O Globo
Urnas eletrônicas contam com mais de 30 camadas de proteção
'Sistema preserva a vontade do eleitor', diz ex-ministro Marco Aurélio, presidente do TSE quando equipamento foi adotado em 1996. Infográfico do GLOBO detalha medidas de segurança
Filipe Vidon e Marlen Couto / O Globo
RIO — Introduzida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no processo eleitoral brasileiro em 1996, a urna eletrônica revolucionou a maneira como o eleitor expressa sua soberania política, pilar do sistema democrático, ao conferir mais confiabilidade e agilidade à apuração do voto. Não há registros de fraudes desde que o modelo foi implantado. Ainda assim, o sistema entrou na mira do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores.
Infográfico: Como funciona a urna eletrônica e por que é segura
Antes mesmo de ser eleito, Bolsonaro passou reiteradamente a afirmar, sem provas, que o sistema não é confiável e chegou a alegar que houve fraude no pleito de 2018, que o elegeu à Presidência com mais de 57 milhões de votos. Em um ataque às instituições democráticas, o presidente condicionou também a realização das eleições 2022 à implantação do voto impresso, proposta derrotada na Câmara dos Deputados.PUBLICIDADE
As urnas eletrônicas contam com mais de 30 camadas de proteção, passam por auditoria e não podem ser invadidas pela internet, ao contrário do que alegam mensagens falsas nas redes sociais.
Reação: Comandante do Exército diz que ‘não há interferência política’ na Força
Desenvolvido pelo TSE, o software usado nas urnas conta com criptografia, assinatura digital e passa por testes públicos de segurança. Os equipamentos também são testados em uma auditoria chamada de “votação paralela”, uma simulação com urnas sorteadas que ocorre no dia da eleição. As medidas de proteção, que ocorrem antes, durante e depois do pleito, estão explicadas em um infográfico no site do GLOBO.
— O sistema preserva a vontade do eleitor, afastando distorções que ocorriam no modelo de cédula. Em 25 anos, não houve constatação de qualquer desvio — ressalta o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que presidiu o TSE quando as urnas eletrônicas foram usadas pela primeira vez.
A voz de Trump vem ao Brasil
Entre ex-presidente americano e Bolsonaro a diferença são os militares
Elio Gaspari / O Globo
A repórter Beatriz Bulla revelou que deve chegar ao Brasil no próximo domingo Jason Miller, ex-porta-voz de Donald Trump. Vem divulgar sua rede social, Gettr, criada para contornar a expulsão de Trump das grandes plataformas americanas. A Gettr tem 250 mil brasileiros listados. Entre eles estão Jair Bolsonaro e dois de seus filhos.
Miller foi uma testemunha privilegiada da ruinosa insurreição de 6 de janeiro, quando Trump tentou melar o resultado da eleição americana. Para quem viu o desfile do pelotão da fumaça em frente ao Palácio do Planalto na semana passada, o golpe de Trump era muito mais delirante.
À tarde, o vice-presidente Mike Pence presidiria a reunião do Senado que sacramentaria a eleição de Joe Biden.
Às oito da manhã, Trump sabia que tinha milhares de seguidores em Washington e falou com Jason Miller. Esperava que Pence aceitasse as objeções dos republicanos e revertesse o resultado: “Faça isso, Mike. Esta é a hora da coragem”, tuitou.
Pouco depois, Trump ligou para Pence, mas o vice disse que não tinha poderes para tanto. Seu papel seria apenas cerimonial. “Você não tem coragem”, respondeu Trump. Ele tinha um plano e foi para um comício perto da Casa Branca.
Por volta de meio-dia e meia, enquanto Trump discursava incitando a multidão, Pence soltou uma nota oficial informando que não reverteria o resultado da eleição. Às 12h58m começava a invasão da área do Capitólio.
Às 14h12m, a multidão estava nos corredores. Alguns gritavam “enforquem Pence”. O vice-presidente e os senadores foram retirados do plenário, e o vice foi levado para um lugar seguro. Trump tuitava: “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que devia ser feito.”
Estava enganado. Agentes de segurança queriam levar Pence para uma base aérea, mas ele decidiu ficar no prédio. Às 16h, o vice-presidente telefonou para o secretário de Defesa informando que pretendia retomar os trabalhos e queria que o Capitólio estivesse livre dos invasores: “Mande a tropa, mande logo.”
Entre o instante em que Pence deixou o plenário do Senado e as 20h, quando voltou para sua cadeira, a insurreição estava contida. Passaram-se seis horas, durante as quais as instituições democráticas americanas foram postas à prova.
Donald Trump passou a maior parte do tempo grudado nas televisões. Com o tempo, vai-se saber quem ligou para quem, dizendo o quê.
Às 21h, quando Pence já havia recomeçado a sessão que confirmaria a vitória de Joe Biden, Jason Miller começou a redigir uma nota na qual Donald Trump aceitava que se procedesse a uma “transição ordeira”. Reconhecia a necessidade da transição, o que não significava que reconhecesse o resultado da eleição. Fosse qual fosse o plano que Donald Trump tinha na cabeça, estava acabado.
Trump e Bolsonaro
Durante as seis horas de caos em Washington, Bolsonaro pôs suas fichas no cavalo errado.
Ele disse o seguinte:
“Eu acompanhei tudo hoje. Você sabe que sou ligado ao Trump. Então, você sabe qual a minha resposta aqui. Agora, muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude. Eu falei isso um tempo atrás, e a imprensa falou: ‘Sem provas, presidente Bolsonaro falou que foi fraudada a eleição americana’”
Poucas vezes, houve tamanha afinidade entre um presidente brasileiro e seu colega americano. Quando Bolsonaro disse “sou ligado ao Trump”, apontava para uma conexão que vai além da simpatia.
Trump contestava a eleição de Joe Biden. Bolsonaro contestava não só a eleição americana, como também a brasileira do ano que vem.
Trump acreditou na cloroquina e na imunidade de rebanho. Bolsonaro também.
Trump recusou-se a usar máscaras e duvidou da utilidade do distanciamento social. Bolsonaro também.
Trump disse que o vírus foi uma criação chinesa. Bolsonaro também. (Fazendo-se justiça a Trump, ele só saiu com essa patranha depois que os chineses disseram que o vírus havia sido espalhado pelos americanos.)
Por mais delirante que Trump tenha sido na sua conduta durante a pandemia, não há vestígio de picaretas agindo com relativo sucesso na burocracia da saúde pública americana.
Trump encrencou com seu vice. Bolsonaro também.
