O Estado de S. Paulo
Luiz Sérgio Henriques: O romance (em aberto) do nosso tempo
Não há autoria individual nem se pode discernir o espírito do mundo numa figura de herói
Uma parcela da grande arte do século passado e a reflexão que ela inspirou apresentam a estratégia de isolar artificialmente personagens em situações inesperadas a fim de captar mais e melhor suas reações e respostas aos desafios humanos fundamentais. Assim, por exemplo, a vida cotidiana está como que suspensa na Montanha mágica, de Thomas Mann, ou no Primeiro círculo, de Alexander Soljenitsyn. Num teatro “irreal”, disposto arbitrariamente num único lugar, que pode ser um sanatório ou um gulag, os dramas afloram e se acirram, as orientações de valor mudam num sentido ou no outro, a morte ou a sobrevivência se decidem com um grau de intensidade que é difícil ver em tempos normais.
Essa fina observação de Lukács, um velho comunista capaz de insights poderosos, misturados obviamente ao pesado jargão da tribo, pode talvez iluminar a trágica condição humana, aqui e agora, assediada como está pelo espectro da ruína e da morte. O teatro único em que nos encontramos - nós, de carne e osso, momentaneamente reclusos nas nossas casas - é o mundo inteiro, tal como definido pela globalização “neoliberal”. A unidade do gênero humano é já um fato denso, palpável, ineliminável, ainda que levada adiante pelas forças cegas da economia, deixando para trás a política, vale dizer, a capacidade de controlar minimamente tais forças e diminuir a opacidade do seu movimento.
Na circunstância inédita do mundo hiperconectado, a vida nos chega codificada em algoritmos, a desinformação torna-se uma estratégia conscientemente buscada por grupos extremos, a cacofonia das redes sociais ameaça abafar qualquer exercício de racionalidade, enquanto os políticos de profissão, mais visíveis, ocupam a ribalta e parecem reger o conjunto. Sua fala, porém, soa vazia e muitos confundem seus gestos com a agitação de marionetes. Há uma grita geral por faltarem grandes atores, mas a nota esperançosa é que, em situações críticas, os papéis podem variar e é preciso saber ler as mudanças ou até pequenos sinais delas.
Bufões dificilmente deixarão de ser o que são - nenhuma esperança para a generalidade dos líderes da extrema direita mais em evidência, subversivos da ordem democrática por definição. Mas Emmanuel Macron, um democrata, surpreendeu-nos com a ênfase renovada na importância dos bens públicos, como a saúde. O Estado de bem-estar social, para ele, não deve ser contabilizado como um investimento qualquer, como fardo, mas, sim, recurso que define uma França e uma Europa soberanas. E mesmo um personagem reativo como Boris Johnson se emocionou em cena aberta ao voltar do seu quase encontro com a “indesejada das gentes”. Certamente é um nativista, mas seu elogio rasgado ao Serviço Nacional de Saúde e sua menção afetuosa aos enfermeiros imigrantes que o assistiram zelosamente, tal como o fariam com qualquer outro doente, escapam rigorosamente do script de uma extrema direita perigosa e farsesca. Essa fala comovida deixará algum traço, mínimo que seja, nas ações futuras do personagem?
No fundo, o que está em jogo é saber se as orientações nativistas, com sua carga de egoísmo e particularismo local, levarão a melhor sobre a estrutura econômica bem ou mal já mundializada e os organismos multilaterais que ela requer, a começar pela ONU. Não é despropositado ver que, no primeiro caso, antes da grande crise o projeto era o de dar rédea solta à religião de mercado no limite de cada Estado nacional, que sempre deveria vir “em primeiro lugar” ou “acima de todos”. As maciças injeções de recursos públicos agora necessárias desarticulam por muitos anos a utopia mercadista, mas as tendências iliberais ou antiliberais, presentes em muitos lugares, podem se agravar. Para ficar num só exemplo, a Hungria de Viktor Orbán, que, aliás, tem amigos poderosos no Brasil, puxa o cortejo fúnebre das liberdades democráticas - tecnicamente, já é uma ditadura.
A perspectiva internacionalista - sendo a mais razoável e a mais adequada à ideia de que o gênero humano, afinal, é um só - não está isenta de problemas. Não desaparecerão num passe de mágica as complicações geopolíticas e os desígnios hegemônicos, ou, mais precisamente, os desígnios de dominação nem sempre assentados em consenso. O poder que ora se retrai abdica das suas responsabilidades na gestão da ordem global e não esconde a intenção de solapar as instituições que ajudou a criar, como se vê agora por suas atitudes em face da Organização Mundial da Saúde (OMS); o poder emergente, por seu turno, é uma singular mistura de economia de mercado e autoritarismo político, cuja universalização não é desejável e só se concretizaria à custa da perda de valores inestimáveis da tradição ocidental.
O atribulado romance do nosso tempo está, assim, rigorosamente em aberto. Não há autoria individual possível nem se pode discernir, como outrora, o espírito do mundo encarnado numa figura de herói. Sabe-se só que a melhor perspectiva exige a permanência e o aprofundamento dos processos de democratização em cada nação e, por conseguinte, na comunidade de todas as nações.
Adriana Fernandes: Quem paga a conta?
Certamente falta foco nos gastos, que pode levar ao mau uso do dinheiro
A coluna do dia 4 de abril alertou para o risco de a falta de uma coordenação nacional nas medidas de combate ao coronavírus provocar um rombo irreversível no chamado pacto federativo brasileiro.
De lá para cá, avançamos a passos largos na direção de um racha que coloca em lados opostos 25 governadores, centenas de prefeitos de todo o País e lideranças parlamentares contra o governo Jair Bolsonaro.
Não dá mais para fazer vista grossa ao problema.
A crise federativa está no centro da velocidade de reação do Brasil à pandemia da covid-19 e pode ter consequências ainda mais graves no combate da disseminação do vírus mortal (sim, é preciso repetir mais um vez: não se trata de uma gripezinha) nas próximas semanas no País, mas também na fase que se seguir ao fim da quarentena.
