O Globo
Merval Pereira: Cavando o buraco
Merval Pereira / O Globo
O Auxílio Brasil lançado ontem pelo governo Bolsonaro não tem apenas a aparência de uma cópia bem-feita do Bolsa Família de Lula, que por sua vez foi uma cópia muito bem-feita dos programas sociais do governo de Fernando Henrique Cardoso. Representa, sobretudo, a irresponsabilidade fiscal a serviço da reeleição do presidente, assim como, em 2010, para eleger Dilma, o então presidente Lula forçou o PIB a ir de uma queda de 0,13% em 2009 para um crescimento de 7,53% no ano da eleição.
Esse crescimento artificial gerou uma crise financeira nos anos seguintes, que resultou em alta da inflação e do desemprego e num crescimento medíocre do PIB no primeiro mandato de Dilma. Entre 2011 e 2014, o país voltou a sofrer forte deterioração fiscal. O gasto do governo Dilma, em 2016, aumentou para 20% do PIB, gerando o maior déficit público de todo o período.
Há mais semelhanças. O crédito consignado, criado em 2003, transformou-se em forte arma eleitoral, e também agora o governo Bolsonaro pretende permitir que parte do novo Bolsa Família possa ser usado para pagamentos de dívidas pelo crédito consignado. O caráter político do Bolsa Família foi ressaltado quando ele passou a ser distribuído pelos prefeitos, ao contrário do início do programa — na concepção de Frei Betto, então assessor especial da Presidência, era distribuído por uma comissão local sem interferência de políticos.
Agora, com a necessidade de recuperar popularidade e as brigas com governadores, Bolsonaro quer passar a distribuição do Auxílio Brasil para o governo federal. Situações diversas, mas o mesmo objetivo de ganhar musculatura eleitoral com a distribuição da renda mínima. Com o Orçamento para o ano que vem já próximo de ser fechado e diante de uma série de investidas direcionadas ao aumento das despesas, já há, entre economistas, uma expectativa de que o Brasil caminha a 2022 para o nono ano consecutivo de déficit primário.
Chega, em boa hora, portanto, o livro “Tudo sobre o déficit público” — uma narrativa sobre a trajetória da organização das contas públicas do Brasil nas últimas décadas e análises sobre as consequências para o país do desequilíbrio fiscal, de autoria do economista e pesquisador associado da FGV/Ibre Fabio Giambiagi, um dos maiores conhecedores das finanças públicas brasileiras. O volume esmiúça o déficit público brasileiro e os problemas dele decorrentes — principal fonte do processo inflacionário, assim como gatilho do “calote”, implícito ou explícito, da dívida pública.
A tentativa do governo de viabilizar o parcelamento do pagamento dos precatórios para permitir encontrar espaço fiscal para dar um Auxílio Brasil entre R$ 400 e R$ 600 por mês é um exemplo típico desse movimento. “Devo, não nego, pagarei quando puder”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes. Após a aprovação da regra do teto de gastos públicos, em 2016, houve finalmente uma mudança de 180 graus em relação à política que vinha sendo conduzida até então. O cenário de lenta recuperação, contudo, foi interrompido em 2020, quando o Brasil sucumbiu novamente à forte deterioração fiscal. As contas públicas “estouraram”: o déficit alcançou proporções gigantescas, e a dívida pública teve uma escalada assustadora. “O maior problema é que o Estado é visto como tábua de salvação para todos os gastos. Esse problema — que se acentuou em 2020 — está na raiz das dificuldades enfrentadas pela economia brasileira”, conta Giambiagi.
Para ele, “derrotar” o déficit público, fazer com que ele se situe em patamares administráveis sem comprometer a trajetória da dívida pública, é a grande tarefa pendente, de que dependem, também, a recuperação do investimento e a retomada do crescimento a taxas mais vigorosas. A agenda econômica e social pós-pandemia e as eleições do próximo ano evidenciam a importância desse debate no atual momento político do país. Giambiagi afirma que o Brasil precisa atacar o déficit e fazer um ajuste fiscal em torno de 3% do PIB, o que demanda forte determinação e uma boa capacidade de articulação — atributos em falta na atual política brasileira.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/cavando-o-buraco.html
5.570 Brasis
Demétrio Magnoli / O Globo
Bolsonaro prometeu colocar “o Brasil acima de tudo”. Sob a emergência de saúde gerada pela pandemia, fragmentou a nação em 5.570 entidades municipais separadas. A implosão começou com as restrições sanitárias e concluiu-se com a campanha de vacinação. Hoje, no país estilhaçado, os direitos dos cidadãos são essencialmente regulados pela vontade soberana dos prefeitos.
A bomba foi detonada pelo presidente, no início da pandemia, quando ele classificou a Covid-19 como “uma gripezinha” e recusou-se a coordenar o combate à difusão de contágios. Reagindo em defesa da saúde pública, o STF decidiu por unanimidade reconhecer as prerrogativas estaduais e municipais na aplicação de medidas de restrição sanitária.
O gesto inevitável dos juízes cristalizou o movimento centrífugo. Na ausência de um centro nacional, governadores e prefeitos passaram a adotar as mais disparatadas regras sanitárias. Legislaram à larga, determinando fechamentos e reaberturas das mais diversas atividades ao sabor de critérios arbitrários. Aqui e ali, prefeitos interromperam o tráfego em rodovias ou, atropelando direitos fundamentais, decretaram datas específicas para o deslocamento de residentes nas vias públicas.
Sob o manto da vaga decisão do tribunal superior, praticamente cessou o controle judicial das competências legais dos governantes. O Brasil de Bolsonaro — e do seu triste cortejo de militares militantes — converteu-se em terra sem lei.
O melhor retrato da nação em estilhaços encontra-se nas ruínas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Institucionalizado em 1975, no rastro do sucesso das campanhas de vacinação contra a varíola dos anos 1960, o PNI inaugurou a primeira Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite em 1980 com a meta de imunizar todas as crianças menores de 5 anos num único dia. Menos de uma década depois, em março de 1989, identificou-se o caso derradeiro de pólio, na Paraíba. O programa, fonte de orgulho nacional, não resistiu à anarquia bolsonarista.
Eduardo Pazuello, o indisciplinado general da ativa que faz dublagem de agitador de comícios, plantou as cargas explosivas no PNI. À frente do Ministério da Saúde, retardou ao máximo a aquisição de vacinas e rabiscou simulacros ilusórios de planos de imunização, abandonando o SUS na frente de batalha. O caos resultante estende-se até hoje.
A renúncia do Ministério da Saúde a comandar um plano nacional de imunização reflete-se, antes de tudo, na inexistência de campanhas de publicidade nos meios de comunicação de massa. Nesse ponto, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello, revela-se tão fiel a Bolsonaro quanto seu fracassado antecessor. Para não desagradar ao presidente antivacina, seu ministério foge à responsabilidade de levar à população as informações básicas sobre os imunizantes, as regras de prioridade e os cronogramas de vacinação.
