O Estado de S. Paulo

Simon Schwartzman: A âncora da educação

O foco devem ser as competências, e não os diplomas que possam aparecer nos currículos

No México, o novo governo de López Obrador cancelou a reforma da educação do governo anterior, acusado de ter instituído um sistema punitivo de avaliação de mérito dos professores, e decidiu universalizar a educação superior, prometendo a criação de mais cem universidades. Ao mesmo tempo, corta os recursos e cria dificuldades para o funcionamento dos centros de pesquisa mais avançados. A educação pública mexicana é tão ruim quanto a brasileira e o poder dos sindicatos era tal que os professores das escolas públicas eram donos de seus cargos, podendo passá-los para os filhos. A Universidad Nacional Autónoma de México, com mais de 300 mil estudantes, sempre teve uma política de acesso livre e gratuito, gerando graves ineficiências, que os governos anteriores tentaram mitigar.

É um exemplo extremo de políticas populistas que dão prioridade absoluta às demandas da população por credenciais ou títulos universitários e aos interesses corporativos dos professores, deixando de lado as preocupações com qualidade e relevância. A consequência é a inflação dos diplomas, tornando necessários títulos cada vez mais altos para fazer as mesmas coisas, a um custo crescente para a sociedade.

O Brasil nunca chegou a esse extremo, mas o que aconteceu com a educação teve muito dessa filosofia. E não é muito diferente do ocorrido em áreas como saúde e previdência: um grande esforço para recuperar séculos de atraso e compensar as desigualdades expandindo de qualquer maneira a educação, resultando num sistema inchado, custoso, de má qualidade e extremamente difícil de reformar. Hoje, 50 milhões de brasileiros estão matriculados em algum tipo de escola, 60% da população até 30 anos, atendidos por um exército de mais de 6 milhões de pessoas, entre professores, dirigentes escolares, funcionários e outros profissionais. A estimativa mais recente de é que o Brasil gasta perto de 8% do PIB em educação, incluindo os gastos privados, proporcionalmente mais do que todos os demais países da América Latina e muitos países desenvolvidos.

Uma justificativa para esse grande esforço é que a educação seria a principal alavanca para sair da armadilha da renda média, em que estamos atolados. De fato, as pessoas mais educadas ganham mais, supostamente porque têm competências que o mercado de trabalho valoriza, e países em que a população é mais educada são mais desenvolvidos. No entanto, no Brasil a produtividade manteve-se estagnada ao longo das últimas décadas. Uma das razões é que a educação cresceu dando prioridade às demandas por credenciais – diplomas – e às reivindicações corporativas do setor, em detrimento da ênfase no mérito e nas competências. Como vários estudos recentes têm demonstrado, não basta aumentar a escolaridade para que a produtividade aumente. É preciso que a educação seja de qualidade, o que não tem ocorrido de forma satisfatória.

A outra justificativa é que a educação aumenta a mobilidade e reduz a desigualdade social. Mas nem sempre mais educação leva a esses resultados. Em quase todo o mundo, ao longo do século 20, houve um grande crescimento das cidades, da economia e do setor público. A expansão da educação, que acompanhou esses processos, fez com que as elites tradicionais se modernizassem e pessoas mais pobres, imigrantes e de minorias, se beneficiassem das novas oportunidades que foram sendo criadas. A insistência no mérito como critério para acesso às novas oportunidades de estudo e avanço nas carreiras foi fundamental para garantir que as melhores posições não fossem monopolizadas pelas elites tradicionais.

Mas não foi uma vitória absoluta. Existe uma forte relação, difícil de ser superada, entre desempenho escolar e origem social; e, além disto, a educação é um bem “posicional”, ou seja, os benefícios de cada um dependem em grande parte da posição relativa que ele tenha em relação aos demais. Como no futebol, só há lugar para poucos na primeira divisão.

Quando o processo de urbanização se esgota, os custos do sistema de bem-estar social chegam a seu limite e a economia para de crescer, como no Brasil de hoje, a expansão da educação deixa de ser um jogo em que todos ganham, ainda que desigualmente, e se aproxima de um jogo de soma zero, em que os que ganham o fazem à custa dos ficam para trás.

Isso leva a conflitos intensos pelas credenciais acadêmicas, numa combinação perversa de reservas de mercado profissional para os mais educados e políticas populistas de estímulo ao acesso livre ou facilitado ao ensino superior. Por um lado, o acesso ao ensino superior passa a ser visto como direito de todos, os requisitos mais tradicionais de desempenho no acesso e nos estudos passam a ser substituídos por critérios sociais, e a conquista dos diplomas passa a ter precedência sobre o desenvolvimento de competências. Por outro, cada vez mais é preciso uma pós-graduação ou passar num concurso público extenuante para conseguir um bom emprego, e milhares de formados em Direito nunca passarão o exame da OAB. Milhões se inscrevem no Enem tentando chegar ao ensino superior e não conseguem, muitos dos que entram abandonam antes de terminar e grande parte dos formados acaba trabalhando em atividades de nível médio.

A solução não é voltar o relógio do tempo, restringindo o acesso ao ensino superior e controlando mais rigidamente o exercício das profissões universitárias, mas, ao contrário, é criar mais alternativas de formação de nível médio e superior para atender a pessoas de diferentes perfis, reduzindo a pressão sobre os títulos acadêmicos, e quebrar os monopólios profissionais que excluem arbitrariamente pessoas com níveis de formação diferenciados do mercado de trabalho.

A âncora da educação devem ser as competências, e não os diplomas que possam aparecer nos currículos.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências


Elena Landau: Cabeça, corpo e alma

Estudar e pensar é vital para uma mulher romper um quadro de dependência

A todo tempo são noticiados números assustadores de feminicídio no País, que tem a desonrosa quinta colocação no ranking mundial.

O assassinato é o último elo de uma cadeia de violência. Abuso verbal, agressões, estupro vão sendo cometidos ao longo de anos até que se chegue à letalidade.

Recentemente, o bispo Edir Macedo gravou um vídeo falando do lugar das mulheres na sociedade. Usou como exemplo a educação que deu às filhas. Com a religião como escudo, revelou toda sua misoginia. As filhas só teriam a missão de servir a Deus. Um curso superior as desviaria do caminho. Se estudassem, correriam o risco de ficar solteiras ou, se casadas, serem justificadamente traídas por seus maridos e disse mais: “Quero que minhas filhas se casem com um macho”.

É um retrocesso nos, ainda lentos, avanços em busca do tratamento igualitário entre gêneros. Sua fala nos remete ao tempo em que mulheres não podiam votar ou dependiam de autorização do marido para trabalhar. Hoje, lutam para aumentar sua representação no Parlamento, sem serem usadas como laranjas pelos seus partidos. Lutam por salários iguais aos dos homens nas mesmas funções, por participação na alta administração e nos conselhos. Buscam igualdade de oportunidades, procurando mudar regras que, criadas com boas intenções, as discriminam, como aposentadorias precoces e licenças maternidades. Perderam a oportunidade de igualar a idade entre gêneros nesta reforma da Previdência. A licença parental é ainda uma discussão incipiente, mas muito relevante. Vamos caminhando, devagarinho.

O vídeo traz uma outra mensagem muito perigosa: para o casamento funcionar, a mulher não pode ter cabeça. É apenas um corpo. A fala do bispo Macedo nos lembra os tempos em que um companheiro traído tinha direito de matar em legítima defesa da honra ou que marido não podia ser denunciado por estupro pela esposa, afinal, era seu dever matrimonial ter relações sexuais. Essa terrível desvalorização da mulher está na base de uma cultura patriarcal, que leva a abusos de toda a sorte.

Nesta semana, viralizou um episódio de 2016 em que Silvio Santos pergunta a uma criança se ela prefere sexo, poder ou dinheiro. Não é por coincidência que Silvio e Edir foram convidados especiais de Bolsonaro na parada de 7 de Setembro. O presidente que afirmou que o ECA deveria ser jogado na latrina e censurou cartilhas de educação sexual nas escolas. Educação que permitiria a essa criança saber que esse tratamento é inadmissível e esconde um desejo doentio do adulto.

Em 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, ela própria vítima de duas tentativas de assassinato e símbolo na luta contra a violência doméstica. A nova legislação não procurou apenas agravar a pena, mas dar condições de acolhimento e segurança para as vítimas de violência doméstica e diminuir a impunidade. As estatísticas revelam que 89% das agressões partem de companheiros ou ex-companheiros. O perigo maior está dentro de casa. Muitas são convencidas de que fizeram por merecer, andaram pensando por conta própria. Outras não têm acesso às informações das medidas protetivas. É obrigação de todos ajudá-las na busca por proteção, afastando a vítima de seu agressor. Sem julgamentos.

Crianças que, como as mães, são vítimas de abusos verbais, físicos e estupro podem perpetuar um ciclo vicioso de violência. O ambiente disfuncional afeta negativamente seu aprendizado e desenvolvimento. As políticas públicas de acolhimento são fundamentais para permitir que a vítima saia da situação de risco. Muitas mães não têm independência financeira para cuidar de si e de seus filhos. Treze anos após a Lei Maria da Penha, apenas 2,4% dos municípios têm casas-abrigo, mas todos têm Conselhos Tutelares. Seus membros são remunerados e a proximidade com escolas lhes permite perceber os indícios de violação de direitos da criança. Se bem treinados, em vez de impor ideologias ou buscar o trampolim político, poderiam ser um importante braço de prevenção de maus-tratos.

Estudar e pensar é fundamental para uma mulher romper um quadro de dependência que pode afetar sua vida de muitas maneiras. É assustador ter na ministra responsável pela proteção de seus direitos uma defensora da ideia da submissão da mulher ao marido. Preocupa, e muito, a normalização de um tratamento abusivo contra crianças e mulheres.

Na briga de marido e mulher, muitas vezes, é preciso meter a colher.

*Economista e advogada


Murillo de Aragão: Bolsonaro e o PSL, convicção e conveniência

Sem Bolsonaro, o PSL será um partido rico, mas com uma narrativa empobrecida.

A crise entre o PSL e o presidente Jair Bolsonaro faz parte de um roteiro que envolve conveniência e convicção. Considerando tais aspectos, é natural que a relação entre ambos nunca tenha sido das melhores.

Em 2018, o então deputado federal Jair Bolsonaro precisava de um partido para disputar a Presidência e escolheu o PSL, que, por sua vez, acolheu Bolsonaro como uma aposta que poderia dar certo. Ao filiar-se ao partido, em março de 2018, ele já tinha entre 15% e 20% das intenções de voto.

A união de ambos foi conveniente sob o ponto de vista eleitoral. Porém, sob o ponto de vista de futuro, pode não funcionar caso não haja uma redistribuição de poder interno no partido.

Disputa-se, é claro, o comando do partido na escolha de candidatos e o controle dos fundos eleitoral e partidário. Na eleição do próximo ano, a legenda terá R$ 359 milhões, juntando os fundos partidário e eleitoral.

Na disputa por poder interno, aliados do presidente divulgaram ontem carta cobrando “novas práticas” do comando nacional do PSL.

No limite, a disputa interna poderá resultar em racha. Mas o cenário predominante é o de negociação. O que, pelo menos por enquanto, impediria uma ruptura total que pode levar o PSL a encolher de forma relevante.

Bolsonaro é indiscutivelmente maior do que o PSL. Foi o vetor do sucesso do partido nas eleições. Sem Bolsonaro, o PSL será um partido rico, mas com uma narrativa empobrecida. Continuará a existir, mas perderá densidade política.

Para aliados do presidente, sair do PSL é um problema jurídico. Mas não é incontornável. Sob o ponto de vista financeiro, a mudança para uma outra agremiação que não tenha fundos abundantes será ruim. Mas não é o fim do mundo.

Afinal, a lealdade ao presidente poderá render frutos que compensam as perdas. Em política, convicção e conveniência são relativos e dependem das circunstâncias.

*Mestre em ciência política e doutor em sociologia pela Universidade de Brasília, é professor adjunto da Columbia University e Ceo da Arko Advice Pesquisas.


Eugênio Bucci: Imprensa, objetividade e militância

Liberdade de informar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas

A objetividade na imprensa é possível? A pergunta é velha, mas de uns dois ou três anos para cá ganhou notas de um nervosismo inédito – ou de cinismo reles. A interrogação está na ordem do dia. É sensato esperar que uma reportagem nos dê uma cobertura fiel, veraz, precisa, justa, desapaixonada sobre o que faz e diz o presidente da República? Pode-se esperar do texto elaborado por uma redação profissional a correspondência confiável entre as palavras e os fatos?

O tema nunca foi simples. Agora, desde que líderes falastrões e autoritários se viram alçados ao poder em países democráticos, ficou mais complicado. Como reportar objetivamente os acontecimentos da política quando o mandatário ofende a objetividade com suas palavras infundadas? Como reportar os discursos oficiais que induzem a erro? Quando o governante não é zeloso na observância dos fatos, ou mesmo quando ele mente, como registrar sua fala com isenção, mas sem ingenuidade? Como a imprensa pode adotar uma postura que seja ao mesmo tempo serena e vigilante?

Para quem não tem familiaridade com os dilemas das empresas jornalísticas, essas indagações podem soar tolas ou mesmo vazias, mas, acredite, são indagações mortais. Se um jornal é dócil e solícito a um governante áspero e insensível, vai passar por sabujo e se desmoralizar. Mas se um jornal deixa de registrar o que se passa para enxovalhar a autoridade, sem senso de proporção, vai se desviar para o proselitismo e perderá credibilidade. Qual a justa medida? Onde está o critério?

As dúvidas estão na mesa. A imprensa passa por ameaças que jogam sombras sobre o futuro. Enquanto perde mercado e anunciantes para as plataformas sociais, enquanto perde sustentabilidade econômica, é alvo de bombardeios reiterados e pesados de governantes que não têm apreço pela verdade factual. Isso em vários países. Economicamente fragilizada, a imprensa se vê politicamente sitiada. E aí? Como manter a objetividade diante de poderes que são ostensivamente contrários ao trabalho dos jornalistas?

Não por acaso, perguntas como essas voltam à pauta em algumas das melhores redações do mundo. Aqui, no Brasil, há pouco mais de um mês, no dia 31 de agosto, editorial do Estado com o título de Desafio jornalístico enfrentou o mal-estar e se perguntou: “Como ser objetivo diante de reiteradas declarações presidenciais mentirosas, cínicas ou que se prestam a confundir?”. Se o presidente proclama teses fraudulentas, como proceder? As respostas não são automáticas, é claro, mas o editorial soube extrair do impasse uma recomendação sóbria: “Se o veículo que reproduz a declaração presidencial sabe se tratar de uma falsidade ou de uma tentativa de manipulação, deveria deixar esse fato explícito para o leitor”.

Desde agosto, quando o editorial foi publicado, a coisa só piorou. O “desafio jornalístico”, na verdade, é um desafio histórico de grande envergadura. A liberdade de informar, de se expressar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas. Nos nossos dias, a manutenção dessa instituição chamada imprensa, que só foi inventada para fiscalizar o poder e para fazer soar o alarme quando há desvios, precisa ser defendida. Demanda cuidados.

No meio da barulheira de certas redes sociais mais extremadas, que se comprazem em xingar de “comunistas” alguns dos maiores órgãos de imprensa do Brasil, a pressão cresce. As massas virtuais deslocaram-se para bolsões de fanatismo onde os fatos não têm valor algum. Nos polos mais à direita, os que levantam um senão contra o líder populista ultraconservador são hostilizados. Veículos de comunicação temem perder audiências. Ser crítico do poder não sai de graça. As multidões raivosas procuram uma mídia que se entregue ao sensacionalismo fascistizante e adote preconceitos no lugar da verdade factual. Na internet, nas bancas de revistas e no rádio pipocam os comunicadores do ódio que pegam carona na histeria autoritária na tentativa de arregimentar plateias e faturar na publicidade. Uns se deram mal, outros se dão bem. Com seus flancos abertos, os órgãos de imprensa mais sérios sentem na carne o sinal destes tempos de sombra: ser objetivo tornou-se um negócio de risco.

Isso mesmo: negócio de risco. Ser objetivo requer ser crítico e ser crítico significa dissentir. Ser objetivo, nesta hora, exige independência de pensamento para compreender a natureza das forças que avançam e recuam nos fluxos e contrafluxos da esfera pública. A técnica jornalística sozinha não resolverá o impasse. Ao lado dela, o pensamento precisa elaborar o critério da cobertura. É nessa medida que a crise das redações, hoje, mais do que uma crise econômica ou tecnológica é uma crise de pensamento. Para cobrir bem é preciso pensar bem – com independência.

A objetividade, embora exija equilíbrio e ponderação, não é um ponto equidistante entre o elogio da ditadura (uma mentira essencial e bruta) e o cultivo da democracia. Se pretendemos primar pela objetividade, é preciso registrar, objetivamente, o fato singelo de que as mentalidades agora instaladas no poder promovem medidas censórias e preconceituosas, deixando claro que não têm compromisso com o campo democrático. Investigar e reportar esse fato não é fazer militância partidária. Ao contrário, é uma exigência da objetividade. Quem não pertence ao campo democrático não entende por que a imprensa precisa existir – e por isso lhe dá combate sem trégua. Logo, a imprensa objetiva deve informar o público sobre as razões – objetivas e subjetivas – pelas quais vem sofrendo tantos ataques do poder. Fechar os olhos para esse fato, isso, sim, é adotar uma postura militante – a paradoxal militância por passividade.

Se na barulheira das redes sociais ultraconservadoras a democracia é causa minoritária, o papel da imprensa – que tem o dever da objetividade – é navegar na contramão. Nem que seja por instinto de sobrevivência.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


José Serra: Preferência pela educação

A Petrobrás é forte, competente e lucrativa, não precisa de privilégios

O ataque de 14 de setembro ao maior complexo de exploração petrolífera do mundo, na Arábia Saudita, trouxe prejuízos transitórios e uma lição duradoura: o mundo está encharcado de petróleo.

Num primeiro momento, especulou-se que o inusitado ataque imporia prêmio de risco geopolítico permanente aos preços do óleo. Quase um mês depois, porém, o pico de alta nas cotações se desvaneceu numa pronunciada queda dos preços dessa matéria-prima. Na véspera do evento, a cotação do brent foi de US$ 60,22 o barril; no dia útil seguinte, fechou a US$ 69,02, uma alta de 15%. Entretanto, três semanas depois, em 2 de outubro, a cotação caiu a US$ 57,69 – 5% menor que à véspera do ataque.

A lição: o petróleo é uma riqueza cujos dias – ou décadas – estão contados. Enquanto a produção é impulsionada por novas tecnologias, como o fraturamento hidráulico e a exploração em águas ultraprofundas, a demanda não tem acompanhado o crescimento da economia mundial. O gasto energético tem sido mais eficiente e o petróleo vem sendo substituído por outras fontes de energia. De 2008 a 2018, o PIB mundial cresceu 28,3% e a demanda por óleo, apenas 16,1%.

Quanto mais demorarmos, menos bônus extrairemos da riqueza-petróleo. Quando o assunto é o pré-sal, tempo é dinheiro, literalmente.

O Brasil desperdiçou oportunidades trazidas pelos preços maiores do petróleo quando iniciou uma improdutiva e demorada mudança do marco legal do pré-sal. Ficamos cinco anos parados, sem novos leilões de petróleo. E o novo regime aprovado, o de partilha, representou só a volta mal disfarçada do monopólio da Petrobrás. A estatal passou a ser operadora compulsória de, no mínimo, 30% dos campos. E com a obrigação de arcar nessa proporção com os custos de exploração, encargo muito além da capacidade da empresa, então à beira da insolvência por causa de anos de má gestão. O primeiro leilão só foi realizado em 2013, para o campo de Libra.

Em 2016, lei de minha autoria modificou o regime de partilha, transformando a obrigatoriedade de participação da Petrobrás em direito de preferência. O ideal seria ter revogado essa obrigatoriedade, mas o direito de preferência foi o consenso político possível à época.

A mudança permitiu destravar os leilões do pré-sal. Em 2017 e 2018 foram feitas quatro rodadas de licitações, que arrecadaram R$ 16,1 bilhões em bônus de assinatura e garantiram R$ 2,5 bilhões em investimentos na fase de exploração.

A competição entre as petroleiras resultou em ofertas de excedente em óleo para a União que chegaram a 80%. O excedente em óleo é o lucro da produção. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis estimou que os campos leiloados nas quatro rodadas do pré-sal renderão R$ 1,2 trilhão para União, Estados e municípios ao longo de 30 anos, ou R$ 40 bilhões por ano. Nada mau para um projeto de lei tachado de “entreguista” pelos suspeitos de sempre.

Entretanto, é possível avançarmos ainda mais para aumentar a participação do Estado na renda petrolífera. Em que pese o sucesso dos leilões do pré-sal, ficou claro que o direito de preferência dado à Petrobrás causa distorções que podem frear ou mesmo reduzir o ganho estatal proporcionado pela exploração.

O direito de preferência permite à Petrobrás, caso tenha seu lance superado no leilão, aderir ao consórcio vencedor, tornando-se a operadora do campo, com participação mínima de 30%. Isso pode parecer razoável, em se tratando de empresa estatal. Porém é preciso levar em conta que a Petrobrás participa dos leilões com uma lógica exclusivamente empresarial, isto é, objetivando a maximização de seu lucro. E não se deve esquecer que, apesar do controle ser estatal, a propriedade da empresa, hoje, é majoritariamente detida por acionistas privados.

Vejam do que se trata: na 4.ª Rodada de Partilha de Produção, na condição de operadora de um consórcio, a Petrobrás ofertou 18% de excedente em óleo para a União pelo bloco de Três Marias, proposta derrotada por outro consórcio, que ofereceu 49,95%. Como era previsível, a empresa exerceu seu direito de preferência e aderiu ao consórcio vencedor.

Se aderiu, é porque considerou vantajoso, mesmo repassando 49,95% de excedente em óleo para a União – o que não a inibiu de apresentar inicialmente uma proposta tão baixa quanto 18%. Ficou óbvio: o direito de preferência induz a Petrobrás a oferecer lances mais baixos dos que daria na ausência desse direito. A empresa não corre o risco de perder campos que lhe interessem.

Por isso estou propondo agora um passo à frente: um projeto de lei que prevê o fim do direito de preferência da Petrobrás. Os interesses da empresa nem sempre coincidem com os interesses da União. Para um mesmo nível de eficiência, qualquer aumento do lucro da Petrobrás reduz a parcela de óleo ofertada à Federação.

O excedente em óleo da União é receita pública destinada ao Fundo Social e, dessa, 50% vão para a educação pública. Quanto menores os lances da Petrobrás, menos recursos serão destinados à educação.

Não somos adversários da empresa. Ao contrário, desde sempre defendemos a ideia de que ela seja bem gerida e apresente bons resultados. Apenas discordamos de que parte de seu lucro possa advir não de maior eficiência, mas do direito de preferência, um privilégio legal.

A Petrobrás é forte, competente e lucrativa o suficiente para contemplar o interesse dos seus acionistas, majoritariamente privados. Não precisa de privilégios especiais. Num Brasil moderno e socialmente justo, privilégios só para a educação.

Neste momento de grave crise fiscal, em que os recursos para a educação chegam a ser contingenciados – a ponto de comprometerem o futuro do Brasil –, temos de tomar posição de forma inequívoca: toda a preferência deve ser da educação.

*Senador (PSDB-SP)


William Waack: A grande ofensiva

O governo Bolsonaro diz querer atacar seu mais perigoso adversário

Pelo menos na economia o governo de Jair Bolsonaro parece ter achado um centro de gravidade, a julgar por parte do recente noticiário. Os generais que acompanham o capitão conhecem bem o conceito, que estudaram nas escolas de Estado-Maior: é a escolha de um eixo central de ação (vem do alemão “Schwerpunkt”). Trata-se da proposta, divulgada com bem menos alarde do que brigas sobre costumes, de uma ambiciosa reforma administrativa.

Ela mira num dos mais poderosos aparatos burocráticos do mundo, o universo de servidores públicos do Brasil que, de acordo com o Ministério da Economia, saltou de cerca de 500 mil em 2003 para cerca de 712 mil em 2018. Na média, é uma força de trabalho que desfrutou de aumentos de salários (já bem melhores dos que são pagos para funções similares na iniciativa privada) muito superiores à inflação. Segundo o Banco Mundial, acionado pelo próprio Ministério da Economia, o número de funcionários públicos no Brasil não é extraordinariamente elevado na comparação internacional, mas o gasto do País com o funcionalismo como proporção do PIB é muito maior do que o registrado em países ricos.

Programas de concessões e privatizações, desburocratização e desregulamentação empalidecem diante da ambição dessa ação – a reforma administrativa – que pretende reduzir salários, reenquadrar funções, baixar números de servidores e atacar privilégios. Ela seria coordenada com duas outras: a tributária (acoplada a um novo pacto federativo para distribuição de recursos entre Estados e municípios) e a demolição da rigidez dos orçamentos. A reforma da Previdência, ainda em curso, não era uma proposta ambiciosa: era uma medida fundamental sem a qual nem se poderia examinar qualquer outra coisa.

Ainda na linguagem militar, esse conjunto de ações formaria a maior ofensiva contra o tamanho do Estado jamais tentada desde a redemocratização. Enfrentaria a mais poderosa resistência política que se conhece no Brasil – a dos (na antiga linguagem sociológica) estamentos burocráticos que ocupam o alto das carreiras públicas, dispõem do controle sobre os assuntos do próprio interesse e são capazes de paralisar qualquer ação que considerem prejudicial a eles mesmos, sem grande apreço pela noção de conjunto da Nação (basta lembrar como o Judiciário se trata).

O mesmo Banco Mundial, que fornece a artilharia de flanco para o Ministério da Economia, reitera a “janela histórica” oferecida pela biologia: nos próximos dez anos, calcula-se que 26% dos servidores se aposentam até as próximas eleições presidenciais. Quarenta por cento vão para a inatividade nos próximos dez anos. É a oportunidade, argumenta-se na equipe de Paulo Guedes, de lidar para valer com um sistema inchado, ineficiente, que preserva graves distorções dentro dele mesmo (em termos salariais e de carreira) e, em termos relativos, custa muito em relação ao que devolve à sociedade que o sustenta. E que bloqueia qualquer governo.

É incalculável a quantidade de energia política, além de liderança e articulação dentro e fora do Legislativo, necessária para levar adiante uma ofensiva tão ambiciosa. Mas o que mais chamou a atenção no noticiário dos últimos dias foram as brigas do presidente com a cúpula do partido que deveria ser dele, mas, aparentemente, não é. O indiciamento de um ministro pelo cultivo de laranjais em campanhas eleitorais. Disputas sobre as credenciais de um líder de governo no Senado apertado pela Lava Jato. Para não falar na evidente desorientação do governo quanto ao que ele mesmo quer na discutida reforma tributária, ou no pacote anticrime.

Diante do desafio a ser enfrentado, organizar-se com sentido de urgência, foco e direção pode parecer óbvio para qualquer um. Menos para o pessoal da lacração para o qual o presidente dá tantos ouvidos.


Vera Magalhães: Jair e os partidos

Propensão do bolsonarismo ao confronto já leva o presidente a cogitar fazer as malas

Não pode surpreender ninguém o fato de Jair Bolsonaro aproveitar uma de suas aparições para selfies em frente ao Alvorada para pedir que o apoiador “esqueça” o PSL, e aproveite para dar uma espinafrada em Luciano Bivar, o presidente da sigla. Bolsonaro nunca deu a mínima para partidos. Menos ainda para aliados. Seu partido é sua família.

O embarque do bolsonarismo no PSL foi um negócio conveniente para ambas as partes. Bivar desocupou a casa para que Bolsonaro se instalasse com os seus e colocasse o até então aliado Gustavo Bebianno no comando. A legenda tinha, então, R$ 1,2 milhão de Fundo Partidário em conta. Agora, com a eleição de 52 deputados na esteira do presidente, Bivar pegou o partido de volta com um Fundo Partidário de R$ 110 milhões neste ano. Não se tem conhecimento de aplicação tão rentável.

Bivar esperava que o negócio bom para ambas as partes continuasse no governo. O presidente e os filhos controlariam as seções do partido em São Paulo e no Rio, as duas principais; e ele seguiria tocando a lojinha, entre uma denúncia de laranjal aqui, outra ali.

Mas a propensão do bolsonarismo ao confronto transformou a sigla num balaio de gatos e já leva o presidente a cogitar fazer as malas de novo. Resta saber: para onde? As demais legendas nanicas com propensão a serem alugadas já têm seus donatários estabelecidos. E abrir mão de um partido sentado em tantos recursos não é uma decisão simples, nem com todo o voluntarismo belicista do presidente e de seu clã.

Tributária encrua e perde lugar para reforma administrativa
A tal “linha de montagem” de reformas e projetos para destravar a economia prometida por Paulo Guedes parece ter sofrido uma mudança de escala: sai a reforma tributária, encruada pela falta do que colocar no lugar da finada Contribuição sobre Pagamentos, e entra a administrativa, igualmente importante e espinhosa, cujos pontos foram antecipados por José Fucs no Estado. Caso o governo inverta mesmo as prioridades, terá de contar com a boa vontade da Câmara e do Senado, que já deram a partida na discussão das suas próprias propostas de mudança tributária.

STF concentra definições no fim da ‘temporada 2019’
Tal como uma série de TV, o Supremo Tribunal Federal decidiu concentrar as emoções todas no final da temporada de 2019. Gilmar Mendes confirmou, no Roda Viva desta semana, que o plenário deve analisar no dia 23 duas decisões que são cruciais para o futuro do processo penal brasileiro: a das prisões após condenação em segunda instância e a tese para a aplicação do entendimento, firmado na semana passada, de que réus delatados têm direito a manifestação final depois dos delatores.

Não que haja consenso sobre essas questões. Mas os ministros reconhecem que não dá para virar o ano com tamanho grau de indefinição. No caso da prisão em segundo grau, voltaram a circular tentativas de se firmar uma tese intermediária, que permita a execução da pena em certos casos, mas não a torne uma regra. Assim como a saída tentada por Dias Toffoli em 2018 de aguardar manifestação do STJ, uma espécie de terceiro grau, também essa parece eivada de improvisação.


Paulo Delgado: Saint Janot

Falar do procurador, em certa medida, é ser atraído por seu abismo de sentido

“Tem que manter isso, viu?” Foi essa frase, plantada no processo contra o presidente da República, a pólvora do tiro real dado pelo procurador. O papo-furado do outro tiro no ministro do Supremo só Freud e a demagogia calculada explicam. As coisas estão assim. O privilegiado é um confortador de si mesmo. Usufrui com requinte o poder, quando o perde não sabe se comportar e escoa no País resíduos da alma. Só por falar já é um risco para os tolos interessados na imitação dos piores.

O verniz de justo se desfaz e revela que se alimenta dos que acusa. São os santos de vidro quebrado que metem medo, deixando lascas por aí. É impressionante como normalmente homens de paixões frias prosperam no meio das conspirações políticas. O poder não conhece ateus, todos o veneram.

Um ministro tenaz e impopular, alvo de fúria alegórica de um homicida ficcional, um presidente interino e reformador, a vítima política atingida, se encontram no rito secreto de um procurador mal-intencionado, fantasiado de sacerdote do sadomasoquismo da justiça. Nenhum pudor ou aviltamento na consciência. Talvez, atribuindo-se papel importante para alguma causa, tenha se sentido figurante mal pago.

O ostracismo impulsionou sua fragilidade e fez despontar a imagem que projeta: ele é sua própria causa e para compartilhar sem culpa esse horror o revela como crime passional. Os infelizes, quando fazem mal aos outros, só precisam de si mesmos para se ferirem. E, como em romance policial, quem volta ao mesmo caminho é sempre para voltar a ele. Claro que há muito crime de colarinho-branco, mas o desassombro impune do procurador passou da conta. Induzir à violência por imitação, forjar a derrubada de um presidente, expressar o direito de matar – o poder como êxtase, exercê-lo além do ponto, até a obscenidade.

É no mundo dos que se sentem donos do mundo que se compreende o homem em sua totalidade. Quantos eram uns e se tornaram outros com poder! E muitos procuradores, como as crianças para as religiões, decidiram representar para a sociedade o estado de graça original. Mesmo errados, não contabilizam seus atos como maus. Objetos de culto, beneficiam-se da confusão que é a ideia da justiça num país sem valores universais e dominado pelo apetite doentio da publicidade do poder.

Envergonhado, quer envergonhar e, sem perder a ambição de ser santo, informa que consumado o ato dirigiria a sevícia contra si. O autossuplício de quem se sente deus para definir também sua sentença, supondo suprimir o dano. É das meditações de um imperador romano o alerta: “Nada mais digno de pena do que aquele que a tudo faz a volta completa, investigando o âmago da terra e perquirindo, através de ilações, a alma do próximo”.

Não é o primeiro da longa lista de sofrimentos por que passa o nosso país. Podemos chamá-lo de qualquer coisa, classificá-lo, fazer do seu caso objeto de conversa ruim que torna mais áspera a superfície das paredes das casas de família e alimenta o glamour podre dos justiceiros. A política brasileira de uns tempos para cá permanece irregistrada na literatura não engajada, nos filmes e músicas de amor. Talvez porque quem quiser entender o que está acontecendo recebe antes uma avalanche de razões e relatos meio embusteiros que servem como veneno para impulsionar essa espiral sem freio que sobe como mola. É uma luta sem consolação ver o País sempre se dividir quando um fato mostra que não é virtuoso algum guardião da virtude. Verdadeiro flagelo a Justiça brasileira ficar presa na gangorra dessa teia de aranha.

O ambiente civilizado do bom humor e do humanismo desapareceu. O amor quebrado domina tudo. Todos são obrigados a viver o malfeito dos outros como se fôssemos a síntese do erro de nossas autoridades, equivalendo-se a todas elas, tendo de viver a vida confusa de cada um. A reação é pior: virou onda considerar o Brasil um lugar incapaz de se aturar.

Não pense assim, nem suponha que mudar de país vai ajudar. O mal se agrava quando tudo cai no campo da significação política e perdemos a capacidade de analisar sua especificidade. O duopólio esquerda e direita tem-nos levado a essa sobrepolitização de tudo sem espaço para a consciência se abrir a outras explanações, fechada somente no que é exterior a nós. A fúria é até justa, pois em repartições onde ocorrem coisas vulgares grandões autoritários não passam de homenzinhos deseducados. A mesma falta de limites se vê em ambientes ornamentados por crucifixo, a Bíblia, um livro de orações.

A imagem de um poderoso com poder de acusar, julgar ou prender sempre foi impossível olhar sem chorar, ou rir. Os bons, e são muitos, falam por si. O indiciado, o réu, o prisioneiro, esse é contabilizado como mais um dos bens do carcereiro. As decisões das autoridades penais são verdadeiras doenças verbais, inventários morais para serem lidos pela televisão. Muitas vezes é o ódio que os anima, não a busca da verdade. E quando a verdade desemboca na mentira usada para esconder a falta de provas ou nenhuma investigação científica sobre o delito, é impossível deter essa ciranda de erros.

Encontrar um culpado não tem sido, entre nós, esclarecer um crime. O que ecoa da cabeça de um obstinado juiz, procurador ou delegado funciona como um alucinógeno. E, clichê dos clichês, não é errado pensar que depois de fazer o mal a preocupação do injusto seja comer bem e dormir sem ser perturbado. O crime no Brasil é um prato cheio também para extravagantes legais e tratado como um bufê de palácio onde muitos se alimentam do que dizem fazer-lhes mal.

Nós não somos homogêneos e a facilidade e a rapidez com que hoje sabemos dos outros não devem fazer-nos pensar que o mundo é inútil. Falar do procurador, em certa medida, é ser atraído por seu abismo de sentido, esse estereótipo da negatividade que domina o universo mental brasileiro. Sem raiva, nem simpatia, não foi o que desejei.

*Sociólogo.


Vera Magalhães: Reforma administrativa entra na fila

Governo começa a discutir revisão da estabilidade e critérios para demissões no setor público, mas tema é complexo

Hercúlea. Eis que o Ministério da Economia parece efetivamente disposto a colocar a reforma administrativa na fila das prioridades para depois da aprovação da reforma da Previdência. Caso leve adiante a disposição, será uma briga diretamente proporcional à importância da empreitada. Reportagem especial do Estadão nesta segunda-feira esmiuçou o que devem ser as linhas centrais da proposta.

Em boa hora. A discussão sobre a necessidade de rever a estabilidade de servidores e fixar critérios para promoções, reajustes e demissões no setor público já é consenso entre economistas que olham para a necessidade de promover um ajuste profundo no gasto público.

Três frentes. A discussão sobre a reforma do chamado "RH" do Estado, ou seja, do funcionalismo, deve ser tratada em paralelo com uma proposta de emenda à Constituição para desvincular receitas orçamentárias (que está sendo construída em parceria com o Congresso) e com as tratativas já em andamento do pacto federativo.

Onde pega. Além da profunda resistência que a discussão da estabilidade do funcionalismo deverá enfrentar por parte das corporações, esse tema costuma ser tabu no Judiciário: toda vez que são confrontados com a necessidade de arbitrar tentativas de governos de adiar reajustes ou cortar privilégios, os tribunais superiores têm decidido a favor dos chamados direitos adquiridos e da preservação do regime jurídico único, estabelecido pela Constituição de 1988 e que assegura a estabilidade no serviço público.

Mais senões. A disposição de enviar em "uma ou duas semanas" a reforma ao Congresso também esbarra numa falta de credibilidade do governo nessa seara: até hoje não se conhece a proposta da equipe de Guedes à reforma tributária, que vai, aos poucos, voltando para o fim da fila da tal "linha de montagem" de projetos que o ministro anunciara. Da mesma maneira, o anúncio de que as privatizações da Eletrobrás e dos Correios seriam enviadas ao parlamento até aqui não se efetivou.


Eliane Cantanhêde: Máquina de guerra

Após estrago no meio ambiente, metralhadora ideológica mira a cultura

Quando surgiu a notícia de que o Ministério da Cidadania havia demitido 19 funcionários do Centro de Artes Cênicas da Funarte, a primeira reação foi de aplauso. Afinal, o governo afastava o diretor Roberto Alvim, que, entre outras barbaridades, ofendeu Fernanda Montenegro como “mentirosa” e “sórdida”. Ledo engano. Era bom demais para ser verdade.

Logo ficou claro o contrário: foram demitidos os coordenadores, gerentes e subgerentes, menos... o chefe Alvim! Ou seja, o governo “limpou a área” para Alvim fazer o que bem entender.

Esse é apenas mais um capítulo da nova guerra ideológica do governo Jair Bolsonaro, com o mundo todo já espantado com sua visão e suas declarações sobre meio ambiente – aliás, o tema central do Sínodo que ocorre neste momento no Vaticano, sob a liderança do papa Francisco.

É enorme o estrago à imagem do Brasil no exterior, por desmatamento, queimadas e, agora, a gravíssima mancha de óleo nas praias de todo o Nordeste, mas principalmente pela nova política para o setor. Ainda enfrentando essa frente, o governo já aprofunda os ataques, investidas e ingerências na área da cultura, onde habitam velhos fantasmas do bolsonarismo, embolados no tal “marxismo cultural”.

A expressão, sempre presente nos escritos e nas falas do chanceler Ernesto Araújo, é também frequente no mundo e nas fantasias do diretor Roberto Alvim, que também vê inimigos esquerdistas e perigosos por toda a parte, prontos a implodir a “cultura judaico-cristã do Ocidente”.

Alvim, que quer transformar o Teatro Glauce Rocha em “teatro evangélico”, seja lá o que isso seja, também já vinha conclamando “profissionais conservadores” a integrarem uma “máquina de guerra cultural” na Funarte. Ai, que medo! Imaginem só o que vai virar o Centro de Artes Cênicas. Um amontoado de críticos à nossa produção cultural, nossos diretores, nossos atores.

A Funarte, porém, é só mais um dos alvos do Planalto e do Ministério da Cidadania, que engoliu o da Cultura já na posse. A artilharia contra a cultura se expande por todas as áreas do governo, até a financeira. No mesmo dia do anúncio das demissões na Funarte, veio a notícia de que a produção cultural da Caixa Econômica Federal agora é sujeita ao crivo ideológico da presidência do órgão e da Secom do Planalto.

Isso remete ao veto de Bolsonaro a uma peça publicitária do Banco do Brasil dedicada ao público jovem, porque incluía a diversidade racial e sexual. Ou ao ataque que ele fez à Ancine, condenando seus “filmes pornográficos” e defendendo que deveriam enfocar os “heróis nacionais” – leia-se, os heróis do próprio Bolsonaro, como o coronel Brilhante Ustra, fartamente apontado como torturador?

Do outro lado, Chico Buarque, excelente escritor e ícone da música de várias gerações, além de não ser “herói”, é tratado como inimigo: a embaixada brasileira em Montevidéu acaba de suspender um documentário sobre o Chico. O Chico! É inacreditável, mas pode acreditar.

A reação já começa, com manifestações de apoio e a devida reverência à diva Fernanda Montenegro e com decisões judiciais como a de ontem, da juíza Laura Bastos de Carvalho, da 11.ª Vara do Rio, que suspendeu por liminar uma portaria do Ministério da Cidadania sobre projetos da Ancine para TVs públicas.

A juíza atendeu a um pedido do Ministério Público, que apontou na portaria, além de prejuízo ao erário, “inequívoca discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”. O STF, diga-se, acaba de criminalizar a homofobia.

Demissões, perseguições e censura, além de asfixia financeira da cultura... Isso, sim, é muito “sórdido”.


O Estado de S. Paulo: 'Lava Jato tem melhores publicitários do que juristas', diz Gilmar Mendes

No Roda Viva, ministro do STF vê 'gangsterismo' no Ministério Público e na Receita Federal, e pede um combate à corrupção 'sem personalismos'

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes voltou a criticar a Operação Lava Jato e defendeu um combate à corrupção "sem personalismo" no País. Em entrevista nesta segunda-feira, 7, a jornalistas no programa Roda Viva, da TV Cultura, Gilmar disse que os membros da operação usaram a opinião pública para criticar decisões do Supremo que foram de encontro aos interesses de procuradores e apontou "abusos" da força-tarefa.

"A Lava Jato tem melhores publicitários do que juristas, eles usam isso", alfinetou Gilmar. "Eu torço não só para a Lava Jato, para todas as operações, para que de fato nós continuemos combatendo a corrupção, agora sem esse personalismo, sem a necessidade, talvez, de forças-tarefa."

Como exemplo de abuso de autoridade, Gilmar citou mais de uma vez o caso do auditor fiscal Marco Aurélio Canal, da Receita Federal, preso na última quarta-feira, 2 acusado de cobrar propinas de réus e delatores da Lava Jato em troca de suspensão de multas do Fisco. Em mais de uma oportunidade, o ministro o citou como o responsável por elaborar o dossiê dados fiscais seus e de sua mulher, Guiomar Feitosa. O ministro também criticou o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, que tem sido acusado de atuação ilegal na condução da operação por suposto uso de provas ilegais e vazamentos à imprensa, além de conversas sobre a estratégia da operação com o então juiz Sergio Moro.

"É preciso que de fato essas pessoas (procuradores) cumpram a lei, sejam servos da lei, que não exorbitem", disse o ministro. "O Ministério Público assumiu feições soberanas, e isso é um problema."

Rodrigo Janot
Gilmar falou brevemente, no início do programa, sobre a revelação pelo ex-procurador geral da República Rodrigo Janot de que teria planejado matá-lo a tiros dentro do próprio STF. O ministro diz que, ao saber do plano, sentiu "uma pena enorme das instituições brasileiras".

"Quando a gente imagina que a procuradoria estaria, agora, entregue em mãos de alguém que pensava em faroeste ou coisa do tipo, isso realmente choca e dá pena de ver como nós degradamos nossas instituições, como se fizeram escolhas tão desastradas", disse o ministro.

Lula
Questionado sobre a decisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso e condenado na Lava Jato, de recusar o regime semiaberto, o ministro disse que o petista "não tem esse direito, a rigor". Ele considerou que o ex-presidente só poderia questionar o regima nos tribunais caso houvesse "imposição ou uma condição ilegítima". No entanto, Gilmar disse que estranhou a posição de procuradores da Lava Jato no caso.

