras doses da CoronaVac em janeiro, Pazuello anunciou que estava prestes a assinar o contrato com a Pfizer. E prometeu começar a campanha de vacinação também em janeiro caso a empresa fornecesse doses já naquele mês – à época, a pasta previa o início da imunização em março.
Apesar da promessa, as conversas com a Pfizer não avançaram. Mas com a Bharat as tratativas foram rápidas. Depois de uma primeira reunião com a equipe de Pazuello, em novembro de 2020, o processo deslanchou em janeiro de 2021, e aí tudo se resolveu em 40 dias. O contrato final foi fechado em 25 de fevereiro.
Além da insuficiência de dados clínicos, a aquisição da Covaxin chamou ainda mais atenção porque o imunizante da Pfizer havia recebido o registro definitivo da Anvisa poucos dias antes. Foi a primeira vacina contra a Covid a receber o registro, que sinaliza que a eficácia e segurança de um fármaco são irrefutáveis.
O Ministério da Saúde só adquiriu as primeiras doses da vacina americana em março deste ano, sete meses após a primeira oferta, e por um preço consideravelmente menor, US$ 10 por dose (R$ 56 na cotação da época), do que a Covaxin (vendida a US$ 15, ou R$ 80 na celebração do contrato).
No período da ascensão meteórica da Covaxin dentro do ministério, outras negociações que já estavam em curso antes do diálogo com a Precisa Medicamentos foram desconsideradas: a da Janssen (adquirida junto com a Pfizer) e a da Sputnik V, comprada no mesmo mês. A Moderna tem tratativas encaminhadas com a pasta, mas a assinatura do contrato ainda não ocorreu.
A compra da Covaxin só foi possível porque a própria Anvisa revisou suas regras no início de fevereiro e passou a avaliar pedidos de uso emergencial de imunizantes sem ensaios clínicos conduzidos no país. Mas, mesmo com essa flexibilização da regra, a vacina indiana representava uma opção mais arriscada. Primeiro porque o processo certamente seria mais demorado do que o da Pfizer, que já tinha registro definitivo na Anvisa. E depois porque o Brasil vivia um contexto de escassez de imunizantes, quando já se anunciava a segunda onda da Covid.
A Índia, que enfrenta uma segunda onda violenta e a emergência de uma nova variante do coronavírus, tem represado doses e insumos de vacinas para priorizar a imunização da própria população. Além disso, a Bharat Biotech, que fechou contratos com diversos estados indianos, enfrenta dificuldades para manter o ritmo de produção.
Procurado para justificar a opção pela Covaxin e o atraso na entrega dos lotes adquiridos pelo Brasil, o Ministério da Saúde informou que “avançou nas tratativas da contratação do imunizante para garantir mais doses” , mas não respondeu por que a vacina foi priorizada ainda na fase de estudos quando já havia um imunizante com registro definitivo. A respeito dos prazos, a pasta reforçou que o pagamento só será feito mediante autorização da Anvisa. Nesse cenário, ainda segundo o ministério, um novo cronograma de entregas será elaborato pela Bharat.
A Precisa Medicamentos informou que trabalha para cumprir integralmente “requisitos adicionais” da Anvisa, sem especificar o prazo em que a Bharat pretende se adequar aos critérios brasileiros
A representante da Bharat também foi indagada sobre os dados de fase 3 da Covaxin, que ainda não foram publicados, mas não respondeu. A coluna também questionou ao Ministério das Relações Exteriores se há tratativas com o governo indiano, mas ainda não recebeu retorno.
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Fonte:
O Globo
Míriam Leitão: As boas notícias e o estraga cenário
Há notícias boas na economia, mas a incerteza permanece. O real zerou as perdas do ano em relação ao dólar, em parte isso é resultado do forte saldo comercial derivado da alta de produtos exportados pelo Brasil. O mais espantoso aumento é o do minério de ferro, que é de 47% este ano no mercado chinês e só ontem teve alta de 10%. O saldo da balança é de US$ 20 bilhões até a primeira semana de maio, 50% a mais do que no mesmo período do ano passado. Ouvi economistas e uma cientista política sobre esses dados e seus efeitos na economia e na política. A conclusão é que apesar do vento a favor, o ambiente de crise permanece.