É no pós-crise que o Congresso poderá votar projetos importantes alterando a ordem das coisas e desmanchando o modelo atual de distribuição do bolo dos tributos cobrados da sociedade que baliza o pacto federativo. Propostas não faltam nas duas Casas – Câmara e Senado. Tudo isso sem nenhuma articulação e debate aprofundado. Na base mesmo da retaliação.
Sem dúvida, o trauma da disputa com os governadores traz mais confusão à vista quando o que se deveria esperar é uma agenda de recuperação nacional após o baque da recessão economia já contratada pela covid-19.
Se não houver um acordo mínimo nos próximos dias com a votação pelo Senado do projeto de socorro aos Estados e municípios, a crise ganha novos contornos.
E não é que o presidente pode ter piorado ainda mais as coisas ao advertir os governadores no pronunciamento que fez para anunciar a demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. A troca de ministros em meio à escalada da pandemia já é em si polêmica, mas Bolsonaro achou um jeito de arrumar mais problemas ao avisar em tom ameaçador que o governo não vai pagar a conta dos excessos dos governadores. De quebra, para desviar o foco da demissão, resolveu depois bater no presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), articulador do projeto.
Vejamos o que disse Bolsonaro no pronunciamento: “O governo não é uma fonte de socorro eterna. Em nenhum momento eu fui consultado sobre medidas adotadas por grande parte dos governadores e dos prefeitos. Tenho certeza que eles sabiam o que estavam fazendo. O preço vai ser alto. Tinham de fazer uma coisa, tinham. Mas, se porventura exageraram, não botem essa conta, não no governo federal, mas nas contas do nosso sofrido povo”.
No mesmo dia, 25 governadores, em carta encaminhada aos senadores, já haviam pedido a aprovação integral do projeto de socorro aprovado na Câmara e motivo de discórdia com a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. A união dos governadores – com apenas dois deles dissidentes – assustou o governo. Os técnicos que articulam o acordo alternativo no Senado temem uma reviravolta nas negociações.
A proposta aprovada na Câmara foi muito além do que se esperava para uma ajuda emergencial na tentativa dos governadores de resolver problemas antigos e também de conseguir protagonismo político com a população na luta contra o novo coronavírus.
Muitos Estados e municípios saíram a conceder a torto e a direito benefícios fiscais, renúncias e suspensão do pagamento de tributos. No caso do Rio, um Estado quebrado, foi aprovado aumento salarial.
A equipe econômica está certa em não querer dar um cheque em branco com o projeto para bancar essas decisões sem nenhuma coordenação. Ajustes terão de ser feitos no projeto para impedir que o socorro aos Estados banque qualquer tipo de gastos que leve à perda da arrecadação do ICMS e ISS. Mas o governo federal mostra também incoerência quando prometeu “mais Brasil e menos Brasília” e, agora, quando mais é necessária essa diretriz, falha.
Certamente falta foco nos gastos, que pode levar ao mau uso do dinheiro, mas Bolsonaro usa a bandeira da disciplina fiscal para atacar os seus adversários políticos. No outro lado, governadores e lideranças políticas usam a urgência da covid-19 com a máxima de que podem gastar sem freio. A única certeza até agora é que o valor de R$ 40 bilhões oferecido pelo governo para transferir aos Estados e municípios é pouco. Todos precisam ceder.
Alberto Aggio: Isso é Bolsonaro
Com recessão à porta, presidente combate as lideranças que ameaçam seu caminho para 2022
É traço comum das análises sobre o Brasil atual buscar entender o que melhor caracterizaria Jair Bolsonaro e seu governo. Bolsonaro é efetivamente um personagem singular, minimamente letrado, um tanto tosco, que numa circunstância especialíssima chegou à Presidência da República. Não estaria errada essa descrição, mesmo reconhecendo sua insuficiência.
Dizer que ele representa os militares seria uma generalização absurda e um desprestígio da categoria. Os militares compõem uma camada intelectual de relevância incontestável para o Estado brasileiro. Como se sabe, Bolsonaro foi afastado do Exército por indisciplina. Tornou-se político profissional com votos da corporação militar por longos 28 anos. Como parlamentar e agora como presidente permanece um defensor das demandas dos militares – vide a reforma da Previdência. É certo que recheou o Ministério com muitos deles, o que não garantiu identidade absoluta entre o presidente e os militares convidados.
Não há novidade também na caracterização de Bolsonaro como representante da extrema direita. Não apenas ele, mas seus filhos – igualmente políticos profissionais, vale ressaltar – não escondem isso de ninguém, até mesmo as ligações internacionais com essa corrente política. Tal posição, distinta de outras correntes e personalidades desse campo, acabou por definir mais precisamente Bolsonaro como expressão de uma facção da direita que tem cultivado um comportamento fascistizante.
O presidente não abre mão de concentrar em si a narrativa e a estratégia de seu governo. Embora em ambas não haja um programa determinado, coerente e sistêmico, que ele faça questão de explicitar. Mas há uma ênfase digna de menção: a persona (o “mito”) sobrepõe-se ao governo e por isso a dimensão pessoal está sempre à frente da institucional, no limite do decoro. A pessoalização existe, porém, sem nenhum afeto, nem o maneirismo típico da nossa tradição ibero-americana. A Bolsonaro não interessa o savoir-faire da política, as gentilezas com outros atores, mesmo com possíveis aliados.
Ele modula seu comportamento pelo que entende ser o jogo duro do poder. E para isso adota o método do confronto permanente, pondo sempre em relevo as discrepâncias ideológicas no lugar das soluções para os problemas da Nação. A confrontação é essencial para sua estratégia de manter o apoio de parcela significativa do eleitorado, rumo à reeleição de 2022.
Tudo isso lhe garantiu a iniciativa política até aqui. Mas 2020 começou mal para ele e para todos nós. A divulgação do “pibinho” (1,1%) de 2019, a disparada do dólar, a fuga de investimentos e, por fim, o ingresso do Brasil na pandemia do covid-19 alteraram o cenário. A pandemia jogou Bolsonaro nas cordas, fazendo-o perder a iniciativa política. Em poucos dias deu mostras de faltar-lhe o chão e de que sua estratégia maior poderia estar comprometida.
