O Estado de S. Paulo
O Estado de S. Paulo: Nove partidos planejam ingressar com notícia-crime por participação de Bolsonaro em ato
Legendas também decidiram fazer atos virtuais com a participação de lideranças que estavam em campos opostos há anos, como Lula, Marina Silva e Ciro Gomes
Ricardo Galhardo, O Estado de S.Paulo
Presidentes e dirigentes de nove partidos de oposição reunidos nesta segunda-feira, 20, por videoconferência, decidiram ingressar com uma notícia-crime contra o presidente Jair Bolsonaro por ter participado de um ato pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) e pela destituição dos governadores na tarde de domingo, 19. Além disso, as legendas decidiram fazer uma série de atos virtuais com a participação de lideranças que estavam em campos opostos há anos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os ex-presidenciáveis Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT), entre outros.
A ideia é que a notícia-crime seja apresentada por entidades da sociedade civil e não pelos partidos e seja acompanhada de um amplo processo de mobilização com a presença de artistas e dos principais líderes da oposição.
A estratégia seria um ¨caminho rápido¨ para afastar Bolsonaro. Caso o STF aceite a denúncia, um pedido de autorização para o presidente ser processado é encaminhado à Câmara. Com votos de 342 dos 513 deputados, Bolsonaro seria afastado por 180 dias. O processo de impeachment demoraria mais de seis meses.
Os partidos pretendem levar a propostas a entidades da sociedade civil como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), entre outras, para que elas sejam as signatárias da ação.
Em paralelo, os partidos (PSOL, PT, PCdoB, PDT, PSB, Rede, PCB, PV e Rede) decidiram realizar uma série de atos virtuais contra Bolsonaro, com o mote ¨em defesa da vida, da democracia e do emprego¨. Os caciques se revesariam em "lives" com grandes artistas.
A ideia surgiu durante uma reunião de trabalho do fórum dos presidentes das siglas. A líder do PT, Gleisi Hoffmann, perguntou durante a reunião como cada partido está tratando o "Fora Bolsonaro". Alguns, como o PCdoB, disseram ser contra. O argumento é que a campanha abriria espaço para pressões por um pedido de impeachment e em caso de permanência, Bolsonaro sairia mais fortalecido.
Depois de recusar duas vezes propostas de correntes minoritárias, o PT deve empunhar a partir de amanhã a bandeira do "Fora Bolsonaro". Lula vai participar de uma reunião remota com as bancadas na Câmara e no Senado.
Segundo fontes do partido, o ex-presidente está convencido da necessidade de o partido ser mais incisivo no enfrentamento ao governo. Desde o início da crise causada pela pandemia do coronavírus o PT, maior partido da oposição, vem tentando assumir uma posição de destaque mas perdeu o protagonismo para lideranças como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Marco Aurélio Nogueira: Sobre homens e monstros
O personagem que governa o País encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, confusão.
Ninguém pode dizer que está surpreso. Em 2018 elegeu-se um presidente com um prontuário bem fornido. Como indisciplinado, arruaceiro, com dificuldades para cumprir ordens ou bater continência. Foi expulso do Exército por insubordinação. Enquanto na ativa, quis jogar bombas em quartéis e se preocupou em agitar a tropa. Contra o que? Contra tudo, em nome de ideias vagas e de simpatia explícita pela violência, pela tortura e pela ditadura.
Elegeu-se assim uma pessoa que ao longo da vida se mostrou despreparado para as batalhas mais simples. Um personagem tosco, sem qualquer refinamento intelectual, que durante 30 anos montou um bunker com os filhos e alguns fanáticos para tomar de assalto o Estado brasileiro. O quartel-general foi a Câmara dos Deputados, de onde a malha se expandiu, envolvendo políticos tradicionais, milicianos e uma chusma de desqualificados. Nenhum técnico, nenhum intelectual, mas muitos oportunistas, à espreita para descolar uma boquinha quando a hora chegasse.
2018 foi um ponto fora da curva. Há quem prefira analisá-lo como decorrência do impeachment de Dilma Rousseff, visto como um “golpe” que teria aberto a estrada para a extrema-direita. Não é uma visão majoritária, especialmente porque não leva na devida conta a decomposição política que vinha em marcha desde antes e a responsabilidade do PT na ausência de governo, que encorpou a ponto de provocar verdadeira metástase no sistema político, misturando-a com doses cavalares de corrupção e instrumentalização da máquina pública.
Naquele ano, o desencanto do eleitorado com o PT e a esquerda somou-se à incompetência dos políticos democráticos, que se deixaram consumir pela vaidade e pela arrogância, não foram capazes de articular um programa de ação e acabaram por entregar a Presidência de mão beijada para o personagem que estava ali, pronto para agitar, na hora certa, uma hora agônica, que simbolizava o fim de uma época política.
O que assistimos hoje é só um desdobramento desse quadro. O personagem continua solto, com o mal crescendo dentro dele. Piorou muito depois que chegou ao poder. Sentiu-se em condições de fazer tudo e mais um pouco. Contou com militares a seu lado, que aderiram a ele com a expectativa de conseguir controlá-lo. Organizou uma rede de robôs e influencers para espalhar suas mensagens, suas mentiras, seu veneno. Beneficiou-se da covardia de tantos políticos, da falta de clareza dos partidos, da reprodução na opinião pública de uma ideia de que a “política tradicional” era inútil, um desperdício para o País. Foi-se mantendo, ora esperneando, ora agitando os fanáticos, ora minando as instituições. De governo mesmo, não se teve notícia.
O personagem se isolou no seu novo bunker, o Palácio do Planalto. Foi perdendo a guerra que se prontificou a lutar. Manteve a pose de que estava vencendo com a ponta da caneta, demitindo e nomeando. Fazendo lives diárias com os seguidores amontoados na porta do Palácio. Agredindo e ofendendo os que ousavam discrepar ou fazer fluir a informação, como os jornalistas.
O monstro passou a dominar por completo o personagem. Encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, desencontro, horror, confusão. Adubou esse habitat e fez dele a rampa de lançamento para seguir atacando a população, os políticos, o STF.
Manteve a ressonância entre os fanáticos, como era de se esperar. Eles são como o rebanho que se deixa arrastar para lá e cá. Batem bumbos, fazem carreatas, agridem e ameaçam.
O personagem foi sendo levado pelos aplausos fáceis, tirando vantagem da lentidão das instituições, que não reagem com rapidez, jogando um partido contra outro, governadores contra prefeitos, povo contra povo.
Agora que o caldo está entornando, algumas perguntas ficam soltas no ar.
