O Estado de São Paulo
Eliane Cantanhêde: Saúde, vacina, agulha e amor!
O ano de 2020 já vai tarde. Que venha um 2021 muito, muito, muito melhor
A primeira coluna de um novo ano é sempre otimista, cheia de esperança e bons votos, mas como fingir que 2020 não foi o que foi, nada está acontecendo e reproduzir a animação de sempre neste início de 2021? Desculpem, mas está difícil. Assim, desejo saúde, vacina, seringa, agulha, emprego e capacidade de ver a realidade e entender o perigo do negacionismo regado a um populismo desbragado que tanto mal já causou à Humanidade.
Que o novo ano seja muito, muito, muito melhor do que 2020, que já vai tarde, com muito choro e muita vela, deixando para trás quase 200 mil vidas engolidas pelo coronavírus, enquanto o presidente fazia campanha eleitoral e trabalhava contra o isolamento social, as máscaras. Sem empatia com as famílias das vítimas, virou garoto propaganda de um remédio inútil para a pandemia e agora guerreia contra a própria vacina.
Que as pessoas se cuidem, confiem na ciência e nas várias vacinas descobertas e testadas por grandes cientistas e laboratórios do planeta. Vacinas que salvam a sua vida e interrompem o ciclo macabro da contaminação que adoece, deixa sequelas e mata. Não ouçam negacionistas que se movem por ideologia. Ouçam e ajam de acordo com cientistas, médicos, entidades nacionais e internacionais de saúde.
Que, antes de ser demitido e virar bode expiatório dos tremendos erros “de quem manda”, o general ministro da Saúde tente recuperar a fama de bom em logística para ampliar o raio de fornecedores de vacinas, encomendar mais do que míseros 2,7% das seringas necessárias, deixar alguma providência pronta para quando vacinas, sabe-se lá quando, forem autorizadas pela Anvisa.
Que Natal e Ano Novo, aglomerações em praias, jogos de futebol e abraços sem máscara, como estimula o presidente, baladas de jovens de todas as classes sociais e badalações de ídolos como Neymar ou de famosos como Elba Ramalho não deixem de presente para 2021 uma explosão de mortos. No apagar de 2020, passaram de mil as famílias enlutadas pela Covid-19...
Que o fim da ajuda emergencial para os 48 milhões de brasileiros que não têm outra fonte de renda seja compensado de alguma forma pelo Estado, que, por pressão do Congresso e ação do Ministério da Economia, corretamente deixou de lado a prioridade fiscal para focar nas pessoas em 2020. Até o dia 31 de dezembro, silêncio. A partir de hoje, somos todos ouvidos.
Que, em 2021, as promessas de campanha de 2018 sejam levadas a sério e venham as reformas administrativa e tributária e as privatizações necessárias para modernizar a economia, melhorar a gestão, os serviços e os empregos. Até agora, a queda de braço entre Planalto e Economia imobilizou os avanços. Em 2021, o ministro Paulo Guedes não tem alternativa: ou perde ou ganha; ou fica e faz ou vai para casa.
Que também as promessas de campanha dos prefeitos que tomam posse nesta sexta-feira, 1º, sejam cumpridas e eles tenham responsabilidade, prudência, cuidado com a coisa pública, respeito ao cidadão e um olhar generoso e estratégico para suas cidades. É nelas, afinal, que tudo acontece. Onde tudo desaba.
E que a Amazônia, o cerrado e os nossos biomas sobrevivam, a Educação ande para a frente, não para trás, a cultura não seja demolida, a política externa entre no eixo do pragmatismo e do interesse nacional, na onda benfazeja que a vitória de Joe Biden trouxe ao mundo. Não é pedir muito, mas é difícil acreditar que vá prevalecer...
Enfim, um “muito obrigada” e um voto especial para os nossos valorosos profissionais da saúde e para você, que nos lê, ora concorda, ora discorda, mas está atento e forte para proteger o nosso Brasil, os nossos brasileiros, os nossos avanços civilizatórios. Saúde, vacina, emprego, paz, felicidade e democracia, o nosso bem maior!
Fernando Gabeira: Soberania em Nova York
Discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. Bolsonaro será exceção
Os discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. É a abertura da sessão, quase uma formalidade. O de Bolsonaro tende a ser uma exceção. Não por suas qualidades oratórias, mas pelas circunstâncias que o cercam.
Leio que o tom do discurso será conciliatório, com ênfase na defesa da soberania. Um tom conciliador é sempre bem recebido. O próprio conceito de soberania nacional, embora definido há séculos por Jean Bodin, foi ratificado no pós-guerra pela ONU ao reconhecer o direito de autodeterminação dos povos.
Em termos diplomáticos, Bolsonaro tem dito barbaridades, se consideramos que fala pelo País. Zombou da mulher de Macron, ironizou a Alemanha, criticou a Noruega e defendeu a ditadura de Augusto Pinochet. Pesa contra ele, também, sua desconfiança da ONU e de instrumentos internacionais, incluídos os que trabalham com as mudanças climáticas.
Embora outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal, estejam igualmente em chamas, a questão da Amazônia é a mais importante. O exercício da soberania nacional sobre um governo que administra uma extensa área indispensável ao planeta coloca inúmeras questões.
Como se vê a soberania no Brasil? É um debate que existe também nos EUA. Nele, ambas as partes defendem a soberania. Mas uma delas a vê fortalecida com a cooperação internacional e a outra, com o isolacionismo. Como Bolsonaro navegará entre esses polos não sei exatamente.
O conceito puro de soberania vem sendo questionado. Lembro-me da primeira menção a esse questionamento numa conferência na Holanda. Já naquele momento Mitterrand experimentava a expressão soberania limitada, aplicável em pelo menos dois setores: a destruição do meio ambiente e o desrespeito maciço dos direitos humanos.
Agora, no cenário norte-americano, vejo uma nova forma de questionar a soberania. Enquanto alguns senadores falavam em boicote comercial, alguns articulistas e acadêmicos afirmaram que a destruição da Amazônia é um ataque à segurança nacional dos EUA. Um deles afirmou que as queimadas podem ser vistas como arma de destruição em massa.
Tudo isso se dá no campo democrático. Mas é o que vai disputar as eleições com Trump e, segundo as pesquisas, com chances de vitória, embora seja muito cedo para falar disso.
Aos poucos, a questão não é mais o conceito de soberania a ser questionado, mas posto contra outro de grande alcance nos EUA: a segurança nacional.
A expressão arma de destruição em massa certamente é um cálculo sobre os prejuízos humanos e ambientais. Pode-se discordar da análise. Mas o fato é que se trata de uma expressão perigosa, o Iraque que o diga. Com ou sem armas de destruição em massa, Saddam Hussein foi para o espaço.
Bolsonaro já é uma espécie de vilão na imprensa internacional. Trabalhou para isso e parece não se importar muito com as consequências para a imagem do Brasil. Afinal, os estrangeiros não votam.
A julgar pelas intervenções do ministro Ernesto Araújo, o tom será de negação das mudanças climáticas, inexistentes ou exageradas. Segundo ele, a Nasa não consegue distinguir uma queimada de uma fogueira. Seus sensores devem pirar no Nordeste com as festas juninas.
Li que Araújo será o principal formulador do discurso. Li, também, que Araújo consultou Steve Bannon para se inspirar. Bannon certamente vai querer fortalecer uma coalizão de extrema direita da Hungria ao Brasil, passando por partidos como o de Marine Le Pen, na França, e pela extrema direita latino-americana. Se isso transparecer no discurso de Bolsonaro, será um contrabando, uma vez que o partido de Bolsonaro pode ser de extrema direita, mas a política nacional, não. É a mesma cantilena do passado, a dificuldade no governo do PT de levar uma política internacional diferente da visão partidária.