A desordem ramifica-se nos níveis estadual e municipal. Governadores e prefeitos acenaram a grupos de pressão e clientelas eleitorais, fabricando grupos prioritários e, nesse passo, reduzindo o ritmo da vacinação. Ao mesmo tempo, alteraram sem cessar os cronogramas, fornecendo informações confusas e incompletas em sites mais ou menos ocultos. Nos 5.570 programas de imunização em curso na nação estilhaçada, registram-se diferenças de até dez anos nos grupos etários autorizados a se vacinar e regras distintas de intervalos entre doses.
De passagem, os gestores municipais cometem crimes em série, confiando na cumplicidade passiva do Ministério Público. Infringindo as regras institucionais do SUS, milhares de cidades fazem de comprovantes de residência condição para vacinar. Por essa via, criam precedentes para, no futuro, negar atendimento de saúde a residentes de outros municípios. Há, ainda, os que, atraídos pelos holofotes das redes sociais, cassam o direito à imunização dos “sommeliers da vacina” — ou seja, indivíduos que, sem cometer ilegalidade alguma, perambulam de posto em posto à procura do imunizante de sua preferência.
5.570 Brasis — eis o fruto maduro do bolsonarismo.
Fonte: O Globo
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Fernando Gabeira: Bolsonaro é a pedra no caminho
Fernando Gabeira / O Globo
À medida que o carro avança, os nomes dos lugares me fascinam: Divinópolis, Doresópolis. Qualquer dia, paro para dar um balanço desses nomes em Minas. Ou então para documentar as configurações e nuances do céu. Hemingway descrevia certas nuvens como camadas de sorvete. No crepúsculo em Minas, róseo e dourado, sinto como se o universo fosse uma capela com o teto pintado pelo Mestre Ataíde.
Com um país tão interessante, não consigo ainda explicar por que tanta confusão converge para sua capital, Brasília.
Essa história da vacina da Davati, por exemplo, é um roteiro de chanchada. Um dirigente de empresa que recebe auxílio emergencial e um cabo da PM que não consegue pagar o aluguel resolvem oferecer 400 milhões de inexistentes vacinas AstraZeneca.
Usam um reverendo para se aproximar do governo. O reverendo é amigo de um homem que se diz super-homem. Sua entidade religiosa falsifica logotipos da ONU, e ele se diz embaixador da paz. Ungido por quem? Por outro reverendo, o famoso Moon. Sua grande missão diplomática foi ir a Israel para unir judeus e árabes, tarefa que, como todos sabemos, alcançou um perene êxito.
Às vezes, o enredo que passa pela CPI ganha um tom de pornochanchada com a contribuição do senador Heinze, que descobriu pesquisas contra a cloroquina financiadas por uma ex-atriz pornô chamada Mia Khalifa, que, agora, empolgada com sua inclusão no roteiro, quer visitar o Brasil para ajudar no combate à pandemia.
É tudo inacreditável, mas gira em torno de um governo que manda uma comissão a Israel para monitorar um spray contra a Covid-19, repleta de parlamentares que, certamente, levaram bomba nas aulas de ciência.
Num desvario como este, o próprio Bolsonaro se dedica agora a reproduzir, no âmbito tropical, a derrotada trajetória de Donald Trump. Primeiro passo: questionar previamente as eleições. Segundo passo, perdê-las e entupir a Justiça com recursos unanimemente rejeitados. Terceiro passo: tentar o golpe invadindo o Capitólio e, finalmente, sobreviver na planície como um presidente injustamente vencido pelas “fraudes eleitorais”.
Tudo isso poderia ser tão patético quanto o plano do grupo que queria vender vacinas inexistentes. No entanto não é, porque nem todas as forças que reagiram nos EUA podem ter a mesma ênfase no Brasil. Nos EUA, as Forças Armadas se colocaram de forma inequívoca contra qualquer tipo de golpe. As brasileiras não parecem tão enfáticas.
Não é impossível que Bolsonaro tente realizar suas ameaças. O que parece realmente impossível é qualquer êxito, no médio e longo prazos.
Teria de suprimir a internet com grandes repercussões econômicas, sentiria o peso do isolamento internacional e a rejeição de uma ampla maioria do povo.
Claro que Bolsonaro não se importa com essas variáveis. Mas potenciais aliados deveriam contar com elas. Nos primeiros dias, tocam o Hino Nacional, escrevem-se pequenas biografias dos vencedores ocasionais, e o país se enche de árvores pintadas de branco e oportunistas com bandeirinhas.
Mas o curso da história é terrível para quem se aventura a negá-lo e reinaugurar a Idade das Trevas.
Por isso, é importante que a Justiça puna ameaças, para dissuadir os impulsos golpistas de Bolsonaro. Mas tudo indica que ele não se deterá até a fase três de seu delírio tropical. Nesse caso, será preciso derrotá-lo de vez, profundamente.
Todos os lances de seu projeto autoritário estão claramente delineados. O preço de considerá-lo apenas um fanfarrão seria muito alto: ele estimulou a compra de armas, mobilizou-se para negar a pandemia e apontou, cuidadosamente, inimigos para que não faltassem alvos para o ódio acumulado.
Serão necessários muito cuidado e habilidade, mas é ilusório supor que o país volte à calma sem neutralizar Bolsonaro, assim como são risíveis as constantes promessas de que um dia, finalmente, ele vai adotar a moderação.
Fonte: O Globo
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O governo retarda a internet nas escolas
O Senado aprovou um projeto que mandava o governo aplicar R$ 3,5 bilhões para assegurar o acesso dos alunos de escolas públicas à internet. Bolsonaro vetou a iniciativa
Elio Gaspari / O Globo
Um governo pode ter uma perna no atraso, outra na malandragem e a terceira em otras cositas más. O de Bolsonaro tem todas.
O Senado aprovou um projeto da Câmara que mandava o governo aplicar R$ 3,5 bilhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o FUST, para assegurar o acesso dos alunos de escolas públicas à internet. Bolsonaro vetou a iniciativa. Era o jogo jogado, pois é atribuição do presidente da República vetar decisões do Congresso. Jogando o jogo, o Congresso derrubou o veto de Bolsonaro, e a lei foi promulgada. Sempre dentro do quadrado da Constituição, o governo recorreu ao Supremo Tribunal Federal. Perdeu.
Até aí, movia-se a perna do atraso de um governo que reluta em aplicar o dinheiro do FUST para levar a internet às escolas públicas durante uma pandemia. (A rede privada de ensino, quando teve meios, adaptou-se.)
Na semana passada, moveu-se a perna da malandragem. Um dia antes do fim do prazo dado pelo Supremo para que o governo se mexesse, Bolsonaro baixou uma Medida Provisória adiando o investimento de R$ 3,5 bilhões. Chutou a bola para cima, pois a MP vigorará por 120 dias, a menos que seja aceita pelo Congresso.
Passou-se quase um ano, e as escolas públicas não receberam um tostão. Alguém poderia argumentar que o governo tenta segurar as despesas da Viúva e uma conta de R$ 3,5 bilhões é salgada. Nessa hora, olhando-se direito, vê-se a terceira perna do governo.