Quando há alta de commodities, as moedas dos países fornecedores, como o Brasil, se valorizam. Mas no ano passado aconteceu o oposto. O real despencou. Isso se deve à incerteza. Vacinação atrasada, os conflitos criados pelo presidente e seus ataques às medidas de proteção fortaleceram o descontrole da pandemia. A economista Silvia Matos, do Ibre/FGV, explica o que mais está alterando o fenômeno.
— O efeito das commodities nas moedas sempre existiu nos modelos, mas apesar dos ventos externos favoráveis, questões domésticas como confusões fiscais e políticas estão jogando contra. Medidas populistas, como a intervenção na Petrobras, também. O câmbio estaria muito mais apreciado se não fossem nossos problemas internos — diz Silvia.
Os cientistas políticos Daniela Campello e Cesar Zucco, da FGV, estudaram a relação entre o boom de commodities e o fortalecimento político dos governos. A pergunta que fiz à Daniela, ontem, foi se esse boom poderia favorecer a reeleição de Bolsonaro.
— Em tese, poderia favorecer, mas não acho esse o cenário mais provável. O que conecta o boom externo ao bem-estar das pessoas — que pode aumentar o apoio ao governo — é o câmbio. Até agora, não estava ocorrendo esse fenômeno. A subida dos preços foi forte, mas o dólar continuava alto. Acho que precisa ser um boom realmente duradouro — que segure até 2022 — e, ainda assim, que ele não seja enfraquecido pelo caos da pandemia. Não acho o cenário favorável de forma alguma para o presidente — disse Campelo.
Todos os economistas dizem que o primeiro trimestre está com dados melhores do que o previsto. É o que diz, por exemplo, a economista-chefe para Brasil e Argentina da Bloomberg Economics, Adriana Dupita. Ela ressalta que principalmente o mês de março foi melhor do que o esperado. Mas o alto grau de incerteza vem impedindo os investidores de terem uma visão mais otimista sobre o futuro do país:
— O auxílio emergencial chegou ao fim, e agora haverá uma reposição parcial. Na política monetária, há aumento de juros. No câmbio, mesmo com a queda, permanece a volatilidade. Na política fiscal, começa a pesar o calendário eleitoral do ano que vem.
O economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, que acompanha de perto o agronegócio, diz que o interior está crescendo, por força da alta das commodities, porém o cenário é de estagnação na economia.
— O efeito das commodities é aumentar a renda nos segmentos respectivos. A renda do minério é injetada na Vale. É localizada. A do setor agrícola é bem espalhada, e o interior, onde o setor agrícola comanda, está vivendo um boom. Isso se traduz em construções e investimentos industriais ligados ao agronegócio. Entretanto, o atraso da vacinação leva ao risco de uma terceira onda, o que em alguns lugares acontecerá mesmo.
O melhor cenário para este ano é de crescimento de 3%, menos do que caiu no ano passado. E para 2022 as projeções em média dão 2%. É muito pouco. Outra coisa que afeta o cenário é o risco inflacionário. O custo da alimentação vai subir, uma nova rodada, por causa do custo global de grãos e commodities. E isso é péssimo para a atividade e para o poder de compra da população que está na pior da pior. Esse é um cenário de estagnação — diz o economista.
O economista Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, acha que o IPCA de abril, a ser divulgado hoje, será de 0,30%, pela queda dos combustíveis, mas o acumulado em 12 meses vai a 6,75%. Em maio, vai para 7,5%. No segundo semestre, ele acha que o dólar não vai atrapalhar, mas não vai cair muito como poderia.
Conclusão minha depois dessa rodada de conversas. O governo Bolsonaro é tão incompetente que estraga até notícia boa.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/boas-noticias-e-o-estraga-cenario.html
Carlos Andreazza: Presidente-caô
E o tal decreto libertador do autocrata Jair Bolsonaro? Onde está? Aquele que já estaria pronto, mas que o presidente — numa ameaça cansada, covarde até para os padrões retóricos bolsonaristas — não sabe se usará. Cadê? (Talvez esteja guardado no mesmo cofre fantástico em que vão depositadas as provas de fraude contra a eleição de 2018.) Cadê? Aquele decreto por meio do qual o populista sustaria — sem contestação, como se imperador na República — decretos dos tiranos governadores-prefeitos, os cerceadores do trabalho, usurpadores do sagrado direito de ir e vir. Onde?