Esta passagem por Nova York, embora breve, é um teste para Bolsonaro, com repercussões em nossa vida política. Ele já pensou em visitar a cidade em outras circunstâncias. Numa delas, iria ao Museu de História Natural, onde seria homenageado. Foi rejeitado.
Imagino que as pessoas em Nova York não se importem muito com o que acontece na ONU nem se interessam pelos discursos que se fazem ali. Mas desta vez, creio, a presença de Bolsonaro falando como presidente do Brasil interessa aos jornais e à televisão. Impossível prever um desfecho, mas dentro dos limites é possível elaborar sobre o contexto em que esta fala de Bolsonaro se coloca.
Lembro-me das críticas a Sarney por citar um obscuro poeta maranhense no seu discurso na ONU. Pecado venial, mesmo porque não estavam prestando tanta atenção assim a um discurso protocolar. Os tempos de terraplanismo, negação do aquecimento global, da diversidade da culturas – enfim, tantas armadilhas – podem nos fazer sentir saudades dos tempos em que o único reparo era o nome de um poeta maranhense.
Um caminho que me parece correto seria reconhecer a legitimidade da preocupação internacional com a Amazônia, e não descartá-la apenas denunciando interesses escusos. Outro passo seria contar com a cooperação de outros países para preservá-la de forma sustentável e inclusiva.
Não há contradição entre cooperação multilateral e soberania, desde que os objetivos sejam idênticos: manter a floresta em pé, recompor parte dela, explorar seus recursos de forma sustentável, melhorar as condições de 28 milhões de pessoas em nove Estados do País.
Esta me parece ser a posição de todos os governadores da Amazônia Legal. Falando em nome do Brasil, Bolsonaro não pode ignorá-la. E teria de defendê-la de forma bastante convincente, pois todos os olhos e ouvidos são conhecedores de sua biografia política.
Estarão esperando um lance para reconhecerem o Bolsonaro que têm na cabeça. Seria preciso que desaparecesse por trás de um discurso sensato. Mas tenho minhas dúvidas.
O Estado de S. Paulo: Uso de água no País deve crescer 24% até 2030
Situação resulta do processo de urbanização, expansão da indústria, agronegócio e economia, conforme estudo feito por agência nacional
Por André Borges, de O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Na próxima década, o aumento do consumo de água tratada no Brasil é um dos fatores que deverá amplificar os problemas causados pelas estiagens prolongadas e a precária infraestrutura nacional de distribuição. Até 2030, o uso da água terá um crescimento de 24% sobre o volume atual, resultado do processo de urbanização, expansão da indústria, agronegócio e economia.
A informação faz parte do estudo Conjuntura dos Recursos Hídricos - 2018. O Estado teve acesso aos principais dados do levantamento elaborado anualmente pela Agência Nacional de Águas (ANA). O material deve ser divulgado nesta semana.
A retirada total de água no País para consumo foi de 2.083 metros cúbicos por segundo (m³/s) em 2017. O principal destino dessa água foi o agronegócio. A irrigação respondeu por 52% do volume total, além de outros 8% serem utilizados para a criação de animais. O abastecimento humano nas cidades representou 23,8% do consumo, seguido pela indústria (9,1%), usinas termoelétricas (3,8%), abastecimento rural (1,7%) e mineração (1,6%).
As regiões hidrográficas que apresentam a maior retirada são as da bacia do Rio Paraná (496 m³/s), seguida pela bacia do Atlântico Sul (305 m³/s) e pela bacia do São Francisco (282 m³/s). Juntas, essas regiões são responsáveis por aproximadamente 52% da retirada total de água no Brasil.
Marcelo Cruz, diretor da ANA, afirma que a projeção de crescimento é preocupante, apesar de o País ter registrado um avanço de 80% no total de água nas últimas duas décadas. “A perspectiva de crescimento é elevada e inspira um sinal de alerta, para que tenhamos uma gestão compatível. Não significa que estejamos em um cenário fora do controle, porque nossos números de oferta de água são confortáveis”, diz Cruz. “Por outro, há muito a ser feito. Mais da metade das águas que retiramos dos nossos mananciais e produzimos não chega ao consumidor, por problemas de infraestrutura.”
Reservatórios
As chuvas de 2018 têm colaborado para a recuperação de alguns dos maiores reservatórios de água do País, como Sobradinho (BA) e Furnas (MG), apesar dessas barragens necessitarem de mais algumas temporadas com grande precipitação para recuperarem seus níveis regulares.
Há exatamente um ano, o lago de Sobradinho, principal reservatório da Região Nordeste, localizado no Rio São Francisco, estava com apenas 4% de sua capacidade total de água. Hoje esse volume está em 29%. O reservatório de Furnas, o “mar de Minas” que banha 34 municípios mineiros, estava com 10% de seu volume máximo de água um ano atrás. Hoje acumula 24% em sua barragem.
Neste ano, as precipitações também têm sido favoráveis ao reservatório do Rio Descoberto, lago localizado a 50 quilômetros de Brasília, que abastece mais de 60% do consumo do Distrito Federal. Um ano atrás, o Descoberto agonizava com só 5,3% de seu potencial.
Na segunda-feira, 17, conforme dados da Agência Reguladora das Águas (Adasa) do DF, chegou a 97% de sua capacidade. A melhora levou a agência a anunciar que, a partir da próxima sexta-feira será declarado o fim da “situação crítica de escassez hídrica” no Distrito Federal. O governo do DF havia oficializado a situação crítica do abastecimento dois anos e três meses atrás, em 16 de setembro de 2016.
‘Tinha de usar só a metade do que a gente precisava’
O pequeno agricultor Shedeon de Souza Nascimento viu sua lavoura secar um ano atrás, às margens da represa do Descoberto, a 50 quilômetros de Brasília. A estiagem prolongada, que castigou a maior parte das regiões Centro-Oeste e Nordeste do País nos últimos cinco anos, fez sumir o lago que margeava a sua plantação de verduras. Um ano atrás, a barragem do Descoberto encarou seu pior índice desde o início da série histórica, iniciada 31 anos atrás, atingindo apenas 5,3% do seu volume útil.“Perdi quase tudo. Normalmente, a gente consegue plantar quatro hectares de verduras. No ano passado não chegou a dois hectares. Tinha de usar só metade da água que a gente precisava. Foi uma tristeza. Estou aqui há 14 anos. Nunca vi nada igual”, conta Nascimento, que utiliza um poço artesiano próximo à barragem para regar a plantação.
A irrigação deverá ampliar ainda mais a sua fatia no consumo nacional de água, pressionando a busca por “novas fronteiras hídricas”, afirma Sergio Ayrimoraes, superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA). “Sabemos que as áreas com água mais acessível já foram ocupadas e o agronegócio começa a avançar para regiões onde, naturalmente, haverá mais conflitos. Daí a fiscalização ser essencial”, diz.
“Por outro lado, vemos grandes produtores buscando tecnologias para o consumo mais eficiente de água, o que deve ser ampliado”, acrescenta ele.
Na avaliação de Ayrimoraes, o próximo ano deverá apresentar uma situação, em geral, mais amena do que a vivida nos últimos cinco anos quanto à disponibilidade de água. “Neste ano de 2018 já houve sinais de melhora, tivemos algumas ações de infraestrutura. Devemos passar um 2019 sem sustos, mas o alerta deve ser constante.”
Para lembrar
Em fevereiro, com base em dados da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), o Estado mostrou que, mesmo após dois anos do fim do racionamento, o consumo na região metropolitana ainda é 15% menor do que era antes do início da seca que assolou o Cantareira a partir de fevereiro de 2014. Na época, a empresa lançou o programa de desconto na conta para reduzir o gasto.