Desde então as ações do presidente visam à recuperação da iniciativa perdida. Com parte da sua equipe contaminada pelo vírus, Bolsonaro lançou-se numa escalada desesperada: não hesitou em cumprimentar os poucos manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em seguida, com declarações estapafúrdias, atacou os governadores que determinaram o isolamento social para conter o avanço da epidemia. Essa atitude produziu uma fratura na estrutura federativa do País, criando embate institucional, desorientação política, além de complicar o combate à pandemia.
Mesmo na defensiva, Bolsonaro tenta manter a opção por uma “guerra de movimento” definida desde a campanha e a posse, cujo objetivo é destruir a democracia da Carta Constitucional de 1988 e implantar um regime iliberal no Brasil. Essa espécie de “revolução reacionária” levada em fogo brando (sem violência aguda, até o momento) não pode parar até as eleições de 2022. É nela que Bolsonaro imagina consolidar sua legitimidade e impor ao País uma “nova hegemonia”, não mais com os valores e ideias da “esquerda”. Para ele 2022 é o turning point.
Mas até lá haverá muita turbulência. O certo é que, para confrontar o frágil reformismo liberal-democrático que marcou a trajetória do País desde o fim da ditadura, Bolsonaro não cederá à “guerra de posições”. Em sua avaliação, esse é um ambiente hostil. No limite, poderia fazê-lo, mas imagina que estaria compactuando com um modelo que, segundo ele, marcou os governos dos presidentes que o antecederam, com custos e problemas que não saberia gerenciar.
Diante da pandemia, Bolsonaro age com mão pesada: escanteia governadores e prefeitos, desafia orientações epidemiológicas, desestrutura a federação e tensiona ao limite a relação com o Congresso. Mas não ganha nenhuma posição. Busca resgatar sua “guerra de movimento” e colocar nas ruas os que o apoiam incondicionalmente, pouco se importando em ver o País à beira da conflagração.
Com a recessão às portas, o que pode comprometer sua reeleição, Bolsonaro visa a combater as lideranças que ameaçam seu caminho rumo a 2022. Isso é Bolsonaro.
*Historiador, é professor titular da Unesp
Carlos Melo: Mandetta permitiu que a corda arrebentasse nas bandas do Planalto
A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos, os desastres na saúde e na economia.
O desastre principia com a negação da realidade. Como Donald Trump, Jair Bolsonaro é presidente que afronta os fatos porque, para ele, é sempre possível dar o dito por não dito; alegar malentendido e acusar os outros. A prática é manjada, mas rebaixar a pandemia à “gripezinha” foi seu o paroxismo. O vírus se impôs e transformou a pandemia em “crise humanitária”.
Indispondo-se com o mundo e com seu ministro da Saúde, o presidente perdeu elos com nações, com o Congresso, com os governadores e com o Supremo Tribunal Federal. Ficou institucionalmente só, agarrado a radicais e a um paradoxo: sendo contra a quarentena, somente seu sucesso – com poucas mortes – é que reanimaria a tese da “gripezinha”, para que possa dizer “eu disse”.
A queda de braço com Luiz Henrique Mandetta ficará para a história. Sem admitir que salvar vidas e empregos não é incompatível, tentou se impor ao ministro – o que já é estranho – com certo cálculo: como a Economia de Paulo Guedes já patinava, a Saúde e os governadores seriam bodes expiatórios do fracasso econômico.
Até onde pôde, equilibrou-se na ambiguidade e, assim, num dia condescendia, no outro desdizia. “Isso cansa.” Mas, o presidente não percebia lidar com profissionais. O DEM, partido do ministro, é hoje o que mais se assemelha ao antigo PSD – de Juscelino, Valadares, Tancredo e outras raposas –, sabe andar no fio da navalha. Articulado com os seus, o ministro permitiu que o presidente esticasse a corda para que arrebentasse nas bandas do Planalto.
O cálculo se inverteu: se a quarentena obtiver sucesso, será obra do abnegado Mandetta. Já o fracasso será creditado à irascibilidade de Bolsonaro, algoz do ministro. Mas, ao final, não haverá ganho: suspeita-se que muitos morrerão e o desastre econômico será inevitável. A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos.
*Cientista político e professor do Insper
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro acha que Maia ligou 'bomba relógio' e Congresso prepara troco
Bolsonaro iniciou uma rodada de conversas com dirigentes do Centrão; as negociações do Planalto com o Congresso, a partir de agora, serão feitas com deputados e senadores
Vera Rosa, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O mais duro ataque público do presidente Jair Bolsonaro a Rodrigo Maia (DEM-RJ), na noite de quinta-feira, 16, pode custar caro ao governo. O novo capítulo do duelo entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, após a demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem como pano de fundo o programa de socorro a Estados e municípios, no valor de R$ 89,6 bilhões. A briga, no entanto, vai muito além dessa cifra.
Convencido de que Maia quer não apenas derrubá-lo como fazer uma manobra para ser reeleito ao comando da Câmara, em 2021, Bolsonaro iniciou, nas últimas semanas, uma rodada de conversas com dirigentes do Centrão. No novo modelo de articulação política planejado pelo presidente, as negociações do Planalto com o Congresso, a partir de agora, serão feitas com deputados e senadores.
Antes carimbados como “velha política”, líderes de legendas como PP, PR e PSD foram chamados para encontros reservados com Bolsonaro. Isolado, o presidente pediu ajuda a todos eles para a votação de projetos que possam amenizar a crise social e econômica provocada pela pandemia do coronavírus.
Na avaliação de Bolsonaro há uma “bomba-relógio” fiscal em curso, armada por Maia, com o objetivo de ferir de morte sua gestão. “Parece que a intenção é me tirar do governo. Quero crer que eu esteja equivocado”, disse o presidente, na noite desta quinta-feira, em entrevista à CNN Brasil. “Qual o objetivo do senhor Rodrigo Maia? Ele quer atacar o governo federal, enfiar a faca. (...) Está conduzindo o País para o caos”, emendou.