Trump quis militarizar o feriado de 4 de julho nos Estados Unidos botando tanques nos jardins da Casa Branca. Bolsonaro desfilou blindados fumacentos diante do Planalto.
Trump e os militares
É no capítulo das relações com os militares que salta aos olhos uma diferença entre o que aconteceu nos Estados Unidos e o que acontece no Brasil.
Lá, como cá, apareceram militares da reserva propondo excentricidades. Um general trumpista da reserva queria colocar o país sob lei marcial. Ficou no palavrório.
O general Mark Miley, chefe do Estado Maior Conjunto dos EUA, sentiu cheiro de queimado na movimentação dos trumpistas antes do 6 de janeiro.
Vendo uma manifestação em Washington no dia 2, ele cravou: “Esse é um momento do Reichstag. O Evangelho do Führer”.
Era uma comparação com os assaltos de Hitler ao regime democrático da Alemanha.
Não há prova de que Trump tenha tentado mover tropas do Exército, Marinha ou Aeronáutica no seu pastelão.
Pelo contrário. Na tarde do dia 6, quem pediu tropas foram os democratas Nancy Pelosi e Charles Schumer.
No dia 8, quando Trump já estava no chão, Pelosi, presidente da Câmara, telefonou para o general Miley, argumentando que o presidente estava fora de si e poderia fazer outras maluquices. Ela especulava a possibilidade de declará-lo incapaz.
Quanto às maluquices (o uso de armas nucleares para criar um caso), Miley tranquilizou-a. Quanto à declaração da incapacidade de Trump, ele cortou:
“Eu não vou caracterizar o presidente. Não é meu papel.”
Serviço
Estão na rede três reconstituições das maluquices de Donald Trump, publicadas nos Estados Unidos.
Diante da pandemia:
“Nightmare Scenario“ (Cenário de Pesadelo), de Yasmeen Abutaleb e Damian Paletta.
Sobre o 6 de janeiro:
“Landslide” (Expressão em inglês para designar uma vitória folgada numa eleição), de Michael Wolff
“I Alone Can Fix It” (Eu Consigo Consertar Isso), de Carol Leonnig e Philip Rucker
Madame Natasha
Madame Natasha acompanha as sessões da CPI da Covid mascando cloroquina e decepcionou-se com a intenção dos senadores de acusar Bolsonaro por “charlatanismo e curandeirismo” durante a pandemia.
Charlatanismo, vá lá, mas falar em curandeirismo é uma ofensa aos muitos pajés do círculo de amizades da senhora.
O charlatão sabe que o óleo de peixe não cura reumatismo. Já o curandeiro acredita nas virtudes de suas poções.
Zé Arigó (1921-1971) foi um homem honesto. João de Deus, antes de ser apanhado em seus delitos sexuais, fez fama atendendo muita gente boa. Isso para não mencionar os milhares de pajés que cuidaram de indígenas. O cacique Takumã Kamayura (1932-2014) é hoje uma lenda para os povos do Xingu.
Natasha acredita que essa confusão é crendice de homem branco.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/a-voz-de-trump-vem-ao-brasil-25155834
Rio de Janeiro, DF
Merval Pereira / O Globo
A volta da capital para o Rio de Janeiro tem sido apontada como solução para a crise política e econômica que por anos vem dominando a cidade que, apesar dos pesares, continua sendo símbolo da nacionalidade, dentro e fora do país, a cidade brasileira mais visitada pelos estrangeiros.
Um trabalho da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) traz uma aprofundada visão sobre nossos problemas, e uma solução criativa: transformar o Rio de Janeiro em um segundo Distrito Federal, coisa que é na prática, a cidade mais “federal” do país.
O livro, organizado por Christian Edward Cyrill Lynch, Igor Abdalla Medina de Souza e Luiz Carlos Ramiro Junior, faz a defesa da federalização, e entende que salvar o Rio já não se trata de uma questão de segurança pública, mas nacional. As organizações criminosas tomaram conta da região metropolitana e espalharam seu domínio inclusive sobre outras partes do estado fluminense, o poder público não consegue exercer domínio sobre parte significativa do território e da população.
O diagnóstico é que, sendo a 2ª maior economia do país, com grandes polos de tecnologia e educação, convive com a estranha sensação de decadência. O Brasil inteiro perde com a crise do Rio de Janeiro, que deixou de ser um lugar de atração, mesmo sendo o ícone do Brasil para si e para fora.
O país desperdiça seu grande ativo, e os autores destacam o seu "uso" como capital simbólica pelo próprio governo federal: sediou a Eco-92, o Pan 2007, a Rio+20, a Olimpíada de 2016, além de servir de sede logística e das partidas finais das Copas das Confederações e do Mundo (2014).
Do ponto de vista da cultura e da história, a capital brasileira continua sendo o Rio: Paço Imperial, Biblioteca Nacional, Centro Cultural da Justiça Federal, Museu Nacional de Belas Artes, Museu Histórico Nacional, Museu da República, Museu Nacional etc. As sedes da Academia Brasileira de Letras (ABL) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) são no Rio.
Também continua a exercer na prática o papel de um Distrito Federal oficioso. Segundo dados da Secretaria do Patrimônio, a União é proprietária de cerca de 1200 imóveis federais, parte substantiva deles subaproveitados. Triste exemplo é o prédio icônico do Ministério da Educação ( Palácio Gustavo Capanema) no centro da cidade, colocado agora num balaio de privatizações de prédios públicos. Um patrimônio histórico tombado por sua importância na arquitetura brasileira e mundial, que não tem preço.
Segundo dados do Ministério do Planejamento de 2016, o Rio sedia 1/3 dos órgãos da administração federal: Brasília é sede de 115 órgãos; o Rio, 67. O Rio de Janeiro também possui mais servidores federais civis do que o DF: são cerca de 250 mil contra de 175 mil do DF.
O Rio é a capital militar do Brasil. Segundo dados das Forças Armadas, o Estado do Rio reúne 22,4 % dos militares do Exército (o RS vem em segundo com 15,8 %); 35% da Aeronáutica (SP vem em segundo com 15,2 %); e 67,8 % dos militares da Marinha.
Dezenas de países têm duas capitais, como o Chile, a Bolívia, a Holanda, a Malásia, a Coreia do Sul. A África do Sul tem 3 capitais. Na prática, outros países têm também: Rússia (São Petersburgo, antiga capital, é uma cidade federal e sede do Tribunal Constitucional); Alemanha (Bonn sedia 1/3 dos ministérios e é também uma "cidade federal"). Na China, Xangai tem o mesmo estatuto jurídico "nacional" que Pequim. No Egito e na Indonésia estão construindo uma segunda capital.