Como foi possível que um País como o nosso tenha chegado a esse ponto?
Onde estão as figuras “responsáveis” que integram o governo, que nada falam, nada fazem, a tudo assistem como se se tratasse de uma comédia bufa ou de um drama de horror? Continuarão escondidos atrás da “prudência”, da “minimização de danos”, enquanto o fogo se alastra na Esplanada e invade recônditos inesperados?
Onde estão os democratas ativos e responsáveis, permanecerão adormecidos, confusos, olhando para urnas, fazendo cálculos mesquinhos, bem nessa hora em que boa parte do destino nacional pode estar sendo definida? Onde estão os grandes da República, os chefes das instituições, os defensores das melhores tradições?
E os eleitores que sufragaram o personagem em 2018, continuarão a vê-lo como uma solução, como o “mal menor”, agora que o monstro tomou conta daquele corpo e daquela mente de modo irremediável?
Ana Carla Abrão: Inconfidência
Não é justo o setor público aumentar gastos com pessoal enquanto o privado corta salários e demite
Embora para muitos passe quase desapercebido, hoje é feriado nacional. Dia que se celebra a Inconfidência Mineira e que marca a data em que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi executado. Mas estamos numa época em que feriados e dias de semana se confundem numa rotina em que horas, dias e semanas se arrastam num mesmo ritmo, sempre à espera do fim dessa pandemia, quando poderemos voltar às ruas e à normalidade.
A boa notícia é que, ao menos no Brasil e graças às medidas de contenção adotadas tempestivamente, a situação parece estar sob controle. Isso não minimiza a dor dos que perderam amigos e familiares nem tampouco alivia a pressão diária sobre os profissionais de saúde e os agentes públicos. A má notícia é que, apesar dos números controlados até aqui, nós não nos livraremos da pandemia tão cedo e ainda não estamos totalmente preparados para lidar com isso.
Embora seja imprescindível que se discutam e se planejem ações de flexibilização do isolamento, há que se entender que a transição para um novo normal precisa de bases que estão por serem construídas. Dentre elas, as medidas econômicas de médio e longo prazos, que vão além das medidas emergenciais ainda em fase de implantação, mas que podem ser estruturalmente comprometidas se não obedecermos alguns princípios. E eles passam, necessariamente pelas questões fiscais, nosso grande e maior gargalo muito antes da pandemia pousar por aqui.
Não completamente internalizada pela classe política, pelos gestores públicos, pelo setor privado e pela população, a verdade é que teremos de conviver com a pandemia ao longo dos próximos 12-18 meses. Isso significa, em linguagem política, que os pouco menos de três anos restantes dos mandatos de governadores e do presidente da República se desenham agora completamente distintos do que era previsto até dois meses atrás.
Em finanças públicas, essa distância entre o que era e o que será se traduz nos orçamentos públicos, que desde já perderam qualquer aderência com os orçamentos aprovados e, consequentemente, com os resultados e metas fiscais previamente definidos não só para 2020, mas para os próximos anos.
Linhas de despesa se inverteram, fontes de arrecadação sumiram e prioridades de política pública mudaram, adicionando complexidade aos esforços de ajuste fiscal e de retomada econômica que existiam até pouco tempo.
Em particular nos Estados, que são a linha de frente do combate à pandemia, os desafios fiscais – que já não eram pequenos – se tornaram um pesadelo que nos aguarda ali adiante. A queda no ICMS já se aproxima dos 20% nos Estados mais afetados e não vai se reverter ao longo dos próximos meses dada a elevação da inadimplência que se soma à fraqueza da atividade econômica. Nas despesas, os gastos de saúde – cuja vinculação constitucional estipula um piso de 12,5% da receita corrente líquida – já superam os 20% e não deverão ceder de forma significativa nos próximos meses. Logo, não há como não defender um socorro a Estados, que estão tendo suas contas implodidas e, ao contrário da União, têm (felizmente) severas limitações para se endividar.
Mas a premissa de salvamento tem de levar em conta dois princípios fundamentais: já havia um profundo desequilíbrio estrutural previamente à crise da covid-19 e ele se agravará caso as medidas não sejam temporárias e focalizadas no combate à pandemia. O segundo deles se refere à composição das despesas nos Estados e à dinâmica que canaliza para despesas de pessoal boa parte dos recursos livres que entram nos Tesouros locais.
Repisando os números: cerca de 70% das receitas dos Estados são consumidas por despesas de pessoal. Além disso, dada a estrutura de carreiras presente na totalidade desses entes, essas despesas crescem entre 5% e 7% ao ano, independentemente de reajustes salariais. Os motores desses aumentos são as promoções e progressões automáticas, além de incorporações de gratificações por tempo de serviço aos salários e a constante necessidade de novos concursos públicos para suprir a falta de mobilidade e os efeitos do fator T (em que a aceleração das carreiras leva todos ao topo muito rápido e desassiste o atendimento na ponta). Compensar as perdas de arrecadação dos Estados sem que haja como contrapartida a interrupção dessa dinâmica significa agravar a situação de desigualdade no Brasil e aprofundar os desequilíbrios estruturais da máquina pública. Enquanto o setor privado corta salários e demite, não é justo que o setor público continue aumentando seus gastos com pessoal e canalizando recursos para se retroalimentar.
Que este feriado atípico seja usado como uma oportunidade de resgate desses princípios por parte dos nossos parlamentares. Afinal, a inconfidência aqui não está no socorro e, sim, na falta de visão de futuro.
* ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN.
Pedro Fernando Nery: A desigualdade planejada
Sentenciamos os mais pobres a um futuro pior ao empurrá-los para a periferia distante
A história humana é marcada pela tensão entre os benefícios de nos aglomerarmos em cidades e os custos das doenças infecciosas. Assim observou Matthew Yglesias, do jornal Vox, sobre o coronavírus. Já no ótimo livro Cidade Caminhável, pré-covid, o urbanista Jeff Speck pontificara sobre as vantagens do adensamento, criticando as espaçadas cidades americanas baseadas em desenhos tidos como mais salubres.
Os ganhos econômicos da cidade densa podem ser vislumbrados em um “experimento” do governo americano no século passado, que pagou para que famílias pobres se mudassem para partes ricas de sua cidade. Como mostrou Raj Chetty, de Harvard, a nova vizinhança se mostrou fundamental para a mobilidade social. Isto é, o bairro em que uma criança cresce afeta o seu salário quando adulto.
Ainda que o mecanismo não seja completamente compreendido pelos economistas, especula-se que estar mais próximo de melhores serviços e de pessoas mais escolarizadas e de maior renda contribua para o resultado. Assim, cidades com regras rígidas de construção, ao empurrar os mais pobres para periferias distantes, os sentenciariam a um futuro pior.
Ninguém deve fazer isso tão bem quanto a aniversariante do dia, Brasília. Passadas seis décadas da sua inauguração, sua utopia de igualdade deu lugar a umas das capitais mais desiguais do Brasil. Seu zoneamento rígido faz com que parte expressiva da população tenha de viver bem longe do seu Plano-Piloto. A partir dali, garimpam oportunidades em uma economia em que boa parte da renda é distribuída pelo instrumento elitista do concurso público.
As anedotas são abundantes. Mais de 300 mil pessoas moram em Águas Claras ou em Águas Lindas. A primeira é espécie de zona franca das restrições do distante Plano-Piloto, vendida por corretores de imóveis como a “Manhattan do Cerrado”. Edifícios altos, próximos uns dos outros, sem os enormes descampados do plano de Lúcio Costa. Dos anos 90 para cá, Águas Claras virou destino de uma elite que não está disposta aos preços inflados do avião. “O coronavírus chegou em Brasília, já fez dois concursos e financiou um apartamento em Águas Claras”, diz a piada.
Os nomes são parecidos, mas Águas Claras contrasta com Águas Lindas. A primeira tem o IDH da Noruega, a segunda, o da Palestina. Ali moram os que rumaram para Brasília, mas não conseguiram lugar nos quase 6 mil km2 do Distrito Federal. Águas Lindas já é o quinto município mais populoso de Goiás. É um dos mais violentos do Brasil, com taxas de homicídios que rivalizam com as da Baixada Fluminense.
Dentro do DF, a cidade planejada convive com o que pode ser a maior favela do Brasil: se chama Sol Nascente. De ocupação recente, ela se situa nas imediações da cidade-satélite de Ceilândia. Ceilândia foi criada nos anos 70, com a realocação de populações que ocupavam áreas públicas no Plano-Piloto, no âmbito da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI, que batizou a cidade). O Sol Nascente é a Ceilândia da Ceilândia.
Ceilândia aparece nos versos de Faroeste Caboclo, a famosa canção de Renato Russo de 1987 (é o lugar onde o protagonista é assassinado). O filme, de 2013, porém, não foi filmado lá: para imitar as condições da cidade-satélite brasiliense na época, as cenas foram filmadas nas ruas sem asfalto do Jardim ABC. Essa “nova Ceilândia” fica formalmente em um município goiano. A apenas 2 km dali, ergue-se um gigantesco condomínio, franquia do Alphaville na capital de maior PIB per capita do País.
Há exatos dez anos, Niemeyer afirmava que a evolução do desenho igualitário para uma cidade desigual o entristecia, no que avaliou como “divisão intolerável”.
Após o trauma da pandemia e diante do remédio do distanciamento social, o economista Tyler Cowen receia que esse tipo de zoneamento excludente ganhe ímpeto, à medida que fortaleça o movimento conhecido como Nimby (“no meu quintal não”, em inglês). São os que defendem regras rígidas para as construções a fim de evitar a desvalorização dos seus imóveis e mais trânsito na vizinhança – às vezes, também com alegadas preocupações ambientais.
Já no polo contrário, a visão liberal se preocupa com a redução da oferta de imóveis que pressiona o preço dos aluguéis, e com o espraiamento decorrente que afasta os mais pobres de oportunidades. O êxito no combate à pandemia de metrópoles densas como Hong Kong e Cingapura deverá ser o contraexemplo contra a brasilianização.
Este é um ano de eleições municipais: a experiência de Brasília mostra que elas podem importar tanto para a desigualdade quanto o que se decide no Congresso Nacional.
* DOUTOR EM ECONOMIA
Paulo Sotero: Por um diálogo além da capacidade de Trump e Bolsonaro
A covid-19 indica a ciência como caminho para aproximação com os Estados Unidos
A cooperação internacional não é a praia de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro. Mas é campo fértil e promissor para cientistas do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países com história de combate a epidemias trabalharem juntos para decifrar a covid-19, conter o contágio e desenvolver uma vacina para o vírus que já matou dezenas de milhares de pessoas e poderá matar milhões.
“A Índia e o Brasil têm grandes indústrias de vacina”, escreveu Donald G. McNeil Jr., do New York Times, em ampla reportagem publicada no domingo sobre o longo caminho à frente para conter o vírus. Epidemiologistas dos EUA, da Índia, da China, da França e do Reino Unido sabem que o desenvolvimento científico no Brasil nasceu do combate a epidemias e endemias, como escreveu Simon Schwartzman em Um Espaço para a Ciência, uma história da formação da comunidade científica no Brasil, fundada por médicos pioneiros, como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Carlos Chagas e Adolfo Lutz, na virada do século passado. Vem do legado desses gigantes a boa tradição de nossa medicina sanitária, reconhecida mundo afora e que permitiu ao País, em tempos recentes, enfrentar com sucesso as epidemias de HIV-aids, Sars e zika.
Não é somente na ciência que o Brasil pode e deve agir em interesse próprio e da humanidade e contribuir para conter o flagelo da covid-19. Arthur Silverstein, um historiador da medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, sugeriu, na mesma reportagem do New York Times, que o governo americano assuma o controle e esterilize grandes cubas de fermentação de cervejarias e alambiques de produção de bebidas destiladas e os ponha a serviço da produção em grande escala de uma vacina segura, quando esta for descoberta. Eis aí um convite à Ambev e aos grandes fabricantes de cachaça para redirecionar parte de sua capacidade de produção para o bom combate à pandemia.
A cooperação brasileira pode ir além, se governantes como Trump e Bolsonaro deixarem de usar o flagelo para fazer demagogia com coisa séria e ouvirem o conselho de cientistas como a médica Luciana Borio. Nascida no Rio de Janeiro, Luciana Borio trabalhou na unidade de prevenção de pandemias criada no Conselho de Segurança da Casa Branca na administração do republicano George W. Bush, fortalecida pelo democrata Barack Obama e esvaziada em 2018, sabe-se lá por quê, por Trump. Formada pela Escola de Medicina da Universidade George Washington, na capital americana, a médica atuou como cientista chefe da Food and Drug Administration e não tem paciência para conversas sobre as virtudes cantadas por Trump e seu seguidor brasileiro do remédio antimalária cloroquina e do antibiótico azitromicina no tratamento dos males causados pela covid-19. “É um completo absurdo”, afirmou ela ao Times. “Disse à minha família que, se eu pegar a covid, não me deem esse coquetel.”
O potencial de colaboração na luta contra a pandemia entre cientistas, empresários e formuladores de políticas públicas nos dois países indica o caminho de relações produtivas que o Brasil e os Estados Unidos podem construir para além da retórica diplomática vazia. Foi o que aconselhou Thomas A. Shannon em palestra no Wilson Center, no final de 2013, depois de servir como embaixador dos EUA em Brasília. O diplomata afirmou que a conectividade crescente entre os dois países em vários campos tornaria suas sociedades os vetores principais do relacionamento entre os dois países e mais importante do que as ações dos governos.
Hoje, os governos Trump e Bolsonaro, populistas ultraconservadores adeptos da estratégia do caos, não apenas não ajudam, como atrapalham. Isso foi ilustrado há poucas semanas pelo injustificável desvio, por ordem da Casa Branca, de respiradores e materiais de proteção hospitalar comprados na China pelo governo da Bahia, durante uma escala em Miami. De nada adiantou a suposta proximidade entre Trump e Bolsonaro ante a necessidade premente do líder americano de lidar com as consequências da resposta tardia e errática que deu à pandemia, interceptando em aeroportos dos EUA voos carregados de mercadoria médica destinados não apenas ao Brasil, mas também ao Canadá, à Alemanha e à Espanha.
A perda de popularidade de Trump e suas chances minguantes de reeleição em novembro, que o levam a atribuir a adversários internos e externos a culpa pela calamidade econômica e social que o flagelo do vírus provoca nos EUA, promete novas frustrações entre Washington e Brasília. O presidente brasileiro é visto com repugnância por assessores para a América Latina da campanha do ex-vice-presidente e ex-senador Joseph Biden, democrata que terá a incumbência de tirar Trump da Casa Branca. Essa é mais uma razão para que os interessados no Brasil no aprofundamento de um diálogo consequente com os Estados Unidos torçam por Biden e apostem em ações que envolvam uma maior cooperação entre cientistas, educadores, empresários e líderes de organizações sociais e culturais dos dois países.
* JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WOODROW WILSON CENTER, EM WASHINGTON
O Estado de S. Paulo: Discurso de Bolsonaro 'incentiva desobediência' e é 'escalada antidemocrática', dizem políticos
Parlamentares, presidentes de partidos e governadores criticaram discurso feito pelo presidente da República em ato que pedia fechamento do Congresso e intervenção militar
Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
Lideranças políticas criticaram, neste domingo, 19, o discurso do presidente Jair Bolsonaro em uma manifestação que pedia o fechamento do Congresso e intervenção militar em Brasília. Os políticos classificaram como "grave", "incentivo à desobediência" e "escalada antidemocrática" a atitude de Bolsonaro de ir a um protesto antidemocrático e de incentivar a aglomeração de pessoas.
Na tarde deste domingo, o presidente voltou a descumprir as medidas de isolamento social, provocou aglomeração em frente ao Quartel General do Exército, na capital federal, e se dirigiu aos manifestantes do alto de uma caminhonete. "Eu estou aqui porque acredito em vocês, vocês estão aqui porque acreditam no Brasil. Nós não iremos negociar nada", disse, enquanto a multidão pedia o fechamento do Congresso Nacional, a volta do AI-5 e as Forças Armadas nas ruas.
Líder do Podemos no Senado, o senador Álvaro Dias afirmou que a atitude de Bolsonaro é um "estímulo à desobediência". "Fica difícil aceitar essa transferência de responsabilidade para o Congresso do fracasso do governo federal", afirmou o senador. "A atitude de Bolsonaro hoje (com manifestantes) foi grave. É um estímulo à desobediência. O presidente age como se estivesse em um parque de diversões."
O ex-ministro Bruno Araújo, presidente do PSDB, afirmou que Bolsonaro coloca em risco a democracia e desmoraliza a Presidência: " O presidente jurou obedecer à Constituição brasileira. Ao apoiar abertamente um movimento golpista, ele coloca em risco a democracia e desmoraliza o cargo que ocupa. O povo e as instituições brasileiras não aceitarão".
Já Roberto Freire, presidente do Cidadania, classificou a atitude de Bolsonaro como uma "escalada antidemocrática". "O STF e o Congresso devem ficar em posição de alerta. O presidente está se aproveitando da pandemia para articular uma escalada anti-democrática. Além de um ato criminoso contra a saúde pública, foi um cirme de responsabilidade apoiar um ato que prega a volta do AI-5 e contra o Congresso e STF".
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que vem travando debates com Bolsonaro desde que determinou medidas de isolamento social para combater o coronavírus, assim como a maior parte dos governadores, chamou de "lamentável" a atuação do presidente neste domingo. "Lamentável que o presidente da República apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5. Repudio também os ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal. O Brasil precisa vencer a pandemia e deve preservar sua democracia."
O AI-5 foi o Ato Institucional mais duro instituído pela repressão militar nos anos de chumbo, em 13 de dezembro de 1968, ao revogar direitos fundamentais e delegar ao presidente da República o direito de cassar mandatos de parlamentares, intervir nos municípios e Estados. Também suspendeu quaisquer garantias constitucionais, como o direito a habeas corpus, e instalou a censura nos meios de comunicação. A partir da medida, a repressão do regime militar recrudesceu.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse neste domingo (19) que é “assustador” ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia.
Bolsonaro vem acumulando desgastes com o Congresso e governadores de todo o País por conta do enfrentamento do novo coronavírus. O presidente defende um relaxamento do distanciamento social por temer o impacto do isolamento sobre a economia brasileira. Na quinta-feira, 16,, o presidente atacou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao dizer que acha que a intenção do parlamentar é tirá-lo da Presidência.
Em reação às críticas, Maia disse que não entraria numa disputa pública com Bolsonaro: “O presidente não vai ter ataques (de minha parte). Ele joga pedras e o Parlamento vai jogar flores”, completou. Neste domingo, seu correligionário, o deputado Efraim Filho (PB), líder do DEM na Câmara, minimizou a participação do presidente da República na manifestação: "É hora de quebrar o retrovisor e pensar no amanhã em diante. Não é hora de trazer para o cenário mais uma crise política. A nação brasileira espera um gesto de paz e diálogo."
Na oposição, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que vai entrar com uma representação contra Bolsonaro na Procuradoria-Geral da República (PGR). "O senhor presidente da República atravessou o rubicão da tolerância democrática e ofendeu a Constituição em vários aspectos. Ele atentou contra as instituições do Estado democrático de direito e ofendeu inclusive o código penal", declarou.
O PSOL publicou uma nota de repúdio, assinada pelo seu presidente, Juliano Medeiros. "Essa provocação soma-se a outras tantas e comprova que ele não tem mais condições de seguir governando. É preciso que Bolsonaro deixe o poder imediatamente, pelos meios constitucionais disponíveis, para que o Brasil não siga sob as ameaças de um genocida", diz a nota.
Jose Goldemberg: Ciência em tempos de crise
Grandes líderes do século 20 sempre se cercaram de cientistas do mais alto nível
A crise mundial causada pelo coronavírus está fazendo muitas vítimas, mas provavelmente vai passar à História como uma crise que contribuiu para a recuperação da credibilidade da ciência.
A ascensão de governos populistas nas últimas décadas em vários países, sobretudo no Brasil e nos Estados Unidos, estava nos levando para um novo “período de trevas”, como na Idade Média, em que a evidência científica era aceita ou negada dependendo do interesse de grupos sociais, religiosos ou políticos, em prejuízo do conjunto da sociedade.
Foram necessários cientistas como Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, há cinco séculos, para comprovar que a Terra não é plana e também não é o centro do universo, o que abalou profundamente o poder da Igreja Católica e abriu caminho para o descobrimento da América.
Foi preciso, também, um Charles Darwin, no século 19, para demonstrar, de maneira clara, que os seres vivos evoluem e não foram criados todos ao mesmo tempo, há 5 mil anos.
A descoberta da existência do código genético, por James Watson e Francis Crick, abriu caminho para a “revolução verde” na agricultura, que eliminou a fome no mundo.
Os trabalhos de Louis Pasteur e o desenvolvimento de vacinas praticamente eliminaram o sarampo, a poliomielite e diversas outras doenças devastadoras.
Ainda assim, existem políticos e grupos religiosos que negam a realidade desses avanços, inventando teorias conspiratórias ou fazendo uma leitura incorreta das Escrituras, que foram escritas há milhares de anos, refletindo uma realidade social que não é a realidade de hoje numa sociedade altamente tecnológica.
Nestas sociedades é indispensável uma divisão de tarefas e de respeito pelo conhecimento técnico de especialistas baseada na melhor ciência disponível em todas as áreas. Líderes populistas sistematicamente desprezam a evidência apresentada por esses especialistas quando ela se choca com seus interesses ou suas próprias visões, já que muitos deles vivem num “universo paralelo”.
Foi o que aconteceu no caso da pandemia de covid-19, que enfrentamos hoje.
As recomendações dos especialistas eram claras: na ausência de uma vacina que nos proteja do vírus, a única defesa é evitar que ele nos contamine, por meio do “distanciamento social” e da quarentena. Essa orientação, todavia, conflita com interesses econômicos e pode levar ao desemprego. Como era previsível, líderes populistas tentaram negar as evidências da gravidade da crise até que a realidade se impusesse brutalmente, com milhares de mortos por dia.
Felizmente, porém, existe a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma agência da ONU criada em 1948 para coordenar os esforços internacionais destinados a controlar e erradicar doenças como a malária, a tuberculose, a varíola e agora a covid-19. Em consequência, todos os países – alguns relutantemente, como os Estados Unidos, a Inglaterra e o Brasil – estão seguindo as recomendações da OMS, aceitando sua autoridade científica incontestável na área da saúde.
A proposta original de criação da OMS partiu de diplomatas brasileiros, em 1946, e seu diretor-geral durante 20 anos (de 1953 a 1973) foi o médico brasileiro Marcolino Candau.
Participam dos comitês técnicos da OMS os melhores cientistas provenientes dos países-membros e suas recomendações e seus protocolos são usados como base das ações de todos os órgãos ligados à saúde no mundo todo.
Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, tentou desqualificar a OMS e seu atual diretor-geral, Tedros Adhanom, ao argumentar que ele não foi eleito pelo povo brasileiro, o que é verdade. Sucede que nem o secretário-geral da Organização das Nações Unidas nem o papa são eleitos pelo povo, o que não significa que não tenham legitimidade e autoridade nas suas áreas de atuação. Pilotos de aviões comerciais também não são eleitos pelos passageiros. No caso da OMS, é a competência técnica e científica da instituição, criada há mais de 70 anos, que lhe dá autoridade e credibilidade.
Recuperar a credibilidade, aliás, é a expressão correta, porque os grandes líderes do século 20 sempre se cercaram de cientistas do mais alto nível, o que foi particularmente importante durante a 2.ª Guerra Mundial.
O presidente Franklin Delano Roosevelt, dos Estados Unidos, recebeu até a colaboração de Albert Einstein. E Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido, tinha um assessor científico permanente. Depois da guerra, o Congresso americano criou o Gabinete de Política Científica e Tecnológica na própria Casa Branca. O titular desse gabinete é um cientista escolhido pelo presidente, mas o nome tem de ser aprovado pelo Senado americano, o que mostra a importância do cargo.
Esse seria um bom exemplo a ser seguido em nosso país.
*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo (USP), foi ministro de Ciência e Tecnologia
Carlos Pereira: Isolamento social é coisa de rico?
O 'medo da morte' relativiza as preocupações com as potenciais perdas econômicas
Tem ganhado força a interpretação de que a política de isolamento social, preconizada pela Organização Mundial da Saúde e implementada pelos governadores dos estados, estaria sendo primordialmente apoiada por aquelas pessoas que teriam recursos financeiros para se manter confortavelmente em quarentena. A pressuposição, inclusive reverberada pelo presidente Bolsonaro, é a de que seria mais fácil para o grupo social de maior renda priorizar os cuidados com a saúde e relegar os problemas econômicos gerados pela pandemia para segundo plano.
Por outro lado, as famílias com rendimentos mais baixos, que dependem de rendas do trabalho e/ou de transferências governamentais, seriam mais vulneráveis e, portanto, necessitariam voltar mais cedo às suas atividades profissionais e apresentariam assim maior resistência a manutenção do isolamento social. Na realidade, as famílias menos abastadas já estariam sendo atingidas pela crise.
Muitos não teriam recursos para alimentação, aluguel, remédios etc. Sabem que seus empregos, casas, negócios, estariam em risco iminente, especialmente o setor de serviços, onde as famílias mais pobres e de menor qualificação estão mais empregadas. Por isso, prefeririam enfrentar o risco de serem contaminados pelo vírus e voltar ao trabalho.
Será que este aparente antagonismo em relação ao isolamento social é realmente baseado nas diferenças de renda ou risco de prejuízo econômico? Para responder essas perguntas, eu e meus colegas Amanda Medeiros e Frederico Bertholini fizemos uma pesquisa de opinião, com o apoio do Estado. O questionário foi divulgado nas redes sociais, em especial pelo WhatsApp, entre os dias 28 de março a 04 de abril. A amostra total foi de 7848 respostas válidas.
A grande maioria dos respondentes que se auto identificam como de esquerda, centro-esquerda e centro discordaram da atuação de Bolsonaro durante a pandemia e aprovaram o isolamento social. Resolvemos, portanto, concentrar a análise apenas no segmento onde observamos variância de opiniões, entre os respondentes que se auto identificam como centro-direita e direita. Será que o nível de renda ajuda a explicar as diferenças de opinião?
A Figura 1 mostra que, ao contrário da expectativa de que as pessoas com diferentes faixas de renda deveriam exibir distintos padrões de apoio a política de isolamento social, a diferença entre as médias das distintas faixas de renda não é estatisticamente diferente. Ou seja, pelo menos até a semana que os dados foram coletados, a sociedade não está cindida pela renda. Os mais pobres e os mais ricos ainda estão no mesmo barco, apoiando majoritariamente o isolamento social e se opondo a recomendação do presidente de volta ao trabalho.
O que dizer dos potenciais prejuízos econômicos gerados pela política de isolamento social? A Figura 2 mostra a distribuição dos distintos níveis de prejuízo econômico em função do apoio à flexibilização do isolamento social pelo presidente, correlacionada com o conhecimento de pessoas infectadas pela Covid-19 e seus respectivos graus de gravidade.
Distribuição do nível de prejuízo econômico em função do apoio à flexibilização do isolamento social pelo presidente, correlacionada com o conhecimento de pessoas infectadas pela Covid-19 e seus respectivos graus de gravidade.
Enquanto os que não conhecem pessoas contaminadas (linha escura) chegam a apoiar a política do presidente e identificam risco de grande prejuízo econômico como consequência isolamento social, os que conhecem pessoas que se contaminaram e que vieram a falecer (linha amarela) não apresentam variação em relação aos níveis de prejuízo econômico. Em outras palavras, a gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito, leva as pessoas a minimizar as potencias perdas econômicas que o isolamento social possa vir a lhes proporcionar.
Vera Magalhães: Paranoia de Estado
Instrumentos públicos não podem ficar à mercê de delírios do governante
Derrubado Luiz Mandetta, o inimigo interno que Jair Bolsonaro resolveu combater em meio à maior emergência de saúde do planeta, os esforços do presidente da República se voltam agora para uma tríade de adversários: Rodrigo Maia, João Doria e o STF, com menor intensidade (até porque, desde que assumiu, ele mostra certo temor de atacar o Judiciário com a sem-cerimônia com que atinge outros Poderes e instituições).
A razão é a velha paranoia presidencial. Acossado por fantasmas persecutórios desde muito antes de ser presidente, Bolsonaro vê um complô para derrubá-lo. O foco do momento é o presidente da Câmara, até pela importância do cargo para um eventual processo de impeachment.
Para atiçar ainda mais o medo do capitão, a sexta-feira foi o aniversário de quatro anos da queda de Dilma Rousseff. À parte pedaladas e economia em frangalhos, a condição definitiva para o impeachment avançar foi a decisão de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, de levá-lo a cabo depois de a presidente o desafiar.
Bolsonaro estava lá. Ele sabe que, quando a Câmara vira, o presidente está em apuros. Um fato foi fator decisivo para o presidente pirar. A Câmara deu 30 dias para que ele apresente seu resultado do teste para covid-19. Desde que voltou dos Estados Unidos, após o Carnaval, o presidente se esquiva dessa exigência básica de transparência. Já alegou que fez teste com nome falso e que os exames são sigilosos por questão de Estado. A Câmara resolveu pagar para ver.
Ter mentido numa questão tão séria quanto a própria saúde em meio a uma pandemia, ainda mais quando apregoa por aí que se trata de uma “gripezinha”, que as pessoas devem “enfrentar o vírus” e sai pela rua cumprimentando pessoas após assoar o nariz seria, sim, crime de responsabilidade.
O Legislativo de 2020 está a léguas de distância do de 2016 quanto à disposição para um impeachment. Embora tenha grande ascendência sobre várias bancadas, Maia não é Cunha em termos de métodos de persuasão. Além disso, deputados e senadores avaliam que o momento de crise sanitária, humanitária, social, econômica e política agudas não combina com um processo de impeachment.
Mas Bolsonaro segue atormentado por seus fantasmas. Isso não seria um problema sério se os meios para demonstrar sua paranoia fossem os de sempre: guerrilha nas redes sociais e entrevistas descompensadas. Porém, há indícios de que aparelhos de Estado estão sendo usados para alimentar a paranoia, o que aumenta em muito a gravidade da situação. Há indícios de que a Abin, a agência de inteligência do governo, está sendo usada para espionar Maia, Doria e sabe-se lá mais quem.
Diante da reação até tímida do Congresso, pela gravidade da acusação, o Planalto desmentiu a informação, mas a total falta de transparência com que este governo trata a coisa pública não permite acreditar na negativa. É preciso cobrar e investigar o uso do Estado para saciar a fome de teorias da conspiração do capitão.
A Hungria é um caso a ter na mira. Lá, Viktor Orbán, um dos ídolos da família Bolsonaro, aproveitou a pandemia para dar um golpe de Estado.
Nesta semana, em meio a uma fala sem pé nem cabeça quando consumava sua birrenta troca de ministro da Saúde, Bolsonaro lembrou que é sua prerrogativa decretar estado de sítio. Não é a primeira vez que essa expressão aparece, meio “sem querer”, desde que a crise começou.
É preciso que as instituições reforcem a vigilância, porque chefe de Estado paranoico e autoritário, um risco de “golpe” inventado e sustentado nas redes sociais, Estado à mercê da paranoia e sociedade amedrontada formam um combo bastante propício a tentativas de virada de mesa.
José Roberto Mendonça de Barros: Da tragédia para as novas perguntas
Na crise, crescem os segmentos onde a ciência e a tecnologia foram aplicadas
Este é o terceiro artigo desde o aparecimento do novo coronavírus no Brasil.
Vimos que a pandemia se tornou uma ameaça global e provocou a parada súbita no sistema econômico, o que precipitou uma recessão.
Nesta semana, o Fundo Monetário Internacional (FMI) deu uma ideia da dimensão do problema, que é, sem dúvida, a maior ameaça para a economia mundial desde a 2.ª Guerra. No caso básico, o PIB global cairá 3%, sendo que os números serão muito piores para as economias ricas: -5,9% nos EUA, -7,5% na zona do euro, -5,2% no Japão. China e Índia, os gigantes emergentes crescerão 1,2% e 1,9%, respectivamente. A América Latina vai na mesma direção, encolhendo 5,2%. Um show de horror.
A pergunta é o que acontece no ano que vem, isto é, se a recuperação será rápida ou relativamente lenta. No modelo do FMI, a recuperação será bem significativa, com o PIB global, crescendo 5,8% em 2021.
Tenho grande dificuldade em aceitar essa projeção, uma vez que ela tem como base algumas hipóteses que são heroicas para mim, a começar da ideia de que não haverá uma segunda onda do ataque do vírus. Em segundo lugar, haverá um número enorme de quebra de empresas de todos os tamanhos, em muitos lugares do mundo, especialmente, nos Estados Unidos, onde a dívida corporativa é a maior da história. Em terceiro lugar, o crescimento do desemprego e o grande desarranjo que acontecerá nos orçamentos familiares.
Depois de sairmos de uma experiência tão dramática, colocam-se algumas perguntas a respeito de para onde irá a economia global.
Nesta semana, duas reuniões patrocinadas pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) foram particularmente úteis para ter uma visão do problema. Na segunda-feira, participei de um debate com Demétrio Magnoli e Pedro Malan e na quarta-feira assisti a um belíssimo diálogo entre Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Marcos Azambuja. Desses eventos saem quatro grandes questões:
1 - Para onde irá o conflito China / Estados Unidos: serão competidores, adversários ou inimigos?
2 - O nacionalismo e o protecionismo seguirão prevalecendo sobre o multilateralismo?
3 - As cadeias de produção globais vão ou não se reconstituir?
4 - Como as ameaças globais, clima e aquecimento, pandemias, pobreza e migração, serão tratadas?
Naturalmente, a pergunta que se segue é como deverá o Brasil proceder perante essas questões? Minha percepção é que o governo atual nem sequer compreende qual é o problema, especialmente, no Planalto e no Itamaraty.
A parada súbita pegou o Brasil numa situação pior do que a de muitos países, porque não estávamos crescendo, mas tentando juntar as condições para tanto.
Após certa hesitação inicial, o governo foi desenvolvendo políticas que acabaram por cobrir as áreas necessitadas de atenção. A grande questão agora é a execução desses programas até chegar na ponta final.
Entretanto, mesmo com todos esses gastos a queda da atividade será enorme: o FMI projeta -5,3%, o Banco Mundial -5,0% e a MB -4,7%.
É também quase um consenso que o déficit primário será maior do que R$ 500 bilhões e que a relação dívida/PIB subirá para algo entre 85% e 90%.
O pior é que voltaremos após a emergência sanitária à árdua tarefa de reconstruir as condições de retomada do crescimento, mais pobres e num mundo que será diferente.
O governo Bolsonaro não tem mais chances de mostrar um crescimento relevante. Continuaremos numa trajetória medíocre, que vem desde 2014.
A revolução liberal sonhada pela equipe econômica naufragou totalmente. Ela nunca teve mesmo muita chance com um chefe do executivo iliberal.
Apesar de toda crítica de Paulo Guedes à social-democracia, nossa má distribuição de renda é grande o suficiente para não ser ignorada. Imagine o que estaria acontecendo no País se não tivéssemos o Bolsa Família e o SUS.
Em vez da abertura externa, o que vimos foi uma grande coalizão do Ministério da Economia com a Fiesp.
Poucos setores estão conseguindo enfrentar a crise. Os mais relevantes são o agronegócio e a logística, o sistema financeiro, as telecomunicações (que estão suportando o home office em massa, apesar de sua insuficiência), as empresas com plataformas mais sólidas de e-commerce.
A educação a distância, a telemedicina e outros serviços remotos explodiram. Todos esses segmentos têm um enxame de startups em torno de si.
Ou seja, apenas onde a ciência e a tecnologia foram sistematicamente aplicadas na elevação da produtividade, na criação de competências e na inserção no mundo.
Espero que na penosa reconstrução da capacidade de crescer, esses sejam os segmentos com mais voz, em vez das tradicionais corporações que nos dominam.
Aí, teremos mais chances.
* ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE
Eliane Cantanhêde: De caminhões a aviões
Fim de isolamento com mortos de 9 Boeings e corpos na rua? Teich e governadores não farão
O Brasil ainda não chegou na fase de “caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas”, como advertia o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas já exibe cenas horripilantes de caminhões frigoríficos à saída de hospitais em Manaus para evitar outras cenas horripilantes, de corpos e pacientes, lado a lado, pelos corredores. Preparem suas almas e estômagos, porque o Brasil não é uma bolha e essas imagens vão se repetir.
Por ora, alternam-se números da realidade com imagens da realidade paralela em que habitam milhões de brasileiros e o presidente da República. São mais de 2 milhões de contaminados e 150 mil mortos no mundo, mais de 33 mil e 2 mil no Brasil, mas incautos amontoam-se pelas ruas, sem máscara, cuidado e medo. “Indo para o matadouro”, definiu a jornalista Monica Waldvogel.
Na mesma reunião com Bolsonaro e ministros em que falou dos “caminhões do Exército”, Mandetta comparou: se morressem mil pessoas, seria o correspondente à queda de quatro Boeings. Logo, hoje já seriam nove. Em frente ao aeroporto de Congonhas, o Memorial 17 de julho lembra os 199 mortos do voo TAM 3054, em 2007, meses depois que um Legacy se chocou no ar com o Gol 1907, deixando 154 vítimas. Foram os dois maiores acidentes aéreos brasileiros, com grande comoção nacional. Hoje, a Covid-19 já faz 2.347 mortos e famílias destroçadas, quase 12 vezes que em cada acidente, num só mês.
E o mundo parou (dizem que nunca mais voltou a ser o mesmo) naquele 11 de Setembro em que ataques terroristas fizeram 3 mil mortos em Nova York. Pois o terrorista coronavírus agora mata mais de 2 mil por dia – por dia! As vítimas já beiram 15 mil em NY e 35 mil na maior potência do mundo. Quantas Torres Gêmeas dá isso? E que mundo sairá dessa pandemia, que não tem ideologia, religião, raça e não poupa ricos e pobres?
No Brasil, como nos EUA, o coronavírus atacou “por cima”, os que podiam passear pelo mundo, e chega aos “de baixo”, que mal têm onde morar. Se em Nova York o maior índice de mortos é de negros e pobres, o que prever quando a Covid-19 sair dos bairros elegantes e se espraiar por periferias e favelas? E já saiu, está se espraiando.
E quando a pandemia deixar seu rastro macabro na Ásia, Europa e EUA, sossegar no resto das Américas e desabar na África? Não haverá caminhões do Exército nem frigoríficos suficientes e o continente pode se transformar num imenso Guayaquil, cidade do Equador com cadáveres pelas ruas.
Chocante? Sim, a realidade é chocante e quem ainda está sonhando precisa de uma chacoalhada. E é aí que entram as dúvidas sobre o novo ministro da Saúde, Nelson Teich. Com belo currículo e respeito dos pares, ele já defendeu publicamente o isolamento como principal arma para evitar uma tragédia maior, mas assumiu o ministério prometendo “alinhamento total” com um presidente que confronta, petulantemente, o isolamento.
Na conversa decisiva, Teich deixou boa impressão nos presentes, mas dúvidas na cabeça conturbada do presidente: seria capaz de transformar os achismos presidenciais em política de saúde? O mundo inteiro está aflito com os efeitos calamitosos da pandemia nas empresas e nos empregos, mas, como médico, gestor e especialista em saúde e economia, é improvável que o novo ministro jogue fora sua biografia assumindo o “risco” de um chefe eventual.
A melhor aposta está na senha do próprio presidente para Teich na posse: “Junte eu e o Mandetta e divida por dois”. Leia-se: o governo vai relaxar o isolamento, mas o ministro não topa loucuras e planeja um pouso controlado. Mesmo que topasse, governadores, Supremo e Congresso barrariam. Oremos!
Celso Lafer: Variações sobre o coronavírus
Não temer o perigo e os seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança
A generalizada magnitude do impacto do coronavírus é opressiva. Instiga, na anormalidade dos isolamentos, um parar para pensar o alcance e significado do ineditismo de uma situação geradora, em escala planetária, de medo e insegurança.
A covid-19 é um grande exemplo do que Proudhon qualificou como a fecundidade do inesperado. Surpreendeu governantes e governados. Foi muito além dos cálculos dos peritos em riscos. Não se esgota no âmbito do acaso, que “tem do confuso mundo o regimento”, como diz Camões.
As medidas de contenção da pandemia, baseadas no necessário distanciamento e isolamento social que a ciência no estágio atual do conhecimento prescreve, vêm fulminando a lógica normal da vida cotidiana e da economia. Tornaram uma realidade presente a clássica figura literária de um “mundo às avessas”. Evoca o que diz Gil Vicente: “O mundo é já desgorgomelado/ tudo bem se vai ó (ao) fundo” (Auto Pastoril Português). A palavra desgorgomelado, segundo os estudiosos do léxico vicentino (Teyssier), é um neologismo rústico, calcado em degolado, ou seja, garganta cortada. Aponta assim para a inédita crise de um mundo que não está respirando social e economicamente. Corre o risco de afundar.
As sociedades contemporâneas, inseridas, para o bem e para o mal, num mundo interconectado e interdependente, são sociedades de risco, sujeitas aos desgorgolamentos. A ampliação do conhecimento vem permitindo, na lida com esses desafios, construir em todas as esferas mecanismos e processos de gestão de riscos de todos os tipos – políticos, econômico-financeiros, empresariais, ambientais, de saúde. A gestão de riscos permite ampliar o escopo da prudência mediante a elaboração das modernas técnicas de múltiplos cenários. Estes têm como tarefa avaliar as contingências de um sem-número de imprevistos que transbordam das regularidades do que é tido como usual.
Independentemente da maior ou menor existência de condutas negligentes, em todos os âmbitos da conduta humana, inclusive no plano da saúde e da ordem mundial, existem limites ao horizonte do previsível.
Com efeito, uma característica dos sistemas complexos do mundo contemporâneo, em que estamos inseridos, é a de que é impossível explicá-los completamente e, por via de consequência, ter a capacidade de controlá-los inteiramente. A complexidade induz o potencial da radicalidade da incerteza e dos seus desdobramentos em todas as áreas. É o que observa Thierry de Montbrial – um dos grandes estudiosos da ação estratégica – em texto de 1.º/4 sobre o coronavírus. É o que explica a vigência da observação de Proudhon sobre a fecundidade do inesperado e de seus desdobramentos, que estão e vão impactar a dinâmica de uma já precária ordem mundial permeada pelas forças centrífugas da fragmentação.
Como enfrentar em nosso país o inesperado da covid-19? Para o homem de razão e de ação não cabe a insensível resignação perante a fatalidade dos óbitos. Não cabe igualmente alimentar a expectativa de salvação em curto prazo por meio de um remédio ou de uma vacina que para serem descobertos e aplicados pressupõem o tempo da pesquisa, que não é o tempo da urgência da crise. O homem de razão e de ação parte da objetiva percepção de que estamos diante de um labirinto de dificuldades e cabe buscar os difíceis caminhos de saída recorrendo ao repertório dos conhecimentos existentes e aos cenários de contingência que permitem.
Na condução das políticas públicas da saúde e da economia, em especial na situação-limite do coronavírus, é indispensável ter zelo. Zelo é incompatível com o negacionismo em relação aos fatos e com improvisações e rompantes que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem a sociedade.
“O verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, ensina o padre Antonio Vieira, que adverte: “O maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência validados pela Organização Mundial da Saúde indicam. Indicam seja em matéria de contenção e trato médico e hospitalar da pandemia, seja em matéria econômica, nas medidas emergenciais voltadas para mitigar o avassalador impacto da crise na vida das pessoas.
Não temer o perigo e seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança. Delas são exemplos, na área federal, o Ministério da Saúde na meritória gestão de Luiz Henrique Mandetta e a equipe econômica e outras objetivas equipes governamentais; no espaço da Federação, competentes governadores como João Doria e empenhados prefeitos como Bruno Covas; o Congresso e seus dirigentes; as antenas de sensibilidade do STF; a mídia no seu empenho em informar com transparência o que se passa; a sociedade civil nas suas manifestações e na miríade de múltiplos atos de solidariedade e filantropia.
Manter esse rumo, não fragilizar esse sentido de direção, é a única maneira que está ao nosso alcance para impedir um desgorgolamento que nos afundará num “mundo às avessas”.
* PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 e 2001-2002)