Dois dias antes, Maia já havia reclamado dos “coices” dados pelo governo. Desta vez, porém, mudou o linguajar e falou em pedras. “Ele joga pedras e o Parlamento vai jogar flores”, afirmou o deputado.
Apesar do discurso, o troco pode vir a cavalo. O governo teme, por exemplo, que a Medida Provisória instituindo o contrato verde e amarelo perca a validade. A MP flexibiliza o pagamento de direitos trabalhistas e contribuições sociais para facilitar a contratação de jovens e funcionários com mais de 55 anos. Foi aprovada pela Câmara, mas, se não for votada até segunda-feira, 20, caduca. Ao que tudo indica, há mais uma derrota no horizonte para o Planalto.
Bolsonaro está especialmente irritado com Maia porque, em videoconferências com banqueiros e investidores, o deputado tem alfinetado sua administração. O presidente da Câmara chegou a dizer, num desses encontros virtuais que, se não fosse a crise do coronavírus, o Congresso já teria rompido com Bolsonaro.
A demissão de Mandetta azedou de vez um relacionamento que já era ruim. A exemplo de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (AP), Mandetta é filiado ao DEM, partido que também integra o Centrão.
Na prática, Bolsonaro aproveitou o bate-boca desta quinta para desviar o foco negativo da dispensa de Mandetta, o ministro que era mais popular do que o chefe. Ao anunciar a saída, o presidente foi, novamente, alvo de panelaços em várias capitais do País.
O confronto entre Bolsonaro e Maia, no entanto, vem de longe. Tanto que o presidente da Câmara nem fala mais com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sob a alegação de que não quer se aborrecer. A queda de braço ganhou contornos mais nítidos após a disputa pelo controle do Orçamento e chegou ao ápice recentemente, com a aprovação do programa de socorro a Estados e municípios.
O valor de R$ 89,6 bilhões que passou pelo crivo da Câmara é outro revés para o governo, que tenta mudar a proposta na votação no Senado, oferecendo uma transferência direta com valor fixo de R$ 40 bilhões. Guedes argumenta que “não se pode dar um cheque em branco a governadores de Estados mais ricos”, pois não é possível saber quanto tempo vai durar a pandemia.
Bolsonaro também usa essa justificativa para não ampliar os repasses a Estados que adotam medidas de isolamento social para enfrentar o coronavírus.
A avaliação ali é a de que, ao compensar por seis meses a perda na arrecadação de dois impostos (ICMS e ISS), o governo federal acabará bancando o prolongamento da quarentena em Estados administrados por adversários, como João Doria (São Paulo) e Wilson Witzel (Rio). Os dois são pré-candidatos à cadeira de Bolsonaro, em 2022.
“O que o povo tem a ver com a briga do presidente com o governador João Doria?”, provocou Maia, que é próximo do tucano. “Vamos deixar as brigas para o futuro”.
Maia tem dito que não fará qualquer movimento para conquistar novo mandato à frente da Câmara. Antes da pandemia, porém, Alcolumbre já havia consultado até mesmo juristas sobre o assunto.
A Constituição proíbe que presidentes da Câmara e do Senado sejam reconduzidos ao posto na mesma legislatura. Para alterar esse quadro, o Congresso precisaria aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e, ainda, alterar o regimento das duas Casas.
Diante da crise do coronavírus, no entanto, o Congresso pode adotar uma fórmula que permita a reeleição de Maia e Alcolumbre, para desespero dos bolsonaristas. Cresce, ainda, a possibilidade de adiamento das eleições municipais de outubro para dezembro.
Nas redes sociais, seguidores de Bolsonaro já comemoram com antecedência a saída de Maia e Alcolumbre de seus postos. No afã de ver a dupla pelas costas, eles erraram até mesmo a data do término da gestão no Congresso. Marcaram dezembro, quando, na realidade, é fim de janeiro. De 2021.
Eliane Cantanhêde: A grande cartada
Com quebra do isolamento, Bolsonaro joga o destino dele e de milhões. O futuro dirá
O presidente Jair Bolsonaro jogou sua maior cartada na última quinta-feira, 16, ao demitir Luiz Henrique Mandetta, o ministro mais popular do seu governo, e substituí-lo por Nelson Teich, que vai começar tudo de novo com a função de dar um cavalo de pau na política do isolamento social – ou, como disse Bolsonaro, “redirecionar a posição do governo e dos 22 ministros”.
O recado teve endereço certo: os ministros, particularmente os superministros Paulo Guedes e Sérgio Moro, que apoiam, ou apoiavam, a posição de Mandetta, do Ministério da Saúde, da OMS e de todos os países desenvolvidos do mundo pró-isolamento social como a melhor forma de conter a contaminação e, consequentemente, as mortes pela covid-19.
Ainda no carro, a caminho do Ministério da Saúde para se despedir, Mandetta me disse num rápido telefonema que a derradeira conversa com Bolsonaro foi “cordial, gentil”. “Eu não posso entregar o que ele me pede”, conformava-se. “Vem aí uma dinâmica social totalmente nova, que muda tudo”, explicou, desejando sorte ao “Nelson, como é mesmo o nome dele?”. “Que Deus nos ajude a todos”, concluiu.
Para amenizar o cavalo de pau, ou o “redirecionamento”, como anunciou o presidente, ou a “nova dinâmica social”, como chama Mandetta, o dr. Nelson Teich tratou de deixar claro que a flexibilização do isolamento virá, mas não será “brusca nem radical”.
Isso pode ser bom, se significar cautela, dentro da técnica e da ciência e com base sólida de dados, como prometeu. Mas pode ser ruim, se ele esperar para agir só depois de “um diagnóstico da doença”, de um trabalho de inteligência e de uma massificação de testes (como? de onde?) que, em resumo, pode corresponder a começar do zero. No meio da pandemia? Com o número de mortos batendo em 2 mil pessoas? Emergência é emergência.