O Rio é uma verdadeira metrópole, possuindo alta densidade demográfica, com um centro ativo de milhares de escritórios, sedes de bancos, sindicatos, universidades e associações, que lhe conferem massa crítica e o conteúdo democrático. Providências como o retorno de parte dos ministérios e, sobretudo, do Congresso Nacional, bem como a obrigação constitucional do presidente da República de aqui residir e despachar parte do ano, ajudaria a recuperar a credibilidade do Congresso Nacional e corrigir o déficit democrático de Brasília, criando condições de accountability indispensáveis à melhoria do padrão governativo e administrativo do país.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/rio-de-janeiro-df.html
Míriam Leitão: A construção e o desmonte da democracia brasileira
Míriam Leitão / O Globo
A democracia brasileira foi construída no solo. Foi o resultado de uma vasta resistência nacional travada, incansável e dolorosamente, em planos diversos. Temos mortos como testemunhas. Não foi o resultado automático do fim da Guerra Fria, nem mesmo a concessão de generais da “abertura”. Foi conquista nossa. Países de instituições definidas como “maduras” também sofrem nestes tempos de governantes que chegam ao poder pelo voto e conspiram contra o edifício democrático. O 6 de janeiro em Washington serve para nos lembrar que não há nação a salvo de um presidente deletério.
Cada semana tem trazido uma coleção de horrores perpetrados por Bolsonaro e seus apoiadores. Mas a última foi excessiva. O ridículo desfile militar na Esplanada exigido pelo presidente foi revelador da falta de espinha dorsal dos comandantes militares. Eles fazem qualquer papel imposto a eles, aceitam todas as humilhações e, depois, vão entregar a alguns ouvidos garantias de que não respaldarão um golpe. Ora, já o estão respaldando.
A prisão de Roberto Jefferson não surpreende e ele deve ter até gostado, porque fez tudo o que podia para chamar atenção em postagens radicais e grotescas. Mas é o tal negócio, as instituições não podem se dar ao luxo de fingir que não estão vendo o doido. Se ele pratica crime à luz do dia, precisa responder por isso, e o ministro Alexandre de Moraes agiu bem. Mas foi esse sujeito caricato, figurinha repetida de todos os escândalos, que esteve dias atrás no Palácio do Planalto para um encontro com o presidente e o sempre servil general Eduardo Ramos.
Na economia, também foi lenta e difícil a construção de instituições que garantiram a estabilidade da moeda. E elas estão sob ameaça. Para atingir o objetivo de fortalecer as chances de Jair Bolsonaro permanecer no poder estão sendo desrespeitadas as balizas fiscais do país. As dívidas judiciais serão parceladas e passarão a constar de uma contabilidade paralela, despesas foram excluídas do teto de gastos, a regra de ouro foi revogada na prática, uma reforma do Imposto de Renda pode ser votada na correria para financiar um aumento demagógico do gasto social, a execução do Orçamento perdeu transparência.
Alguns economistas que estão no governo podem não ter essa noção, mas o panorama é inegável. O Ministério da Economia está a serviço do projeto de poder autoritário de Bolsonaro. É impossível não ver o desmonte fiscal promovido pelos muitos “jeitinhos” dados a cada vez que o ministro Paulo Guedes cede ao presidente. Que economista sério acha que faz sentido, a esta altura, aprovar uma renúncia fiscal em favor do consumo do diesel ou incentivar um programa para o uso do carvão? Isso é absurdo fiscal, energético, econômico e ambiental.
A política social também foi resultado de construção minuciosa. Na democracia, especialistas em transferência de renda construíram as bases para as novas políticas, distantes do velho assistencialismo, e que foram do Bolsa Escola ao Bolsa Família, ao Brasil sem Miséria. Não se improvisa nisso. É preciso ter conhecimento, sensibilidade, capacidade de formulação. O ministro Paulo Guedes está fazendo o que prometeu naquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020. “Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.” Com o objetivo de usar os pobres está sendo feito o projeto mal desenhado do Auxílio Brasil. Um governo realmente preocupado com a promoção social iria, por exemplo, cumprir a lei que manda fornecer internet para alunos e professores nas escolas públicas. O governo Bolsonaro vetou a lei, o veto foi derrubado, e Bolsonaro então baixou MP para não cumprir seu dever.
O fim da ditadura foi o começo de várias conquistas. A estabilização da economia, a política social eficiente, regras de responsabilidade fiscal, independência do Ministério Público, respeito aos órgãos como Polícia Federal, Coaf, Receita Federal, Ibama, ICMBio, Inpe, IBGE. O governo Bolsonaro tem atacado cada parte do edifício democrático. Não é um golpe. São vários golpes. Contudo, como nos anos 1970, a resistência está em ação através de inúmeras pessoas. Entender a natureza do processo que nos garantiu a democracia é parte da resistência à sua demolição.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/construcao-e-o-desmonte.html
Comandante do Exército diz que ‘não há interferência política’ na Força
Equilibrando-se entre as tentativas de Bolsonaro de influenciar instituição e a expectativa de parte da cúpula militar, o general Paulo Sérgio Nogueira afirma ao GLOBO que 'o Alto Comando está com o comandante'
Jussara Soares / O Globo
BRASÍLIA — Desde quando assumiu o comando do Exército, em abril, o general Paulo Sérgio Nogueira se equilibra em uma linha tênue de expectativas. De um lado, o presidente Jair Bolsonaro almeja demonstrações de apoio irrestrito e influência na Força que lhe deu a patente de capitão. Do outro, integrantes do Alto Comando esperam que Nogueira blinde a caserna da política e evite um agravamento da crise de imagem da instituição. Diante disso, Nogueira negou ao GLOBO o desgaste e deixou claro:
— Não há interferência política no Exército — disse o general por telefone ao GLOBO após participar ao lado de Bolsonaro de uma cerimônia na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) neste sábado — O Alto Comando está com o comandante — garantiu.
Mensagens: Ex-mulher de Bolsonaro atuou por cargo na Saúde
A declaração ocorre após mais uma semana de tensão. Na terça-feira, o general foi convocado para uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Ao fim, o primeiro escalão do governo se perfilou no alto da rampa, junto a Bolsonaro, para acompanhar um desfile de blidandos em frente à Praça dos Três Poderes. Entre eles, estava Nogueira. Militares quatro estrelas ficaram desconfortáveis em vê-lo no evento. Nem o próprio comandante parecia à vontade na cena.