Em dezembro de 2019 o repórter Aguirre Talento mostrou que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) havia soltado um edital que previa um gasto de R$ 3 bilhões para comprar equipamentos eletrônicos para a rede pública de ensino. Em tese, era uma iniciativa que melhoraria a conexão dos colégios com a internet. Na prática, a Controladoria-Geral da União viu que havia otras cositas más. Uma só escola de Minas Gerais receberia 30.030 laptops para seus 255 alunos (117,76 para cada um). A gracinha do esbanjamento repetia-se em 355 outros colégios. Além disso, o edital parecia viciado para beneficiar fornecedores afortunados.
Passou-se mais de um ano da exposição do jabuti, três novos ministros ocuparam o MEC, o FNDE trocou várias vezes de presidente, e até hoje não se sabe quem botou o jabuti no edital.
Azararam Costa e Silva
Um sábio que pesquisa a história do acidente vascular cerebral do presidente Costa em Silva suspeitava há tempo que ele morreu em dezembro de 1969, entre outros fatores, pela depressão em que caiu porque era tratado como uma criança. As pessoas falavam com ele como se a sua percepção tivesse sido lesada, quando tinha perdido movimentos e a capacidade de se expressar, mas sabia o que estava acontecendo.
A sabedoria convencional dizia que o AVC, uma vez iniciado, teria uma progressão inevitável. Assim, durante quatro dias, ele perdeu progressivamente a fala e os movimentos do lado direito do corpo. Ele teve uma isquemia, que é uma obstrução da circulação sanguínea no cérebro. (O derrame é o contrário, com o rompimento de um vaso.)
Hoje, uma vez diagnosticadas a tempo, as isquemias cerebrais podem ser tratadas com anticoagulantes.
Um artigo científico informa que em 1958, onze anos antes do AVC de Costa e Silva, o neurologista canadense Miller Fisher, em Boston, tratava isquemias com anticoagulantes. No Brasil, o fatalismo da progressão inevitável foi aceito ainda por muitos anos.
O presidente perdeu momentaneamente a fala no dia 27 de agosto. Recuperou-a, e voltou a perdê-la de vez na madrugada do dia 29, quando ainda conseguiu se expressar por meio de um bilhete.
O pelotão palaciano comandava o major médico que cuidava do paciente e levou-o para o Rio. Lá, ele foi examinado pelo neurologista Abraham Ackerman. Era tarde.
No dia seguinte, o marechal perdeu a capacidade de se expressar.
Se Costa e Silva estivesse em Boston no dia 27, seu destino teria sido outro.
Como ele estava em Pindorama, o pelotão palaciano blindou-o, escondeu a gravidade do caso, depôs o vice-presidente Pedro Aleixo e entregou o poder a uma junta militar composta pelos três ministros militares. Ela governou o país por um mês. Em 1988, o deputado Ulysses Guimarães chamou-os publicamente de “Os Três Patetas”. Quinze anos antes, o general Ernesto Geisel usava a mesma expressão, privadamente.
Alexandre e Barroso
Bolsonaro dá a impressão de que está metido numa briga com o ministro Luís Roberto Barroso, mas sabe que sua encrenca é com o ministro Alexandre de Moraes.
Barroso chegou ao Supremo vindo da sua banca de advocacia. A carreira de Moraes foi outra: ele veio do Ministério Público e foi secretário de Segurança de São Paulo.
Um aprendeu a defender seus clientes. O outro aprendeu a baixar o chanfalho em quem viola a lei.
Paulo Bolsonaro
O professor Delfim Netto está bonzinho. Com 14,8 milhões de desempregados no portfólio, o ministro Paulo Guedes resolveu atacar o IBGE, dizendo que suas estatísticas ainda estão “na idade da pedra lascada”. Delfim defendeu a instituição e disse que torcia para que a fala de Guedes “tenha sido um infeliz lapso verbal”.
Não foi. Tratou-se de um caso de contágio bolsonarista, semelhante aos lances do “vagabundos” do STF de Abraham Weintraub, do “pária” de Ernesto Araújo e da “boiada” de Ricardo Salles.
Paulo Guedes é ministro da Economia há mais de dois anos e não notou que convivia com um IBGE de Flintstones. Pior: levou para a presidência do instituto a economista Susana Cordeiro Guerra, doutora pelo MIT, e deixou-a ir embora.
O golpe, em 1961
O Brasil era governado por um tatarana que armava um golpe. As fake news da época eram tenebrosas.
No dia 9 de agosto de 1961, Jânio Quadros pediu ao Conselho de Segurança Nacional que examinasse um material, “tendo em vista a reunião ministerial referente às Guianas”. Era urgente, pois Jânio via ali um “intenso trabalho autonomista ou de emancipação nacional, com a presença de fortes correntes de esquerda, algumas, reconhecidamente, comunistas”.
Na chefia do gabinete da Secretaria Geral do Conselho, o coronel Golbery do Couto e Silva colecionou os seguintes informes, “cujos graus de confiança ainda não foi possível avaliar”:
“Informe nº 5: Pelo barco de pesca Z-189 desembarcaram em Amaralina, BA, cerca de 22 pessoas, trazidas por um submarino desconhecido, ali observado nestes últimos dias, o desembarque ocorreu em fins de julho.”
“Informe nº 6: Durante o corrente ano chegaram ao Brasil cerca de dois mil comunistas, da China Vermelha, técnicos em guerrilhas”.
Aziz disse tudo
O senador Omar Aziz, presidente da CPI da Covid, disse tudo, ao duvidar do que dizia o tenente-coronel da reserva Marcelo Blanco, ex-integrante do pelotão levado pelo general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde:
“Aqui não tem otário”.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/o-governo-retarda-internet-nas-escolas-25145799
Nem como farsa
Merval Pereira / O Globo
O embate em processo entre o presidente Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF) é o caso exemplar de um fato histórico que aconteceu no Brasil como tragédia, e hoje se repete como farsa, para confirmar a frase famosa de Karl Marx. No dia 16 de janeiro de 1969, em decorrência do AI-5 assinado em dezembro de 1968, foram aposentados compulsoriamente os Ministros Victor Nunes Leal, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
Em solidariedade aos cassados, renunciaram em seguida o então Presidente, Ministro Gonçalves de Oliveira, e o decano da Corte, Ministro Lafayette de Andrade. Em outubro de 1965, o governo, através do AI-2, ampliara de 11 para 16 os ministros do Supremo. Após as cassações, com a nomeação de mais cinco ministros, o governo militar, garantida a maioria, fez retornar o formato original de 11 ministros, que persiste até hoje.
Aqui entre nós, na atualidade, a tentativa de Bolsonaro e seus militantes de emparedar o STF está encontrando resistências democráticas vigorosas. O advogado Flavio Carvalho Brito, que trabalhou com Victor Nunes Leal e herdou seu espólio profissional, descobriu recentemente uma carta em que, no dia 16 de junho de 1964, pouco mais de dois meses depois do golpe militar, o então ministro escreve a um amigo de nome Mario, não identificado, dizendo que o preocupou a “notícia, que você me deu, de haverem falado ao Marechal Castelo Branco de um pretenso trabalho de três ministros do Supremo Tribunal - entre os quais eu - no sentido de aqui se formar um bloco hostil ao governo. (...)”.