Quem sabe esteja na mesma gaveta imaginária em que avança o lockdown no Brasil? O decreto do amanhã: obra — bravata — de um governante fraco, isolado e acuado, cujo futuro, no mundo real, depende de Arthur Lira e Valdemar da Costa Neto; sem os quais não haveria “meu Exército” que acudisse. (O Exército do presidente forma com Pazuello, Ramos, Braga Netto e Heleno; tudo cobra fumante dentro das quatro linhas da Constituição.)
No mundo real: enquanto brinca de rolezinho de moto (e promete vídeo com ministros confessando o uso de cloroquina; cadê?), Bolsonaro expande a Codevasf — chegou mesmo ao Amapá — para abrigar toda a mamata que tinha acabado. (Quem dera se ele transpusesse águas assim.)
O decreto do valente do futuro: obra — bravata — de um governante que, desde sua condição de líder sectário, precisa, num terreno fantasioso a cada dia mais comprimido pelo mundo real, dar respostas, a cada vez mais histéricas, aos três quarteirões que foram às ruas autorizá-lo, pressioná-lo, ao golpe. E então: blá-blá-blá.
Não que lhe falte o ímpeto golpista. Não que não teste brechas e embocaduras. E não que a pregação rompedora não imponha graves lacerações na musculatura republicana. No mundo real, contudo, sem apoio para ser Hugo Chávez, a ruptura é a possível, a que pode reelegê-lo em 2022: a de fronteiras, para que os vales do São Francisco e do Parnaíba se alargassem de modo a contemplar os tratores do sócio Centrão. No mundo real: sem apoio para ser Chávez, colhe o apoio de Eduardo Gomes e Wellington Roberto para ser Bolsonaro mesmo.
No mundo real: sobrepreço para aquisição de maquinário agrícola a partir de um orçamento secreto. (Afinal, mamata não vista, mamata não é.) No mundo dos patriotas contra o lockdown imaginário: a projeção de decreto — que tribunal nenhum contestará — para enquadrar entes destruidores da economia e supressores de empregos. Assim se equilibra o homem. Golpista, sim. Mas também empreendedor de sucesso, alguém que ergueu pujante empresa familiar nas bordas gordas do Estado.
A turma que foi às ruas bradou o #euautorizopresidente; e o mito não sabia o que fazer. Ou melhor: sabia que só poderia produzir e difundir seus caôs. Um balanço delicado, com margens de operação muito apertadas. A resposta — satisfação e alimento aos seus — foi essa tosquice. A galera curtiu. O decreto destemido da gaveta quimérica. Contra o establishment que não o deixa agir (o mesmo que o banca), o próprio manifesto de frustração do golpista. O decreto prometido ao povo!, demandado pelo povo!; o povo, claro, segundo a compreensão totalitária de Bolsonaro — o povo sendo aquele que o apoia-autoriza.
No mundo real: Ciro Nogueira. No mundo real: o sistema que ora o sustenta sendo o mesmo que lhe reduz a natureza golpista a essas milongas. E dá-lhe aglomeração, e cloroquina, e China, e guerra química, e eleição auditável, e decreto quem sabe um dia. O Centrão autoriza.
No mundo real: o tratorão; e o Bolsonaro sabedor de que não pode decretar seu delírio. Sabedor de que os decretos de governadores e prefeitos, submetidos a constante controle de constitucionalidade, têm o aval do Supremo. E de que, se decretasse para derrubá-los, passaria vergonha. Seria desmoralizado. O STF a lhe cassar a determinação. E então: o decreto pronto — que não sabe se usará.
No mundo real, pois, para enganar seu mundo da fantasia, o Bolsonaro bravateiro. Que, inconformado, sabe que não teria — ao contrário do que disse — apoio do Congresso para suas fanfarronices golpistas. O Brasil não é El Salvador, lá onde o Parlamento — para júbilo invejoso do bolsonarismo — destituiu a Suprema Corte. No mundo real: o Brasil é o MDB conforme Fernando Bezerra; o capaz de embarcar na canoa do Bolsonaro eleito, jamais na do Bolsonaro onipotente. Tratorão: sim. Tratorando: não.
No mundo real: seria o presidente investir contra o STF — e o faria caso decretasse sua bravura de gaveta — para perder a maioria parlamentar defensiva que cultiva terceirizando orçamento de ministério.