Mandetta se vai, aliás, com alta aprovação popular, mas a pandemia fica e, o pior, o presidente Jair Bolsonaro e suas manias também ficam. O novo ministro conseguiu arrancar o compromisso do presidente de parar com provocações, de causar aglomerações, tocar pessoas nas ruas sem máscara, pular de absurdos em absurdos públicos? Provavelmente sim, o que vai confirmar que, mais do que uma questão “técnica e científica” em torno da quebra do isolamento, a birra de Bolsonaro era pessoal, contra Mandetta, e política, por ciúme da sombra que o ministro lhe fazia.
Mandetta sai da Saúde e entra nas bolsas de apostas políticas, mexendo sobretudo com o tabuleiro do DEM, seu partido e dos presidentes da Câmara e do Senado e do mais novo adversário do presidente, Ronaldo Caiado (GO). Mas o que interessa nesse momento não é política, é saúde, vida, combate ao coronavírus e o equilíbrio de tudo isso com economia, empresas e empregos. Um equilíbrio delicadíssimo, agora nas mãos de Nelson Teich. Mas com Bolsonaro mandando.
A quebra do isolamento é certa, mas é preciso saber como, quando, em que bases. E como Teich, muito respeitado no ambiente médico, vai tratar a questão, que exige não só liderança na equipe da Saúde, que não terá dificuldade em conquistar, mas também negociação com governadores, o Congresso e, eventualmente, o Supremo – que estão em pé de guerra com Bolsonaro. Teich tem de ter estratégia e também se familiarizar com a máquina e a política.
Outro grande embate entre Bolsonaro e Mandetta era em torno da cloroquina como a varinha de condão. Alguém notou que o presidente nunca mais falou nisso? E que a cloroquina foi a grande ausente dos discursos no derradeiro dia de Mandetta na Saúde? Pode ser, pode não ser, mas parece que Bolsonaro perdeu essa. Quanto à quebra do isolamento, ao qual o destino de Bolsonaro e de milhões está atrelado, o futuro dirá.
Antonio Carlos do Nascimento: Shakespeare, Einstein, SUS, covid-19 e o futuro
Planeta precisou da expectativa dizimatória para pôr o que importa em seu devido lugar
Nós nos reinventamos diante das catástrofes e não o fazemos pelo bom senso. Fosse isso, as evidências escandalosas de um planeta que esquenta e se intoxica nos abririam os olhos e partiríamos em missão para defendê-lo. A iminência da morte provoca o pânico e Shakespeare retrata o quadro ao reduzir o inescrupuloso Ricardo III a “meu reino por um cavalo” numa de suas cultuadas peças.
Quando eu era menino ouvi uma amiga de minha mãe dizer que chegaria o dia em que teríamos o dinheiro, mas não encontraríamos o que comprar. Pouco tempo depois li a dedução de Einstein para os desdobramentos bélicos futuros: “Como vai ser a terceira guerra mundial eu não sei, mas a quarta será com paus e pedras”. Tais impressões futuras, apocalípticas, enquanto sejam apenas possibilidades, nunca se desgarraram daquilo que imagino possível e talvez provável para a humanidade.
Aqui e ali suicidas derrubam arranha-céus, estouram bombas em seus corpos, mergulham carros com explosivos em meio a multidões e lá se vão muitas vidas, às vezes milhares. O mundo decidiu globalizar, especialmente utilizando mão de obra barata, notadamente asiática, e a qualquer barulho por lá faltam componentes de toda sorte por aqui. Por outro lado, imensidões de terras são utilizadas para o cultivo de algum produto agrícola e não é raro após alguma safra o produtor não conseguir arrecadar para pagar o financiamento bancário, a depender de quanto a sua commodity variou no globalizado “mercado”.
Em Splendor in the Grass (título brasileiro, Clamor do Sexo), filme com Natalie Wood e Warren Beatty, vê-se a América na queda da bolsa de 1929 inutilizando milhões de papéis que passavam a não valer mais nada e alguns de seus proprietários mergulhavam em voos derradeiros dos altos prédios em Wall Street. Bud (Warren Beatty), filho de um daqueles barões da bolsa de valores, finda a película cultivando terreno numa área rural, no que havia restado do império familiar.
A lógica da sobrevivência passa por nutrição orgânica e antes da guarida do alojamento precisamos ainda não ser retirados do ciclo por predadores, contexto bem demonstrado pelos moradores de rua. Mas o planeta em que uma metade de sua população não dispõe de vaso sanitário, enquanto a outra projeta a desnecessariedade dela mesma na substituição por aplicativos, precisou dessa expectativa dizimatória para momentaneamente colocar as importâncias em seus devidos lugares.
Então agora alimentação é prioridade, no papel de predador um invisível vírus para o qual nos defendemos com higiene e neste momento não prescindimos de alojamentos que nos separem do entorno. Induzidos ou não, ainda que apenas provisoriamente, estamos acordados com o tráfico, milícias, facções... com uma só palavra de ordem: sobreviver - com protocolos que são mais ou menos obedecidos de acordo com as facetas e a força com que o virtual caos se apresenta.
Nós nem sabemos se a covid-19 conseguirá em mesmo espaço de tempo ter números maiores que os feminicídios, ou daqueles que morrem no trânsito pela ação de motoristas embriagados, nos semáforos por terem sidos lentos em entregar bolsas e carteiras, ou nas alcovas por overdoses. Mas estamos cientes de que podemos morrer indistintamente, independentemente de raça, religião ou classe social, e incrivelmente isso nos une, porém não pelo bom senso.
A depender da dimensão do desastre, e infelizmente não do quanto fomos capazes de impedi-lo, talvez restemos pouco modificados. Isso é ruim, por outro lado fazem bem algumas brasileiras certezas.
A valorização da imprensa profissional e séria, que ao menos por enquanto foi desobrigada por nós de dizer aquilo que queremos e a aceitamos com a função que sua maior parte nunca deixou de exercer: nos informar.
O SUS, nosso Sistema Único de Saúde, tratado tantas vezes com desdém e descaso, mostra seu gigantismo na capacidade de cuidar. E provavelmente a exposição proveniente de tantas ações realizadas por essa instituição produzirão o entendimento popular de seus mecanismos. O órgão atua em todas as faixas de cuidados e não se omite nas observações preventivas que passam ao largo dos ouvidos de nossa gente. É provável que um revigorado perfil gestor do SUS e uma nova métrica de envolvimento do usuário com as linhas de cuidado oferecidas fortaleçam esse que é um dos maiores e mais justos programas de saúde pública do mundo.