Bolsonaro e o General Paulo Sérgio Nogueira
Não foi a primeira situação em que Nogueira ficou no meio de interesses difusos de fardados e de Bolsonaro. Em maio, a cúpula do Exército defendia a punição do general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, que participou de uma manifestação no Rio ao lado do presidente, o que é proibido a militares em atividade. Bolsonaro, por sua vez, agiu para blindar o ex-ministro, que acabou ganhando um cargo Palácio do Planalto. O recado foi entendido, e Pazuello se livrou da punição. O comando do Exército ainda impôs um sigilo de cem anos sobre o processo administrativo de Pazuello.
Nogueira enfrentou outra saia justa. Em julho, o ministro da Defesa, Braga Netto, preparou uma nota oficial, assinada também pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, para rebater críticas feitas pelo presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM). O texto oficial diz que as Forças Armadas não aceitariam “ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo.” Na ocasião, Nogueira estava em viagem ao Rio Grande do Sul. O texto, apresentado a à distância, estava pronto para ser assinado.
Infográfico: Como funciona a urna eletrônica e por que é segura
Esses e outros episódios já foram debatidos nas reuniões de integrantes do Alto Comando, que têm se mostrado preocupados com ataques de Bolsonaro às instituições. Ao final, generais estrelados, diante do momento de tensão, reafirmaram apoio irrestrito ao comandante do Exército. O argumento é que Nogueira não pode se opor ao presidente sob risco de conflagrar uma crise no país.
Nogueira chegou ao topo do Exército quando seu antecessor, o general Edson Leal Pujol, foi demitido junto com o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes da Marinha e da Aeronáutica. O argumento principal é que Bolsonaro queria uma relação mais próxima com os chefes das tropas.
Descrito como afável, extrovertido e sociável, Nogueira adotou a discrição como regra. Em aparições públicas, calcula o tom das falas para não gerar conflito com o presidente e tampouco parecer que referenda eventuais posições políticas. Na estratégia de fugir de polêmicas, Nogueira deixou de usar o Twitter, um dos canais prediletos dos apoiadores de Bolsonaro. A sua última publicação ocorreu no dia 2 de abril, dois dias após ser anunciado no posto mais alto do Exército. Essa postura o diferencia dos comandantes da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, e da Marinha, Almir Garnier dos Santos, que utilizam as redes sociais.
Nos bastidores, porém, o comandante do Exército faz questão de sinalizar que está aberto a conversar com todas as autoridades. Já recebeu o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, e esteve com os governadores Ratinho Jr (PSD), do Paraná; Paulo Câmara (PSB), de Pernambuco; e Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul. Os dois últimos são adversários políticos de Bolsonaro. Nogueira também já se encontrou com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Nessas conversas, segundo o relato de interlocutores, evitou comentários sobre o presidente ou qualquer crise no país.PUBLICIDADE
A reserva do general à exposição política do Exército já era percebida por interlocutores do militar desde que ele estava à frente o Comando Militar do Norte (CMN), em Belém. A divergência se acentuou no 7 de agosto de 2020, um dia antes de o Brasil superar a marca de 100 mil mortos pela Covid-19, quando Nogueira assumiu o Departamento-Geral de Pessoal do Exército, a maior autoridade de saúde na Força. Na gestão, adotou as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), incluindo uso de máscara nos quarteis e distanciamento social. A adoção dessas medidas era contrária ao posicionamento de Bolsonaro.
Em função disso, o general não cogitava ser promovido ao comando do Exército. Até mesmo porque à frente dele estavam os generais José Luiz Freitas e Marco Antonio Amaro, atual chefe do Estado Maior, que havia sido chefe da segurança da ex-presidente Dilma Rousseff. Segundo integrantes do Planalto, Amaro foi preterido pelo passado de serviços à petista, e Freitas por não ter proximidade com Braga Netto.
Quem conhece o general mais intimamente diz que o ar reservado nas cerimônias ao lado do presidente contrasta com o perfil extrovertido que o marca desde os tempos da Aman, onde se formou em 1980. Natural de Iguatu (CE), PS, como gosta de ser chamado, é filho de um funcionário do Banco do Brasil e de uma dona de casa. Católico praticante, tem três filhos: dois majores do Exército e um engenheiro. Na academia, o jovem de 1,82m e bom preparo físico praticou atletismo e futebol. É torcedor do Ceará.
Na trajetória militar, o general foi três vezes instrutor na Aman, e em uma delas como comandante do Curso de Infantaria. Ao menos dez turmas de cadetes passaram por ele, o que faz com que Nogueira tenha relacionamento com oficiais espalhados por todo o Brasil. Na prática, é o comandante que tem as tropas nas mãos.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/comandante-do-exercito-diz-que-nao-ha-interferencia-politica-na-forca-25155942
Merval Pereira: Prisão em defesa da democracia
Merval Pereira / O Globo
Há muito tempo que o ex-deputado Roberto Jefferson anda se excedendo nas redes sociais, com ameaças de fuzilamento, arma na mão e outros absurdos. Um presidente de partido político não pode fazer uma coisa dessa e por isso, a prisão foi justa. Ele enveredou por um caminho de sedição, de defender revolução armada, que os deputados de seu partido não querem e por isso metade deles está entrando no STF com pedidos para deixar o PTB e manter o mandato.
A democracia precisa se defender desses malucos e a prisão é um dos seus mecanismos de defesa. O inquérito do STF, que começou enviesado – recebeu críticas corretas, de que não poderia ter sido montado como foi – demonstra agora ser necessário, porque há realmente uma rede de militantes digitais que não se limitam a criticar os oposicionistas ao governo; fazem questão de estimulam o ódio e a violência física, de colocar armas numa suposta defesa dos cidadãos e da democracia.
Num estado de direito, não se pode permitir propaganda de revolução. Além do mais, essas redes sociais são financiadas pelo fundo partidário, dinheiro público, o que é também inaceitável. Assim como não é possível custear despesas pessoais de políticos com verba partidária.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/prisao-em-defesa-da-democracia.html
Reforma eleitoral opõe Senado e Câmara: entenda o impasse
Um dos articuladores da reforma, Arthur Lira quer evitar que Rodrigo Pacheco deixe a matéria indefinidamente na gaveta
Bruno Góes, Evandro Éboli e Paulo Cappelli / O Globo
BRASÍLIA - Aprovada em primeiro turno pelos deputados na noite de quarta-feira, a volta das coligações partidárias nas eleições de 2022 pode não resistir no Senado. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), classificou ontem a proposta como um “retrocesso”. A palavra tem sido usada por cientistas políticos para analisar este ponto da reforma eleitoral, que deverá ser apreciada em segundo turno na Câmara na próxima terça-feira para, depois, seguir para o Senado.
Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, presidentes da Câmara e do Senado
Votação às pressas e remendos de última hora: como a Câmara aprovou o primeiro turno da reforma política
Rodrigo Pacheco adiantou que, entre os senadores, há uma “tendência” pela manutenção do sistema atual. Ele defendeu ainda a reforma eleitoral sancionada em 2017, quando as coligações foram proibidas.
— Eu mantenho minha posição pessoal. Eu considero, sim, que é um retrocesso. Nós fizemos uma opção inteligente em 2017, e um dos itens é justamente o fim das coligações e, com a cláusula de desempenho, fará com que nós tenhamos menos partidos políticos e uma melhor representatividade na política — argumentou o presidente do Senado ao G1.
Lira articula
Os deputados aprovaram a retomada das coligações por larga maioria — 333 votos favoráveis e 149 contrários — após um acordo entre líderes partidários. Nessa mesma negociação, os parlamentares acertaram a derrubada do chamado distritão, modelo em que são eleitos os candidatos a deputados federal e estadual mais votados em cada estado, independentemente do tamanho da bancada de seus partidos, critério levado em consideração atualmente. O próprio presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), participou diretamente das articulações para a mudança da regras eleitorais.
Veja também: Volta das coligações favorece partidos de aluguel e diminui representatividade, alertam especialistas
Antevendo as dificuldades que a proposta vai enfrentar, Lira já começou a trabalhar na Casa vizinha. Ele jantou com o presidente do Senado na noite de quarta-feira em Brasília e fez um apelo para que o colega paute o tema no plenário. Pacheco respondeu que vai submeter o assunto ao plenário quando houver consenso entre líderes e pontuou que há outros temas prioritários, como a reforma tributária.
Um dos articuladores da reforma, Lira quer evitar que Pacheco deixe a matéria indefinidamente na gaveta — as mudanças nas regras eleitorais precisam ser aprovadas até outubro para valerem já no ano que vem. A declarada resistência de Pacheco gerou ruídos entre as duas Casas. Relatora da reforma na Câmara, a deputada Renata Abreu (Podemos-SP), reagiu duramente.
— Vai gerar uma crise institucional (se o Senado barrar o que foi aprovado na Câmara) — afirmou.
Retorno a jato
Com o propósito de ajudar a reduzir a fragmentação do quadro partidário e impedir que votos dados a um candidato ajudem a eleger outros, inclusive de outros partidos, a proibição das coligações valeu apenas na eleição de 2020. Agora, os deputados querem derrubar a medida aprovada pelo Congresso em 2017.
Em condição de anonimato, o presidente de um partido do Centrão justificou a decisão de voltar atrás da decisão de 2017. Sem as coligações, legendas menores — por vezes usadas como siglas de aluguel para captação de fundo partidário — deixariam de existir em consequência da chamada cláusula de barreira. Essa regra estabelece um número mínimo de votos que cada partido precisa obter para receber recursos do fundo partidário.
Leia mais: Câmara aprova união de partidos em 'federação', que facilita acesso ao fundo partidário
Na última eleição, houve redução drástica na participação das legendas menores nas Câmaras municipais. Essas siglas, porém, ainda são consideradas importantes, em muitos casos, para a busca do votos em eleições majoritárias.
Para a cientista política Maria do Socorro Braga, professora da Universidade Federal de São Carlos, a volta das coligações foi uma forma encontrada pelos partidos para ampliar o alcance nas eleições de 2022, diante da polarização no cenário presidencial.
— Os grandes, as siglas do centrão, não conseguiram retomar a força que tiveram antes de 2016. Por maiores que sejam, eles perderam capilaridade. Mostra um movimento desses partidos preocupados na disputa por 2022 com as coligações. Há um cálculo político para tentar se reforçar para uma disputa imprevisível — afirma a professora.
Vera Magalhães: CPI vive seu pior momento
A suspensão abrupta do depoimento de Ricardo Barros na CPI da Covid, nesta quinta-feira, foi a crônica de um desastre anunciado
Vera Magalhães / O Globo
Aqui neste espaço escrevi, ainda nos primórdios da investigação, em 5 de maio, quando os senadores estavam embevecidos com tanto holofote: “Para que não seja um placebo de açúcar, esta CPI precisa urgentemente entender que, sem um corpo técnico consistente, não irá a lugar algum”.
Na saída para o recesso, voltei a contrariar o coro dos empolgados: “A pausa de duas semanas (…) poderá ser salutar para que mergulhem nos documentos a fim de traçar a linha acusatória”.
Na última segunda-feira, perguntei a Renan Calheiros se eles estavam preparados para o depoimento de Barros, que seria difícil e poderia resultar na impressão de que ele venceu o confronto. O relator parecia seguro de que sim.
No entanto o que se viu nesta quinta foi um deputado que chegou disposto a ditar o próprio depoimento e a enquadrar os senadores.
A estratégia avançava bem, até que Barros foi tragado pela própria arrogância e teve as asas cortadas pela intervenção como sempre cirúrgica e bem fundamentada do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o mais técnico dos integrantes da CPI, um dos autores do requerimento de sua criação e, infelizmente, apenas suplente no colegiado.
Parar a bola pode ser a forma de evitar que a CPI se perca. A esta altura já está claro, até para eles, algo que eu também avisei em textos, comentários e em conversas com os próprios integrantes: prorrogar a CPI foi um erro.
Sou uma pitonisa que tudo prevê? Longe disso. Apenas tenho experiência de cobertura de “n” CPIs, e os dilemas que se apresentam agora estiveram presentes em todas. Incrível é que os senadores não tenham feito como times de futebol, que analisam partidas anteriores do adversário para se preparar.
É nitidamente insuficiente o apoio técnico de que dispõe a CPI da Covid. A ponto de senadores recorrerem a seus assessores próprios, ou por vezes aos “internautas”, para apontar contradições ou mentiras de depoimentos.
Um político ladino como Ricardo Barros não poderia jamais ter sido inquirido sem que, previamente, os senadores tivessem respostas para aquelas que claramente seriam suas linhas de defesa: que não tinha nada a ver com a nomeação de servidores no Ministério da Saúde nem com a intermediação de interesses de empresas na pasta.