João Domingos: Parto de antagonistas
Haddad e Lula omitem os dois últimos anos, quatro meses e 12 dias do governo Dilma
Em um encontro com artistas na quarta-feira, o candidato Fernando Haddad (PT) sugeriu que Jair Bolsonaro (PSL) seja encarado como “um parto necessário para o desenvolvimento”. Haddad disse que outras nações, hoje tão respeitadas, “tiveram seus momentos dramáticos”, o que para ele é algo semelhante ao que o Brasil está passando agora.
O voto conservador não é uma novidade nem no Brasil nem em lugar nenhum do mundo. Por aqui faltava-lhe, no entanto, um guia. Guia que se construiu à sombra do governo de 14 anos, quatro meses e 12 dias de um movimento político que ficou conhecido como lulopetismo, o petismo com o culto à personalidade de Lula.
Assim como militantes de vários partidos clandestinos de esquerda, parte da intelectualidade e da academia, do clero progressista e do movimento sindical apostou no final da década de 1970 e início da década de 1980 no surgimento de um líder forte, capaz de unir forças dispersas pela ditadura militar, e esse líder foi Lula, os conservadores fizeram movimento semelhante assim que o PT chegou ao poder, em 2003. A diferença é que Lula e os que o apoiaram fundaram um partido para se tornar força hegemônica na esquerda. Os conservadores preferiram se aglutinar em torno de um deputado que, por suas posições polêmicas, machistas, homofóbicas, xenófobas, contrárias à esquerda e em defesa da ditadura militar, passou a encarnar o anti-PT e o anti-Lula. Se Lula serviu de instrumento para a ascensão de uma força política à esquerda, Bolsonaro fez o mesmo papel, à direita.
Ao longo do tempo, Lula engoliu todos os que o instrumentalizaram, afastou José Dirceu e Antonio Palocci de seu caminho, e impôs as candidaturas de Dilma Rousseff à Presidência da República e de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo e, agora, à Presidência. Bolsonaro ainda terá de provar se tem força para fazer o mesmo.
O PT soube tirar proveito político das grandes manifestações ocorridas durante a ditadura, como a marcha pelas Diretas-Já. Vai tentar fazer o mesmo com o protesto de mulheres programado para hoje, intitulado #EleNão. Bolsonaro, da mesma forma, tirou proveito dos protestos de milhões durante as jornadas de junho de 2013, inicialmente contrárias ao aumento do preço das passagens de ônibus, depois contra a realização da Copa das Confederações e da Copa do Mundo. Posteriormente, já em 2015, ele surfou na onda do desastre do governo de Dilma Rousseff, o que acabou por levar novamente milhões de pessoas às ruas, agora em apoio à Operação Lava Jato, contra a corrupção e pelo impeachment da presidente petista.
Durante tempos muitos tentaram entender o que foi que levou tanta gente às ruas em 2013. Hoje talvez seja possível entender um pouco o que aconteceu. O jeito petista de governar, com o forte aparelhamento da máquina pública que teve por objetivo pôr o Estado a serviço de um partido, fez com que surgisse uma força de reação na sociedade, uma força que não sabia direito o que queria. Só sabia que estava de saco cheio de alguma coisa, do discurso do nós contra eles adotado pelo PT e que não levava a lugar nenhum. Eleitores de centro, acostumados a votar no PSDB na longa polarização com o PT, pularam para o lado direito e foram engrossar as tropas de Bolsonaro. De forma que, quando o mundo político percebeu, o capitão reformado já estava léguas à frente.
Veja-se que na propaganda partidária tanto Haddad quanto Lula dizem que durante 12 anos o Brasil viveu seus melhores momentos. Eles omitem os últimos dois anos, quatro meses e 12 dias do governo de Dilma, a marca de um desastre que ajudou a consolidar Bolsonaro politicamente.
Denis Lerrer Rosenfield: A esquerda em riste
Essa histérica cruzada contra a direita não passa de uma simples manobra diversionista
A histeria anti-Bolsonaro, conduzida pela esquerda e por setores da classe média politicamente correta, está chegando ao paroxismo. Aumenta na proporção em que o candidato avança nas pesquisas, sendo um sério pretendente a ocupar a cadeira de presidente da República. Quem apostava que a bolha iria estourar está alarmado com seu tamanho e resistência. Os nostálgicos da polarização PT x PSDB literalmente não sabem o que fazer. É toda uma maneira de pensar e agir que está sendo questionada.
A qualificação de extrema direita está sendo de grande comodidade para todos os que continuam presos a seus velhos esquemas de pensamento. É como se Jair Bolsonaro fosse uma espécie de personificação do mal, que deveria ser extinta graças às boas intenções dos que se apresentam como “democratas”, seja lá o que esse termo signifique para boa parte deles. Alguns, açodados, já pensam numa aliança entre PSDB e PT para conjurar esse perigo. Ou seja, entre os social-democratas e os que levaram o Brasil ao fundo do poço, num assalto aos cofres públicos. As pautas social-democrata e social estão sendo usurpadas por aqueles que se caracterizaram por atividades criminosas, com a anuência de tucanos de boa consciência.
Há uma manobra diversionista em curso. O problema do Brasil seria Bolsonaro, e não o PT, com seu legado de PIB negativo, inflação em alta, juros estratosféricos, desemprego exorbitante, apropriação “privada-partidária” de empresas estatais e corrupção generalizada. Seriam esses, então, os “democratas” que procuram evitar a volta da “extrema direita”! “Democratas”, aliás, que não cessam de defender o “socialismo do século 21” de Chávez e Maduro, que conduziu a Venezuela a uma crise sem precedentes, caracterizada por sua essência criminosa e liberticida. São eles que se colocam na posição de dar lições aos demais. Santa paciência com tanta impostura!
Acrescente-se que são eles mesmos que sempre atacaram e atacam o processo reformista conduzido pelo presidente Michel Temer, como se estivessem lutando contra a “herança maldita” do atual governo, quando este nada mais fez do que resgatar o País da verdadeira herança maldita petista. De um lado, seria o governo Temer e, de outro, a candidatura Bolsonaro, como se eles fossem no presente e numa espécie de futuro antecipado os culpados pela crise atual. Trata-se de evidente transferência de responsabilidades, com o intento de encobrir o que foram os governos petistas.
Bolsonaro tem sido criticado por desconhecer economia. Seja dito a seu favor que ele reconhece esse fato e antecipou sua escolha do futuro ministro da Fazenda, o respeitado economista liberal Paulo Guedes, em eventual governo dele. É honesto em reconhecer a sua limitação. Desonestos são os que dizem conhecer economia. Haddad/Lula e Ciro Gomes não cessam de defender as patranhas econômicas que levaram o País ao desastre. Pretendem simplesmente repetir uma experiência fracassada. Aliás, Dilma é economista!
O mais bem-sucedido programa econômico da História recente do País é o Plano Real. Foi concebido e implementado pelo ex-presidente Itamar Franco, que desconhecia economia. Escolheu um ministro da Fazenda, Fernando Henrique, que tampouco conhecia economia. Teve, porém, o bom senso de escolher uma equipe econômica competente. Quando se tornou presidente, teve de abandonar suas convicções de esquerda ao escolher um ministro da Fazenda liberal, Pedro Malan, e depois de várias hesitações na política monetária terminou por optar por um economista liberal da mais alta reputação, Armínio Fraga, para o Banco Central. O desconhecimento de economia produziu belos resultados econômicos!
A questão dos valores também tem entrado em pauta na disputa eleitoral. Novamente a qualificação de extrema direita imputada a Bolsonaro procura tomar o lugar de uma discussão séria. Assinale-se, preliminarmente, que o candidato é produto do politicamente correto, contra o qual ele e boa parte da sociedade brasileira se insurgem. Não teria ele se tornado o fenômeno que é, não tivesse a esquerda procurado impor goela baixo suas concepções.