Guardaremos as palmas que se derramaram tantas vezes das sacadas dos prédios às 20 horas em homenagem aos profissionais de saúde e outros importantes grupos. Esqueceremos o barulho de colheres encontrando fundos de panelas para criar trilha sonora inapropriada de um longa-metragem que ficará para a história como exemplo de uma das lutas humanas em seu instinto de preservação, e não de um vírus com ideologia política.
DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (SBEM)
Pedro Doria: Bolsonaro não está nem aí para a privacidade
A preocupação de Bolsonaro com a privacidade tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular
Tem ruído na linha no debate sobre a privacidade digital. O ruído não nasce de incompreensão, nasce de desinformação proposital. E foi posto ali não por acidente, mas para boicotar a quarentena. O presidente da República, Jair Bolsonaro, mandou que o Ministério da Ciência e Tecnologia interrompesse uma ação em conjunto com as operadoras de telefonia celular para monitorar o fluxo de pessoas pelo País. O custo de não ter estas informações será pago em vidas. Impressiona que tenha ocorrido na mesma semana em que Apple e Google, rivais de morte, tenham anunciado um ousado produto feito em conjunto justamente para dar mais informação que permita controle da pandemia.
O acordo do ministério com as operadoras era simples. Elas passariam dados sobre localização geográfica dos aparelhos celulares. Não é complexo: todo mundo anda com um smartphone no bolso, mesmo que simples. Este aparelho sabe onde está e constantemente passa a informação para as operadoras. É esta possibilidade que permite a apps como Waze e Google Maps que informem sobre o trânsito – afinal, sabem quanto tempo está demorando para andar um quilômetro em qualquer rua.
O argumento de Bolsonaro é igualmente simples. Diz que é preciso ter certeza de que a iniciativa não viola a privacidade de cidadãos. A preocupação tem um quê de cínica para um presidente que chegou ao Planalto querendo montar uma Abin particular. Mas não é acidental. Faz duas semanas que o gabinete do ódio tem metralhado o governador paulista João Doria por uso do mesmo recurso para acompanhar como anda o isolamento social no Estado.
Ameaça à privacidade existiria se os donos de cada celular fossem identificados. Porque, aí, o Estado estaria literalmente acompanhando por onde cada cidadão anda. É o que a China faz. Aliás, não só ditaduras. Israel também tem feito isto. Mas, no Brasil, não há ninguém fazendo nada do tipo. Não há um único indivíduo sendo espionado por governo nenhum. (Quer dizer: a não ser que a Abin o esteja fazendo. Só que aí não tem a ver com esta iniciativa.)
Esta pandemia é muito complexa e seu combate depende de informação. Por exemplo, sobre qual o nível de respeito à quarentena. Saber que há muita gente circulando permite a governadores e prefeitos que se preparem para o impacto na rede hospitalar em 15 dias. Informação que vem de testes massivos também ajuda – é para se ter uma compreensão massiva do nível de infecção na sociedade. Informação sobre para quem as pessoas contaminadas podem ter passado o vírus, idem. Para que o combate possa ser mais ágil e quem é suspeito de ter a doença possa se resguardar antes de passar para outros.
A parceria de Apple e Google quer atacar este último elemento. As duas incluirão em iPhones e Androids um recurso que permitirá criar apps para informar que você esteve faz pouco tempo em contato com alguém positivo. As duas empresas terem entrado no jogo é a garantia de que um recurso assim poderá existir com o máximo de resguardo possível à privacidade de todos. É o melhor de dois mundos: quem está doente não é identificado, quem esteve perto é informado de que há risco.
Uma democracia liberal se constrói na eterna tensão entre os direitos do indivíduo e os da sociedade. Ambos importam e os conflitos que surgem deste atrito ocorrem toda hora. Defender privacidade, no tempo digital, é fundamental. Salvar a maior quantidade de vidas possível não é incompatível. Dá para fazer. Fingir que não dá é que é grave. É irresponsável. E gente vai morrer por causa disso.
Fernando Gabeira: Adeus à normalidade
Seria o vírus o novo agente transformador? Os grandes lances do futuro são imprevisíveis
Os filósofos sempre interpretaram o mundo. Agora que ele está revirado e quase todos recolhidos na quarentena, a tendência é uma grande produção de cenários sobre o mundo de amanhã, o pós-coronavírus.
Alguns queimaram a largada considerando a pandemia um exagero da imprensa, uma fantasia tirânica. Temiam, à esquerda, uma sucessão de ditaduras e, no outro polo, temiam o desgaste de seus populistas no poder.
Uma ditadura oportunista acabou se instalando apenas na Hungria. Noutros países segue o debate democrático sobre controle da pandemia, liberdades individuais e privacidade.
Em muitos casos, a sensação que tenho é de que as previsões nada mais são do que nossas expectativas projetadas no futuro. Talvez essa sensação pessoal venha das inúmeras vezes na história em que li a frase: o capitalismo está em crise terminal e no seu lugar virá um regime social mais fraterno e humano. Como disse o intelectual sul-coreano Byung Chul Han, o vírus não é revolucionário. As mudanças certamente vão depender das pessoas.
De fato, as esperanças de transformação se apoiavam na classe operária, houve quem as deslocasse para o lúmpen proletariado. O vírus seria o novo agente transformador?
De fato, a crise em que o capitalismo se move no momento é a mais grave de sua história, muito mais ampla e profunda que a de 1929. No entanto, alguns de seus movimentos clássicos se repetem: transformar-se e aprofundar-se com a crise.
A passagem para a economia virtual foi precipitada. As grandes empresas telefônicas, provedoras de internet, estão em alta. A Amazon contratou centenas de novos empregados. O comércio eletrônico ampliou-se, possivelmente liquidando milhares de lojas físicas que já estavam em decadência. Os patrões descobriram o home office e suas vantagens econômicas, pois sem grande perda de produtividade economizam na montagem de pesadas estruturas. É preciso ver humildemente o que vai sair daí, reconhecer também que não prevíamos a extensão da catástrofe.