Quatro anos e sete meses depois, a cassação dos membros do Supremo mostrou que a preocupação de Victor Nunes não era vã. O que se segue é exemplar do seu espírito democrático, e uma lição para os dias de hoje: “Quem chega ao Supremo Tribunal tem um passado pelo qual zelar, na advocacia, na magistratura, no magistério, em funções administrativas e políticas, e está atento ao julgamento dos seus contemporâneos e da posteridade. O juiz, mormente no Supremo Tribunal, não recompensa benefícios, mas exerce uma elevada função que exige espírito público e dignidade. (...)
“Não é de se estranhar, pela incompreensão da política, que homens com esse tirocínio sejam julgados com parcialidade, porque ao longo de sua carreira , nem sempre tranquila, tiveram que contrariar interesses ou viver situações e problemas polêmicos. (...) Enquanto os outros poderes fazem as leis, imprimindo frequentemente novo rumo à coisa pública, o dever do juiz é cumpri-las, em confronto com a Constituição.
“De certo, essa delicada tarefa não é um trabalho mecânico. Valemo-nos de nossa formação profissional e da observação da realidade econômica, social e política. Mas, nessa busca, por vezes tormentosa, nossa lealdade é para com a Constituição, as leis, e o interesse coletivo, e a uma consciência, porque , sem a independência, que é ônus e prerrogativa do juiz, não se pode falar em autêntico poder judiciário. (...)
“Cada um de nós é cioso da sua responsabilidade pessoal, da sua reputação, do seu compromisso com o país, da sua autonomia de julgamento. Quando rumores de todos os lados inquietavam nosso espírito e nos perturbavam o trabalho, era natural que nos preocupássemos o destino de nossa instituição, que é fiel do equilíbrio federativo, da harmonia dos poderes, dos direitos individuais, e, portanto, chave do regime democrático-representativo em que vivemos. (...)
“Assumir posições políticas, num ou noutro sentido, seria totalmente contrário à missão constitucional do Tribunal, prestigiado por sensível tradição constitucional, que todos estamos empenhados em preservar”.
O constitucionalista Gustavo Binemboin, que me deu acesso à carta, diz que a razão principal para considerar que a repetição não se dará “nem como farsa”, é o surgimento de uma “consciência democrática, um genuíno sentimento constitucional, que impõe aos governantes os respeito às instituições republicanas. Não há maioria que apoie uma ruptura do Estado de direito e da continuidade da vida democrática. Criticar a democracia para aprimora-la, mas sem destruí-la”. (No blog o fac-símile da carta).
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/nem-como-farsa.html
Presidenciáveis miram nas campanhas digitais
Ciro Gomes e Eduardo Leite buscam grupo que já apoiou presidente em 2018. Jogadores geram engajamento nas redes e podem ser decisivos em alguns segmentos, creem especialistas
Suzana Correa e Guilherme Caetano / O Globo
SÃO PAULO — Enquanto as pesquisas mostram redução do apoio do eleitorado ao presidente Jair Bolsonaro, outros possíveis candidatos à Presidência da República procuram atrair o voto de um grupo que tem se afastado do bolsonarismo: os jogadores de videogames.
Com lives e ações voltadas a esse público, Ciro Gomes (PDT) e Eduardo Leite (PSDB) são alguns dos que tentam conquistar os gamers, que somam 67 milhões de brasileiros, segundo estimativa da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos.
Sonar: Políticos tentam capitalizar as vitórias de atletas brasileiros na Olimpíada de Tóquio
Além de serem numerosos, os gamers interessam aos políticos porque, em geral, fazem barulho nas redes sociais, geram engajamento e podem ser peças decisivas em campanhas cada vez mais digitais e segmentadas, afirmam especialistas.
— É um grupo que entende a política a partir de uma dimensão passional, de torcida intensa por seu candidato — diz Thiago Falcão, professor de Mídias Digitais na Universidade Federal da Paraíba. — Não se sabe se é um grupo grande a ponto de os votos fazerem a diferença, mas é um grupo eficaz.
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A oposição, então, tenta ocupar esse espaço. Vestindo um moletom de Harvard, Ciro anunciou em 24 de julho uma transmissão ao vivo em que trocava seu sobrenome pela palavra “jogos” em inglês: “Ciro Games — A live do Cirão”. A publicação gerou mais que o dobro da média de reações positivas. No dia anterior, ele havia trocado sua foto de perfil por um desenho inspirado em um personagem do desenho japonês Dragon Ball Z.
Também nas redes sociais, Leite tem apostado no crescimento de sua base de seguidores de maneira orgânica, impulsionado pela identificação com o governador jovem e jogador de games como Call of Duty. Ele implementou no estado o programa GameRS, para estimular o desenvolvimento do setor. O tucano também estreou no último mês seu perfil no Tik Tok, rede popular entre os mais jovens, ao som de funk e linguagem recheada de memes.
Prévias do PSDB: Eduardo Leite visita sete estados, e Doria foca em ações sociais em São Paulo
A ligação com os jogos já havia aparecido nas eleições municipais. Manuela D’Ávila (PCdoB), em Porto Alegre; Guilherme Boulos (PSOL) e Arthur do Val (Patriota), em São Paulo, também incluíram nas atividades de campanha lives jogando ao lado de influenciadores, como Felipe Neto.
As campanhas tradicionais deram lugar a uma comunicação digital difusa, que não se restringe ao horário eleitoral e se vale do humor, memes e da ausência de mediadores, como Bolsonaro faz em suas transmissões semanais, diz Luiza Santos, pesquisadora da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV:
— A direita bolsonarista se antecipou nessa mudança de linguagem, mas há, agora, a percepção de que existe um lugar para se ocupar.
Identificação
Em 2018, Bolsonaro recebeu apoio declarado de gamers com milhões de seguidores. Ao longo do mandato, anunciou medidas como redução da alíquota do IPI de consoles de 40% para 30% em 2020. Nos últimos meses, porém, vem perdendo apoio. Dois dos maiores influenciadores da área no país, Gabriel Toledo, o FalleN, e Alexandre Borba, o Gaules, viraram críticos do governo.
Nem a identificação do grupo com valores como a militarização e o porte de armas, exaltados em jogos como Counter Stirke, tampouco os acenos do presidente para atender a demandas como a redução do preço de consoles têm ajudado Bolsonaro a manter seu apoio entre os mais influentes da comunidade — seja pela reprovação na condução da pandemia ou pelo impacto negativo que a queda de popularidade pode ter sobre os negócios cada vez mais lucrativos e profissionalizados do setor.
Gaules, que declarou publicamente voto em Bolsonaro em 2018, hoje veta mensagens de apoio ao presidente nos chats de suas transmissões. “Pedir que uma pessoa que não tem a mínima empatia não esteja à frente de uma nação, cara, é o que a gente busca todo dia. Estamos com quantos mortos?”, disse em uma live em junho, em referência à condução da pandemia pelo governo Bolsonaro.(Colaborou Gustavo Schmitt)
Fonte: O Globo
*Título do texto original foi alterado para publicação no portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Bacha: Se ataques continuarem, próximo passo é impeachment
Um dos signatários do manifesto em favor da democracia, o ex-presidente do BNDES e do IBGE diz que a parcela de empresários que apoia o governo vem caindo ‘a olhos vistos’
Cássia Almeida / O Globo
RIO — O economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças, diz que há uma ameaça à democracia brasileira e que, se os ataques não cessarem, mesmo após a manifestação maciça da elite econômica, o caminho seria pressionar o Congresso a abrir processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
Ameaça: CEO do Credit Suisse Brasil diz que país vive "quadro dramático de crise institucional"
Bacha diz que há risco para o crescimento do país, que vai precisar de investimento e tecnologia quando a economia se recuperar da crise da pandemia. Mas “isso só vai vir de governo que sabe o que está fazendo. Este está demonstrando que está perdido”, afirma.