As chances de porvir para Bolsonaro derivam da mesma força que o limita. Os sócios do Centrão compõem curiosa modalidade de proteção à estabilidade institucional, habituados que estão — décadas já de máquina calibrada — a prosperar na democracia. Não estão a fim de mudanças. Mas são tolerantes. E autorizam: o presidente pode ser Ustra no cercadinho, desde que seja Rogério Marinho no Planalto.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/carlos-andreazza/post/presidente-cao.html
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O esquema de desviar verbas através de emendas do Congresso, já usado em governos anteriores, como no escândalo dos “anões do Orçamento”, se repete agora de outra maneira, demonstrando como a criatividade dos corruptos é infindável. Fica claro que precisamos inventar um outro tipo de relacionamento do Congresso com o governo central, porque nosso sistema de presidencialismo de coalizão virou um instrumento de distribuir dinheiro para políticos e corromper o Estado.
Os “anões do Orçamento” eram deputados, de baixa estatura física e moral, que manipulavam a Comissão do Orçamento no Congresso com manobras para inclusão de obras regionais mediante propina recebida de empreiteiras e governantes estaduais e municipais. Agora, ao que tudo indica, o esquema, denunciado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, é centralizado no próprio Palácio do Planalto, que indica verbas de um “orçamento paralelo” a seus correligionários e até a oposicionistas que se disponham a votar com o governo em ocasiões especiais, como a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.
A esse “orçamento”, só têm acesso os parlamentares indicados pelo Centrão, e as ordens de pagamento saem do Ministério do Desenvolvimento Regional e de outros órgãos, sem que se saiba o que será feito do dinheiro, que não tem controle, pois não consta do Orçamento oficial.
Centenas de requisições informais de deputados indicando para que obras deveria ser encaminhado o dinheiro, num caso até compra de tratores, foram revelados pelo jornal. Bastava que o parlamentar dissesse que fora “contemplado” com tal verba ou que tinha direito a ela, para que o dinheiro fosse liberado, após evidentemente ser checada a planilha do chefe da Secretaria de Governo da Presidência, anteriormente o ministro Luiz Eduardo Ramos, hoje a deputada Flávia Arruda, colocada estrategicamente na pasta para facilitar o trânsito dos acordos feitos pelo Centrão que ela representa.
O superfaturamento de obras continua sendo a raiz desses esquemas fraudulentos. Os tratores financiados pelo orçamento paralelo, segundo especialistas, estão mais de 200% acima do preço de mercado. A maior parte dessas verba vai para a Codevasf, Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco, que hoje abrange também o Vale do Parnaíba. Criada para atender cerca de 500 municípios, hoje abrange quase três mil em 15 Estados e o Distrito Federal, ou 37% do território nacional.
É uma das estatais mais cobiçadas pelo políticos, tradicionalmente dominada pelo Centrão. O esquema do “orçamento paralelo” é mais um para limpar dinheiro desviado do Orçamento público. No mensalão, parte do Congresso foi comprado com dinheiro público; no petrolão, o esquema montou-se especialmente em torno da Petrobras e de suas subsidiárias, com outras estatais envolvidas.
Entre as novidades descobertas pela Operação Lava-Jato, o dinheiro de corrupção não raro vinha de “doações” oficiais aos partidos políticos, que assim lavavam o dinheiro recebido. Agora, a lavagem de dinheiro é feita por meio do próprio Orçamento. As emendas parlamentares são impositivas, e todos têm direito a elas na elaboração do Orçamento. No primeiro ano do governo Bolsonaro, porém, foi criada a figura da “emenda do relator”, que ganhou o poder adicional de distribuir verbas.
Além disso, há uma disputa entre o ministro Paulo Guedes, da Economia, e seu mais direto adversário dentro do governo, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Guedes sugeriu a Bolsonaro que vetasse essa emendas no ano passado, e os parlamentares derrubaram o veto, mantendo a distribuição de emendas sem identificação pelo relator.
Não pode ser essa a base da nossa política partidária. Nenhum país aguenta um sistema político que tenha de ser regado a dinheiro e verbas desviadas para funcionar. Não há país sério que se baseie numa relação corrupta entre o governo central e os parlamentares. Quem controla esses esquemas todos é o Centrão, criado na Constituinte de 1988, formalizando a união de partidos como PMDB, PP, PFL, PTB, o mesmo grupo que sempre esteve no poder, e que hoje domina o Congresso.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/ja-foi-visto.html
Fernando Gabeira: Morrendo pela boca
Pode ser que eu esteja maluco. Morreu há muitos anos o amigo Chico Nélson, que me socorria nesses momentos de dúvida e dizia: “Tranquilo, você está lúcido”.