O papel do Estado se acentua com a clara necessidade de sistemas de saúde universais e frentes de trabalho estimuladas pelos recursos públicos. Mas daí a afirmar que todo o processo de liberalização da economia foi um erro, é difícil. Como enfrentaríamos a pandemia sem o nível de comunicações que existe hoje, sem os milhões de smartphones espalhados pelo País? As velhas telefônicas estatais entrariam em colapso.
Da mesma forma existe uma onda real de solidariedade que nos enche de orgulho. Mas o discurso de que as pessoas serão transformadas e ficarão mais humanas e fraternais por causa do vírus lembra um pouco aquela figura do “novo homem” das utopias passadas.
O homem tal como descreveu Shakespeare e sempre existiu, com sua coragem, suas fraquezas e misérias, continua de pé. Como explicar, ao lado de tantas bondades, que exista gente roubando testes de coronavírus, insultando profissionais de saúde porque entram com suas roupas de trabalho no transporte público? E a quantidade de aplicativos falsos para lesar os que necessitam da ajuda de R$ 600 do governo?
Tudo isso não é para negar as transformações que virão. Apenas para abordá-las de forma mais modesta, como já faziam alguns intelectuais com a realidade imediatamente anterior ao vírus.
Edgard Morin, que já esteve no Basil nos anos 60, fazendo conferências, é um caso de evolução com humildade diante da complexa realidade. Na Inglaterra, Ziauddin Sardar desenvolve os estudos de pós-normalidade, uma época em que, segundo ele, muito pouca coisa faz sentido, pois as velhas ortodoxias morreram e as novas ainda não nasceram. Se os tempos anteriores ao vírus nos pareciam normais e já eram, para muitos teóricos, pós-normais, o que diríamos agora, depois da passagem do corona?
Verdade que alguns políticos previram. Barack Obama fez um discurso sobre o perigo de uma gripe do tipo espanhola de 1918 e disse que era preciso montar uma estrutura global para fazer frente a ela. Mas disse isso num país onde a ciência, o saber acadêmico, a própria imprensa já entravam em declínio sob o impacto do populismo de direita.
Os laços horizontais de solidariedade diante de políticos que se apagam na crise, o intercâmbio planetário de cientistas em busca de saídas para a crise, a entrega cotidiana dos profissionais de saúde, tudo isso é legado benéfico para os tempos que virão. Mas o gatilho de novas crises não será completamente desarmado.
Antes da chegada do vírus já vivíamos uma sucessão de eventos extremos potencializados pelo aquecimento global, negado enfaticamente pelos mesmos que negam hoje a dimensão da tragédia. Antes de entrarmos neste século perigoso, em que um vírus pode ser um acidente de laboratório, pouco adiantava lembrar que estacionamos no século 19 com nosso déficit em saneamento básico. Quem sabe agora, com dinheiro público e força de trabalho, não damos pelo menos esse modesto passo?
Os grandes lances do futuro são imprevisíveis. Mas não há desculpa para protelar os passos óbvios do presente. Em nome não somente das pessoas, mas do próprio sistema de saúde, que hoje tanto agradecemos.
Eliane Cantanhêde: Troca de Mandetta é questão de tempo. Ou de nome
Mandetta sabe que o presidente busca um substituto para ele e Bolsonaro sabe que Mandetta e sua equipe estão com um pé fora
Ao dizer na estreia do Estadão Live Talks, na quarta-feira, 14, que o ministro Luiz Henrique Mandetta “fez uma falta, merecia cartão”, quando cobrou uma “fala única” do governo sobre isolamento social, o vice-presidente Hamilton Mourão não estava manifestando uma posição apenas pessoal, mas dos generais, como ele, que têm gabinete no Palácio do Planalto e compõem hoje o núcleo de bom senso do governo. (Quem diria?, a turma da guerra virou a turma do deixa-disso.)
Depois de defender Mandetta e convencer o presidente Jair Bolsonaro a moderar o tom, esse núcleo não gostou – como disse Mourão com todas as letras – de o ministro manter as provocações contra o chefe nos balanços diários da pandemia e, sobretudo, na entrevista à Globo no domingo, quando admitiu que os brasileiros ficam confusos porque o presidente fala uma coisa e o ministro, outra.
Além de reproduzir a posição comum dos generais, Mourão, de certa forma, também abriu caminho para Bolsonaro demitir o ministro e essa discussão esquentou ontem, quando vários nomes já pululavam na mídia e redes sociais para a Saúde e a pergunta não era mais se Mandetta seria substituído, mas quando e por quem. Um paulista, possivelmente.
Assim, o espanto foi geral quando Mandetta surgiu no fim da tarde para a entrevista diária com os fiéis escudeiros João Gabbardo e Wanderson de Oliveira, demissionário. É, no entanto, só questão de tempo. Mandetta sabe que o presidente busca um substituto para ele e Bolsonaro sabe que Mandetta e sua equipe estão com um pé fora. O coronavírus deve estar morrendo de rir.
William Waack: O vírus vai decidir
Ninguém lidera em qualquer direção no principal cisma da política
O grande racha no governo e fora dele ocorre entre os que acreditam que a crise do coronavírus já está passando e os que acreditam que mal está começando. Não é simplesmente uma questão de opinião de quem confia possuir os melhores dados ou a melhor avaliação de riscos.
O conflito entre as duas linhas é de ampla natureza política e já tem severas implicações no relacionamento entre entes da Federação (presidente versus governadores, por exemplo), no sistema de governo (Executivo versus Legislativo) e no arcabouço jurídico mais abrangente (quais os poderes constitucionais do chefe de Estado, por exemplo). Além de ter profundo impacto nas medidas emergenciais para enfrentar a recessão trazida pela crise do coronavírus.