Tome-se o caso do direito à legítima defesa. Os pregadores - sim, no sentido religioso - do Estatuto do Desarmamento é que são os autoritários. Em consulta popular a sociedade brasileira tomou posição a favor do direito de autodefesa via posse de armas. E o que foi feito depois? Implementou-se por medidas administrativas uma política que contrariou frontalmente a vontade popular. Quem é, então, autoritário?
A população brasileira está indefesa. Os defensores do desarmamento continuam triturando as estatísticas, pois seu fracasso é evidente. Pedem mais do mesmo, quando não há nenhum resultado. A situação só piora no que respeita à segurança dos cidadãos. E o Estado não é capaz de defender seus membros, sendo direito deles defender a própria vida, os seus e seu patrimônio. Bandidos não precisam de armas compradas em loja e não seguem o tal do “estatuto”! Aliás, são seus aliados!
O politicamente correto desconhece limites. Nega ao cidadão um direito básico. Imaginem um produtor rural ou uma pessoa qualquer na zona rural. O que faz ao ser assaltado? Telefona para a Polícia Militar? Qual seria a provável resposta? “O senhor, ou a senhora, mora muito longe, é perigoso nos irmos aí pela noite, além de levar muito tempo! Amanhã tomaremos providências, assim que tivermos uma equipe para deslocamento”. A pessoa e a sua família estariam completamente abandonadas. Claro que muitos que defendem o dito desarmamento vivem em condomínios urbanos, com câmeras de segurança, guardas e até utilizam carros blindados.
Há questões de valores e princípios que estão sendo desconsiderados nesta histérica cruzada contra a extrema direita. Trata-se, simplesmente, de uma manobra diversionista!
* Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
Ricardo Vélez Rodríguez: 'O Estado fraturado'
Soberania popular sem limites é a fonte da deturpação do sentido do nosso republicanismo
A obra de Denis Rosenfield (O Estado fraturado – Reflexões sobre a autoridade, a democracia e a violência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2018, 273 p.) é um balanço, feito à luz da filosofia política e da sociologia, do drama vivido pelo Estado brasileiro nas últimas décadas, notadamente ao longo do ciclo lulopetista (2003-2016), que praticamente desmontou as instituições republicanas. A obra analisa este momento, abarcando as reformas que os Estados europeus sofreram ao longo do século 20, centrando a atenção na saga que a social-democracia percorreu nesse século. Em três capítulos (I – Democracia e autoridade; II – Autoridade estatal e retórica; III – O Positivismo e a política científica) e uma conclusão (A questão democrática), o autor desenvolve uma análise crítica e historiográfica que joga luz sobre os atuais momentos de perplexidade que se abatem sobre a Nação brasileira.
É deveras dramática a situação de anomia vivida pelo Estado brasileiro após o ciclo lulopetista. Tal situação é assim caracterizada pelo autor: “O resultado é evidente: a dissolução da autoridade pública e o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Ou seja, em nome da democracia e dos direitos humanos, a própria democracia e os direitos humanos são pervertidos” (p. 29).
O desmantelamento institucional patrocinado por Lula e o PT produziu efeitos perversos para a economia do País. Eis a forma em que, sem meias-palavras, o autor denuncia o desmonte da economia nacional: “Do ponto de vista econômico, o País sofreu um processo de intervenção estatal progressiva na seara econômica, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato do presidente Lula. O Estado foi apresentado como um Poder demiurgo capaz de qualquer realização, conquanto seus recursos fossem também apresentados como ilimitados” (p. 78). A síntese de todos os males encontra-se, segundo o professor Rosenfield, na morte do espírito público, que constituiu uma entropia fatal para as perspectivas do Brasil como nação.
A tarefa de reconstruir as instituições republicanas esfaceladas pela aventura criminosa do PT no poder foi precariamente cumprida pelo transitório governo Temer, em decorrência da presença, no seio do Estado, no atual cenário, de atores políticos comprometidos com a velha ordem de coisas. Qual é a causa remota, situada na origem do Estado moderno, que, retomada na nossa tradição republicana, deu ensejo às atuais aventuras do populismo lulopetista, que se irmanam a outras desgraças vividas atualmente por povos latino-americanos, como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense?
Para o professor Rosenfield, o caminho errado tomado no Brasil pelo PT e coligados decorre de uma deformação da tradição social-democrata, que já tinha acontecido em alguns países europeus ao ensejo do esforço de reconstrução no segundo pós-guerra. A velha tradição liberal (que tinha animado aos social-democratas no início do século 20 com as reformas comandadas na Alemanha por Edward Bernstein) foi sendo em parte posta de lado, dando ensejo a um estatismo que crescia sobre os direitos individuais.
De maneira semelhante, na tentativa em prol de garantir o bem-estar geral no seio do Welfare State, os nossos socialistas consideraram que o caminho deveria ser o da hipertrofia do Estado. O Estado de Bem-estar Social poderia avançar, com legitimidade, sobre a propriedade dos cidadãos mais abastados, na tentativa de criar uma nova classe média com os outrora marginalizados e pobres.
O Estado inchado tinha legitimidade, em decorrência de os governantes petistas terem sido eleitos. O castilhismo, no Rio Grande do Sul, argumentava de forma parecida. Júlio de Castilhos defendia-se da acusação de ter-se desviado do constitucionalismo adotado na Carta de 1891, com o estatismo que tornou todos os poderes públicos reféns do Executivo. Ora, os reformadores castilhistas eram legítimos pois tinham sido eleitos!
Considero, contudo, que o arrazoado do professor Rosenfield não foi completo. Faltou analisar a fonte primeira desta tentativa estatizante surgida no seio do pensamento social-democrata. O precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque (em Principes de Politique, Paris: Hachette, 1997) colocou o dedo na ferida quando atribuiu a Rousseau a torta ideia de que a soberania popular não tem limites por ter emergido da “vontade geral”. Essa é, no meu entender, a causa da deturpação do sentido do republicanismo brasileiro, como deixei exposto na minha obra Castilhismo, uma filosofia da República, 2.ª edição, apresentação de Antônio Paim, Brasília: Senado Federal, 2010.
Quando os positivistas derrubaram a monarquia, fizeram-no a partir da convicção de que o poder estabelecido não tem limites pelo fato de encarnar a “vontade geral”. A aplicação sistemática desse princípio positivista à política nacional ocorreu por obra de Getúlio Vargas, que materializou a ideia da ausência de limites para a soberania, herdada do castilhismo. O Estado getuliano tornou-se uma entidade mais forte do que a sociedade, pelo fato de ter-se ancorado na ciência aplicada mediante os Conselhos Técnicos Aplicados à Administração.
À luz do Estado tecnocrático se justificariam todas as medidas excepcionais tomadas pelos donos do poder para financiar as operações do lulopetismo, como as pedaladas fiscais. E se explica, assim, de outro lado, a desfaçatez lulista que acha que não deve prestar contas a ninguém pelo fato de ter sido eleito. A soberania é limitada e se restringe à gestão do Estado no sentido de preservar os direitos inalienáveis dos cidadãos, que continuam gozando dos seus direitos à vida, à liberdade e às posses.
*COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF, É PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME, DOCENTE DA UNIVERSIDADE POSITIVO, LONDRINA. E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM
Jurandir Fernandes: O trem que não chega
Até 2028 dificilmente teremos esse transporte em importantes regiões metropolitanas do País
Parodiando Vinicius de Moraes, a vida é a arte dos encontros e as cidades são os espaços desses encontros. Milhões de brasileiros vivem em áreas urbanas em busca de oportunidades para trabalhar, estudar, fazer suas compras ou viver suas horas de lazer. A questão é: como se locomover nos espaços urbanos em busca desses encontros?
Em menos de 70 anos nossa população urbana decuplicou. Os desequilíbrios sociais, o oportunismo dos especuladores imobiliários, a ausência de planos urbanos ou o descumprimento das regras de ocupação do solo fizeram com que os aglomerados urbanos ocupassem extensas e esparsas áreas territoriais. Consequência: as cidades e regiões metropolitanas do País requerem altos custos de investimento e manutenção para ampliar ou manter suas infraestruturas.