Nada me impressiona mais na sequência de bobagens diárias de Bolsonaro do que esta pergunta: “Será que não estamos enfrentando uma nova guerra?”.
O presidente da República é, pela Constituição, o comandante das Forças Armadas. Se ele se volta para nós e pergunta se estamos enfrentando uma guerra, deixa-nos tão inseguros quanto os passageiros de um avião questionados por um piloto ao aterrissar: “Será que estamos com o trem de pouso acionado?”.
O contexto da pergunta é claro: o presidente duvida da origem do coronavírus. Essa é uma dúvida que circulou no ano passado, com inúmeras reportagens investigativas sobre o laboratório de Wuhan de onde o vírus poderia ter escapado.
Nenhuma delas foi convincente. A Austrália duvidou do papel da China e pediu oficialmente uma investigação. Você pode ou não concordar com a medida, mas é muito mais sério do que ficar reclamando pelos cantos, como faz a família Bolsonaro.
A OMS constatou em Wuhan que a hipótese de o vírus ter escapado do laboratório é improvável, fortalecendo a ideia de uma transmissão por animais.
A China é um país com grande crescimento material e uma visão estratégica de longo alcance. É um absurdo imaginar que disseminaria um vírus em sua própria população, correndo um risco gigantesco, apenas para atingir os outros.
Essa é uma tese de gente que acha que o Partido Democrata americano é composto de pedófilos que se reúnem no porão de uma pizzaria.
Apesar de admirar a riqueza e a cultura tradicional da China, não creio que possa ser qualificado de um maldito comunista. Pelo contrário. Quando deputado, participei de uma coalizão internacional pelo Tibete livre. Convidei o Dalai Lama para falar no Congresso brasileiro, briguei com o Itamaraty quando, sob pressão da China, hesitou em conceder o visto de entrada ao líder religioso.
É possível e necessário discordar da política de grandes potências, EUA ou China, desde que se parta de convicção profunda, assumindo as consequências dessa discordância.
É inadmissível um presidente da República difundir fake news e teorias da conspiração contra a China, sem nem assumir que está falando do país.
É possível que a Austrália sofra alguma retaliação comercial por se opor à China abertamente. No caso brasileiro, o elemento covardia talvez seja uma agravante porque Bolsonaro fala de um vírus, fala de um país que cresceu após a pandemia, mas não assume que se referia à China.
No momento em que está acossado pela CPI, essas referências ao coronavírus como se fosse um ato de guerra dos chineses mostram como Bolsonaro realiza profundamente aquilo que denuncia em seus opositores: a politização da pandemia.
É um movimento patético, porque Bolsonaro é acusado de um negacionismo que contribuiu com a morte de muita gente. Nesse caso, rigorosamente não importa se o vírus foi ou não difundido pelos chineses nessa fantástica guerra; o que importa é se ele mata ou não.
A ideia de ignorar o vírus e tocar a economia como se nada estivesse acontecendo é uma leitura bárbara da teoria de imunidade de rebanho. É um tipo de estratégia a ser realizada pela vacinação e por outras medidas de segurança, jamais pela exposição à morte de milhares de pessoas.
A política internacional tornou-se mais complexa com a ascensão da China e o relativo declínio dos Estados Unidos. Nossa vida cotidiana foi atropelada pela pandemia.
Nunca foi necessária tanta habilidade de um estadista para posicionar o Brasil no mundo e, simultaneamente, conduzir uma política interna de proteção da vida.
Bolsonaro jamais se interessou pela política internacional, jamais se interessou por salvar vidas, mas apenas por tocar a economia e salvar seu mandato.
Homem errado no lugar errado é a grande causa de nosso sofrimento.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/morrendo-pela-boca.html
O Globo: Sem política de inclusão, elite das Forças Armadas não tem diversidade
Thiago Herdy, O Globo
SÃO PAULO — O topo da carreira nas Forças Armadas reproduz a desigualdade existente em outras instâncias de comando de instituições públicas e empresas privadas no país. Documentos de Marinha e Aeronáutica, obtidos pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação, mostram que apenas três integrantes da elite — todos da Força Aérea — se declaram pretos, em um universo de 228 militares do alto escalão. Os retratos, colocados lado a lado aos dos 172 colegas do Exército — que não dispõe dos dados, o que dificulta inclusive a mudança do quadro, segundo especialistas —, evidenciam a falta de diversidade.
