O Estado de S. Paulo

Gaudêncio Torquato: A ‘podernite’

Os governantes, regra geral, padecem de grave doença: a ‘podernite’. Que afeta, sobretudo, membros do Poder Executivo, a partir do presidente da República, governadores e prefeitos, podendo, ainda, pegar protagonistas de outros Poderes e os corpos da burocracia.

Como todas as ites, trata-se de uma inflamação, que, ao invés de atacar o corpo, invade a alma. Podemos designá-la como a “doença do poder’”. Se alguém quiser associá-la ao egotismo, a importância que uma pessoa atribui a si mesmo, está correto, pois os conceitos são próximos.

O presidente Bolsonaro, vez ou outra, avisa que o poder é dele. Inclusive, o poder da caneta BIC, substituída pela caneta Compactor, quando tomou conhecimento que a primeira é de origem francesa. (Bolsonaro, lembremos, azucrinou o presidente Emmanuel Macron por conta da questão amazônica). O STF, nos últimos tempos, tem pontuado: em última instância, o poder é nosso. A decisão de conceder aos delatados a condição de serem os últimos a falar nas investigações da Lava Jato é um exemplo do poder da última palavra.

O Legislativo, assustado com a invasão de suas competências e queixoso da debilidade do governo na frente da articulação política, assume papel de protagonista principal em matéria de reformas. Nesse ciclo de grandes interrogações, cada qual quer ter mais poder. Até porque no vácuo, um poder toma o lugar de outro.

O poder traz fruição, deleite, sentimento de onipotência. Governantes e até burocratas se acham donos do pedaço, tocados pela ideia de que são eles que conferem alegrias e tristezas, fecham e abrem horizontes, fazem justiça.

A ‘podernite’ tem graus variados de metástase. Nos homens públicos qualificados, talhados pela razão, os tumores são de pequena monta. Nos Estados mais desenvolvidos, com culturas políticas mais evoluídas, a doença não se espalha muito porque as críticas da mídia e de grupos formadores de opinião funcionam como antivírus. Nos Estados menos aculturados, dominados por estruturas paternalistas e sistemas feudais, a doença geralmente chega a graus avançados.

O primeiro sintoma da doença é a insensibilidade. Só ouve o que quer ouvir. O grito rouco das ruas é para eles uma sinfonia distante. Da insensibilidade, deriva a arrogância. Governantes transformam-se em soberanos, querendo que cidadãos vistam o manto de súditos e achando que os programas governamentais constituem um favor e não um dever. Nessa esteira, desenvolve-se o assistencialismo, com pequenos sacos de migalhas distribuídas a esmo.

A construção da identidade de um Governo transforma-se, assim, em culto à personalidade, sob os aplausos da plêiade de amigos e oportunistas. Alguns governantes descobriram as vantagens das redes sociais e capricham no envio de mensagens, vídeos e fotos sobre sua performance, desprezando a sábia lição de nossos avós: “elogio em boca própria é vitupério”.

O obreirismo inconsequente também passa ser eixo das administrações, no fito de fixar marcas. E é porque faltam recursos. Vivemos momentos de quebradeira geral. Mas o “balonismo pessoal” (fenômeno de enchimento do balão do ego) é impulsionado por levas de áulicos. Ocorre que o Produto Nacional Bruto da Felicidade – o PNBF – não sobe. Os bolsos continuam secando. E a indignação social se expande.

Por isso, as pessoas se afastam dos governantes. Só mesmo grandes sustos – como queda de popularidade – trazem-nos à realidade. Nesse momento, percebem que o poder é uma quimera. Volta-se contra eles mesmos.

Senhores, esta é a dura realidade: a glória mítica de palanques, os palácios, os ministérios e as instâncias da Justiça são coisas passageiras. Mudam como as nuvens. (A propósito, as caravanas que pediam Lula Livre hoje se mobilizam para pedir o Lula Preso. Porque da sede da PF em Curitiba onde está, ele consegue fazer mais barulho do que em seu apartamento de São Bernardo do Campo). Eita, Brasil mutante, ou se quiserem, Brasil do chiste.

Só faltava essa: O procurador de Justiça de Minas Gerais, Leonardo Azeredo dos Santos, ganha R$ 24 mil mensais e garante que esta quantia é um “miserê”. O que dirão os milhões de brasileiros desempregados ou aqueles que põem no bolso o mísero salário mínimo?

Os pacientes de ‘podernite’ agem como Vespasiano, o Imperador, que, na beira da morte, ficava gracejando numa cadeira: Ut Puto Deus Fio (Parece que Me Transformo num Deus).

*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação


Carlos Pereira: Lava Jato 2.0

Ajustes à Operação Lava Jato antes de arrefecê-la tendem a qualificá-la

Um dos questionamentos mais recorrentes entre alunos e pesquisadores do sistema político brasileiro se refere aos limites da atuação das organizações de controle no Brasil. Essa preocupação é extremamente relevante em função da escolha da maioria dos legisladores, desde a constituinte de 1988, em delegar amplos poderes para as organizações de justiça, especialmente o Judiciário e o Ministério Público. O temor seria o de que essas organizações teriam ficado tão independentes ao ponto de estarem “fora de controle”.

A exposição quase que visceral de sucessivos escândalos de corrupção e a subsequente atuação das organizações de controle impondo perdas não triviais para os envolvidos nesses escândalos reforçaram ainda mais as justificativas para que essas organizações se fortalecessem e se tornassem cada vez mais independentes.

O ponto de virada para que isso acontecesse parece ter sido o julgamento do mensalão, quando o desempenho do STF punindo envolvidos no escândalo alinhou-se com a preferência da maioria da população. Cristalizou-se a percepção de que ninguém estaria acima da lei, com a imposição de perdas judiciais a políticos, burocratas e empresários ricos e poderosos.

Uma série de inovações institucionais pós mensalão (lei da ficha limpa, lei da transparência, lei anticorrupção, lei da delação premiada, lei da leniência, decisão do STF de implementar a pena após condenação em segunda instância judicial colegiada, etc.) criou condições para o sucesso subsequente da Operação Lava Jato, que, apesar das várias iniciativas para enfraquecê-la, vem conseguindo resistir. Na realidade, a surpresa para muitos reside justamente na grande resiliência organizacional e institucional até o momento.

Após as revelações das conversas entre os procuradores e o então juiz Sérgio Moro, muitos analistas têm preconizado que a Operação Lava Jato estaria melancolicamente com os dias contados. Essas análises não conseguem perceber que a intolerância à corrupção passou a fazer parte da crença dominante da sociedade. A ideia-força é de que o Brasil mudou e, portanto, comportamentos desviantes seriam punidos, independentemente de preferência ideológica, nível de poder, cor da pele, grau de instrução ou de renda.

No dilema entre controle e independência, a sociedade brasileira não teve dúvidas em escolher a segunda alternativa, mesmo correndo riscos da ocorrência de excessos por parte das organizações de controle. Esse equilíbrio, entretanto, não é estático, mas fundamentalmente dinâmico e de longo prazo. Ou seja, a “carta branca” que a sociedade tem conferido às organizações de controle para o combate à corrupção pode sofrer ajustes que venham a qualificá-las e não necessariamente a enfraquecê-las.

Após os avanços já conquistados, a sociedade agora demanda mais transparência e maior monitoramento das ações das organizações de controle no processo de investigação e sanções a corruptos. Procuradores e investigadores precisam perceber esses ajustes como upgrades e não como downgrades.

É muito pouco provável que o combate à corrupção no Brasil sofra retrocessos institucionais que levem o País de volta ao equilíbrio sub ótimo anterior em que brancos, ricos e poderosos raramente eram investigados e sofriam sanções judiciais. Os riscos de ser pego em comportamentos desviantes aumentaram substancialmente e os custos políticos, reputacionais e judiciais, também.

A intolerância à corrupção continua a ser parte da crença dominante da sociedade. O que a sociedade deseja é que esse processo seja qualificado, mas não arrefecido. Enquanto a Lava Jato 1.0 tinha como premissa a quase completa autonomia das organizações de controle, a sua versão 2.0 agrega limites e mais transparência.


Vera Magalhães: Deixaram desandar

Pouco caso da área política do governo faz reforma da Previdência empacar na reta final

O projeto mais importante para a recuperação da economia do País corre o risco de desandar na reta final de sua tensa, delicada, mas em grande medida bem-sucedida tramitação graças ao pouco caso com a necessária articulação política que o governo Jair Bolsonaro faz questão de exibir com certo orgulho inexplicável desde o seu início.

A reforma da Previdência passou pela sua etapa mais pesada e difícil, a da Câmara, com algum vagar, uma boa dose de vaivém, mas, surpreendentemente, sem grandes protestos por parte da sociedade como um todo.

Excetuando-se a atuação dos lobbies de servidores e de algumas categorias mais organizadas, aconteceu o que nunca se poderia imaginar nas vezes em que outros governos mexeram, de forma menos profunda, nas aposentadorias e pensões: a maioria da população entendeu que era inevitável fazer a reforma.

Graças a isso, à completa falta de articulação da oposição e à colaboração que se criou entre o presidente da Casa, Rodrigo Maia, e a equipe econômica, com Paulo Guedes e Rogério Marinho, a reforma cumpriu sua etapa na Câmara com o Palácio do Planalto ausente das negociações e só entrando de vez em quando para atrapalhar, como Bolsonaro fez na reta final ao tentar arrancar alguns bilhões para favorecer policiais.

Em vez de aproveitar esse embalo que o projeto ganhou na Câmara e aprová-lo rapidamente no Senado, o governo caiu numa armadilha tão logo a proposta atravessou do Salão Verde para o Azul: endossou a ideia de Davi Alcolumbre e outros senadores de condicionar sua aprovação a um tal pacto federativo para salvar Estados da bancarrota, em que entraram projetos que iam da divisão de recursos dos leilões de petróleo ao adiamento da obrigação de se quitar precatórios vencidos.

O que foi festejado como uma maneira republicana de refazer as relações federativas virou, na hora do vamos ver, uma faca no pescoço do governo, tendo a reforma como refém. Numa ação típica de sequestradores que negociam com a família da vítima, os senadores até aprovaram a proposta em primeiro turno, dando uma “prova de vida”, mas com menos R$ 74,6 bilhões, como aquele tufo de cabelo enviado para que os negociadores saibam que não se está de brincadeira e que cumpram o que prometeram ou a coisa pode piorar.

De novo, a articulação política do governo é inexistente. O general Luiz Eduardo Ramos, brincam senadores e deputados, “não é do ramo”, e quem está à frente da conversa, de novo, são Guedes e companhia. A conversa virou uma cacofonia de alianças difíceis de mapear. Superficialmente, pode-se dizer que senadores defendem os interesses dos Estados na partilha de recursos do petróleo, e a Câmara, os dos municípios, mas não é só isso.

Estados produtores e não-produtores travam outra disputa particular, e governadores do Sudeste, Sul e Centro-Oeste comandam uma rebelião pelo fato de os vizinhos do Norte e Nordeste estarem sendo contemplados pelo pacto, sendo que os senadores desses Estados não cumpriram com a sua parte de votar a favor da Previdência. Guedes tenta selar um acordo tendo Maia e Alcolumbre como fiadores, para se contrapor às tentativas de sangrar ainda mais o Tesouro com benesses.

E onde está Bolsonaro enquanto o projeto mais importante dos seus quatro anos de mandato padece em cativeiro? Tirando selfies com turistas se lamentando da necessidade de realizar a reforma, acredite quem quiser. Diz o ditado que muito ajuda quem não atrapalha. Quando ele se aplica ao presidente da República e ao entorno do palácio, é mais fácil entender como se deixou que a reforma essencial caísse nessa cilada armada pela velha política. É porque a nova é uma piada de salão.


Eliane Cantanhêde: O 'chamado'

Angélica dá a senha para o 'polo democrático' articular nome de Huck para 2022

Quem acompanha de perto as articulações do “centro democrático” para se recolocar no jogo político e ter alguma chance em 2022 analisa que o último grande obstáculo à candidatura de Luciano Huck caiu com a entrevista de sua mulher, a também apresentadora Angélica, à revista Marie Claire. Angélica nunca quis o marido presidenciável, mas agora classifica a candidatura como “uma espécie de chamado” e admite: “É uma coisa tão especial que, se ele quisesse se candidatar, eu apoiaria”.

Soou como uma senha para o grupo heterogêneo que cada vez se preocupa menos em esconder almoços, jantares e encontros para discutir o lançamento de Huck, mais ativo do que nunca. Ora ocorrem no Rio, ora em São Paulo, mas com personagens que extrapolam esses Estados e o Cidadania – o partido que primeiro apostou no potencial dele.

Em 2018, Huck esteve a um passo de se lançar, instigado pelo agora ministro de Bolsonaro Paulo Guedes. Quase assinou a ficha do PPS, atual Cidadania, passou a contratar pesquisas de opinião exclusivas e montou equipes de estudo em diferentes áreas, como educação e saúde.

Por que recuou? O principal motivo foi justamente que o casal, antes, como agora, “teria mais a perder do que ganhar”, como disse Angélica à Marie Claire. De fato, bastou Huck começar a ser citado como presidenciável, inclusive neste espaço, para que seu mundo cor de rosa passasse a ser invadido por fotos, meias verdades, maledicências e fakenews.

Com duas estrelas da TV, o casal sempre aparece rico, lindo, feliz e do bem. Deslizando para a política, o noticiário é totalmente diferente, procurando as piores brechas, os ângulos mais desfavoráveis, as companhias menos indicadas. Huck e Angélica entraram em pânico e políticos têm de ter couro duro.

E por que o recuo do recuo? Angélica politiza a discussão: “Estamos num momento tão louco na política que não quero, jamais, ser egoísta e leviana de impedir algo nesse sentido” – a candidatura do marido. Quem discorda dela quanto ao “momento tão louco”? Não Fernando Henrique, que tem críticas ao PT e a Lula, está preocupado com os rumos do governo Jair Bolsonaro e, desde o início, analisa a candidatura Huck sem preconceito. Foi a partir de declarações dele, aliás, que passaram a olhar para Huck com pragmatismo.

Além de FHC, o presidente e o líder do Cidadania, Roberto Freire e Daniel Coelho, ex-governador Paulo Hartung, economista Armínio Fraga, ex-ministro Raul Jungmann, empresário Guilherme Leal e ACM Neto, Rodrigo Maia e Mendonça Neto, do DEM. Eles buscam um “polo democrático” para tirar o Brasil dos extremos e “das mãos das corporações públicas e privadas”.

Freire, um dos primeiros a apostar em Huck, diz que Lula se transformou num fator perturbador e que Bolsonaro, na ONU, “se associou com a extrema direita, nacionalista, antiglobalista e obscurantista, com laivos de fundamentalismo”. Huck é uma alternativa a essa polarização, mas sair em campo a três anos das eleições é ficar não só sujeito a chuvas e trovoadas, mas também à manipulação de dados que – suspeita-se – o Planalto tende a concentrar depois de intervir no ex-Coaf, na Receita e na Polícia Federal.

Por ora, porém, as reuniões são para analisar cenários e dados de pesquisas: Huck compete com Lula nas faixas C e D e com Bolsonaro na B, mas sua força vai diminuindo e praticamente desaparece na classe A, dos mais ricos, onde só dá Bolsonaro. Logo, a manifestação de Angélica é só uma senha, um começo. Há muitos obstáculos, muitos nomes vão surgir, desaparecer, confundir, e só há uma certeza: presidentes são favoritos em processos de reeleição e nada numa campanha como a velha e boa caneta, Bic ou não.


José Roberto Mendonça de Barros: O cenário internacional segue piorando

A incerteza e a desaceleração do crescimento global continuam firmes

Trump e os líderes chineses voltarão a se encontrar daqui a alguns dias. Embora essa negociação seja sempre difícil, não é fora de propósito que exista algum avanço nas conversas, pois os dois países estão enfrentando certos problemas. Trump precisa de uma boa notícia para compensar suas dificuldades políticas domésticas e a China precisa de proteína, cujo preço explodiu, depois dos efeitos devastadores da gripe suína africana. Complexo, mas não impossível.

Mas o verdadeiro conflito entre as duas potências não muda nada. Basta pensar que além das tarifas de importação e das restrições impostas à exportação de tecnologia americana (o caso Huawei é o mais relevante), noticiou-se que o governo americano agora estuda “deslistar” as quase 200 empresas chinesas que têm ações nas Bolsas americanas. Um golpe e tanto. Embora uma fonte do Tesouro tenha depois negado a informação, fica a dúvida.

A incerteza e a desaceleração do crescimento global continuam firmes. A OCDE agora projeta uma expansão do PIB global inferior a 3%, medíocre indicador de contração em muitos lugares. Aliás, a indústria global já está em recessão.

A incerteza no Oriente Médio continua elevada, até porque os três principais protagonistas, Trump, Irã e o jovem príncipe que manda na Arábia Saudita gostam muito de tomar riscos.

Na Europa, a economia alemã continua firme na direção de uma recessão, resultado direto da redução do comércio e dos investimentos globais. Na Inglaterra, Boris Johnson perde todas as disputas, mas segue firme na má educação e no esforço de jogar o país numa crise sem precedentes.

Mas é nos Estados Unidos que se dará o ato principal, de cujo desenho já falamos mais de uma vez.

A estimativa final do crescimento do PIB do segundo trimestre foi de 2%, um número robusto, baseado na expansão dos gastos do governo (cujo déficit caminha para US$ 1 trilhão) e do consumo. Além disso, a inflação segue tranquila e o Fed vem reduzindo os juros. Assim, dizem os otimistas, o ciclo de crescimento poderá seguir adiante, e o presidente Trump poderá ser reeleito.

Entretanto, os pessimistas (sempre eles!) apontam um rol crescente de dificuldades.

A desaceleração do crescimento global e a incerteza continuarão a colocar dificuldades para as companhias americanas. Não é por outra razão que os investimentos e o comércio exterior seguem em contração. O setor de serviços também está perto de entrar numa fase de contração.

Mesmo o consumo mostra algumas rachaduras, como a piora das expectativas das famílias e a queda no consumo de gasolina. O resultado do mercado de trabalho foi razoável, mas não altera o quadro geral.

Mas é no mercado financeiro que se veem dificuldades crescentes: a alavancagem dos agentes é recorde, levando muitos a fugir do risco. Ativos defensivos em evidência, como a elevação do preço do ouro, a valorização do iene e os US$ 17 trilhões aplicados em juros negativos. Fracassou a abertura de capital de empresas badaladas, como o Uber e, bem recentemente, a WeWork.

O risco regulatório dos gigantes de tecnologia cresceu muito. A curva de juros segue invertida.

Há algumas semanas apareceu uma aguda escassez de liquidez no mercado bancário de curto prazo (os “repos”), que obrigou o Fed de Nova York a promover grandes leilões de recursos. O fenômeno não parece ter sido reflexo apenas de recolhimentos grandes de tributos e outros pagamentos, podendo ser sintoma de algum “empoçamento” de liquidez, típico de momentos de elevação de riscos percebidos em certas carteiras de ativos. Sinal amarelo aqui.

Para completar a salada, temos a abertura de um processo de impeachment do presidente Trump, com resultados imprevisíveis.

É muita confusão para tudo dar certo.

*Economista e sócio da MB Associados


Fernando Henrique Cardoso: Falta rumo

Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro

Há dias em que escrever é um prazer. Nem sempre: hoje, por exemplo, este artigo me custou bastante. Por quê? Cansaço de uma noite mal dormida me fez sentir a velhice, o que em mim é raro. Mas há também motivos que nada têm que ver comigo. Dá certo desalento voltar aos temas que têm dominado o noticiário do cotidiano nacional: os enganos repetitivos (na verdade, as crenças) do governo atual; a morte absurda de crianças alvejadas à bala, as árvores que queimam na Amazônia e alhures, tanto por motivos cíclicos como pela devastação criminosa em busca de discutível lucro... E por aí vamos, de pequenas e grandes tragédias à estagnação das ideias.

Por trás do “mesmismo” do dia a dia vão se formando nuvens um tanto menos habituais e que nos podem trazer maiores aborrecimentos. A mais difusa e também a mais ameaçadora delas diz respeito ao “estado do mundo”. Desde que Kissinger convenceu Nixon a normalizar a relação dos Estados Unidos com a China e os chineses, levados por Deng Xiaoping, se dedicaram a construir o “socialismo harmonioso” (seja lá o que isso signifique), as apreensões de uma nova guerra mundial sumiram do mapa. A antiga União Soviética desabara, Cuba estava contida, a Coreia do Norte ameaçava mais a do Sul do que o mundo, a guerra entre Índia e Paquistão se acalmara. Restava apenas o “Oriente Médio” e o Norte da África como palcos de guerra, com os americanos bombardeando e conquistando o Iraque, a Europa fazendo o mesmo na Líbia. Crises que pareciam muito longínquas de nós, brasileiros.

Dava a impressão de que a “nova a ordem mundial”, por certo assimétrica, conteria suas desavenças nos limites das Nações Unidas, com uma ou outra ação militar “corretora”, sem abalar as estruturas internacionais de diálogo. São elas que começam a se romper no atual decênio. As ideias representadas por Trump encontram eco na realidade de uma China que de “copiadora” passou a criadora de novas tecnologias e até mesmo de uma Coreia do Norte cujos mísseis ameaçam chegar à costa do Pacífico da América do Norte. Sem falar no renascimento da Rússia como potência militar que cobra seus “direitos” de vassalagem, incorpora a Crimeia, invade terras da Ucrânia e produz temor nos nórdicos.

Neste novo quadro assistimos, ao mesmo tempo, a uma verdadeira revolução nas técnicas e nas relações produtivas. O mundo contemporâneo emprega cada vez mais tecnologias poupadoras de mão de obra e criadoras de grandes volumes de bens e serviços que se transformam em lucros nas mãos de poucos (inteligência artificial, robôs, revoluções na microbiologia, novas técnicas agrícolas, e assim por diante). Em conjunto, elas permitem o prolongamento das vidas humanas, oferecem pouco emprego e, dado o regime social prevalecente, criam não mais “exércitos de reserva”, mas excedentes de mão de obra dispensáveis para o aumento da produção. Em suma, um mundo bem diferente do sonho tanto dos liberais quanto dos marxistas.

Provavelmente é isso que, subconscientemente, está por trás da reação “irracional” dos coletes-amarelos na França, da desconfiança generalizada quanto à democracia representativa, da vontade de voltar ao isolamento, com o Brexit ou com a guerra comercial de Trump. Enfim, com a ascensão de novos pretensos “homens fortes” que, pulando as instituições, voltariam a fazer o “bem do povo”.

Fossem só razões ideológicas e já seria um momento tenso. Mas há mais: os mercados financeiros mundiais começam a dar sinais preocupantes, refletindo a inquietação política e, sobretudo, a diminuição da produção, com a demanda fraca. Para responder à prolongada e profunda crise de 2008 os bancos centrais dos países desenvolvidos reduziram os juros dramaticamente e inventaram o quantitative easing (com injeções maciças de dinheiro nas economias). Que fazer agora se uma nova crise se apresentar, ainda que não tão grave como a anterior? Ora, os juros já estão baixos (em muitos lugares são negativos). E a situação fiscal dos governos ricos não é de folga, limitando o arsenal de medidas para estimular a economia. No Brasil, ainda é possível reduzir os juros, mas o desaguisado das contas públicas deixa o Estado exaurido e sem capacidade para “puxar” os investimentos. Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro.

É neste contexto que se torna imperioso, como eu costumava dizer quando exerci o governo, definir rumos. Mais do que isso: convencer o povo de que os rumos propostos são bons para o País e para as massas, sobretudo para os mais pobres.

De uma coisa estou convencido: há que pôr um ponto final na dinâmica de polarização que tomou conta do País. Até o STF se deixou enredar nela: os juízes discutem e brigam pelo adjetivo, dando à Nação a impressão de que, uma vez mais, o formalismo vai se impor à substância. Quando não parecem não se dar conta das repercussões mais amplas das decisões tomadas.

Não nos esqueçamos de que os presidentes que marcaram nossa História recente (falando só dos que já estão mortos) agregaram, não dissolveram. Juscelino, mesmo enfrentando duas sublevações militares (as revoltas de Jacareacanga e Aragarças), pacificou o País e modernizou o setor produtivo e a infraestrutura do Brasil, somando capital nacional e estrangeiro.

E mesmo Vargas, apesar de ter chefiado um governo forte, repressivo mesmo, e que teve seus momentos de tensão, soube incorporar as massas urbanas e definir um rumo para a economia, nas condições da época. Percebeu que a guerra se aproximava e, embora houvesse negaceado com o Eixo, terminou por se juntar aos Aliados. Cobrou preço, entretanto: a indústria siderúrgica foi feita com empréstimos dos americanos.

Será que estaremos condenados nas próximas eleições presidenciais a votar em polos agarrados a ideologias mofadas? Ou teremos capacidade para unir o centro democrático e progressista para retomar, com a vitória nas urnas, o rumo de grandeza que o País necessita e merece?

* Sociólogo, foi presidente da República


Adriana Fernandes: Memória curta

Os novos “esqueletos” do Orçamento só foram descobertos pelo TCU porque as duas pastas registraram a dívida como passivo contábil no fim de 2018. Praticamente uma confissão de culpa

A memória é curta e a tentação é grande quando se trata de criar novos jeitinhos para fugir das regras orçamentárias. Não é que o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou indícios de que ao menos dois ministérios driblaram o Orçamento e o Congresso para poder gastar mais? Tudo isso depois das famosas “pedaladas fiscais”, as manobras orçamentárias que ajudaram a derrubar a ex-presidente Dilma Rousseff.

O problema aconteceu no governo Temer, mas teve reflexos agora no mandato de Jair Bolsonaro. O que deixou os auditores do tribunal de cabelo em pé é que não houve alerta dos ministros que assumiram no início do governo atual. Antes da descoberta dos auditores do TCU, nenhum alerta foi feito ao órgão de controle, passados nove meses do governo Bolsonaro.

O que o TCU descobriu até agora é que dois ministérios de Temer – Desenvolvimento Social (MDS) e Ciência e Tecnologia (MCTIC) – gastaram R$ 1,3 bilhão além do que foi permitido no Orçamento. Atropelaram regras fiscais e até a vontade do Congresso, que é quem decide em última instância quem recebe quanto do dinheiro federal. O próprio MDS pediu ao Congresso mais espaço no Orçamento de 2018 e não foi atendido. Passou por cima da decisão.

Em assunto tão técnico, é importante deixar claro que sem a dotação, os gastos não foram nem sequer alvo de empenho, que é a primeira fase do rito de gastos e sinaliza o reconhecimento daquele compromisso. Também escaparam de qualquer bloqueio por falta de receitas.

Os novos “esqueletos” do Orçamento só foram descobertos pelo TCU porque as duas pastas registraram a dívida como passivo contábil no fim de 2018. Praticamente uma confissão de culpa. A prática fere a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Constituição e pode ser considerada crime contra finanças públicas.

O débito bilionário começou a ser pago pelo governo Bolsonaro por meio de classificação especial de despesas que só é usada em casos excepcionais e que agora engordou com os esqueletos deixados pelos ministros. Mesmo com essa conta maior, nada foi feito. O TCU suspeita que mais casos semelhantes possam estar mascarados em outras “gavetas” do Orçamento. É esse rastro que a Corte de contas vai agora perseguir.

As investigações serão ampliadas. Um pedido de inspeção geral foi feito ao relator, ministro Bruno Dantas, responsável pela análise das contas deste ano, e deve avaliar ainda a conduta dos gestores atuais do Ministério da Cidadania (que incorporou as atribuições do MDS) e do MCTIC perante a descoberta do passivo. O ministro Bruno Dantas deve autorizar um pente-fino geral. Um dos alvos é o Ministério da Saúde.

Até agora o maior esqueleto foi deixado pelo MDS – R$ 1,2 bilhão do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) ficou de fora do Orçamento em 2017 e 2018. O ministério chegou a solicitar no ano passado um crédito extra ao Congresso para conseguir executar todas as despesas previstas, mas não foi atendido. Para se ter uma ideia, um terço do orçamento do FNAS no primeiro semestre serviu para quitar esses passivos. Mesmo assim, ainda resta um débito de R$ 938,3 milhões e não há espaço nem sequer no Orçamento deste ano para sanar a dívida.

Ou seja, a manobra feita no governo anterior está tendo consequências diretas na gestão deste ano. No MCTIC, o problema envolveu logo as bolsas do CNPq. Um passivo de R$ 77 milhões. Ao deparar com a falta de dinheiro, o ministério em vez de cortar ou suspender bolsas continuou executando a política normalmente. O pagamento da dívida agora consome espaço no Orçamento de 2019, no teto de gastos (mecanismo que limita o crescimento dos gastos à inflação) e afeta o resultado primário – e bolsas de pesquisa já foram canceladas por falta de dinheiro.

Há ainda uma grande preocupação da Corte de contas com as despesas inscritas no chamado restos a pagar (registradas corretamente no Orçamento, mas transferidas de um ano para o outro), que têm um saldo muito elevado. Elas também passam por um pente-fino e novas descobertas são esperadas. Esse jeitinho nas contas deu errado e os gestores ainda não aprenderam com os erros dos passado. É uma forma de tocar a política pública na marra, contornando as decisões do Legislativo sobre o Orçamento. A descoberta é gravíssima!


Miguel Reale Júnior: Como ousa?

Risco de a Amazônia ter apenas vegetação de cerrado é iminente, e com secas no Sudeste

A fuga da realidade no discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU causou apreensão. Como o chefe de Estado brasileiro é capaz de produzir, perante representantes de 192 países, um pot-pourri cujos assuntos desconexos têm um elemento comum: a fantasia?

Por sua fala, vive-se uma cruzada em defesa dos cristãos contra os invasores de almas para sequestrar Deus e destruir a família, carregados de ideologias. Além da convocação para a guerra santa, o presidente disse sobre a Amazônia: “Ela não está? sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora”.

Não pretendo alistar-me no exército de Bolsoleone na luta contra os imaginários destruidores dos valores ocidentais cristãos, mas aceito o desafio de saber o que acontece na Amazônia. Os relatos de órgãos oficiais e de ONGs, há décadas monitorando a região, preocupam.

Já em 1981 o geógrafo Antonio Giacomini Ribeiro (Acta Amaz. vol.11 n.º 2 Manaus Apr./Ju, www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid) observava que o envio de umidade para a atmosfera decorria principalmente da evapotranspiração, antes da chuva, por intensa atividade de fotossíntese e na chuva antes de a água atingir o solo. E alertava o geógrafo que a criação das nuvens tipo “u cumulus esfarrapadus”, propícias para chuvas, ocorre na floresta densa e nem sequer se dá em áreas de campo e desmatamentos.

Esse fato é importante, pois se constatou, ao longo do tempo, que a Amazônia produz metade de suas próprias chuvas, formando um ciclo hidrológico fechado, cabendo a pergunta de Elton Alisson, da Fapesp: qual seria o nível de desmatamento a partir do qual o ciclo hidrológico amazônico se degradaria (http://agencia.fapesp.br/print/desmatamento-na-amazonia-esta-prestes-a-atingir-limite-irreversivel)?

Respondem a essa pergunta os renomados professores Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, na revista Science Advance(http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat234) e no site de notícias Virtù. Explicam que a Floresta Amazônica depende do ciclo hidrológico que ela mesma produz, havendo dessarte um nível de desmatamento além do qual esse ciclo perde força a ponto de não mais produzir a chuva necessária para a vida dos ecossistemas da floresta tropical.

Lovejoy, então, esclarece que ele e Carlos Nobre, diante de circunstâncias naturais e de intervenção humana, reavaliaram para baixo a porcentagem de desmatamento a partir da qual o ecossistema amazônico passaria do ponto de não retorno, sendo o tipping point entre 20% e 25%. E o pior: “O ponto de não retorno está sendo atingido. Esta situação uma vez instalada não pode mais ser revertida. Uma vez quebrado o ciclo hidrológico, o ecossistema amazônico entra em colapso e não mais pode ser recuperado por medidas de preservação”, havendo o perigo iminente de a Amazônia vir a ter apenas vegetação típica do cerrado e, por ricochete, causando seca no Sudeste.

Com a participação de cientistas brasileiros e estrangeiros, coordenado pelo climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência e Tecnologia, pesquisa sobre o clima na Amazônia e o que pode acontecer pelo desmatamento em grande escala (Frontiers in Earth Science, com o título Changes in Climate and Land Use Over the Amazon Region) concluiu: “Os efeitos combinados da seca e do desmatamento, juntamente com o fogo, podem ampliar os impactos e causar o colapso do ecossistema da floresta tropical” (http://www.cemaden.gov.br/impactos-na-amazonia).

Entre 1o de janeiro e 29 de agosto de 2019 o Inpe detectou 45.256 focos de calor no bioma Amazônia, o maior já registrado desde 2010. Esse aumento expressivo de focos, comparado a anos anteriores, se verificou em praticamente todas as categorias fundiárias; e apesar da proteção ambiental as unidades de conservação em 2019 mostraram aumento surpreendente, com o dobro dos focos registrados em relação à média dos últimos oito anos, com concentração em determinadas unidades, como a Floresta Nacional do Jamanxim.

Conforme noticia a WWF Brasil (http://www.wwf.org.br/?72843/amazonia-um-em-tres-queimadas-tem-relacao-com-desmatamento), na Amazônia 31% dos focos de queimadas registrados até agosto deste ano localizavam-se em áreas que eram floresta até julho de 2018, conclusão essa fruto da análise feita sobre focos de queimadas no bioma, com base em séries históricas de imagens de satélite e em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Outro dado trazido pela WWF Brasil é significativo: a área com alertas de desmatamento em agosto foi de 1.394 km2, um valor 120% maior que o do mesmo mês em 2018. Somente nos oito primeiros meses de 2019 a área total com alertas de desmatamento foi de 6 mil km2, 62% mais do que o observado no mesmo período em 2018.

Conforme matéria do site G1 (https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/21/aumento-das-queimadas-no-brasil-veja-12-perguntas-e-respostas-sobre-o-tema.ghtml), Ane Alencar, uma das maiores especialistas em incêndios na Floresta Amazônia, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, diz: as queimadas aumentaram por causa do desmatamento, “é uma relação direta”, pois, quando se desmata uma área para pastagem ou agricultura, cabe se livrar daquela biomassa. Essa ligação entre desmatamento e queimada é acentuada em outra entrevista, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/o-governo-nao-pode-espalhar-o-fogo-na-amazonia/.

Em setembro, com atuação do Exército, reduziu-se um pouco a queimada, mas o desmate, ação ilegal que antecede o fogo, persiste elevado.

Estes dados impõem recorrer à expressão de Greta Thunberg: como ousa, presidente?

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


João Domingos: Tudo a perder

Atrapalhar o segundo turno da reforma da Previdência é um erro

Senado e Câmara correm o risco de pôr a perder, senão toda ela, pelo menos uma parte da boa imagem que construíram neste ano. Logo depois da posse, em fevereiro, muita gente olhou para a composição das duas Casas – esse repórter também –, e não teve dúvidas em dizer que era o pior Congresso desde o fim da ditadura militar.

Recuperados da surpresa da exclusão da mesa farta do Palácio do Planalto e da perda do poder de mando sobre a Esplanada dos Ministérios e estatais, como Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa, BNDES e Correios, para citar alguns dos alvos mais desejados, deputados e senadores se recolheram. Foram pensar no que fazer diante da dura realidade que lhes impunha o presidente Jair Bolsonaro ao lhes negar as tetas do governo.

Entenderam que o melhor jeito de enfrentar tal situação sem que morressem por inanição era fazer valer a voz e a vontade do Congresso.

Deixariam de ser um apêndice do Executivo, como nos governos anteriores, e cuidariam de uma pauta própria. Logo assumiram para si a agenda positiva do governo, traduzida primeiramente na reforma da Previdência. Decretos e outras iniciativas do presidente da República começaram a ser derrubados, a exemplo do decreto que aumentava o número de agentes públicos autorizados a dizer o que era documento secreto ou ultrassecreto e do que flexibilizava a posse de armas, substituído por um projeto de lei.

Por achar que manter o Coaf no Ministério da Justiça fortaleceria demais o ministro Sérgio Moro e o aparelho de controle financeiro, fiscal e de investigação, o Congresso mudou a medida provisória que reduziu ministérios e fundiu outros. Sem que o governo nada pudesse fazer, o Coaf foi devolvido ao Ministério da Economia (posteriormente o presidente Jair Bolsonaro o transferiu para o Banco Central).

Tudo o que os deputados consideraram que era alheio ao tema Previdência, e que constava do projeto de reforma enviado pelo governo, foi arrancado ainda na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. E a reforma da Previdência andou. Rápida, segura. Era o Congresso dizendo à sociedade que assumia ali a agenda positiva para o País. Era o Congresso dizendo que, apesar das aparências, estava disposto a desmentir os que o consideravam o pior da História recente.

Vale insistir, toda essa imagem boa, porém, pode desaparecer. Ao condicionar a votação do segundo turno da reforma da Previdência à distribuição do dinheiro do leilão do pré-sal, marcado para novembro, o Senado reduz o seu papel, recua anos ao passado e se expõe aos que acusam os congressistas de chantagem. A reforma da Previdência deve ser vista como um projeto de País, importante para a redução do déficit fiscal e para a manutenção do próprio sistema de aposentadorias. Pode-se discordar do conteúdo, mas não há um único partido que não diga que a reforma previdenciária não é importante.

Fala-se muito entre os senadores que eles estão descontentes com o governo porque nada do que vem de promessa lá das bandas do Palácio do Planalto é cumprido. Ou que muitos se sentem traídos pela forma individualista como tem atuado o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Dificultar a votação do segundo turno da reforma da Previdência seria uma forma de retaliar o governo e o presidente do Senado. É um erro. A reforma é do País, não do presidente Bolsonaro ou de Alcolumbre. Se querem retaliá-los, existem outros projetos que dizem muito mais respeito aos dois do que à sociedade. Não é preciso ir longe. A indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a Embaixada do Brasil em Washington é muito mais um desejo do pai, o presidente, que a negociou com Alcolumbre, do que uma necessidade do País.


Eliane Cantanhêde: Adélio e Queiroz

O Queiroz some, o Adélio aparece e cresce a versão de ‘crime da esquerda’

O presidente Jair Bolsonaro é o eixo de mais uma gangorra: quanto mais o Queiroz some, mais o Adélio aparece. Há um cerco de proteção ao policial aposentado e pivô das esquisitices no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. E há uma frente para reabrir as investigações sobre Adélio Bispo, considerado inimputável depois de esfaquear o presidente na campanha.

O mais novo personagem na trama é Augusto Aras, que foi indicado por Jair Bolsonaro para a Procuradoria-Geral da República, passou com louvor pela sabatina no Congresso e acaba de assumir o cargo adotando o compromisso de “independência”, inclusive diante do Executivo.

Ao Estado, Aras defendeu aprofundar as investigações sobre Adélio Bispo, em busca da “verdade real”. Isso joga um balde de suspeição sobre o trabalho da Polícia Federal, que investigou a facada e concluiu que Adélio tem problemas mentais e agiu sozinho – como endossou a Justiça.

Adélio, aliás, é a real causa da implicância de Bolsonaro com a Polícia Federal, que já levou pelo menos três sapatadas públicas do presidente. Assim como esperou a posse para se livrar da multa por pesca ilegal e se vingar do fiscal que o multou, o presidente não vai descansar enquanto o MP e a PF não concluírem que, como ele disse na ONU, foi “covardemente esfaqueado por um militante de esquerda”. É uma tese duvidosa, tanto como a de que o Brasil esteve “à beira do socialismo”. Adélio foi filiado ao PSOL, mas é muito menos “esquerdista” do que perturbado.

Na entrevista, Aras citou suspeitas que contrariam a PF e reforçam os advogados de Bolsonaro: o uso de arma branca, possibilidade de cúmplices na multidão, alguém com o nome de Adélio na Câmara no mesmo dia e advogados contratados por desconhecidos.

São pertinentes? Especialistas argumentam que já foram consideradas e que um procurador-geral só deveria fazer uma manifestação assim, em público, munido do chamado “fato novo”: uma testemunha, uma prova, ao menos um indício... Na fala de Aras não há isso, o que reforça temores de que ele veio para fazer o jogo do Executivo, particularmente do presidente.

Do outro lado da gangorra, Queiroz sumiu, ninguém sabe, ninguém viu, a não ser a chata e implicante imprensa. E sumiu sem prestar um único depoimento ou esclarecimento sobre movimentações financeiras atípicas e depósitos dos funcionários do gabinete de Flávio na sua conta. As dúvidas foram levantadas pelo falecido Coaf, que mudou de nome e de endereço. Salva-se o Queiroz, pune-se o Coaf.

O presidente do Supremo, Dias Toffoli, concedeu uma liminar monocrática, a pedido da defesa de Flávio, suspendendo todas as investigações em curso com base em dados do então Coaf e da Receita, sem autorização judicial. Depois, o ministro Gilmar Mendes completou o serviço, vetando toda a investigação contra o próprio Flávio. E não se fala mais nisso?

O caso Queiroz foi jogado numa gaveta, o de Adélio foi tirado de outra, deixando a sensação de que Bolsonaro quer impor a sua narrativa sobre a facada. A PF, porém, sempre prestigiou a operação conduzida pela superintendência de Minas e há até a intenção de fazer uma entrevista coletiva para, detalhadamente, demonstrar como foram as investigações e explicar as conclusões.

A dúvida é o quanto uma instituição tão profissional e respeitada como a PF consegue resistir a pressões para adaptar conclusões técnicas a interesses políticos, deixando no ar uma versão sobre uma conspiração de esquerda. De mito, Bolsonaro evoluiria para mártir da direita. E a PF viraria pó.

PS: As relações entre os paranaenses Sérgio Moro (Justiça) e Maurício Valeixo (PF) já foram melhores.


Zeina Latif: O bom debate

Os gestores devem perseguir as boas práticas e basear-se na melhor evidência disponível

Com frequência se assiste a divergências entre economistas nas recomendações de política pública. Ainda que cause confusão ao cidadão atento, que fica sem saber qual lado está “correto”, o debate saudável contribui para o aprimoramento da ação estatal, sendo elemento importante para o funcionamento da democracia.

A ausência do bom debate contribuiu para o desastre da gestão Dilma. Um governo refratário a críticas. Adotou seu próprio manual de política econômica - a nova matriz macroeconômica (NMM), termo cunhado pelo então secretário de política econômica do Ministério da Fazenda, Márcio Holland –, desqualificando os críticos e ignorando os alertas, alguns dentro do próprio PT. A NMM consistia em expansão fiscal, via gastos públicos e renúncias tributárias, crédito público abundante e taxas de juros do Banco Central baixas, enquanto a experiência acumulada e a literatura econômica consolidada recomendavam cautela naquelas prescrições.

Em 2012, muitos acadêmicos e pesquisadores defenderam que havia espaço para redução dos superávits fiscais, pois os juros baixos e a suposta retomada do crescimento impediriam o crescimento da dívida pública como porcentagem do PIB. Eram tempos em que os nacionais-desenvolvimentistas dominavam o pensamento econômico do País. Os críticos que defendiam a disciplina fiscal eram apontados como defensores de interesses escusos de rentistas ou dos bancos.

A história não acabou bem. O estímulo artificial da economia pressionou a inflação, exigindo grande aperto monetário, o que, somado ao rápido aumento do endividamento público, levou à perda do grau de investimento, agravando o quadro. O resultado foi a crise, possivelmente, mais grave de nossa história.

É curiosa a volta precoce da defesa de aumento dos gastos públicos para estimular a economia. Afinal, o Brasil continua sofrendo com a dívida em alta. Sua estabilização ainda é uma promessa. O País mal começou o ajuste estrutural das contas públicas. Há ainda uma agenda extensa de ajuste para conter o rápido crescimento dos gastos obrigatórios.

Os gestores devem perseguir as boas práticas e basear-se na melhor evidência disponível. Precisam avaliar o custo-benefício das políticas públicas, e isso requer qualidade técnica.

A teoria econômica prevê que o resultado depende das circunstâncias, como a qualidade do gasto público, as condições de solvência do governo e a taxa de poupança do país. A resposta está, pois, na evidência empírica.

Na experiência brasileira, os investimentos públicos têm sido eficazes e gerado crescimento? Qual o tamanho do estimulo à demanda no curto prazo? E qual o impacto no potencial de crescimento de longo prazo, via melhora da infraestrutura ou formação da mão de obra? As evidências estão mais para a baixa eficácia dos investimentos públicos. O Estado gigante gasta mal.

Estimar de forma acurada esse efeito multiplicador não é tarefa tão fácil. Há resultados para todos os lados e, em alguns casos, com problemas e limitações nas técnicas utilizadas. Na dúvida, convém cautela redobrada.

Há também uma boa dose de economia política envolvida. Elevar despesas implica a necessidade de flexibilizar a regra do teto dos gastos. Seria um péssimo sinal para investidores. Mal a emenda constitucional foi promulgada e já se discute seu relaxamento. Equivale a quebrar a dieta quando ela mal começou.

Se isso for feito, a reconquista do grau de investimento estará mais distante e a estratégia de política monetária do BC, que sinaliza Selic de 4,5% a.a. e por um bom tempo, estará ameaçada. O custo é, portanto, elevado. O benefício, nem tanto, pela baixa qualidade dos investimentos públicos.

Não existe política econômica ideal. Há perdas e ganhos no curto prazo, mesmo quando a medida é vantajosa para todos no longo prazo.

O momento pede reformas constitucionais, não para mudar a regra do teto, mas para reduzir gastos obrigatórios, que comprometem quase a totalidade do orçamento federal. O debate precisa mudar de foco.

*Economista-chefe da XP Investimentos


Everardo Maciel: Não é simples

Principal elogio à PEC 45 está na redução do número de tributos. Mas seria isso realmente simplificação?

Ainda que timidamente, começa a ser desvelada a natureza da PEC 45, autodesignada reforma tributária.

Já se reconhece que os pequenos e médios prestadores de serviço e a incorporação imobiliária terão aumento desproporcional de carga tributária, sob a alegação de que são subtributados (como se existisse uma tributação “normal”) e de que consultas médicas, mensalidades escolares, prestações da casa própria, aluguéis, passagens de ônibus, diárias de hotéis, etc., são gastos “de ricos”, o que para a classe média pode parecer ofensivo. De igual modo, já se admite que os maiores beneficiários da brutal redistribuição de carga decorrente da PEC seriam as instituições financeiras, que provavelmente devem estar reclamando de seus modestos lucros.

Os profissionais autônomos, os produtores rurais, qualificados como pessoas físicas equiparadas às jurídicas, e os pequenos e médios comerciantes e industriais ainda não entenderam claramente que estão no rol das vítimas potenciais. Suas pequeníssimas margens seriam tragadas pela proposta, o que inviabilizaria seus negócios, mesmo sabendo que são justamente serviços e agronegócio a sustentação dos raquíticos crescimentos do PIB brasileiro. Quando se aperceberem da tragédia, é pouco provável que fiquem felizes.

Pude perceber que o principal elogio à proposta se concentra na sua índole simplificadora, porque reduz o número de tributos. Seria isso realmente uma simplificação?

O Simples, instituído em 1996, era apurado pela singela aplicação de uma alíquota sobre uma base de cálculo, substituindo praticamente a arrecadação de todos os tributos federais incidentes sobre micro e pequenas empresas. Com ele coexistiam harmonicamente sistemas estaduais simplificados (Simples Caipira, Simples Candango, etc.). No bem-intencionado propósito de torná-los ainda mais simples, a Emenda Constitucional n.º 43, de 2003, previu a instituição do Simples Nacional, abrangendo todas as entidades federativas. Paradoxalmente, o sistema se tornou complexo, a ponto de a Lei Complementar n.º 123, de 2006, que implementou o Simples Nacional, admitir, em seu artigo 18, parágrafo 15, a indispensabilidade de um sistema operacional para possibilitar a apuração de um tributo presumidamente simples. Era um pedido de desculpas do legislador.

Hoje, o Simples Nacional precisa ser reformado, antes que se torne alvo dos “simplificadores”.

Imagine reunir num só tributo incidências sobre a receita, como PIS-Cofins, e sobre o consumo, como ICMS, IPI e ISS, com administração compartilhada por todas as administrações tributárias dos entes federativos.

Como é constitucionalmente vedado converter o País num Estado unitário, seria instituída uma ciclópica administração tributária, com ares de um hipopótamo trôpego, sem falar na expansão descomunal da Justiça Federal, considerando que o tributo seria incluído em sua jurisdição.

PIS e Cofins têm praticamente a mesma legislação. Fundi-los implica tão somente abrir um contencioso sobre suas respectivas destinações (Fundo de Amparo ao Trabalhador e orçamento de seguridade social). Para o contribuinte, nenhuma vantagem. É, portanto, mero simplismo, e não simplificação.

Se a inclusão do IPI nesse bolo se volta para extinguir a Zona Franca de Manaus, a do ISS e do ICMS é ofensiva ao pacto federativo.

O aumento de carga tributária sobre os optantes do lucro presumido, sob a égide da simplificação, é, paradoxalmente, um preconceito contra os regimes simplificados.

Seguramente, nenhum dos mais de 850 mil contribuintes optantes do lucro presumido, os incorporadores com regime do patrimônio de afetação e os produtores rurais equiparados a pessoas jurídicas, tem qualquer queixa quanto à complexidade de seus respectivos modelos de incidência. Mas o que sabem eles sobre tributos, quando pessoas pretensamente mais informadas optam por trotar sobre suas preferências?

Não é demais lembrar a lição do jornalista Henry Mencken (1880-1956): “Todo problema complexo tem uma solução simples, fácil e errada”.

*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)