O Brasil tem cerca de 40 cidades com mais de 500 mil habitantes que dão origem a aglomerados urbanos ou regiões metropolitanas. Metade da população brasileira vive nos espaços metropolitanos e é por óbvio que neles se concentram a maior parcela da produção nacional. Tudo é superlativo nas regiões metropolitanas, inclusive os problemas, a começar pela mobilidade dos que nelas buscam as oportunidades existentes.
Apesar da crise econômica, os congestionamentos estão se espraiando para além das fronteiras das regiões metropolitanas. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador, para ficarmos em alguns exemplos, todos os dias ocorrem imensos congestionamentos nas rodovias que lhes servem de acesso. Pessoas e mercadorias, em carros, ônibus ou caminhões, se arrastam por quilômetros num desperdício de tempo e energia imensurável. Se o Brasil voltar a crescer, mesmo que a taxas inexpressivas de 2% a 3% ao ano, e sabendo que o transporte de mercadorias e a mobilidade das pessoas aumentam a taxas maiores que a do crescimento do PIB, a saturação de importantes rodovias que acessam nossas principais regiões metropolitanas poderá ocorrer nos próximos oito anos.
Tomemos como exemplo o eixo rodoviário Anhanguera-Bandeirantes, onde nos horários de pico há trânsito lento em trechos entre Campinas e a capital. A concessionária que o administra tem cumprido o estabelecido. Obras de ampliação foram feitas. As Marginais Tietê e Pinheiros e seus acessos foram recentemente ampliados. Como esperado, os congestionamentos voltaram. O que fazer perante o cenário que se vislumbra daqui a menos de dez anos? Vamos continuar ampliando essas rodovias com novas faixas de tráfego? Haverá espaço para isso? A malha viária paulistana terá capacidade de absorver este acréscimo de tráfego?
Estas mesmas questões podem ser dirigidas a outras regiões metropolitanas. Provavelmente, a resposta será unânime: precisamos investir (e muito) em transporte ferroviário. Se todos concordam, resta agir já: ampliando o serviço das ferrovias e terminando as obras iniciadas. No caso dos trens regionais de passageiros, faço minhas as palavras de Jaime Lerner: “Perdemos um tempo incrível elaborando diagnósticos exaustivos, tentando ter todas as respostas antes de começar. Há uma grande diferença entre ter uma boa leitura da realidade, a fim de ‘não errar o problema’, e a covardia de se esconder atrás de burocracias protelatórias que nos esquivam de tomar posições” (Brasil: o futuro que queremos, Ed. Contexto, 2018). Ao lado da covardia, acrescentaria a conduta de má-fé no sentido de não colaborar com governos considerados adversários. Como explicar os anos de embromação do Ministério dos Transportes e da Secretaria do Patrimônio da União não repassando as áreas lindeiras às faixas operacionais do trecho ferroviário entre São Paulo e Campinas, mesmo já tendo parecer favorável da Advocacia-Geral da União? A má-fé é explícita: o governo federal precisava impedir um trem regional neste trecho para viabilizar o Trem de Alta Velocidade.
Dificilmente teremos trens regionais operando em importantes regiões metropolitanas antes de 2028. Por quê? Os novos governos assumirão sob um quadro macroeconômico desastroso. Devemos, portanto, aproveitar 2019 para ao menos equacionar as pendências administrativas entre Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e os Estados que já têm estudos avançados de trens regionais.
Sendo otimistas, deveríamos a partir de 2020 contratar os projetos de engenharia (básico e executivo) e ambientais (EIA-Rimas). Em seguida, apurar o custo das desapropriações e publicar os decretos de utilidade pública das respectivas áreas. Em 2023, supondo uma melhoria nos indicadores econômicos do País e que o funding do empreendimento esteja equacionado, que os projetos de engenharia estejam prontos, que a Licença Ambiental Prévia tenha sido obtida e as principais áreas físicas desapropriadas e liberadas, iniciam-se as licitações de obras ou de parcerias público-privadas. Com sorte, os contratos poderão ser assinados em 2024. Sim, sejamos otimistas.
Em paralelo, dezenas de outras licitações deverão ser feitas para a compra dos trens e dos sistemas operacionais. Sob hipótese de que não ocorram contratempos, iniciam-se os testes dos equipamentos, a contratação e o treinamento das equipes operacionais em fins de 2027. A operação comercial poderá ter início em 2028.
Até lá, qual a solução para suportar o crescimento do tráfego nas rodovias? Teremos de apelar para o rodízio de placas para os automóveis nas principais estradas? Ao mesmo tempo, criar faixas exclusivas para os ônibus rodoviários e fretados? Abrir a operação a partir de aplicativos digitais? Criar bolsões de estacionamento integrados aos ônibus rodoviários e fretados nas cidades vizinhas às grandes metrópoles? É prudente começar a estudar cenários emergenciais desde já para que possamos testá-los o mais breve possível.
*É PRESIDENTE DA UNIÃO INTERNACIONAL DE TRANSPORTES PÚBLICOS-AMÉRICA LATINA
Claudio Adilson Gonçalez: A excêntrica teoria econômica dos políticos
O que se viu na sabatina dos candidatos presidenciais, realizada pela CNI, foi um festival de impropriedades
Não se pode exigir que os discursos econômicos de candidatos sejam fiéis à boa teoria econômica. Afinal, após as sugestões dos assessores econômicos, as propostas passam pelo crivo dos marqueteiros e se mesclam com as crenças e estilo próprios do postulante ao cargo eletivo, não necessariamente um expert em assuntos econômicos. O que se viu na sabatina dos candidatos presidenciais, realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), no dia 4 deste mês, foi um festival de impropriedades, não muito diferente do ocorrido em outras campanhas eleitorais.
Dado o espaço da coluna, limito a análise a apenas um ponto, agora defendido por Ciro Gomes, mas que também estava presente no discurso de Geraldo Alckmin, nas eleições de 2006. Refiro-me ao diagnóstico de que o baixo crescimento brasileiro decorre do desalinhamento de dois preços fundamentais da economia, a saber, juro e câmbio. As elevadas taxas de juros e o real apreciado teriam inviabilizado as exportações, provocado déficits em conta corrente e promovido a desindustrialização.
Está embutida nesse diagnóstico a crença de que o ideal para o Brasil é o chamado modelo de crescimento induzido pelas exportações (export led growth, no jargão em inglês). Tal modelo deriva naturalmente para propostas de ativismo governamental, principalmente subsídios a indústrias com potencial exportador e ações para manter a moeda doméstica depreciada, resultando na geração de expressivos saldos positivos em conta corrente.
Ciro Gomes, na sabatina da CNI, vai ao extremo, ao afirmar que em seu governo a taxa de câmbio será mantida sempre em nível que estimulará as exportações, enquanto os juros, especialmente os de curto prazo, serão fixados em patamar baixo. Em seu entender, a taxa Selic é estabelecida em nível elevado “apenas para atender aos interesses dos rentistas”.
Há vários problemas com propostas dessa natureza. De início, administrar juros para baixo e câmbio para cima enterra a ideia de metas de inflação e de livre flutuação cambial, duas pernas fundamentais do tripé que garantiu o controle da inflação e o fim das crises cambiais. Níveis de juros e câmbio não podem ser escolhas arbitrárias do governo. Eles dependem de fatores externos e internos, como taxa internacional de juros, cotação do dólar americano em relação a uma cesta relevante de moedas, relação de trocas, maior ou menor aversão internacional ao risco, o próprio nível do risco soberano, evolução da dívida pública e expectativas de inflação, para citar os principais. Desrespeitar a consistência macroeconômica dessas variáveis geralmente resulta em aceleração inflacionária e retração do crescimento econômico.