Qual a importância da adesão maciça dos empresários, economistas, gestores públicos neste momento ao manifesto pela democracia?
É fundamental por duas razões: a primeira é a tolerância com as bravatas que o presidente vem fazendo desde sempre. Mas ele chegou a um ponto que realmente virou uma ameaça à democracia brasileira.
Está desafiando as instituições democráticas, não somente o Judiciário, o sistema eleitoral. Chegou a um ponto que as pessoas disseram: “Basta, vamos levar o que ele está falando a sério. E é inaceitável.
E qual a segunda razão?
Havia a crença de que a Faria Lima (avenida que abriga o centro financeiro do país) não iria fazer nada. Enquanto a Bolsa estiver subindo e a economia estiver crescendo, os empresários vão ficar satisfeitos. Tem um ministro que se diz a favor do mercado. Mas nós sabemos distinguir os nossos interesses empresariais do que é fundamental, que é o Brasil, o valor da democracia, o valor supremo. Temos lei, regras, respeito à Humanidade.
Empresários se manifestam: Risco institucional real
Houve outros manifestos que não surtiram efeito. Se os ataques à democracia continuarem, qual seria o próximo passo?
O próximo passo seria o Congresso votar o impedimento dele (do presidente Jair Bolsonaro). Ele não pode continuar na Presidência. Está vendo que vai ser derrotado, resolveu extremar. Estamos numa democracia representativa, vamos pressionar nossos representantes no Congresso. O caminho legítimo é esse.
O presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira (PP-AL), anunciou que levará o projeto do voto impresso ao plenário.
Concordo com Lira, a comissão (especial criada para analisar o projeto na Câmara) impôs uma derrota forte (foi rejeitado por 23 votos a 11). Podemos projetar essa derrota no plenário. Assim, fica caracterizado que o Congresso disse não ao voto impresso. Tem que ir a voto. É preciso mostrar que o voto impresso é algo que ficou no passado.
Se os ataques continuarem?
Se o Congresso disse que não, é uma afronta, tem uma questão concreta para o impedimento. O Congresso é soberano. Não somente os ataques, o desrespeito às pessoas, os crimes de responsabilidade que ele vem praticando. O caminho seria pressionar diretamente os representantes do povo para tomar uma atitude, que seria o impedimento desse presidente.
Isso seria discutir o impeachment do terceiro presidente seguido.
O que sugere que temos de repensar nosso sistema político-eleitoral, que está demonstrando certa instabilidade.
Como vê o papel da Forças Armadas?
Não é crível que o Exército de Caxias se comporte dessa forma. Está perdendo prestígio com a população.
Há uma parte do empresariado que apoia o governo...
Parcela que está diminuindo a olhos vistos, como demonstra a adesão que esse manifesto está tendo.
Quantos já assinaram?
Da última vez que vi, estava em 17 mil adesões.
Quais os reflexos dessa crise política na economia?
A retomada para voltar ao ponto de partida está surpreendentemente forte, em parte pela força da recuperação lá fora da China e dos Estados Unidos. Estaríamos produzindo mais, se não houvesse restrições de oferta. Depois da retomada, a partir daí, a economia só vai crescer com investimento e tecnologia, isso só vai vir de um governo que sabe o que está fazendo. Este está demonstrando que está perdido. Um presidente que não se concentra em questões fundamentais e está criando instabilidade nesse nível. Se não há investimento, não haverá crescimento.
Fonte: O Globo
*Título original do texto foi alterado para publicação no portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Auditoria das urnas eletrônicas teve baixa procura pelas siglas
Polícia Federal foi a única que participou do processo nas últimas três eleições
Camila Zarur / O Globo
RIO - Apesar de os bolsonaristas terem colocado a auditoria das urnas eletrônicas na ordem do dia, nesses 25 anos em que o sistema está em está em vigor no país foi baixíssimo o interesse dos partidos e entidades públicas em acompanhar o processo, como lembrou recentemente o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, em audiência na Câmara.
Segundo dados do TSE, apenas uma legenda participou ativamente da etapa em que o código fonte que será usado nas urnas é aberto — momento em que os representantes das agremiações partidárias e outras instituições podem solicitar melhorias, tirar dúvidas ou conversar com a equipe técnica.
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De acordo com os registros da Corte, o único partido que participou desta fase foi o PT, que o fez até 2002, quando Lula foi eleito pra a Presidência da República.
Os questionamentos e acusações sobre o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas têm sido uma pauta puxada principalmente pelo presidente Jair Bolsonaro e seus aliados. Bolsonaro vem questionando, sem provas, a lisura das eleições e pede para que seja implementado, a partir do ano que vem, a impressão de um comprovante do voto — chegando até mesmo a ameaçar a realização do pleito caso isso não seja feito.
Implementada em 1996, a urna eletrônica é auditada por um longo processo que começa antes mesmo da votação e é feito publicamente, com a presença dos partidos e entidades como Polícia Federal, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público (MP), entre outros. No entanto, como mostram os registros do TSE, há pouco interesse das legendas e instituições de mandar seus representantes para acompanhar o processo.
Barroso falou sobre isso quando foi convidado pela Câmara para prestar esclarecimentos sobre o sistema eleitoral. Na ocasião, no início de junho, o magistrado afirmou que o baixo interesse das legendas em participar do processo se dava pela confiança que tinham no sistema:
— Desde o primeiro momento, quando nós começamos a desenvolver os programas, por lei e porque o TSE gostaria que fosse assim, todos os partidos podem comparecer e acompanhar o processo. A verdade é que, na prática, os partidos não comparecem porque confiam.
Uma das etapas cruciais desse processo é justamente a abertura do código fonte do sistema eleitoral, que é feita em um período de 180 dias antes da eleição. Nos últimos três pleitos — 2020, 2018 e 2016 —, nenhum partido participou dessa fase, mesmo com os convites enviados pelo TSE.
Em 2016, o antigo Partido Social Democrata Cristão (atual Democracia Cristã) e o diretório do PV em São Bernardo do Campo se credenciaram para participar da etapa, mas não compareceram.
Quem mais participou desse processo nas últimas três eleições foi a Polícia Federal, que foi a única a comparecer à abertura do código fonte.
A escalada de juros em cenário confuso
Míriam Leitão / O Globo
Os juros subiram em um ponto percentual, vão continuar subindo, chegando ao fim do ano em 7%. E mesmo assim a inflação vai estourar o teto da meta este ano. Por isso, no ano que vem as taxas permanecerão altas. Esse foi o recado do Banco Central. Há vários complicadores no cenário. A inflação persistente, a variante Delta ameaçando as economias e as contas públicas. Para a situação fiscal o Banco Central recomenda o de sempre: as reformas. O que há são projetos muito discutíveis. A reforma do IR vai ser votada em regime de urgência. É um erro fazer uma reforma dessas de afogadilho. Isso não garante ajuste fiscal, nem aumento da eficiência econômica.