Houve duas semanas de recesso justamente para que se esquadrinhassem os depoimentos e os documentos para desmontar a versão de Barros.
Mas foi pior: os senadores não esperavam que ele fosse ousar atribuir à própria CPI a dificuldade de o Brasil obter vacinas.
A simbiose entre o Centrão e Jair Bolsonaro resultou nesse corpo sinistro em que não há limites para o cinismo e a desfaçatez. De tão sórdida, a alegação claramente cairá nas graças da malta bolsonarista, que passará a repeti-la. É só conferir as redes sociais dos puxa-sacos e as lives putrefatas do próprio presidente para ver essa patifaria ser repetida. De novo, não é preciso ter bola de cristal: o golpismo bolsonarista é cristalino em suas táticas.
Outra que vingou foi Bolsonaro aproveitar o recesso, quando a CPI vivia seu momento mais auspicioso, após desnudar a corrupção do contrato da Covaxin, para mudar a pauta brasileira para um não assunto, o voto impresso.
Na volta, a CPI encontrou a arena ocupada, se perdeu nas várias frentes de investigação abertas, não se preparou para ouvir Barros e tem de tomar cuidado para que os governistas não emplaquem a tese de que não há prova de nada, só narrativa.
É o momento mais delicado para a comissão, cuja missão é também reparatória da maior tragédia brasileira em muitas gerações, o morticínio da Covid-19 promovido por Bolsonaro. Que os senadores entendam que estão derrapando e corrijam a rota.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/cpi-vive-seu-pior-momento.html
Míriam Leitão: Confusões de uma agenda eleitoreira
Míriam Leitão / O Globo
A reforma do Imposto de Renda teve três versões em 30 dias e nenhuma delas passou por comissões ou foi debatida antes de ser pautada para plenário. Só não foi votada ontem porque foi atropelada pelo projeto da reforma eleitoral. A PEC dos precatórios é uma pedalada, cria uma contabilidade paralela fora do Orçamento e muda a regra de ouro. O Bolsa Família pode virar um programa no qual vários outros são pendurados, perder o foco e parte do mérito que o tornou um programa simples e eficiente. A reforma do IR, a PEC dos precatórios e a mudança do Bolsa Família têm algumas coisas em comum: foram mal formulados, fazem parte de uma agenda hiperativa que traz mais distorção do que solução.
Está sendo difícil acompanhar as mudanças frequentes em projetos que tramitam de afogadilho na Câmara, sob a gestão do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Ontem, o último texto da reforma do Imposto de Renda foi apresentado de madrugada pelo deputado Celso Sabino (PSDB-PA) para ser votado em menos de 24 horas sob regime de urgência, dispensando os debates em cinco comissões. E uma das novidades foi a redução da Contribuição Social sobre Lucro Líquido para compensar a queda menor do IRPJ. Ao fim, a votação foi adiada, atropelada por outro projeto, também sem pé nem cabeça, das regras eleitorais do país.
A proposta de Paulo Guedes foi extemporânea e tão mal feita que o ministro ao divulgar já admitiu mudar tudo. Para o trabalho de consertar o projeto foi escalado o deputado Celso Sabino. Só que ele vive tutelado pelo ministro e improvisa a cada momento que chega uma reclamação. A pressa em colocar na mesa esse projeto era para corrigir a tabela do Imposto de Renda Pessoa Física, em tempo de ser usado como bandeira eleitoral do presidente Jair Bolsonaro em 2022. Como a medida abre um buraco no Orçamento, os lucros e dividendos das empresas passaram a ser tributados em 20%. E para atenuar o aumento de carga sobre as empresas, cortou-se alíquotas de IRPJ. Só que isso tira dinheiro dos estados e municípios. O IRPJ financia os fundos de participação dos estados e municípios. A queda do imposto produz perdas bilionárias para os fundos, que são importante para reduzir as desigualdades regionais.
O que chama atenção nesse assunto é que o país passou três anos discutindo uma reforma tributária ampla dos impostos indiretos, com dois grandes projetos em tramitação nas duas Casas. O governo ignorou o esforço, prometeu mandar uma reforma em quatro fases. Até agora, enviou uma unificação do PIS/Cofins, que ninguém mais ouve falar e que aumenta a carga, e esse PL do Imposto de Renda. Ontem, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, avisou que vai retomar a tramitação do projeto que está no Senado, a PEC 110, que unifica impostos indiretos. Avisou que essa é a agenda que o setor produtivo quer.
A PEC dos precatórios provoca dois abalos na credibilidade fiscal do país. Dá uma pedalada nas despesas do governo — ou seja, posterga dívidas para financiar outro gasto — e cria um orçamento paralelo, com passivos não contabilizados nas principais estatísticas da dívida pública. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), se a PEC estivesse em vigor desde 2016 o governo teria tirado R$ 91 bilhões de gastos no Orçamento. Esse valor de precatórios teria sido parcelado ou pago por fora do teto de gastos. Toda essa confusão está sendo feita por motivos eleitoreiros. O governo quer mais dinheiro para gastar e reformular o Bolsa Família.
As pedaladas fiscais foram a razão alegada para o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Desta vez, a equipe econômica diz que se trata de uma “modernização” da regra dos precatórios e que tudo será feito pelo Congresso. Será uma pedalada institucionalizada, como definiu o próprio TCU. Um dos grandes avanços fiscais do país foi unificar os orçamentos — o Brasil tinha três —e retirar os esqueletos do armário. O risco agora é de retrocesso.
Uma das virtudes do Bolsa Família era ter foco e ser simples. O governo, para se apropriar do programa que criticava, vai pendurar sete outros programas nele apenas para mudar de nome. Um deles é o voucher-creche, que já foi derrubado pelo Congresso. O Bolsa Família transformado em Auxílio Brasil pode perder foco e eficiência.
O Ministério da Economia está fazendo toda essa confusão, quebrando regras fiscais, para seguir a agenda política de reeleição de Bolsonaro.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/confusoes-de-uma-agenda-eleitoreira.html
Malu Gaspar: O delicado xadrez de Lula com os militares para 2022
Malu Gaspar / O Globo
Depois de semanas de calculada discrição a respeito da escalada dos militares sobre as instituições democráticas, Luiz Inácio Lula da Silva se manifestou na última terça-feira nas redes sociais sobre o desfile de blindados na Esplanada dos Ministérios. “Isso que aconteceu hoje foi uma coisa patética. Se o Bolsonaro queria uma foto com militar era só ter visitado um quartel”, escreveu.