"O que me chamou atenção nesse episódio foi alguns procuradores oferecerem o regime semiaberto ao Lula", disse. "Nunca foram garantistas, mas agora se convenceram. E se convenceram porque era conveniente."

Gilmar foi questionado sobre sua decisão de impedir a posse de Lula como ministro da Casa Civil em 2016, quando foi indicada pela então presidente Dilma Rousseff. Apesar de questionar a atuação de Moro no episódio, o ministro não chegou a admitir que hoje sua decisão seria diferente.

"Teria de meditar bastante sobre esse assunto. De fato, foi uma situação muito específica", ponderou. "Tenho muito mais dúvidas do que certezas, e lamento muito essa manipulação, essa ideia de 'vazo isso e não vazo aquilo'."


Rubens Barbosa: O Brasil e o Atlântico Sul

Essa é uma área geoestratégica de interesse vital para o nosso país

Na definição do conceito estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em 2010, o Atlântico Sul não foi incluído como área geoestratégica prioritária, mas não se exclui totalmente a possibilidade de sua atuação “onde possível e quando necessário” caso os interesses dos membros sejam ameaçados. Portugal, nessa discussão, apoiou a Iniciativa da Bacia do Atlântico, que previa a unificação dos oceanos, com incorporação dos assuntos do Atlântico Sul no escopo estratégico da organização.

Em pronunciamento recente, o atual ministro português da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, observou que “a segurança do espaço euro-atlântico tem de ser pensada a partir das pontes que o Atlântico permite criar e para as quais Portugal tem um posicionamento privilegiado para contribuir ativamente”. Dentro desse entendimento, Portugal está criando o Centro para a Defesa do Atlântico (CeDA) no Arquipélago dos Açores. O CeDA tem como objetivo a reflexão, a capacitação e a promoção da segurança no espaço atlântico. O centro pretende tornar-se um fórum multinacional, que contará com a participação de peritos civis e militares de países localizados na Bacia Atlântica ou com interesses nesse espaço.

Localizado na Ilha Terceira, em parte das instalações de base norte-americana, e em Lisboa, o CeDA deverá focalizar inicialmente as dinâmicas de insegurança no Golfo da Guiné e na África Ocidental, estando, contudo, vocacionado para trabalhar todas as temáticas relevantes para a segurança do Atlântico de norte a sul, de leste a oeste, e onde a capacitação no domínio da defesa possa contribuir positivamente. Vai estabelecer parcerias, desenvolver e implementar projetos de capacitação que permitam aos Estados ribeirinhos do Atlântico reforçar as suas capacidades na prevenção, no combate e na mitigação das ameaças transnacionais, tais como tráfico de drogas, de seres humanos e de armas, pirataria e assalto à mão armada contra navios, e pesca ilegal, não regulamentada e não declarada. Também a poluição, as alterações climáticas e a resposta de emergência estão na mira; e numa fase posterior poderão surgir as ameaças cibernéticas, entre outras possíveis a prevenir. O balizamento conceitual do centro está ainda em desenvolvimento, com contribuições dos países atlânticos envolvidos, entre os quais o Brasil.

No que concerne às principais atividades do CeDA, para além de projetos de capacitação por meio de parcerias com a ONU, a Otan, a União Europeia e a União Africana, entre outros, o centro trabalhará igualmente na busca, no tratamento e na análise de informação, na elaboração de estratégias de capacitação e doutrina, na monitorização de ameaças transnacionais e na implementação de projetos.

O Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, deverá realizar seminário para apresentar, discutir e divulgar o CeDA. Esse evento contará com especialistas, nacionais e estrangeiros, civis e militares, que aprofundarão os requisitos e a missão fundamental do centro e como estudo de caso serão analisadas as várias dimensões dos desafios à segurança na região do Golfo da Guiné.

No início de 2020, prevê-se, nos Açores, uma primeira ação de formação de uma rede de peritos internacionalmente reconhecidos que possam dar continuidade ao trabalho de capacitação dos quadros civis e militares, bem como das forças de defesa e segurança dos países do Golfo da Guiné.

Com a constituição do CeDA, Portugal pretende dar corpo à ideia de contribuir para manter o Atlântico como um espaço de paz e segurança internacional e de trabalhar com parceiros atlânticos na identificação de contribuições para esse objetivo.

O Brasil manifestou preocupação porque não foi informado previamente da criação do centro e pela intenção explicitamente indicada pelo Conselho de Ministros da Otan de empregar o centro como plataforma para a Organização e para a União Europeia com vista à segurança de todo o Atlântico (incluindo o Atlântico Sul e também, em especial, o Golfo da Guiné). O Brasil, nessa região, está presente e desenvolve esforços para o enfrentamento da pirataria.

O Brasil sempre deixou clara sua reserva no tocante às iniciativas que incluam a Bacia Atlântica e, por via de consequência, o Atlântico Sul como área de atuação da Otan. O sul do Atlântico é área geoestratégica de interesse vital para o Brasil. As questões de segurança relacionadas às duas metades desse oceano são distintas e devem merecer respostas diferenciadas – tão mais eficientes e legítimas quanto menos envolverem organizações ou Estados estranhos à região.

A Política Nacional de Defesa menciona o Atlântico Sul como uma das áreas prioritárias para a defesa nacional e amplia o horizonte estratégico para incluir a parte oriental do Atlântico Sul e a África Ocidental e Meridional. Por essa razão, o Brasil não deveria ignorar a iniciativa. Seria de nosso interesse acompanhar de perto a definição de como o centro vai atuar.

Por outro lado, o governo norte-americano decidiu designar o Brasil como “aliado prioritário extra-Otan”, elevando a parceria estratégica com os Estados Unidos a novo patamar de confiança e cooperação. Esse status é conferido a um número restrito de países, considerados de interesse estratégico para os Estados Unidos, e os torna elegíveis para maiores oportunidades de intercâmbio e assistência militar, compra de material de defesa, treinamentos conjuntos e participação em projetos. Embora não tenha relação direta com a Otan, o novo status do Brasil recomendaria o acompanhamento do que está acontecendo na Organização.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, esteve em Portugal recentemente e foi informado da criação do centro. Para manter a prioridade sobre o Atlântico Sul, como previsto na Estratégia Nacional de Defesa, o Brasil deveria participar da criação do CeDA e oferecer contribuição na definição de suas atribuições e formas de atuação.

*PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)