A questão fiscal é mais complexa. Há alguns números positivos iludindo os analistas no meio de uma verdadeira escalada de medidas prejudiciais. O governo quer adiar despesa para gastar mais, e aumenta o número de itens dependurados em cima do teto de gastos. O projeto de populismo autoritário necessariamente significa mais gasto. O espaço que o governo pensou que teria no teto de gastos tem ficado menor. A inflação de 8,4% até junho reajustou o teto de gastos, e isso significa R$ 124 bilhões a mais. Com a inflação prevista tempos atrás, para o ano fechado, haveria um valor extra de R$ 30 bi a R$ 40 bi. Agora os cálculos são de que ele ficará abaixo de R$ 20 bi. O governo ainda trabalha com um INPC de 6,2%. E ele deve superar 7%. Quanto menor for a diferença entre a inflação em 12 meses de junho e o índice fechado do ano menor é o espaço para gastar.
—O que a área política do governo quer não é ter R$ 20 bilhões a mais para gastar, mais sim R$ 60 bi. A queda de braço da área econômica contra a área política, para não quebrar o teto, vai continuar —prevê um especialista em contas públicas.
Os juros subindo elevam o gasto nominal com o serviço da dívida, mas, ao mesmo tempo, as taxas permanecem negativas porque a inflação está maior do que a Selic, mesmo com o reajuste de hoje.
Há ainda uma melhora em relação ao que estava previsto no crescimento da dívida pública, mas por razões circunstanciais. Subiu o PIB nominal, em grande parte por causa da alta forte das commodities exportadas pelo Brasil. Isso aconteceu uma vez no começo do governo Lula. Mas naquele tempo o ciclo de commodities foi longo, o de agora será curto.
— Os números vão melhorar e a gente não pode desperdiçar isso, mas o incentivo para desperdiçar será grande porque os políticos vão olhar e pensar: por que eu vou fazer tanto esforço, se eu poderia gastar mais? Há cinco meses a projeção do governo era déficit primário do setor público de R$ 285 bilhões, os números da semana passada mostravam um déficit primário do governo central de R$ 155 bilhões, um superávit dos estados e municípios de R$ 29 bilhões e um déficit das estatais de R$ 2,5 bilhões. Junta tudo dá R$ 128,5 bilhões de déficit. A melhora é resultado da recuperação da arrecadação e do boom de commodities — explica esse especialista.
O projeto de reforma do Imposto de Renda foi apresentado sem que o assunto estivesse maduro. A proposta foi radicalmente alterada no Congresso e muda a cada dia, ao sabor das pressões e dos lobbies. Já era um projeto mal feito e intempestivo. Mexer com a estrutura dos impostos no meio de uma crise política, com o governo enfraquecido e refém do centrão, é um risco sem tamanho. E tramitará em regime de urgência.
A cada nova ideia que sai do Ministério da Economia ou da área política do governo — seja o adiamento do pagamento dos precatórios ou o Bolsa Família de R$ 400 — os ativos tremem no mercado financeiro. O que eles mais têm medo é da queda do teto de gastos. Curiosos os operadores do mercado financeiro: a casa caiu, mas eles estão preocupados é com o teto.
Quando digo que a casa caiu é porque o ministro da Economia, Paulo Guedes, está totalmente engajado na campanha eleitoral do presidente. Muito mais agora com a queda da popularidade. O compromisso não é com os fundamentos da economia, mas com as ideias políticas extremadas do presidente.
Quando digo que a casa caiu é porque a equipe econômica é caudatária de um projeto autoritário, no qual não há espaço para transparência, órgãos de controle, nem ajuste fiscal. É da natureza do populismo autoritário gastar muito e gastar mal.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/escalada-de-juros-em-cenario-confuso.html
Centrão toma de assalto o Planalto
Merval Pereira / O Globo
Com a possibilidade real de se tornar inelegível em consequência do inquérito aberto contra ele no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelos ataques antidemocráticos ao sistema eleitoral e pela ameaça de não realizar as eleições do ano que vem, Bolsonaro precisa reavaliar bem sua estratégia política, que claramente tem o objetivo de causar confusão e enfrentamento de autoridades, para retornar ao Bolsonaro da campanha de 2018 — que na verdade só existiu para reafirmar seu instinto vulgar, mas não corresponde ao inimigo do establishment depois que se entregou de corpo e alma ao Centrão.
Ontem, a posse do senador Ciro Nogueira como ministro da Casa Civil foi uma demonstração de força, submetendo até mesmo o general Augusto Heleno ao beija-mão dos políticos que, na campanha, chamou de ladrões. A foto da imensa fila de deputados à porta do Palácio do Planalto, com os generais Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, do GSI, olhando de cima aquela multidão de políticos que invadiram o salão nobre para festejar a tomada de assalto do grupo ao centro do poder, é reveladora.
O corregedor do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, ao pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) o compartilhamento de provas e investigações em curso por lá para anexá-las ao inquérito que investiga irregularidades na campanha eleitoral que elegeu Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, acrescentou mais lenha na fogueira da disputa política entre o presidente e o STF. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no Supremo, acolheu ontem a notícia-crime encaminhada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, e determinou a instauração imediata da investigação das condutas do presidente Bolsonaro.
A estratégia de Bolsonaro parece ser, na impossibilidade de vencer constatada no momento pelos institutos de pesquisa de opinião, tumultuar a campanha eleitoral, buscando motivo para cancelar as eleições presidenciais. Caso ele se torne inelegível, só uma revolução popular poderia efetivar essa pretensão de cancelar as eleições e mantê-lo no poder.
Não acredito que tenha apoio para isso, nem da maioria da população, nem das Forças Armadas. Só arruaceiros como ele estarão nessa aventura. Ele pode até gostar da ideia de ser declarado inelegível, para se fazer de vítima de um complô dos mesmos que tornaram Lula elegível — uma saída boa para o populismo. Os políticos que o apoiam devem estar pensando que uma ditadura não interessa, porque fecharia o Congresso, e é melhor ter eleição com um candidato forte. Se não for Bolsonaro, será Lula a ser apoiado pelo Centrão. Ou até mesmo um candidato da terceira via que porventura se viabilize. Nunca um general.
É inegável que, apesar de decadente na popularidade, o presidente Bolsonaro ainda tem capacidade de mobilizar cidadãos para campanhas tão bizarras quanto o voto impresso, para contestar as urnas eletrônicas. Logo o voto no papel, que foi, durante anos, o responsável por tantos golpes. Mas isso não significa que tenha força para golpear a democracia.
O jurista e ex-deputado federal Marcelo Cerqueira enviou ao presidente do TSE, ministro Barroso, seu testemunho. Diz ele: “Só quem não viu o pandemônio da apuração de papel: compra antecipada de votos com o comprado apresentando cópia para ser confrontada com o resultado, e aí então receber o produto do crime; ou então a Babel de centenas de ‘apuradores’ reunidos em um ‘teatro’ sem a oportunidade de os fiscais do partido verificarem a exatidão da apuração (...) Só quem viu pode testemunhar a pouca relação entre o que você vota e o que é apurado. O ‘roubo’ está na compra antecipada de votos ou na empulhação da contagem manual. O papel tem enorme serventia, mas não serve ao processo eleitoral”.