A frase, porém, era só parte de uma sequência de tuítes em que Lula dedicava mais tempo a se explicar que a debater o simbolismo de tanques e fardados na Praça dos Três Poderes, no dia da decisão da Câmara sobre o voto impresso. “Eu não fico entrando toda hora em briga desnecessária porque isso só interessa ao Bolsonaro. Ele cria confusão pra ocupar espaço na mídia. É o jeito dele governar. O que eu quero discutir são os milhões de desempregados nesse país, o povo que tá sofrendo, passando fome”, escreveu.
As postagens foram uma resposta às pressões que o petista vem sofrendo, na esquerda e fora dela, para se posicionar. Lula se calou quando veio à tona que o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, enviou recados ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sugerindo que, se não fosse aprovado o voto impresso, não haveria eleições. E tem feito comentários econômicos sobre os militares e as Forças Armadas, nas poucas entrevistas que dá, a veículos selecionados. As pressões são mais do que naturais, uma vez que o ex-presidente é hoje o político que mais tem chances de derrotar Bolsonaro em 2022.
Acontece que Lula está diante de um xadrez delicado. Se, de um lado, precisa mostrar a suas bases combatividade contra Bolsonaro, de outro tenta há semanas abrir canais de interlocução com oficiais da reserva, por meio de emissários como o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim. Mas essas incursões vêm sendo malsucedidas. Os militares não querem saber de Lula. Não são poucos os que dizem que hoje, nas Forças Armadas, a rejeição ao petista é muito mais forte que a aprovação a Bolsonaro. Dos bolsonaristas mais radicais, se ouve até que, se ele ganhar a eleição, não assume.
A lista de razões para o rechaço é extensa. Começa nos escândalos de corrupção do governo petista, passa pela condução da Comissão da Verdade do governo Dilma, que apurou os crimes da ditadura, e vai até o último Congresso do PT, que aprovou uma resolução lamentando ter deixado de “modificar os currículos das academias militares” e de “promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista”. Inclui, ainda, o apoio do PT às ditaduras da Venezuela e de Cuba, questões sérias para os militares brasileiros.
Daí a ideia, que circulou entre aliados de Lula, de ele divulgar uma “carta aos militares”. Na sequência de tuítes, ele negou. “Se tivesse carta seria para o povo brasileiro e dentro disso estão os militares. Se militar quiser fazer política ele renuncia o cargo, tira a farda e se candidata.”
Mas ele sabe que não é bem assim. Os fardados estão entranhados no governo, e as polícias militares são um forte nicho bolsonarista. Por mais canhestro que tenha sido o espetáculo do fumacê na Esplanada, Bolsonaro tem bem mais do que um cabo e um soldado apoiando seus arroubos golpistas.
Quem conhece as Forças Armadas acha que é possível quebrar a resistência. Só que o caminho é longo e exige empenho. Um dos maiores especialistas em Forças Armadas e Defesa do Brasil, o cientista político Octavio Amorim Neto, diz que o primeiro passo seria fazer um pronunciamento mais claro sobre as ditaduras de Cuba e da Venezuela.
Na semana passada, Lula postou um vídeo de uma entrevista que deu a uma TV mexicana condenando o regime ditatorial do nicaraguense Daniel Ortega, no que foi compreendido como um aceno. Boa tentativa, mas inútil. Lula certamente escolheu a Nicarágua para não ter de se haver com a militância petista, mas o país tampouco está entre as preocupações dos militares.
Outra iniciativa que traria o que Lula busca seria explicar de forma clara, transparente e, de preferência, pública qual será sua estratégia caso ganhe a eleição. “Um documento um pouco mais técnico sobre a Defesa Nacional, que deixe implícitas quais serão as maneiras pelas quais os militares sairão do governo numa eventual transição”, diz Amorim.
Isso porque, em sua opinião, a opção por Bolsonaro cresceu nos quartéis no vácuo da negligência dos governos anteriores em debater e delimitar o papel dos militares na vida nacional — mas nem todos estão satisfeitos em ser feitos de capacho pelo presidente da República. Se quiser retomar um diálogo em termos razoáveis com os militares, o petista precisaria dizer ao Brasil que papel eles terão num eventual governo seu.
Nas palavras de Amorim, “dar a cara a tapa e dizer qual é a política de Defesa Nacional a partir de 2023; quais as propostas do PT, dada a importância enorme que as Forças Armadas adquiriram nos últimos anos”.
O desafio é complexo e talvez não renda bons dividendos políticos logo de cara. Bem mais fácil pode vir a ser continuar jogando parado, escolhendo a dedo o momento de fazer um tuíte ou uma declaração, e esperar para ver se Bolsonaro se desidrata sozinho. Mas essa estratégia tem seus riscos, tanto para o Brasil como para o próprio Lula. Cabe a ele escolher qual caminho quer seguir. Seja qual for, dirá muito sobre o que esperar de Lula daqui para a frente, na campanha e num eventual governo.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/o-xadrez-de-lula-com-os-militares-para-2022.html
Merval Pereira: Recados a Bolsonaro
Merval Pereira / O Globo
Bolsonaro alegar que venceu a eleição do voto impresso é a mesma coisa de Lula dizer que foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Com os 229 votos a favor, faltaram ao governo 79 para obter o quórum de 308 votos necessário para aprovação de uma emenda constitucional. Dizer que metade da Câmara votou a seu favor é uma falácia, pois, aos 218 votos contrários, devem ser somados os 66 votos de abstenção, que na prática prejudicaram o governo.
Mesmo que a maioria desses deputados que não tiveram coragem de assumir posição na votação em plenário seja a favor do voto impresso, não haveria voto suficiente para aprovar a emenda. Dito isso, é preciso admitir que o resultado foi muito maior para o governo do que se esperava — e não permite que se dê por encerrado esse debate extemporâneo.
Muitos deputados do PP e do PL, expoentes do Centrão, votaram contra o governo. Mas muitos de PSDB, PSB, Novo, supostamente de oposição, votaram com o governo, o que dá bem a dimensão da bagunça partidária que está instalada na Câmara. Para aumentar ainda mais a confusão, o presidente da Câmara, Arthur Lira, deu uma mãozinha a Bolsonaro falando, logo depois de terminada a votação, que agora é hora de juntar as lideranças partidárias para conseguir aperfeiçoar a segurança da urna eletrônica, o que, por si só, impede o encerramento da discussão como ele havia anunciado.