Infográfico: Veja o retrato da desigualdade nas Forças Armadas
A representação de pretos na elite militar é apenas um quinto daquela encontrada na sociedade brasileira como um todo. Entre os oficiais-generais da ativa (nomenclatura que contempla o topo das três Forças), apenas 1,75% são pretos, número que vai a 9,4% na população geral. Como as informações dos dados oficiais nem sempre seguem o padrão de cor definido pelo IBGE — na Marinha, por exemplo, há a possibilidade de se autodefinir como “moreno” —, O GLOBO acrescentou à lista a observação das fotografias de todos os oficiais-generais. A identificação visual incorporou outros quatro oficiais pretos aos três autodeclarados, totalizando sete num universo de 400. Nenhum deles ostenta quatro estrelas, o grau máximo que um oficial da elite pode atingir.
Estudo sobre representatividade racial nos espaços decisórios da Aeronáutica, publicado no ano passado pela Escola Nacional de Administração Pública, apontou a ocorrência de “um importante quadro de desigualdade racial” na “distribuição de espaços de poder” da Força Aérea. O trabalho menciona, no entanto, que não se trata de uma particularidade, mas o “retrato fiel do quadro de exclusão social presente no Brasil”.
Em países com debate público sobre igualdade racial nas Forças Armadas, como os Estados Unidos, oficiais de cor preta representam 9% dos comandantes da instituição, percentual mais próximo à representação de pretos na população norte-americana — 13%, segundo o último Censo.
Diretor-executivo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), o advogado Daniel Silveira ressaltou que a própria ausência de dados sobre militares em postos de comando reduz a capacidade de modificação do cenário:
— A negação de discussão se equivale à negação da construção de um país mais inclusivo. Considerando que as Forças Armadas também são instituição pública e empregadora, você não pode simplesmente excluir dos espaços mais empoderados a população negra. Ela também quer se ver refletida neste espaço de decisão.
Silveira diz ser importante reconhecer que os pontos de partida para acesso a oportunidades não apenas no Exército, Marinha e Aeronáutica, mas em toda sociedade, são diferentes para cada grupo.
— O próprio STF já afirmou que uma meritocracia que não considera os diferentes pontos de partida equivale a uma espécie de aristocracia velada.
Oportunidades e herança
Com a experiência de quem discute a desigualdade entre pretos e brancos no mundo corporativo, o sociólogo Mário Rogério, do Ceert, avalia que, conforme uma pessoa preta avança na hierarquia, mais discriminação sofre.
— Ocupar este lugar (de comando) não foi algo pensado para o negro. Atuar como soldado raso, fazer comida, cuidar da limpeza, este foi o lugar pensado para ele — aponta Rogério, acrescentando que é “difícil ter voz de defesa” quando se está isolado.
A progressão na carreira militar ocorre por critérios diversos, como concurso público, antiguidade, experiência medida por pontuação e escolha direta de superiores hierárquicos. Desde 2014, a lei prevê cota de 20% das vagas para pretos e pardos em concursos para a administração pública federal. No entanto, as Forças Armadas resistiram à previsão de vagas até 2018, quando foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal. A medida tem efeito inclusive sobre o acesso a concursos dentro das corporações.
— As cotas raciais foram um incentivo, mas quando isso vai se equilibrar? É daqui a dez, 15 anos. É uma herança do passado, da falta de oportunidade — sugere o contra-almirante negro Sérgio Gago Guida, que está na reserva.
Embora diga nunca ter se sentido vítima de preconceito ao longo da careira militar, ele avalia que a “falta de oportunidade” e a má qualidade da educação em regiões periféricas contribuem para a baixa diversidade. No Exército, o general-de-brigada André Luiz Aguiar Ribeiro é o único de cor preta entre os 172 da elite. Procurado, ele afirmou que só poderia tratar do tema com autorização do Exército, o que não ocorreu.
O Ministério da Defesa afirmou que “não há qualquer seleção pautada na cor ou raça de uma pessoa” e que todos os processos seletivos levam em conta “meritocracia, isonomia e impessoalidade”. A nota acrescenta que a todos são oferecidas as “mesmas condições de acesso à qualificação técnico-profissional necessária para atender aos requisitos para a promoção”. Procurados, os comandos de Aeronáutica, Marinha e Exército não quiseram comentar.
Fonte:
O Globo