Golpe numa democracia é inaceitável. Sobretudo por motivo fútil.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/centrao-toma-de-assalto-o-planalto.html
Coronel Blanco diz à CPI da Covid que visava negociar vacinas para mercado privado
Ex-assessor da Saúde é apontado como intermediador da reunião em que suposto pedido de propina
Andre de Souza e Melissa Duarte / O Globo
BRASÍLIA — Em depoimento à CPI da Covid no Senado, nesta quarta-feira, o coronel Marcelo Blanco, ex-assessor do Ministério da Saúde, afirmou que visava negociar vacinas para o mercado privado e não para o Ministério da Saúde. Ele é suspeito de ter intermediado um encontro onde houve o susposto pedido de propina para a compra de vacina.
Segundo o policial militar Luiz Paulo Dominguetti, que dizia representar a empresa Davati Medical Supply, Blanco estava no jantar em que o PM alega ter recebido a proposta de propina de Roberto Dias, ex-diretor de Logística da pasta, por uma suposta venda de imunizantes da AstraZeneca ao governo federal. O coronel é apontado como intermediador da reunião, que ocorreu em um shopping de Brasília. O ex-assessos da Saúde abriu uma empresa poucos dias antes da conversa, o que levantou suspeitas no colegiado.
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Blanco disse à CPI que foi procurado em fevereiro, quando já não tinha mais cargo comissionado no Ministério da Saúde por uma pessoa chamada Odilon relatando haver uma empresa, a Latin Air, com doses de vacina do laboratório AstraZeneca para entrega imediata. O representante seria Luiz Paulo Dominguetti. Trata-se do PM que, em junho, deu uma entrevista relatando haver cobrança de propina no Ministério da Saúde para negociar vacinas.
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Blanco mostrou mensagens de Whatsapp trocadas com Dominguetti. Segundo o coronel, eles estavam negociando vacinas para iniciativa privada, e não para o Ministério da Saúde, órgão do qual já estava desligado.
A compra de vacinas pela iniciativa privada chegou a ser defendida pelo governo e parte do Congresso, e foi aprovada, mas com uma série de condicionantes. Na prática, não chegou a haver compra de vacinas por empresas.
O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), destacou ainda que a ideia começou a ser debatida em 18 de fevereiro, depois do primeiro contato entre Blanco e Dominguetti. O presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que o coronel Blanco poderia ter informação privilegiada na época, o que ele negou.
O coronel também prestou solidariedade às vítimas da Covid-19 e disse que ele próprio ficou internado por 12 dias em razão da doença.
O coronel confirmou a versão do ex-diretor de Logística do Ministério da saúde Roberto Ferreira Dias de que foi ele, Blanco, quem levou Dominguetti para um jantar num restaurante de Brasília. Roberto disse que estava tomando um chope com um amigo quando eles chegaram lá sem o seu conhecimento.
Ele disse ainda que, enquanto esteve no jantar com Dominguetti e Roberto Dias, não houve pedido de propina. Dominguetti afirmou que houve cobrança, enquanto Roberto nega. Blanco afirmou que tinha conversado antes com Roberto Dias e este lhe contou que estaria no restaurante. O militar negou que tenha informado Roberto previamente que levaria Dominguetti.
Ao Ministério da Saúde, foram oferecidas doses da AstraZeneca que seriam disponibilizadas por outra empresa, a Davati.
Contradição entre depoimentos
O coronel disse que a intenção era, com isso, conseguir que Dominguetti marcasse um encontro com Roberto Dias no Ministério da Saúde. Segundo Dominguetti, o ex-diretor de Logística cobrou propina nesse encontro. Roberto Dias nega.
Em depoimento prestado em 15 de julho na CPI, Cristiano Carvalho, representante da Davati no Brasil, disse que tratou de "comissionamento" com o coronel Blanco e outras pessoas. Nesta quarta-feira, o militar negou.
— Eu jamais fiz qualquer pedido de comissionamento ou de vantagem — disse o coronel.
Omar Aziz perguntou então que benefício ele teve com isso.
— Nenhum — respondeu o coronel Blanco.— Zero? — insistiu Omar.— Nenhum — repetiu o depoente.
— Meu Deus! O senhor é muito bondoso. O senhor está fazendo isso sem (receber) nada. O senhor deveria ter feito isso com a Pfizer, a CoronaVac... — ironizou o presidente da CPI.
— A CoronaVac, a Pfizer e a Janssen queriam ter tido toda essa facilidade — afirmou Randolfe Rodrigues em seguida.
Na terça-feira, ao ser perguntado por Randolfe sobre o preço das vacinas oferecidas ao Ministério da Saúde, o reverendo Amilton Gomes de Paula respondeu:
— A Latin Air era US$3,97; depois, veio a Davati, US$3,50, que, depois, passou para US$17,50, e, depois, abaixou para US$11.
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Há contradição entre os dois depoimentos. Enquanto o reverendo citou a negociação com o Ministério da Saúde, o coronel da reserva disse que trabalhava em prol do mercado privado.
Coronel nega intermediação
Marcelo Blanco disse que, depois de ter saído do Ministério da Saúde, ele manteve contato com algumas pessoas que ficaram na pasta. Mas negou que tenha mantido influência no ministério.
— Dos militares, são aqueles amigos pessoais meus, de anos. E com algumas pessoas, a gente mantém interlocução, porque tem uma relação amistosa. Graças a Deus, tive o privilégio de conhecer muita gente no Ministério da Saúde. E sempre fui muito recebido. Desde que cheguei lá foram elegantes comigo — afirmou o depoente.
O coronel Blanco também negou que o tempo que passou no Ministério da Saúde tenha conferido alguma vantagem para a atuação profissional dele depois de ter saído da pasta.
Coronel Blanco negou que tenha facilitado a intermediação da compra de vacinas da AstraZeneca.
— A pessoa me pediu uma agenda. Eu falei: “Peça direto ao diretor”.
Em seu depoimento, Cristiano Carvalho disse Dominguetti lhe contou que haveria um comissionamento para o "grupo do tenente-coronel Blanco". Nesta quarta-feira, o militar negou a existência do grupo.
O coronel Blanco afirmou que o cargo que ocupava no Ministério da Saúde não impunha nenhum tipo de quarentena ao deixar a pasta.
Líder da Bancada Feminina, Simone Tebet (MDB-MS) pediu acareação para ver “quem mente menos ou quem mente mais”. Também sugeriu o pedido de embargo de declaração ao ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), para verificar se o depoente pode ser preso em caso de falso testemunho, já que ele possui um habeas corpus concedido pela Corte.
Em junho de 2021, o Ministério da Saúde publicou portaria em que determinou que o general da reserva Ridauto Fernandes deveria ser substituto do então diretor Roberto Dias em caso de afastamento. Até aquele momento, quem ocuparia o cargo seria o coronel Blanco, exonerado cinco meses antes, em 18 de janeiro.
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— Isso é materialmente impossível, é claramente um erro — afirmou coronel Blanco.
Ele nega que tenha substituído Dias no período. Coronel Blanco foi nomeado em 4 de maio de 2020 e designado como substituto em outubro do mesmo ano.
Deputados tumultuam depoimento
Logo em seguida, as perguntas de Renan foram interrompidas por Randolfe, que questionou um deputado governista presente na sessão por fazer insultos à CPI. Além disso, pediu que Reinhold Stephanes Junior (PSD-PR) fosse retirado da sessão, por tumultuar o depoimento.
— Deputado, algum problema? Vossa Excelência aqui gravou um vídeo, se referindo a essa CPI.
— Qual é o problema? — rebateu, no fundo da sala.
— O problema é que Vossa Execlência praticou ainda há pouco um ato de desacato a essa comissão — respondeu o vice-presidente da comissão.PUBLICIDADEhttps://cee70a9ef8e0ae98884aeb2a29c0d6b6.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Randolfe pediu que o parlamentar se identificasse e indagou sua autoridade para estar presente ali.
— O senhor não pode desrespeitar essa Comissão Parlamentar de Inquérito, não pode atuar dessa forma e eu pedirei para os seguranças daqui do Senado tomarem as devidas providências sobre Vossa Excelência. (..) Eu quero pedir para a Polícia Legislativa autuar esse parlamentar.
— Continua o modus operandi do governo — comentou Renan.
A comissão vai notificar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e cogita acionar o Conselho de Ética.
O ex-assessor da Saúde chegou ao Senado por volta das 9h, mas a sessão começou com 1h20 de atraso. Após o início da sessão, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM) mencionou o poder de a comissão analisar o abuso do direito de não autoincriminação, como ocorreu no caso da diretora da Precisa, Emanuela Medrades.
Logo no início do depoimento, o ex-assessor disse ter uma "trajetória ilibada" e currículo para assumir o cargo na Saúde. O coronel diz ter sido procurado por Dominguetti, e mostrou uma troca de mensagens feita em fevereiro. Segundo o GLOBO apurou, o principal argumento de Blanco à CPI será de que ele foi enganado pelo PM. O policial se anunciava como um representante comercial que poderia vender ao Brasil 400 milhões de doses da vacina Astrazeneca, mas não tinha nem sequer autorização do laboratório.
CPI da Covid: Comissão ouve ex-assessor da Saúde que intermediou encontro em que houve suposto pedido de propina por vacina
O militar admite que, após ser procurado por Dominguetti, em fevereiro, viu a oportunidade de negociar os imunizantes para a iniciativa privada. Na época, ele já tinha deixado o cargo de assessor na Saúde. Blanco abriu uma consultoria três dias antes do jantar com o policial e, cerca de um mês depois, incluiu atividades ligadas à área da saúde no escopo das atividades da empresa.
Blanco tem um Habeas Corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que lhe permite ficar em silêncio durante seu depoimento à comissão. A decisão foi dada em meados de julho pelo presidente da Corte, o ministro Luiz Fux, para que o depoente fique isento de responder perguntas que possam lhe incriminar. No entanto, ao GLOBO, o tenente-coronel disse que responderá aos senadores.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/ao-vivo-coronel-blanco-diz-cpi-da-covid-que-visava-negociar-vacinas-para-mercado-privado-nao-com-ministerio-da-saude-25139940
A reforma vale-tudo de Lira
Vera Magalhães / O Globo
Política quase nunca é feita de boas intenções. Ela é praticada em bases bem mais pragmáticas que isso. A falta de apoio do Congresso à obsessão de Jair Bolsonaro pelo voto impresso, portanto, não se deve a nenhuma consciência por parte dos parlamentares de que é preciso zelar pela democracia, mas ao fato de eles considerarem essa cruzada uma bobagem e saberem que a urna eletrônica é segura — afinal, foram eleitos por ela.
Assim sendo, melhor gastar tempo, energia e conchavos com as próprias prioridades, em vez de se engajar na de Bolsonaro.
Eis que no minuto 1 da volta do recesso se materializa na Câmara, pronto para ser enfiado goela abaixo da sociedade, um calhamaço de mais de 900 artigos revogando toda a legislação eleitoral e, sob o pretexto de unificar tudo num Código Eleitoral, aproveitando para passar um tratoraço na fiscalização do uso de dinheiro público para campanhas e para o custeio dos partidos e para censurar as pesquisas, entre outras atrocidades.
O projeto patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e assinado por uma correligionária, a deputada Margarete Coelho (PP-PI), é mais um exemplo de um expediente que vai se tornando corriqueiro na Câmara sob o comando do deputado alagoano: os projetos surgem do nada e são rapidamente votados, para que não dê tempo de a imprensa denunciar todos os seus aspectos e de a sociedade se articular.
É, também, uma mostra de por que Lira se mantém impávido segurando qualquer pedido de impeachment de Bolsonaro, não importa o que ele faça: ele já comanda uma fatia expressiva do Orçamento, colocou dois aliados no Planalto e vai aprovando medidas (fundão eleitoral, mudança na lei de improbidade administrativa e, agora, o Código Eleitoral do vale-tudo) de sua agenda pessoal sem ser importunado pelo Executivo. Manda na pauta da Câmara, a despeito do gasto sem precedentes feito pelo governo Bolsonaro (e o fim da mamata?) com agrados ao Centrão.
A reforma na legislação eleitoral proposta pela porta-voz de Lira usa do mesmo negacionismo propalado por Bolsonaro em relação às urnas eletrônicas para censurar a divulgação de pesquisas às vésperas do pleito. Quer que institutos divulguem uma tabela de acertos (!) em levantamentos anteriores, ignorando a obviedade estatística de que pesquisas são fluidas, mostram tendências e que, principalmente no Brasil, algumas eleições apresentam curvas que se modificam às vésperas das eleições.
Em relação aos gastos dos cada vez mais fornidos fundos públicos, o partidário e o eleitoral, a regra na reforma de Lira é o libera geral: até transporte de eleitor passará a ser passível apenas de multa.
Mecanismos para garantir equidade na distribuição desses mesmos recursos, como a determinação de que mulheres e negros sejam contemplados de forma proporcional, vão para as cucuias.
A Justiça Eleitoral perderá mecanismos para aprovar resoluções que disciplinem as eleições e terá menos tempo para analisar prestações de contas de campanha. E ainda cabe muita bizarrice em 372 páginas feitas sob medida para perpetuar os mesmos, graças a muito dinheiro público, e para impedir renovação de fato na política.
A presença de Arthur Lira no comando da Câmara é um desses legados deletérios do bolsonarismo para as instituições. Sob seu comando, ainda que haja soluços pragmáticos, como a reação às ameaças de Braga Netto ou o enterro da PEC do voto impresso, eles sempre se darão sob a lógica de que há outra agenda, igualmente contrária ao interesse público e ao aprimoramento do processo democrático, à espreita.
Pobre do país que tem de se fiar num Congresso comandado por interesses desse tipo para (quem sabe) frear os pendores golpistas de um presidente da República disposto a tudo para se manter no poder.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/reforma-vale-tudo-de-lira.html