Lira anda na corda bamba para tentar manter o apoio de Bolsonaro e se distancia do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, potencial candidato à Presidência da República e, por isso, mais firme na defesa da democracia e do voto eletrônico. Depois do desfile militar em frente ao Congresso e ao Supremo, a questão do voto eletrônico deixou de ser uma questão técnica para transformar-se em política. Não é razoável, portanto, que deputados “oposicionistas” tenham votado com o governo.
No caso do PSDB, há um adendo importante: a maioria que votou a favor do governo também deu um recado ao governador de São Paulo, João Doria, de quem o deputado Aécio Neves, único tucano que se absteve, é o adversário principal. Também Gilberto Kassab, o presidente do PSD que se tornou opositor ferrenho de Bolsonaro, sofreu uma derrota, pois a maioria de sua bancada votou pelo voto impresso.
A nova tentativa dos bolsonaristas é aumentar o número de urnas eletrônicas auditáveis, o que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já admitiu ser possível. A sugestão é que firmas de auditoria independentes, como Price ou KPMG, acompanhem a votação. Lembram a vitória de Dilma sobre Aécio em 2014, ganhando com pouco mais de 3% dos votos, como indicação de que tenha havido fraude, embora nunca comprovada.
O ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, emitiu um parecer ontem atestando a confiabilidade das urnas eletrônicas, auditadas por peritos do TCU. Em seu voto, mandou recados claros: “Os ataques à democracia podem ser barulhentos. Ao desfilar, podem parecer vistosos, mas não passam de fumaça: pode ser escura e amedrontadora, mas se dissipa na atmosfera cristalina dos ares democráticos. Blindado é o nosso regime de liberdades, blindados são os nossos valores democráticos, blindado é o nosso plexo de garantias fundamentais, blindado deve ser o nosso compromisso irrenunciável com a Constituição que juramos respeitar, cumprir e fazer cumprir”.
Outro recado, desta vez do Senado, foi a derrubada da Lei de Segurança Nacional (LSN), coincidentemente no mesmo dia em que houve a “patacoada” no Palácio do Planalto. A aprovação da nova legislação de defesa do Estado de Direito é simbólica. Basta ver que a LSN dizia o que não podia ser feito, mas todos os pontos proibidos foram expressamente aprovados pela nova legislação, como manifestações de oposição, passeatas, críticas ao governo e imprensa livre.
Agora ela vai à sanção do presidente Bolsonaro, que é até capaz de vetar. Mas, se o fizer, cria um problema sério com o Senado e, assim, vai minando a possibilidade de apoio. Na Câmara, Arthur Lira está sendo colocado em xeque pelo próprio presidente, que não respeita a decisão contra o voto impresso, como prometera, e continua dizendo que a eleição presidencial do ano que vem não será confiável.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/recados-bolsonaro.html
Otávio do Rêgo Barros: A filha bastarda do poder
Otávio Santana do Rego Barros / O Globo
‘A deterioração de qualquer governo começa com a decadência dos princípios sobre os quais se fundou’, escreveu Montesquieu em “O espírito das leis”. Passados quase três séculos, mantém-se inabalável o axioma do filósofo francês.
Se a razão para insultar esses princípios é a falta de ética ou moral, institui-se a anarquia de valores no seio dos governantes, com consequências imprevisíveis para a sociedade tutelada.
Essa degradação é potencializada pela desmedida ambição de mandar dos condottieri de turno. A insensatez política, como reflexo, é filha bastarda da cobiça por poder.
No célebre tratado “A marcha da insensatez”, Barbara Tuchman sustentava que “ela (a ambição) somente pode estar satisfeita com o poder sendo exercido sobre os demais, e, portanto, o governo é seu campo de exercício favorito”.
Thomas Jefferson, mentor da declaração de independência dos Estados Unidos da América, professava opinião melancólica sobre o tema: “Sempre que um homem desejar o cargo, sua conduta começa a deteriorar-se”.
Há muitos desejando o cargo. Ou temendo perdê-lo. São burocratas que sonham com ganhos não meritórios, políticos interessados na escravidão dos currais eleitorais e até chefes de governo que objetivam, tão somente, a reeleição.
Nos coadjuvantes desse processo, a norma comportamental é agradar ao máximo e ofender o mínimo. Nos atores principais, é aniquilar os adversários, desembainhando adagas afiadas na influência da caneta.
É certo que a ascensão ao poder em ambientes democráticos se conforma pela escolha soberana dos cidadãos nas rondas eleitorais. Contudo muitos dos entronizados se ungem como oniscientes, onipresentes e onipotentes.
Sentados em confortável poltrona, encerram-se em outra dimensão, refutando quaisquer conselhos serenos. Para eles, reconhecer os erros, eliminar os prejuízos, alterar o curso são opções repugnantes, revela Tuchman.
Quando a escritora abordou o período Richard Nixon na Presidência americana, ilustrou como aspecto demeritório do poder a ausência da discordância leal com o chefe do governo. Seus auxiliares adotaram métodos ilegais para apagar pegadas incriminadoras das responsabilidades, levando-os ao desfecho impensado do Watergate. Uma lição aos autocratas de plantão. Mantenham-se abertos ao conflito saudável de ideias.
Um príncipe, defendeu Maquiavel, deve ser paciente perguntador e ter ouvidos atentos. Antes de refutar, deve aceitar que outros mais capazes formulem e até executem uma política em benefício do todo.
O Papa Alexandre VI assim se dirigiu a cardeais em um consistório: “O mais atroz dos perigos para qualquer papa está no fato de que, cercado, como vive, por lisonjeadores, jamais escuta verdades sobre sua pessoa e acaba por não querer mais escutá-las”.
Diante da crise institucional que teima em se instalar no país, conduzida, como visto, pela filha bastarda do poder, urge prescrever à sociedade o remédio da sensatez, reforçado com vitaminas da temperança e firmeza de propósito.
Em receita complementar, movermo-nos vigorosamente para abafar posturas desmedidas de agentes do poder que sugestionem um conflito aos menos avisados. Não há espaço para tergiversações, pois “a loucura nos poderosos não pode passar despercebida” (“Hamlet”, Shakespeare).
Um abismo se aprofunda à nossa frente. A erosão da racionalidade o alarga. A tessitura da estabilidade social precisará ser conduzida por um líder genuinamente inspirador. Que seja subalterno ao bem-servir. Que mais escute que imponha. Que seja manso e humilde, sem ser fraco e complacente, como professava o cardeal Angelo Roncalli (o Papa João XXIII). Basta de insensatos incorrigíveis.
Paz e bem!
* General de Divisão R1
FONTE: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/filha-bastarda-do-poder.html