Mas há outro problema sério com a adoção desse modelo exportador para o Brasil. Superávit em conta corrente equivale à exportação de poupança doméstica (possível quando o País poupa mais do que investe), enquanto déficit é o mesmo que importação de poupança externa (nesse caso, o investimento é maior que a poupança doméstica).
O problema é que nossa taxa de poupança bruta é muito baixa (14,8% do PIB, em 2017) e isso se deve a razões estruturais, tais como, poupança pública negativa, nível baixo e concentrado da renda, atuais sistemas de Previdência social e de proteção ao desempregado, fatores culturais, instabilidade macroeconômica, entre outras. Assim, o aumento da taxa de investimento em relação ao PIB, fundamental para o crescimento sustentado, exige ou a rápida elevação da taxa doméstica de poupança, o que não é factível, ou a importação de poupança externa, na forma de déficit em conta corrente.
Se a economia estiver em pleno-emprego, tentar aumentar o crescimento com estímulos à exportação, sem elevação da poupança doméstica, será inútil. O que vai se colher é mais inflação e menos crescimento.
* Claudio Adilson Gonçalez é economista e diretor-presidente da MCM Concultores. Foi consultor do Banco Mundial, subsecretário do Tesouro Nacional e chefe da Assessoria Econômica do Ministério da Fazenda.
Rodrigo Augusto Prando: A ‘greve’ dos caminhoneiros e a lógica do ‘quanto pior, melhor’
No campo semântico encontra-se, em esforço, ‘greve dos caminhoneiros’, ‘paralisação dos caminhoneiros’, ‘crise de desabastecimento’, ‘locaute do setor empresarial’.
Independente da semântica, a situação que a sociedade brasileira vivencia é assaz grave.
Estruturalmente, somos ‘rododependentes’, dependemos do modal rodoviário em detrimento das ferrovias e hidrovias. Em termos de conjuntura política, cabe, sem titubear, questionar a quem interessa a lógica do quanto pior melhor. A quem interessa?
Sabidamente, o Governo Temer é fraco, impopular, com uma equipe aquém do se esperaria tanto no campo da comunicação institucional ou da prática política.
As denúncias da Procuradoria Geral da República fizeram com que Temer gastasse seu pouco capital político para não ser investigado e, possivelmente, afastado da Presidência.
Com isso, sua visão, obnubilada, não teve a visada necessária a compreensão da gravidade da crise que se avizinhava tendo como ponto fulcral os caminhoneiros.
As condições laborais e nas estradas brasileiras são, sem dúvida, cruéis aos caminhoneiros. Mas, nem de longe são, de todos os trabalhadores, os mais precários ou explorados.
Com isso, pode-se, peremptoriamente, afirmar que uma paralisação ou uma greve seria justa e legal, mas o que vemos já passou da legitimidade e dos interesses de trabalhadores.
Não bastasse as claras digitais da classe patronal num locaute, veio à tona que, no momento, os interesses estão, entre outros, na demissão de Pedro Parente da Petrobrás (com anúncio de greve dos petroleiros, cujo sindicado tem ligações conhecidas com partido político), a mudança dos critérios do preço dos combustíveis e, pasmem, a retomada do ‘Fora Temer’.
Assim, novamente, a quem interessa com pouco mais de quatro meses para as eleições, retirar Temer do poder?
Temer é fraco, ruim, isso é fato público; mas, nem de longe, pode ser comparado, por exemplo, ao Governo Dilma, muito, muitíssimo pior.
Sem pudores em ter se transformado numa ‘fábrica de narrativas’ e não mais num partido político, petistas, agora, chegam a afirmar que a gasolina e diesel estão mais caros com Temer do que eram com Dilma.
Querem apagar, como regimes autoritários, a recente realidade de incapacidade de gestão, populismo e corrupção que arrebentou a Petrobrás na era ‘lulopetista’.
Há muito, alhures, já se afirmou que o brasileiro não gosta de capitalismo, gosta de um Estado hipertrofiado e benevolente com uns à custa de todos.
Não nos enganemos, pois! Derrubar Temer e apostar na lógica do quanto pior melhor não está no horizonte dos democratas, dos liberais, da esquerda democrática, dos sociais-democratas. Não. O quanto pior melhor está mais próximo das posturas autocráticas, à esquerda e à direita. E, nesse caso, pode-se imaginar uma ferradura em que os extremos estão nas pontas mais próximos do que distantes, numa visão anacrônica, num Estado intervencionista, no discurso da ordem, da força, da hierarquia.
A quem, caro leitor, interessa essa situação: Petrobrás derretendo na bolsa de valores, os agentes do mercado elevando os riscos políticos no Brasil, a melhoria da economia que era lenta já está perdida neste ano, alimentos estragados, milhões animais mortos, preços de produtos exorbitantes?
Os caminhoneiros autônomos, certamente, tinham demandas, mas foram instrumentalizados por interesses bem distantes dos seus. Há um desencontro da história, da realidade, com a consciências social de indivíduos e grupos.
Perdemos, todos, sempre, pois o custo chegará.
*Rodrigo Augusto Prando é cientista Político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp/FCLAr
Aloísio de Toledo César: Cuba muda de chefe, mas não de governo
Com Miguel Díaz-Canel o povo continuará na pobreza e sem a menor esperança de liberdade
Para quem ama a liberdade e o Estado de Direito torna-se profundamente desanimador verificar que a população cubana continuará condenada a viver num país pobre, constituído por famílias pobres. Sem eleições livres que permitissem a escolha do supremo mandatário da ilha, viu-se chegar ao poder alguém que não difunde a menor esperança de liberdades e declara, sem corar, que terão continuidade a estatização e o comunismo.
O novo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, ao assumir o cargo deixou claro que haverá pouco espaço para o capitalismo, ou seja, a população cubana está mesmo condenada a viver com o salário de uns poucos dólares mensais. Ele demonstrou ter espinha mole, ou seja, anunciou curvar-se ao poderio ditatorial dos Castros, a ponto de declarar que Raúl continuará à frente do Partido Comunista Cubano (isso equivale a dizer que o novo presidente não mandará nada).
Essa situação é realmente infeliz para o povo cubano, sobretudo porque os dirigentes do Partido Comunista da ilha não têm a mesma inteligência dos comandantes do Partido Comunista Chinês. O comunismo nunca deu certo em lugar nenhum do mundo, nem mesmo na Alemanha Oriental, povoada por pessoas disciplinadas e com bom nível cultural.
Somente na China, a partir da opção de economia capitalista de mercado, houve expansão econômica e geração de riqueza. Antes da chegada ao poder de Deng Xiaoping, a China era economicamente travada, como Cuba, mas, com sabedoria e inteligência esse líder passou a pagar um pouco mais a quem produzisse um pouco mais.
Incrível, isso era a descoberta do lucro, mola propulsora do capitalismo, algo que a falta de sensibilidade russa jamais conseguiu entender durante o longo período de comunismo. Como resultado do uso da inteligência, a China tornou-se uma potência econômica, dirigida, paradoxalmente, por um partido comunista.
Em Cuba, o mais grave é que a ideologia, imposta de cima para baixo, sempre conduziu à lavagem cerebral das crianças, fazendo-as ser dirigidas desde a escola primária a endeusar Fidel Castro e seu irmão Raúl.
Pensar livremente talvez seja mesmo perigoso nesse país, assim como era na extinta União Soviética, e por isso a quantidade de detenções arbitrárias, por divergências do regime, continua a ser um problema dos mais graves, que afugenta os países amantes da liberdade e do Estado de Direito. Informações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas dão conta de que as detenções arbitrárias subiram de 172 para 827 ao mês entre 2010 e 2016.