O presidente da República tem fé na versão de que o impacto econômico poderia ter sido bem menor não fosse o interesse de adversários políticos (governadores, a esquerda, “elites políticas” nebulosas, o “sistema”) em criar caos social para tirá-lo do poder. Está convencido de que a cloroquina não deixará o custo em vidas humanas ser tão alto como, por exemplo, nos Estados Unidos do ídolo Trump, que imita até nos erros.
Portanto, a principal linha de ação política do presidente no momento consiste em evitar que governadores e prefeitos transformem as medidas de ajuda emergenciais numa grande operação que teria como objetivo – claro, qual outro? – prejudicá-lo diretamente. “Reabrir” a economia virou sinônimo, para Bolsonaro, de sobrevivência política muito além de mobilizar sua base de seguidores.
Nisto entrou em sintonia fina com a equipe de Paulo Guedes, para a qual a Câmara dos Deputados criou um “seguro” contra a inevitável perda de arrecadação por parte de Estados e municípios que, na verdade, incentivaria a irresponsabilidade de prefeitos e governadores e, perversamente, os induziria a prorrogar medidas de isolamento que prejudicam a economia. Fala-se no gabinete de Guedes em “farra eleitoral” por parlamentares, governadores e prefeitos aproveitando uma crise de saúde.
Para a equipe econômica, “isolamento social” virou sinônimo de abuso fiscal e probabilidade alta de depressão após a recessão, apesar de destacados integrantes dela reconhecerem que a experiência internacional recente recomenda medidas restritivas (que prejudicam a economia) como única opção garantida para diminuir a proporção da tragédia de saúde pública.
Uma tragédia anunciada, antecipada e que a ala do governo menos comprometida com postulados ideológicos assume que é um risco iminente.
O resultado desse racha é uma perigosa paralisia política. O embate em torno das medidas emergenciais mobiliza setores do Executivo em busca de provocar uma divisão no Congresso (entre Senado e Câmara), enquanto setores do Legislativo buscam vantagens no que identificam corretamente como rachas dentro do Executivo. O presidente enfrenta os governadores e prefeitos em vários campos de atuação, levando o fracionado STF a arbitrar disputas políticas que arranham a Constituição, enquanto o poderoso corporativismo do funcionalismo público se defende nos três setores para não perder numa crise que empobrecerá o País inteiro.
Os graves contornos dessa crise indicam que ela é bem maior do que a capacidade dos principais atores políticos de manter qualquer controle dos acontecimentos de fundo, ou de liderar efetivamente em qualquer direção dos dois lados do “racha” apontado acima. Ficou para o vírus decidir.
Rosângela Bittar: Fingindo de vivos
Bolsonaro e PT jogam para daqui a 3 anos sem saber o que acontecerá daqui a 3 horas
O PT, em plena pandemia, fez seu primeiro e inovador lance cibernético. Discretos, Lula e seus 111 companheiros do diretório nacional, por 12 horas, na véspera da Sexta-Feira da Paixão, ouviram e falaram com objetividade e disciplina.
Os ex-presidentes Lula e Dilma discursaram; o ex-candidato Fernando Haddad sintonizou-se; os governadores do Piauí, da Bahia e do Rio Grande do Norte transmitiram o consenso das gestões estaduais; prefeitos de Araraquara (SP) e São Leopoldo (RS) representaram os municípios; líderes na Câmara e no Senado, em nome das bancadas, contaram o estado da arte oposicionista no Congresso. Sempre dados ao excesso, foram concisos e disciplinados.
A reunião virtual do comando petista foi um sucesso surpreendente. Inovadora na forma, não se pode dizer o mesmo do conteúdo. Embora tenha mostrado um PT mais unido, ainda enraizado, bem articulado, a tese do renascimento apareceu ainda vestida por ranço antigo.
O que o PT vinha refletindo era sobre a urgência de abrir mão do protagonismo em nome da ampliação da aliança à esquerda e ao centro. O que decidiu foi reeleger como adversário o presidente Jair Bolsonaro, contrapondo-se a ele, para evitar o crescimento do centro na lacuna deixada pelo partido por tanto tempo.
Jair Bolsonaro, em plena pandemia e permanente campanha à reeleição, age, por sua vez, para transformar o PT em seu adversário eleitoral, e o faz combatendo os que podem abrir um caminho alternativo. Demonstram, com isso, inegável crescimento político do centro durante a pandemia.
Maiores ficaram os governadores, os prefeitos, os comandos da Câmara e do Senado, Judiciário, empresariado, organizações sociais, cientistas, médicos, universidades, organismos internacionais.
É contra esses inimigos que Bolsonaro sai por aí desdenhando da morte, brandindo sua espada, em comício a cada esquina, para um vírus invisível. Na mais histriônica encenação com a fantasia de médico, travestido às vezes de cientista, a profissão que abomina, o presidente da República escarnece da população aterrorizada.
É um vale-tudo. Faz a apologia de uma garrafada de feira – a cloroquina para o coronavírus, hoje, ainda é apenas isso –, toma quem acredita. Quem não acredita toma também, o que não tem remédio, remediado está. Mas sob controle e orientação abalizados. Que a inteligência proteja os que não podem tomá-la por seus efeitos colaterais, principalmente os arrítmicos, enquanto não chegam as conclusões das pesquisas.
Não foi Bolsonaro que a inventou, a droga está, desde o início, nos protocolos hospitalares, em um coquetel de fármacos que inclui antibióticos, antivirais, anticoagulantes e o que mais estiver à mão como armas de combate a inimigos desconhecidos, a exemplo do que a ciência fez com a aids. Só que sob um cerco de cuidados que Bolsonaro quer eliminar. O doutor presidente, pelo que se pode compreender, recomenda o produto como vacina, antes da doença, apressando o juízo final.
Bolsonaro está apostando no marketing da propriedade eleitoral da cura. Faz parte da mesma estratégia a escandalosa e desumana campanha contra o distanciamento social, mesmo que a pretexto de salvar empregos. Não importa se, para empregar-se, o trabalhador precise estar vivo.
Se os hospitais explodirem, azar. Azar do Brasil de chegar a um ano como este, a um momento como este, a um problema como este, com um presidente como este.
Ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas.
Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem.