O Estado de S. Paulo
Marco Aurélio Nogueira: Diga-me com quem andas
Ministro da Justiça, Sérgio Moro está comendo o pão que o diabo amassou
Ontem, conversando com o jornalista Alexandre Machado, observei que não é aceitável que o ministro da Justiça fique em silêncio num momento como o atual. São tantas ilegalidades, tanto desrespeito aos direitos humanos, à Constituição e à democracia, que o mínimo que o titular da pasta deveria fazer seria se posicionar. Qualquer outra coisa que não isso é constrangedora.
Sérgio Moro está comendo o pão que o diabo amassou. Pagará caro pela omissão e pela covardia que o converteram em objeto de decoração de um governo descerebrado. Não terá como apagar de seu currículo o serviço que está a prestar a um presidente que pouco caso faz à Justiça.
Hoje, o noticiário dá conta de que Moro está pensando em se demitir. O motivo seria a disposição do presidente de se livrar do diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo. É uma novela que se arrasta há tempo. A razão da irritação presidencial não é conhecida, mas não é difícil imaginar quais são suas preocupações e intenções.
Caso termine por se consumar, a demissão de Moro deixa o governo mais fraco na opinião pública, mas não em termos políticos e administrativos. O atual ministro já era carta fora do baralho governamental. Para azar dele, acabará saindo tarde demais, sem tempo hábil para recompor a imagem e calibrar a narrativa. Terá de fazer um esforço enorme para sustentar que apesar de ter andado na companhia da família Bolsonaro não manteve laços de identidade com ela.
*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp
Eliane Cantanhêde: Fazendo água
Quanto mais popular, pior para o ministro. E troca da PF é salvar amigos e perseguir inimigos?
Uma sensação cresce a cada dia, a cada semana: o governo Jair Bolsonaro está fazendo água por todos os lados, depois que o presidente escancarou suas fragilidades, tomou atitudes despropositadas na pandemia, passou a prestigiar atos ostensivamente golpistas e, não satisfeito, partiu para o ataque contra as estrelas do próprio governo, uma por uma. Isso é hora de espicaçar o ministro Sérgio Moro?
Quanto mais popular, pior para o ministro. Luiz Henrique Mandetta caiu da Saúde, Moro cansou de ser desautorizado, Paulo Guedes está sendo atropelado depois que a pandemia trouxe para a arena a velha guerra entre “liberais” e “desenvolvimentistas”. Outra que começa a periclitar é Tereza Cristina, da Agricultura, que apanha de bolsonaristas na internet e está cansada dos desaforos de Ernesto Araújo, Abraham Weintraub e Eduardo Bolsonaro contra a China – fundamental para sua pasta e para o País.
Ernesto Araújo, Weintraub e Eduardo Bolsonaro são os ideológicos cheios de prestígio no Planalto. Moro, Guedes e Tereza Cristina, como Mandetta, estão em outra categoria: não assumiram cargos no governo para seguir Olavo de Carvalho e guerrear contra uma suposta escalada comunista interplanetária. Entraram para trabalhar por suas áreas, para pôr em prática o que sonham (certo ou errado) que é melhor para o País. Pois é. Não basta.
Nessa gangorra, caem Mandetta, Moro e Guedes, sobem Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e Arthur Lira, líderes do Centrão que prometem qualquer coisa para ter seus carguinhos e favores, inclusive perseguir o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. As portas do Planalto se escancaram para eles e se fecham para a Lava Jato, abandonada sucessivamente desde a campanha de 2018.
Moro chegou ao governo como troféu, mas tem um problema de origem: a popularidade. Como ele tem a audácia de ser mais popular e querido do que o “mito”? E tome de engolir sapos! Ele passou a estabelecer limites quando apoiou Mandetta na defesa do isolamento social para conter o coronavírus, mas o principal foi se recusar, primeiro, a demitir o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, em 2019, e agora a aceitar o apadrinhado por Eduardo Bolsonaro para a PF.
No olho do furacão está o Rio de Janeiro, onde Jair Bolsonaro e a família fazem política. Não faltam operações e investigações da PF no Estado, inclusive nas bases eleitorais do clã presidencial. Daí eles não descansarem enquanto não puserem alguém “de confiança” na PF em Brasília e no Rio.
É estranho, inclusive, que o presidente tenha derrubado com uma canetada três portarias que atribuíam ao Exército o controle e o monitoramento de armas de civis. Ao estilo “quem manda sou eu”, o presidente alegou, pela internet, que elas eram contrárias a um decreto de sua lavra.
A surpresa com a decisão de Bolsonaro extrapolou as fronteiras do QG do Exército e chegou à PF, que também considerava as portarias importantes no combate a milícias e ao crime organizado. Aliás, o estoque de munição para civis passou de 50 para 200 por arma em janeiro e na quinta-feira, 23, em portaria da Defesa e da Justiça, pulou para 550 por mês. Quem tem arma vai ter muito, mas muito mais, munição. Inclusive milicianos.
Bolsonaro conseguiu escantear e mudar o nome do Coaf, mas no caminho entre ele, Moro e PF, persistem investigações que resvalam nos filhos do presidente: sobre Fabrício Queiroz, atos golpistas e fake news e podem chegar ao “gabinete do ódio”, que, do Planalto, tritura ou pinica reputações de adversários e críticos de Bolsonaro. Foi assim com Mandetta, é com Tereza Cristina e piora a cada dia contra João Doria, Wilson Witzel e, principalmente, Rodrigo Maia. Será que troca da PF é para isso, salvar amigos e perseguir inimigos?
Vera Magalhães: Com exoneração de Valeixo, Moro deve mesmo sair
Com a exoneração, pelo Diário Oficial da União, do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, deve se concretizar a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, disseram ao BRPolítico nesta manhã pessoas próximas às negociações entre o ex-juiz e o presidente.
Ele marcou um pronunciamento às 11h desta sexta-feira, informou a assessoria de imprensa do ministério. Nessa fala, deve concretizar seu pedido de demissão, segundo a expectativa.
Depois de tentativas, vindas principalmente da parte dos generais que integram o ministério, de contemporizar a situação e evitar a saída de Moro, cessaram as conversas, ainda na noite de quinta-feira.
Diferentemente do que consta do DOU, a exoneração de Valeixo não foi assinada pelo ministro, como informou a Folha, e fontes confirmaram ao BRP. Outra informação falsa da exoneração é que a saída de Valeixo se deu “a pedido”.
O método da demissão, na marra e falseando informações, deve ser a cereja do bolo para a decisão de Moro de deixar o governo. Além da intervenção de Bolsonaro na PF, pesam para isso a aproximação do presidente com o Centrão, inclusive com pessoas condenadas e que foram presas, como Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto (esse por sentença do próprio Moro na Lava Jato) e a conduta de Bolsonaro durante a pandemia do novo coronavírus.
Pessoas que acompanham desde quarta-feira a crescente indisposição entre Bolsonaro e Moro dizem que nem o ministro entende a forma como Bolsonaro agiu no caso de Valeixo. A razão seria a contrariedade com o inquérito, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que apura uma rede de fake news para destruir reputações de inimigos do bolsonarismo.
Conforme noticiei na minha coluna no Estadão na quarta-feira, ele está avançado em identificar empresários que financiam essa rede, e deve servir de base para a nova investigação a respeito da ida de Bolsonaro a atos golpistas no último domingo. Informações de outros veículos dão conta de que ele está a um passo de comprovar a participação de Carlos Bolsonaro no comando do esquema.
“Acho que não tem mais jeito”, me disse nesta manhã uma pessoa que acompanha a crescente crise entre Moro e Bolsonaro. Segundo pessoas próximas ao ministro, sua demissão deve se concretizar ainda nesta sexta.
Zeina Latif: Na confusão, não se vai longe
É inacreditável a discussão da retomada sem consulta do time da Economia
Há muito trabalho a ser feito na economia. Mesmo que não houvesse o isolamento social, o custo econômico da epidemia seria elevado, pelas consequências de uma crise social e pelo contágio do quadro global sobre o crédito, as exportações e o mercado financeiro.
O governo não está inerte, mas há muitas lacunas no conjunto de medidas e desafios a serem enfrentados, durante e após o isolamento social.
Primeiro, há indefinições e ajustes necessários nas medidas econômicas. Por exemplo, a linha de crédito da Caixa às microempresas dá tratamento diferente daquele oferecido a pequenas e médias empresas para honrar a folha, com juros mais baixos. Há também muitas pendências no socorro a setores, como o de energia.
Segundo, é preciso maior coordenação interna do governo. Um exemplo são as dificuldades enfrentadas pelos Ministérios da Saúde e da Agricultura por conta da ausência de resposta contundente do governo aos ataques do ministro da Educação à China. É necessário reconstruir as relações diplomáticas, não só pelas dificuldades na importação de equipamentos de saúde daquele país, mas pelo impacto sobre as exportações e futuros investimentos no Brasil, inclusive nos leilões de infraestrutura.
Terceiro, falta diálogo com Estados e municípios para uma solução rápida e justa para a expressiva queda de arrecadação, sem comprometer a higidez fiscal da União e sem abrir espaço para excessos desses entes. A solução da tensão atual deveria se dar pelo diálogo entre os Poderes Executivos da federação, e não pelo ataque ao Congresso.
O governo também falha ao afastar a proposta de flexibilizar a carga horária e os salários do funcionalismo – contida na PEC emergencial –, em linha com o proposto ao setor privado. Seria um grande passo no socorro a Estados e a municípios, cuja arrecadação está comprometida com o pagamento da folha.
Quarto, falta respeito institucional e liderança do Executivo na relação com os demais Poderes, abrindo espaço para avanço de pautas perigosas. Há centenas de projetos de lei no Congresso, para o período de calamidade pública, que geram distorções e injustiças, com ônus ao erário e ao funcionamento da economia.
Não faltam propostas de proteções indevidas a segmentos do setor produtivo e da sociedade.
O mesmo vale para a suspensão da cobrança de serviços de utilidade pública – energia, água, telecomunicações, gás, internet, pedágio de transporte de carga. Seria um desastre para esses setores que já sofrem as consequências da epidemia e engrossam a fila de pedidos de ajuda da União.
Há propostas que ferem o mercado de crédito e ameaçam jogar por terra os esforços do Banco Central para estimular as concessões. É o caso da suspensão do pagamento de empréstimos bancários de empresas de menor porte, financiamento imobiliário, e cheque especial e cartão de crédito.
Preocupam as propostas de empréstimo compulsório sobre empresas – alíquota de 10% sobre o lucro líquido nos últimos 12 meses de empresas com patrimônio liquido igual ou superior a R$ 1 bilhão – e outras tantas sobre grandes fortunas.
São medidas de apelo populista que gerariam fuga ainda maior de recursos do País e desincentivo à produção. Não se pode confundir a necessidade de promover a justiça tributária com medidas desastrosas, que podem parecer avanços aos olhos da sociedade, mas, na realidade, são contraproducentes.
A grande maioria das propostas na Câmara aguarda o despacho do seu presidente, Rodrigo Maia, que provavelmente não o fará, tendo inclusive rejeitado algumas recentemente. Por exemplo, a Câmara derrubou proposta do Senado que criava o auxílio-emprego com impacto fiscal na casa de R$100 bilhões.
Importante, porém, o trabalho do governo. Sem isso, fica difícil as lideranças no Congresso desarmarem tantas bombas.
A crise é severa e o pós isolamento será muito difícil. A julgar pela atuação atual do governo, os sinais preocupam, incluindo a inacreditável discussão de plano de retomada sem consulta ou liderança do time da Economia.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Eugênio Bucci: A indústria ilegal de ‘fake news’ por trás dos atos pró-ditadura
Motor do bolsonarismo, ou essa indústria vem à luz, ou a treva cobrirá o resto
Na terça-feira o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações pró-ditadura militar realizadas no domingo. É preciso investigar.
É preciso investigar o horror. Domingo foi um dia de horror. Usando a Bandeira Nacional como capa de Zorro por cima de trajes que imitam fardas militares de camuflagem, os circunstantes exigiram medidas exótico-totalitárias, como o fechamento do Congresso e do próprio STF. Contra o horror, o pedido de investigação foi protocolado na segunda-feira, dia 20, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que cumpriu seu dever funcional. O Brasil precisa identificar a indústria que está por trás desse pesadelo que vai virando realidade.
Todos sabemos que o presidente da República é a cereja podre do bolo infecto. Vestindo uma camisa vermelho-chavista, ele compareceu ao ato em Brasília e discursou diante de faixas que pediam “intervenção militar já”. Ao estrelar a matinê lúgubre, o governante antigoverno segue sua tournê como animador de auditórios macabros e de macabros de auditório.
Não obstante, o próprio Bolsonaro não figura como alvo do inquérito. Isso significa que, ao menos por agora, não será oficialmente reconhecido o que já é ululantemente público: que o chefe de Estado patrocina, com seus garganteios perdigotários, a histeria golpista da extrema direita brasileira. Deixemos isso de lado – por enquanto. Não há de ser nada.
O que mais conta, neste momento, não é investigar o óbvio comprometimento presidencial, mas descobrir quem atua, e como, no backstage das vivandeiras machistas. O decisivo, agora, é saber com que dinheiro, por meio de que engrenagens de comunicação e com que logística esse movimento se tornou uma empresa bem administrada. Quem financia esse circo que, enquanto bate palmas para aquele tal que deu de declarar “eu sou, realmente, a Constituição”, trabalha para implodir a Constituição federal? Quem gerencia a estratégia? Onde estão os cérebros por detrás dos descerebrados? Estão fora do Brasil?
Se não quiser virar geleia, a República precisa decifrar o enigma. Para piorar as coisas, pouca gente ajuda. O presidente da República e as milícias, num coro afinadíssimo, sabotam as políticas sanitárias, chantageando o povo pela reabertura de seus comércios, e ninguém faz nada. As oposições entraram em quarentena moral. É inacreditável. A passividade e a desarticulação das oposições estarrecem. É nesse deserto desolador que a iniciativa de Augusto Aras desponta como o único gesto sério contra o golpismo que bate bumbo. Viva Augusto Aras. Fora ele, só o que temos para protestar contra o anacrônico fascismo vintage são as frases balbuciadas do neoestadista Rodrigo Maia e – ah, sim – a decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Os três pelo menos agiram. Perceberam que não adianta pedir “paciência histórica” e esperar que as instituições tomem as providências. Ora, as instituições são vertebradas por pessoas e, se essas pessoas não agirem com coragem, não haverá como barrar o arbítrio. As pessoas que vertebram as instituições têm de se mexer e, para isso, precisam do clamor organizado das oposições. Ou é isso, ou os fascistinhas de WhatsApp vão levar a melhor.
Os fascistinhas de WhatsApp só não levarão a melhor se os crimes sobre os quais se apoiam forem desmascarados. É aí que entram as fake news. Se quisermos de fato desvendar a máquina do golpismo, teremos de entender o nexo entre a indústria clandestina das fake news e o bolsonarismo. Não basta seguir o dinheiro. É preciso seguir as fake news.
Em sua decisão, Alexandre de Moraes apontou o rumo. Determinou que se apurem a “existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano, bem como as suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação que visam lesar ou expor a perigo de lesão os direitos fundamentais, a independência dos Poderes instituídos e ao estado democrático de direito, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura”. Nada mais justo.
Agora, finalmente, as fake news entraram na mira certa. Elas são produto de uma indústria organizada, profissionalizada, tecnologicamente bem equipada, que opera por meio de negócios ilícitos e de relações de trabalho clandestinas. Essa indústria, que é criminosa na forma e no conteúdo – como são, não por acaso, as próprias fake news –, turbina a propaganda de ódio e promove a fúria inconstitucional, antidemocrática e antirrepublicana. Essa indústria politiza o debate sobre medicamentos, bombardeia a credibilidade da imprensa, calunia as instituições, desacredita a ciência, enxovalha a universidade, demoniza a arte e fomenta o fanatismo. Ela convence os malucos – alguns dos quais em altos cargos públicos – de que incêndios na Amazônia não existem e de que o vírus é fabricado em aulas de marxismo cultural. Essa indústria milionária é o motor do bolsonarismo. Ou ela vem à luz, ou a treva cobrirá o resto.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
José Serra: A democracia sob ataque
Se tentasse agir fora dos limites da lei, o Poder Executivo seria contido pelas instituições
Quem estava atribuindo a última das crises governamentais ao estilo do presidente da República e ao conflito entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta não perdeu por esperar além de um par de dias. O presidente já está desautorizando o ministro recém-empossado, Nelson Teich, e desafiando o compromisso do novo ministro com uma atitude cautelosa e baseada em fatos comprovados, de revisão da política de isolamento.
Os menos pessimistas esperavam que, afastado o ministro que seria um suposto desafeto, Bolsonaro deixaria a política de combate à pandemia em mãos da autoridade competente, aliás, declaradamente em “alinhamento completo” com ele, e assumiria como prioridade total a gestão da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia. Mas sua conduta depois da demissão de Mandetta parece ser não mais a de combate à política identificada com seu ex-ministro, mas a de insatisfação com as instituições da República.
No domingo Bolsonaro liderou um comício em praça pública não para protestar contra o isolamento, como vinha fazendo, mas, como disse, a fim de dar sua vida “para mudar o destino do Brasil”. Em seu discurso, em palanque improvisado da caçamba de uma picape, deu um passo a mais em sua verdadeira campanha contra o Congresso, o Supremo, os partidos políticos e mesmo contra a Constituição, não só com palavras, mas também com condutas pouco apropriadas ao papel presidencial no Estado Democrático de Direito.
Em poucas palavras, expressou teses esdrúxulas sobre a democracia, como o conceito equivocado de que “todos estão submissos à vontade do povo”. Nas democracias, o povo não submete nem é submisso à vontade de ninguém. Só se submete à Constituição, que garante a sua liberdade e emana dele próprio, o povo.
O contexto do discurso, as palavras de ordem implícitas que não vêm de hoje - como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos partidos, e a substituição da Constituição pelo famigerado AI-5 - são questões graves. Evidenciam que, para Bolsonaro e seus seguidores, as autoridades legitimamente eleitas devem submeter-se a uma massa rebelada comandada por ele, que se compromete a fazer não tudo o que a Constituição permite, mas “tudo o que for necessário” - linguagem da política associada à da violência.
O povo brasileiro reconquistou sua liberdade em 1985, pelo voto popular, com imensas manifestações políticas - a campanha das Diretas-Já - e uma negociação realista entre praticamente todas as tendências da oposição, que escolheram Tancredo Neves e puseram fim a um longo período de regime autoritário. A Constituição de 1988, cuja legitimidade veio do voto popular, estabelece que a representação do povo, que se expressa nas urnas, e não em carreatas, é prerrogativa compartilhada pelo Legislativo e pelo Executivo. Qualquer medida de força contra o Congresso equivaleria a tentativa de golpe.
Talvez os inspiradores do presidente - não por acaso dotados de escassa experiência de vida pública, com pouco ou nenhum conhecimento da gestão de governo e nenhuma capacidade para avaliar tanto obstáculos reais como a resiliência dos que tratam como adversários - tenham elucubrado uma tática de provocar o Parlamento, com o propósito de induzi-lo a erro e justificar um golpe de força contrário.
Mas o Congresso, cuja experiência mediana de vida pública é considerável, incluindo familiaridade com a gestão de governo, e muitas vezes décadas de habilidades para fazer e receber concessões, não deverá cair nessa arapuca. Ao contrário, poderá exercer os freios e contrapesos que a Constituição lhe outorga para se contrapor a eventuais deslizes do presidente.
Talvez o primarismo das táticas de alguns dos inspiradores da Presidência os conduza ao devaneio de um golpe com apoio militar. Tratar-se-ia de uma perfeita manifestação de alienação do que hoje representam as Forças Armadas brasileiras, institucionalmente comprometidas com o Estado Democrático de Direito e com suas responsabilidades de manutenção da ordem interna e da defesa externa do País. Elas dispõem de uma oficialidade altamente preparada, disciplinada e hierarquizada, que repelirá qualquer tentativa contra a ordem democrática, como - fique bem claro - seus dirigentes têm tornado público inúmeras vezes.
Caso tentasse agir fora dos limites da lei e em desrespeito à Constituição, o Poder Executivo seria contido pelas instituições. Para tanto os cidadãos brasileiros contam com o Supremo Tribunal Federal, um Poder que fala pela Constituição e se há de pautar pela absoluta neutralidade partidária, ideológica e religiosa na imposição da lei.
Uma certa perda de confiança do Parlamento no presidente vem se avolumando desde sua eleição e a ela se soma um começo de desgaste de sua popularidade, uma vez que ele criou expectativas altas sem que as razões do descontentamento popular com os serviços públicos essenciais fossem bem enfrentadas por seu governo. Com popularidade relativamente menor e desconfiança do Parlamento, Bolsonaro terá de mudar, pois a democracia brasileira ele não mudará.
*Senador (PSDB-SP)
William Waack: A sofisticação de Bolsonaro
Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados
Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.
Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.
Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.
Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.
A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.
A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.
Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco central em infraestrutura.
É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político (quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).
Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o essencial das reformas estruturantes.
Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.
Rosângela Bittar: Só Freud explica
A cada dia, uma nova insanidade do presidente. E assim se passaram 16 meses
A política brasileira está confinada pela tragédia da pandemia e já não é possível desdenhar da realidade macabra. Portanto, não é política o que pratica o presidente Jair Bolsonaro no segundo ano do seu mandato. Por mais que deboche da vida e invente movimentos para esconder sua incapacidade de liderar e enfrentar os problemas, o placar das mortes e de contaminados não permite distrações.
Espera-se sempre pela próxima atração presidencial que só não é circense porque o circo se dá ao respeito. Uma performance vai superando a outra. Já se sabe que recuará se o seu teatro do absurdo extrapolar a medida. No dia seguinte, nova insanidade. E assim se passaram 16 meses.
O presidente Jair Bolsonaro em manifestação contra o Congresso e a favor de intervenção militar em frente ao Quartel General do Exército no último domingo. Foto: Gabriela Biló/Estadão
De novo: não é política isto que se pratica, hoje, no Brasil, a partir do desempenho do presidente da República.
A negação da existência da pandemia que acha estar enxotando com seu megafone; a insistente, insolente e impune agressão aos poderes Legislativo e Judiciário; a tentativa de aliciar o Centrão na figura-símbolo de Valdemar Costa Neto, para uma pouco convincente vontade tardia de fazer base parlamentar de apoio; o recurso à velha política, condenada no palanque, se lhe serve melhor na ocasião; a escolha, a cada dia, de um inimigo forjado por temores paranoicos; o corte radical das cabeças que lhe devem o contrato, como os ministros Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Luiz Henrique Mandetta, e a campanha permanente e irritada contra quem não pode domar, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; a retórica autoritária; o desrespeito à condição humana, mais perfeita expressão de fascismo.
Jair Bolsonaro transcendeu a política e a crônica não pode usá-la como régua para medir a extensão do atual desastre imposto ao País.
Um presidente que funciona aos espasmos. Se o espelho lhe aponta um ministro mais popular que ele, acende o alerta vermelho da traição; se a imagem refletida é de alguém em posição constitucional de interromper sua festa, muda sem pejo a rota da cruzada.
Fura o consenso do combate à pandemia, sai trôpego e de olhos vendados na contramão do mundo todo que se harmoniza para salvar a vida. Jair Bolsonaro é tão artificial que nem quando pede golpe militar dá para crer. A manifestação do último domingo, em frente ao QG do Exército, foi a mais recente provocação de um ex-capitão aos generais da ativa e da reserva que o servem. Um prazer vingativo de demonstrar poder sobre eles.
Se passar a pandemia e Bolsonaro se mantiver vivo e no poder, o Brasil que se prepare para uma página em branco. Um grande vazio, pois ele mostra, hoje, que não faz ideia do que fará, depois. O liberalismo econômico, sustentado em reformas estruturantes, vedete de suas intenções, desmanchou-se no ar em 40 dias.
Muitos intelectuais estão expondo sua perplexidade em estudos que tentam traduzir o impacto da pandemia sobre a humanidade. O ex-deputado, professor e sociólogo Paulo Delgado, em um ensaio por enquanto definido como “psicohistória presidencial”, sobre os nove presidentes que conheceu, desde Tancredo Neves, não foge à conjuntura político-sanitária ao tratar de Jair Bolsonaro.
“Vasculhar o inconsciente ajuda a entender por que ele se identifica tanto com este vírus, a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo.”
Invocando Freud, Delgado lembra que o presidente “coloca libido” nestas manifestações públicas de que participa, provocando “aglomeração, contato, contágio”. Diz, ao argumentar sobre esta hipótese: é “um comportamento psicossocial repetitivo, estimulado pelo prazer contínuo de transgredir”.
Um irônico enquadramento da ação presidencial no ambiente psicanalítico, que “só Freud explica”. Enfatiza a hiperexcitação do presidente brasileiro que poderá, conclui ele, conduzir o País a uma “derrota” de Pirro, uma espécie de fracasso altamente dispendioso. Bem além da competência da política.
Vera Magalhães: Fio da meada
O inquérito aberto no ano passado, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, pode levar a que o novo já comece adiantado
Quis o destino da distribuição do Supremo Tribunal Federal que o ministro Alexandre de Moraes ficasse incumbido de relatar o inquérito aberto nesta terça-feira para apurar se foram cometidos crimes nos atos em prol de intervenção militar e fechamento do Congresso realizados no último domingo.
O Ministério Público Federal pediu para que seja apurada a responsabilidade pela convocação dos atos, que tiveram vários pontos em comum: convocação por meio de grupos de WhatsApp e redes sociais, faixas e cartazes com confecção padronizada e dizeres coincidentes, e, em todos, os mesmos alvos, notadamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com quem Bolsonaro trocara farpas dois dias antes.
E por que o destino? Porque é Moraes o relator de várias ações recentes questionando aspectos institucionalmente relevantes, antes e durante a pandemia do novo coronavírus.
A começar do inquérito aberto no ano passado, a pedido do presidente da Corte, José Antonio Dias Toffoli, para apurar inicialmente fake news e ameaças a ministros do STF, mas cujo estofo foi sendo expandido e a validade é indefinida.
É nesse inquérito que está o fio da meada que pode levar a que o novo já comece adiantado. Procuradores e ministros têm informações de que empresários que financiaram os ataques de 2019 às instituições também estão à frente das manifestações realizadas domingo e incentivadas por Bolsonaro.
Ninguém arrisca dizer se o presidente será levado ao epicentro da investigação, mas deputados de sua base deixaram digitais nas convocações dos protestos, e, pelo fato de a investigação ser conduzida pelo STF, podem, sim, ser indiciados.
Eles vão tentar evocar, é claro, a imunidade parlamentar que lhes resguarda o direito a opinião, mas juristas lembram que atentar contra a democracia e a independência dos Poderes, resguardada pela Constituição, é crime tipificado e não conduta coberta pela imunidade.
É por saber que existem conexões claras que aliados de Bolsonaro estão agitados querendo encerrar a CPMI das Fake News. E não gostaram nada de ver Gilmar Mendes sorteado para relatar a ação do filho 03, Eduardo, com esse fim.
Gilmar deverá assegurar o seguimento da CPMI, e ela e os inquéritos do Supremo funcionarão como advertências bem concretas a Bolsonaro para que não ouse fazer mais nenhum arreganho autoritário como o de domingo, pois as instituições estão alertas e têm instrumentos já acionados para detê-lo.
Monica de Bolle: Quarentenas intermitentes
A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las
Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. Queiramos ou não aceitar essa nova realidade, a verdade é que ela já está posta. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à covid-19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.
Não sou infectologista. Contudo, como economista tenho a obrigação de manter-me bem informada sobre os determinantes da crise econômica e do quadro futuro que se apresenta. Esses determinantes não são de natureza econômica: são provenientes do comportamento de uma fitinha de RNA, o vírus Sars-CoV-2. Tenho conversado e interagido com profissionais das áreas de saúde pública, infectologia, virologia, microbiologia. Não tratar do que se passa de forma interdisciplinar é erro certo não apenas na formulação dos cenários que se apresentam, mas, sobretudo, nas medidas econômicas necessárias para atender às necessidades da população.
Já escrevi nesse espaço que o quadro de quarentenas intermitentes requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente: de outro modo, não haverá como sustentar a população mais vulnerável do País nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Em artigos para este jornal, para a Revista Época e em vídeos no meu canal do YouTube tenho dito à exaustão que o momento pede que todos comecem a se preparar para uma nova realidade. Não retornaremos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 tão cedo – talvez esse mundo tenha já desaparecido para sempre.
Fazer chegar essa mensagem aos ouvidos das pessoas, tarefa para a qual eu e muitos outros temos nos dedicado, é muito difícil. Evidentemente, ninguém quer acreditar que o modo de vida com o qual estavam acostumados se foi. Mas é preciso preparar-se para isso e acreditar no que a ciência nos tem dito.
A economia das quarentenas intermitentes é algo que não conhecemos. É um sistema que não funciona da forma relativamente contínua com a qual estamos acostumados, mas um sistema que soluça e engasga. Para atenuar esses espasmos e a volatilidade deles decorrente, tenho insistido, junto com outras pessoas, que é preciso pensar na reconversão da indústria. A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las.
Esse esforço passa pela produção em escala de equipamentos hospitalares diversos, incluindo os de proteção individual, de que toda a população precisará quando as quarentenas forem temporariamente relaxadas. Abordei esse tema em entrevista concedida ao programa Roda Viva na última segunda-feira. Serviços também precisarão se readequar: restaurantes, por exemplo, terão de aprender a funcionar em rodízios, com poucos clientes e com uma capacidade de entrega que hoje não têm. Comerciantes terão de adaptar seus negócios para a convivência com o vírus, redesenhando normas e adotando plataformas online quando possível. Também precisarão, inevitavelmente, contar com serviços de entrega.
Novas tecnologias terão de ser desenvolvidas. Elevadores não poderão ter botões, já que são foco de contaminação. Deverão ter sensores térmicos? Tecnologias de reconhecimento de voz? É provável que a indústria tecnológica dê um salto de dez anos, que o processo de automação, já em curso, ganhe imenso ímpeto. Nesse caso, as relações de trabalho haverão de mudar ainda mais rapidamente, tornando a adoção da renda básica permanente mundo afora uma medida indiscutivelmente necessária.
Para aquelas empresas que podem trabalhar em rodízios, reduzindo o número de pessoas nos escritórios, o trabalho de casa será uma realidade que veio para ficar. Vamos precisar de mais capacidade para os serviços de internet, testemunharemos o crescimento em larguíssima escala da indústria de aplicativos para fins diversos. A segurança online será exponencialmente mais importante do que já é. A regulação da privacidade e da comercialização de dados precisará sair do papel.
Deixo essas ideias para que reflitam sobre o cotidiano, sobre tudo aquilo em que não paramos para pensar. Deixo-as para que comecem a se adaptar desde já.
* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY
Vera Rosa: Bolsonaro quer aliado na presidência da Câmara; Marcos Pereira é cotado
Planalto age para atrair partidos e fazer sucessor de Rodrigo Maia
BRASÍLIA - A estratégia do presidente Jair Bolsonaro para formar uma base de sustentação parlamentar passa pela eleição para o comando da Câmara, hoje nas mãos de Rodrigo Maia (DEM-RJ), seu desafeto. Ao tentar atrair o Centrão com a oferta de cargos – que vão de diretorias do Banco do Nordeste a secretarias em ministérios –, Bolsonaro também procura construir uma candidatura à sucessão de Maia.
Nos bastidores, o presidente se movimenta para impulsionar a campanha do deputado Marcos Pereira (SP) nessa disputa, marcada para fevereiro de 2021. Vice-presidente da Câmara, Pereira comanda o Republicanos, partido que recentemente abrigou o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, ambos do Rio. Os dois se filiaram temporariamente, enquanto o Aliança pelo Brasil não consegue as assinaturas suficientes para sair do papel.
Pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Pereira é um dos postulantes do Centrão ao comando da Câmara. A bancada evangélica leva hoje o título de principal avalista de Bolsonaro no Congresso. Outro candidato que conta com a simpatia do presidente é o deputado Arthur Lira (AL), líder do PP e réu em processo por corrupção passiva. A ideia de Bolsonaro é observar, mais adiante, qual dos dois será fiel a seu projeto e terá mais viabilidade.
Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não poderão concorrer à reeleição, se não houver mudanças de regras. Motivo: a Constituição impede que os presidentes da Câmara e do Senado sejam reconduzidos aos cargos na mesma legislatura. Antes da crise do coronavírus, no entanto, havia uma articulação nesse sentido, principalmente por parte de Alcolumbre, que encomendou até parecer jurídico. Bolsonaro, por sua vez, está convencido de que precisa construir uma alternativa a Maia. Cabe ao presidente da Câmara autorizar ou não a tramitação de qualquer pedido de impeachment na Casa.
Cargos
Em outra frente para buscar apoio, o Planalto decidiu apressar a entrega de cargos a partidos do Centrão, como mostrou o Estado. Bolsonaro impôs, porém, um filtro: os indicados não podem ter trabalhado em administrações do PT. Além disso, o Planalto vai monitorar as redes sociais de todos.
O DEM perderá o comando da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e da Parnaíba (Codevasf), que deve ser entregue ao PP de Lira e do senador Ciro Nogueira (PI). Pelo acerto dos últimos dias, o PL de Valdemar Costa Neto ficará com o Banco do Nordeste. O governo também prometeu ao partido de Valdemar a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, cargo que formula estratégias de combate ao coronavírus. O Republicanos, por sua vez, poderá ocupar uma secretaria no Ministério do Desenvolvimento Regional. Pereira foi ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços na gestão de Michel Temer.
Bolsonaro fará nova rodada de conversas nos próximos dias. Nesta quarta-feira, ele receberá o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. Nesta quinta-feira a audiência será com o prefeito de Salvador, ACM Neto, que dirige o DEM.
No domingo, porém, ao participar de manifestação que defendia o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, o presidente atacou o que chamou de velha política. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, disse ele, em cima da caçamba de uma caminhonete, diante do Quartel-General do Exército.
Para o deputado Efraim Filho (PB), líder do DEM na Câmara, as divergências devem ser arquivadas neste momento. “Falar em intervenção militar, por um lado, e impeachment, por outro, é um desserviço para o Brasil. Já temos crise de saúde, crise econômica e uma nova crise política não seria bem-vinda”, afirmou. “Precisamos de um pacto de união nacional para enfrentar a covid-19. Não é hora de disputa política nem de discursos agressivos”, avaliou Baleia. / COLABORARAM CAMILA TURTELLI e MATEUS VARGAS
Eliane Catanhêde: Chance zero?
Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5
Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!
No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.
No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?
O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?
Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.
O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.
E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?
Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?
O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.