Além disso, os números alegados de pessoas executadas por oposição ao castrismo são altos, mas, lamentavelmente, nunca podem ser confirmados porque a falta de liberdade na ilha não permite o acesso a tais estatísticas. Sem nenhuma dúvida, por não se submeter ao respeito aos direitos humanos, Cuba continua a enfrentar o distanciamento da maior parte das nações desenvolvidas.
Os aliados mais próximos dos cubanos nos dias atuais são a Venezuela, fornecedora de petróleo ao regime castrista, e a Rússia, que também caminha para uma espécie de isolamento da comunidade internacional, por sua notória devoção ao governo sírio. Esses apoios são frágeis demais para impulsionarem Cuba e fazê-la merecer estímulos econômicos.
Nem os esforços de Barack Obama, quando presidente dos EUA, influíram na posição repressora do governo da ilha contra quem comete o “pecado” de pensar de forma diferente dos Castros. Somente isso permite que a experiência revolucionária de tantos anos ainda se mantenha, à custa de medo e ameaças, como se fosse um chicote político a atingir opositores.
O curioso é que Fidel Castro, quando ganhou a atenção do mundo ao enfrentar de armas na mão o regime corrupto de Fulgencio Batista, não tinha o propósito de implantar um regime comunista. Realmente, o seu talento estava na capacidade de dirigir uma revolução, mas não de articular uma ideologia revolucionária bem definida.
Homem pragmático, não se deu ao luxo de idealizar um programa ideológico que se ajustasse às condições mutáveis de Cuba ou o apego ao comunismo, por exemplo. A Revolução Russa estabelecera o comunismo na Europa, a Revolução Chinesa fizera o mesmo na Ásia e por isso pareceu que a Revolução Cubana, com sua guerra de guerrilha, teria como doutrina revolucionária o comunismo. De início não foi assim.
Sob a influência de Fidel, Guevara e Debray, entendeu-se inicialmente que as pretendidas revoluções na América Latina não poderiam seguir o padrão estabelecido quer pela revolução bolchevista, quer pela chinesa. Mas no dia a dia os líderes cubanos adotaram com leves mudanças os conceitos revolucionários nascidos naqueles países para ajustá-los às condições da ilha.
Fidel inicialmente não admitiu estar sob a influência de Marx, Lenin ou Mao. Mas em meados da década de 1960, num congresso da juventude em Havana, o ministro das Indústrias, Che Guevara, questionou: “Qual é a nossa ideologia?”. E respondeu: “Eu a definiria como marxista. Nossa revolução descobriu por seus métodos os caminhos que Marx apontou”.
Logo após, Fidel concluiu que os objetivos da revolução não seriam atingidos a menos que a economia cubana fosse socializada. E em outubro de 1960 nacionalizou a maioria das empresas cubanas e norte-americanas. E fez a significativa afirmação: “Nós próprios não sabemos como chamar o que estamos construindo e não nos importamos com isso. É, naturalmente, alguma espécie de socialismo”. E era mesmo – um socialismo que manteve o povo cubano na mesma penúria dos tempos de Batista. Para não haver dúvidas de suas intenções, em 2 de dezembro de 1961, em famoso discurso, Fidel afirmou: “Eu sou um marxista-leninista”.
*DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL: ALOISIO.PARANA@GMAIL.COM
Vinícius Müller: Dos vícios de origem ao novo liberalismo
O maior desafio daqueles que realmente entendem e defendem o liberalismo é saber lidar com duzentos anos de confusão histórica daqueles que se acham liberais, mas não são
Em um pequeno trecho da obra O Liberalismo Antigo e Moderno (É Realizações, 2014), José Guilherme Merquior reconstrói com a maestria de sempre o debate entre duas lideranças argentinas de meados do século XIX. O pequeno capítulo, de nome “O Liberalismo Construtor de Nações: Sarmiento e Alberdi”, retrata o embate entre dois intelectuais que, de formas diferentes, vislumbravam a formação argentina a partir de um liberalismo que, não obstante sua filiação europeia, se articulava com características americanas e especialmente latino-americanas.
Após a longa ditadura de Juan Manuel Rosas, terminada em 1852, a Argentina se reconstruía entre dilemas fulcrais que opunham o mundo rural ao urbano, as províncias à capital Buenos Aires, a centralização ao federalismo, a influência europeia à norte-americana. Sarmiento, eufórico com sua experiência em terras da Nova Inglaterra e encantado com as ideias de seu amigo, o educador Horace Mann, entendia que a civilização, em oposição à barbárie, teria sua sustentação em uma mescla entre o civismo, a igualdade e a autoridade. As duas primeiras amparadas naquilo que os norte-americanos entendem como a sociedade civil organizada a partir da igualdade. Tal igualdade teria sido originada por uma romântica concepção de propriedade cujo primórdio repousaria na ocupação das terras do norte pelos puritanos fundadores da colônia. A mítica igualdade originalmente representada pela divisão da terra entre os primeiros colonos teria se transformado em igualdade de acesso a alguns direitos elementares. Para Sarmiento, assim como para seu amigo Mann, esse direito era o da escolaridade. Por isso, tanto um quanto outro foram árduos defensores do sistema público de educação básica, origem da alta escolarização e alfabetização de ambos os países. Em 1910 a taxa de alfabetização nos EUA alcançava o impressionante número de 92%. Na Argentina, em 1900, esta taxa alcançava 52% da população acima de 10 anos de idade. No Brasil, no mesmo ano, 25%.
Já para Alberdi o desenvolvimento norte-americano estaria amparado na indústria e na liberdade econômica, e não, necessariamente, no binômio propriedade e igualdade. Certo é que sua posição incluía uma forte influência do pensamento de John Locke e, por isso, Alberdi tendia a colocar a sociedade civil em posição superior ao Estado. Nesse sentido, poderia ser identificado com a crítica liberal ao estado patrimonialista, que, segundo ele, representava a herança negativa deixada pela Espanha na América. Assim, entendia que a liberdade externa garantida pela independência não significou liberdade interna. Ao contrário, havia uma mescla entre a liberdade forjada no velho continente e inspiradora dos processos de independência latino-americanos e a manutenção do patrimonialismo e do ‘pessoalismo’ herdados da Espanha e representados pelos caudilhos. O problema é que, diante das manifestações e revoltas de 1848 na França, a resposta do governo francês possibilitou que houvesse uma separação entre liberalismo e democracia. Exatamente a separação feita por Alberdi: a liberdade política não poderia dificultar a liberdade econômica e, consequentemente, o progresso. Entre liberdade e progresso, escolheria o segundo.
Foi essa combinação entre uma liberdade ‘externa’, que inspira a independência, e a ordem ‘interna’, que garante o progresso, que o liberalismo latino-americano se forjou, separando liberdade e democracia. Ou, de outro modo, aproximando o liberalismo econômico e governos centralizadores que, no limite, se transformaram em autoritários. É nesse ponto que, ambos, mesmo sendo adversários políticos e ideológicos, se encontram. Para Sarmiento, que foi presidente da Argentina entre 1868 e 1874, a civilização avançaria a partir de um direito – à educação – que, por sua vez, seria oferecido pelo Estado. Dessa forma, a ordem e a autoridade representadas e mantidas pelo Estado seriam, antes da liberdade e do avanço da democracia, os fundamentos do progresso. Já para Alberdi, a manutenção da ordem pelo Estado centralizado garantiria a liberdade externa e a liberdade econômica, fundamental para aquilo que entendia ser o progresso.
Os dilemas do liberalismo no século XIX argentino guardam algumas semelhanças com debates análogos em outros países. Não é incomum encontrarmos, na história brasileira, lideranças, personagens históricos e períodos marcados por essa combinação. Jose Bonifácio, liberal em sua radical defesa de liberdade dos escravos e de educação indígena, era, ao mesmo tempo, ácido opositor ao avanço dos direitos políticos relacionados à democracia na primeira metade do século XIX. O avanço da descentralização que culminou no federalismo a partir de 1891 não foi acompanhado pelo avanço dos direitos políticos e sociais. Quando esses direitos entraram de fato na agenda nacional o Estado era governado pelo autoritário e, eventualmente, ditador Getúlio Vargas. Dessa forma, a memória mais comum entre nós brasileiros, assim como entre nossos vizinhos argentinos, revela uma associação entre liberalismo e falta de democracia. Entre liberalismo econômico e conservadorismo político. Tamanha confusão já foi entendida como sendo a prova de que o liberalismo brasileiro e, no geral, latino-americano, seria uma ‘ideia fora do lugar’. Ou, por outro lado, este conservadorismo liberal que, segundo Merquior, resistia à maré democrática – seria a origem de uma cultura política que justifica o insucesso das instituições liberais na Argentina. E, diria, também no Brasil.
Por isso, não é de se estranhar que políticos com fundamentos autoritários se aproximem sem grandes constrangimentos de economistas com fundamentos liberais. Ou que políticos de variadas filiações evitem ser chamados de liberais. Entre os vários vícios de origem latino-americanos, o que inclui os vícios de argentinos e de brasileiros, a falta de clareza e a distorção dos conceitos do liberalismo estão entre os mais duradouros e que mais negativamente nos afetam. Uma das fragilidades da tese de que o liberalismo é uma ‘ideia fora do lugar’ reside na constatação de que a adaptação e a distorção que as ideias liberais sofreram em países como Argentina e Brasil tornam impossível que possamos afirmar a existência de liberalismo entre nós.
Esse talvez seja o desafio maior daqueles que realmente entendem e defendem o liberalismo: lidar com duzentos anos de confusão histórica daqueles que se acham, mas não são liberais; e daqueles que se opõem ao liberalismo sem mesmo o conhecer de verdade. Desafio, portanto, nada trivial. Ler José Guiherme Merquior, um convicto e autêntico liberal, pode ser um primeiro passo.
* Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.
Fernando Gabeira: Uma vitória de Pirro
Políticos inescrupulosos compreenderam logo que o momento é do banquete das hienas
Trabalhando ao ar livre, em lugares de pobre conexão, nem sempre sigo os detalhes da patética cena política brasileira. Mas quando tento recuperar tudo no fim de semana, saio com uma sensação de que não perdi muito.
No caso da sobrevivência de Temer, triunfou a tese da estabilidade. Eu já a havia combatido, em nome de um equilíbrio dinâmico que soubesse combinar a retomada econômica com a luta contra a corrupção. Minha tese foi derrotada. Mas parcialmente, porque ela afirmava também que a estabilidade sem luta contra a corrupção se transformaria no seu contrário, era mais inquietante ainda.
A sobrevivência de Temer significou um golpe num dos pilares da luta contra a corrupção: a transparência. Não poderemos saber o que aconteceu de fato. Mas estimulou a distribuição de verbas e cargos. Ela põe em risco a própria aspiração dos defensores da estabilidade, a redução dos gastos públicos. Temer tornou-se refém do Congresso.
E a conta não será alta apenas pelas emendas ou pelos cargos. Em todas as frentes os recursos do Estado serão disputados como um butim.
O projeto de Refis, que reescalona dívidas públicas, ganhou uma versão no Congresso que não só perdoa às vezes 99% do valor a ser pago, como representa uma perda de R$ 252 bilhões para os cofres públicos. Os sindicatos querem muito mais do que perderam com o fim do imposto sindical. Os partidos, um modesto fundo de R$ 6 bilhões para disputarem as eleições sem buscar apoio nos eleitores ou sequer usar a imaginação para se financiarem.
Quanto mais denúncias surgirem contra Temer, mais alta será a conta. As bocas estão abertas à espera de novas chances, na verdade, antecipando-se a elas. Temer quer o cargo, eles querem os recursos, estão unidos nessa sinistra versão de estabilidade.
Fixando-me apenas na esfera política: a sobrevivência de Temer pode representar também um golpe no futuro, bloqueando a renovação. Embora sejam governantes diferentes em contextos diferentes, a salvação de Temer e a constituinte de Maduro partilham um perigo comum: desmoralizar as eleições. No caso do ditador venezuelano, o objetivo é afastar a oposição, caminhar para um sistema de partido único e eleições quase unânimes, como em Cuba. No caso brasileiro, o objetivo é manter um sistema partidário falido, em que é possível escolher apenas entre visões políticas fracassadas.
A sobrevivência de Temer foi o passo dado com os olhos na relativa quietude das ruas. A indiferença é relativa, porque a opinião manifestou-se em pesquisas, estimulou o Congresso a desafiá-las, a impor sua própria agenda.
Concessões à bancada dos ruralistas, redução de áreas de proteção ambiental na Amazônia, discursos, ombros tatuados com a palavra Temer, caímos num parlamentismo do horror. Mas isso também é a armadilha que tecem para que as pessoas se afastem enojadas da política, concluam que aquilo é um universo paralelo, o melhor é ignorá-lo.
Veio o aumento da gasolina. Vem aí mais imposto. As pessoas não vão ignorar facilmente a máquina que devora o seu dinheiro.
A tentativa de criar um mundo tão repulsivo que a maioria se afaste dele é um dado na mesa. As eleições desta semana no Estado do Amazonas fazem pensar: uma forte abstenção e a disputa entre duas figuras do sistema falido.
Por outro lado, a existência desse mundo repulsivo pode estimular a vontade de mudança. São duas ideias em constante tensão: virar as costas ou tentar mudar. Ainda que leves no momento, ventos de mudança começam a soprar. Grupos em fusão discutem como participar, propondo candidaturas independentes. Muitos viveram no exterior, acham que precisam contribuir para o País, estão sintonizados com a revolução digital e rejeitam todos os métodos que arruinaram o sistema político brasileiro.
Por dever de ofício, continuarei acompanhando a cena brasileira, aos trancos no meio da semana, em detalhes no fim. Mas na conjuntura que se abre, o investimento maior é na possibilidade de renovação.
Olhar apenas para o que está aí é deprimente. É preciso um horizonte, conhecer o que se move, apontar possíveis conexões e até ajudar com a experiência vivida de erros e acertos. Todos os países nessas circunstâncias tendem a achar seu caminho de renovação. O Brasil seria um caso inédito de país que não se mexe com vigor quando é explorado por sistema partidário voraz pilotando dispendiosa máquina estatal.
Não se trata de algo solene do tipo ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil. Mas para muitos o dilema pode ser no futuro próximo: ou acabar com essa pilhagem ou se despedir do Brasil.
Apesar de partilharmos uma cultura, uma História nacional, não dá para nos sentirmos num país de verdade quando as quadrilhas pilham os seus recursos. Nem acreditar em justiça quando se anula, em nome da privacidade empresarial, um processo de Mariana, que trata de 19 mortes, centenas de pessoas expulsas de casa e um rio envenenado.
Ao aceitar a permanência de Temer em nome da estabilidade, mercado, empresários e até mesmo uma parte da imprensa não percebem a mensagem que enviam aos políticos inescrupulosos que reinam em Brasília. Eles são espertos o bastante para avançarem sempre que, por meio de atos repulsivos, conseguem a indiferença enojada da sociedade. Mas são mais espertos ainda para entenderem que mercado e empresários estão dispostos a pagar tudo pelo que consideram, erroneamente, a estabilidade.
Sem pressão da sociedade e com o beneplácito de um mercado imediatista, compreenderam muito rapidamente que o momento é do banquete das hienas. Todo esse desastre por causa da estabilidade, do medo de caminhar, paralisia com o mito de que sem Temer acabaria a reconstrução econômica e um PT na lona é o bicho-papão que voltaria ao poder.
* Fernando Gabeira é jornalista