O Estado de S. Paulo
Vera Magalhães: Quem tem medo de CPI?
Revelações de uma conexão entre Planalto e uma rede de blogueiros e youtubers para destruir reputações viram combustível no Congresso
A briga no PSL e a revelação, por meio de reportagem da revista Crusoé, de uma conexão entre o Palácio do Planalto e uma rede de blogueiros e youtubers, alguns dos quais com cargos em gabinetes no Executivo e no Legislativo, para destruir reputações e até derrubar ministros viraram combustível para a CPI das Fake News. E o olavo-bolsonarismo está em polvorosa.
Flagrado em conversas para queimar o então ministro Carlos Alberto Santos Cruz por meio de sites amigos, o assessor especial da Presidência Filipe Martins acusou o golpe e sentenciou no Twitter, diante da possibilidade de ser convocado pela CPI: “Vamos pro pau!”.
Não é de hoje que o discípulo de Olavo e Steve Bannon usa as redes sociais para convocar uma espécie de cruzada da nova direita contra o establishment, assim entendido difusamente como qualquer instituição ou indivíduo que ouse divergir do presidente.
Agora, flagrado articulando a partir do palácio para abater inimigos – no caso de Santos Cruz, um que se opunha ao aparelhamento de órgãos, agências e ministérios por olavistas e ao uso de verbas de publicidade para aquinhoar amigos do rei –, acusa a CPI das Fake News de ser uma tentativa de cerceamento à liberdade de expressão.
O fato é que a cisma no PSL ajudou a expor a divisão profunda da direita.
Vejamos o que já está na praça:
1. Denúncia de “rachadinha” no gabinete do deputado estadual por São Paulo Gil Diniz, preposto da família Bolsonaro, ex-assessor de Eduardo e preferido do clã para a disputa da prefeitura da capital, no lugar da líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann;
2. Acusado pelo senador Major Olímpio, Eduardo Bolsonaro revida insinuando que pode ter ajudado a abafar tentativas de convocação de seu suplente, Alexandre Giordano, para explicar possíveis negócios de lobby em Itaipu. Trata-se de mais um disparate, porque a acusação é de ligação do empresário paulista justamente com a família Bolsonaro.
3. Ameaça de expulsão do PSL de vários deputados ligados ao clã Bolsonaro, e
4. Os inquéritos em várias seções que investigam o uso de candidaturas laranjas de mulheres para distribuição do fundo eleitoral.
Portanto, será a briga interna na direita que vai causar mais problemas para o bolsonarismo que a desarticulada e sempre reativa oposição. Isso na CPI das Fake News e fora dela.
Câmara tem pouca chance de vencer ‘corrida’ com STF
É mais um sinal de desarticulação política a tentativa de a Câmara travar uma corrida com o Supremo Tribunal Federal (STF), a partir da Comissão de Constituição e Justiça, para tentar, em cima da hora, votar uma proposta de emenda à Constituição que estabeleça de uma vez por todas a prisão após condenação em segunda instância.
Isso porque o STF deverá concluir o julgamento da Ações Declaratórias de Constitucionalidade sobre o tema na semana que vem. E também porque não há evidência nenhuma de que exista maioria para se aprovar uma PEC com esse teor, pelo fato de muitos parlamentares serem já investigados ou temerem se tornar alvos de ações no futuro.
Diante disso, a bola está mesmo, e de novo, com o Supremo. Mais especificamente com Rosa Weber. Resta saber se ela, depois de avaliar, há um ano e poucos meses, que era cedo para se rever uma jurisprudência e causar rebuliço processual e jurídico, acha que agora já está na hora.
Monica De Bolle: Pobreza real, pobreza mental
Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental
O Nobel de Economia de 2019 foi concedido a três economistas que conduziram ao longo dos anos pesquisas de alto rigor científico para medir o impacto de diferentes políticas públicas na erradicação da pobreza. Como definiu um dos laureados, a economista Esther Duflo, segunda mulher a vencer o prêmio desde que foi criado pelo Banco Central da Suécia em 1968 e sua mais jovem vencedora, a pesquisa dos três tem por objetivo estudar de perto a vida das pessoas, não as recomendações teóricas de livros-texto. A partir da observação próxima em comunidades na África e na Índia, os três testaram os efeitos de diversas intervenções para melhorar as taxas de imunização infantis, o combate à malária, os incentivos à educação, além de diversas outras medidas.
Em muitos casos, os estudos conduzidos seguindo metodologia bastante utilizada pelas ciências médicas, conhecido como ensaio controlado randomizado, as descobertas foram surpreendentes e simples: ao contrário do que se pensa, não é necessário gastar muito dinheiro para aumentar as imunizações, combater a malária, ou elevar a escolaridade. O ensaio controlado randomizado consiste em selecionar aleatoriamente grupos que receberão a intervenção – no caso, a política pública – e grupos que não o receberão. A partir dessa seleção, aplica-se a política e analisam-se seus efeitos.
O estudo sobre a malária, por exemplo, consistiu em dar ao grupo selecionado mosquiteiros. Havia a dúvida se deveriam ser fornecidos de graça ou se as pessoas deveriam comprá-los. Afinal, se fossem dados de graça havia a possibilidade de que as pessoas não dessem aos mosquiteiros o devido valor, usando-os menos do que o desejável. Elaborou-se um sistema de vouchers: alguns davam 100% de desconto na compra, outros davam 50%, outros 20%, e por aí vai. Comparando os resultados tanto dos vouchers recebidos, quanto do grupo de controle que nada recebeu, foi possível constatar um aumento considerável do uso de mosquiteiros entre os que os obtiveram de graça, isto é, os com 100% de desconto.
Ao contrário do que se acreditava, isso não prejudicou o mercado de mosquiteiros, mas o beneficiou enormemente. Aqueles que agora tinham mosquiteiros em uma cama, passaram a comprá-los para todas tendo percebido o seu valor. Houve sensível redução nas taxas de infecção de malária e nas taxas de contágio. Para quem não entendeu a razão da pesquisa, inúmeros estudos mostram a relação entre malária e pobreza.
Os vencedores do Nobel, portanto, puseram em prática medidas para melhorar a vida das pessoas e revolucionaram a maneira como hoje se pensa e se adotam políticas sociais voltadas para o desenvolvimento econômico. Como disse Esther Duflo em entrevista concedida após vencer o prêmio, não é que haja falta de livros-texto e teorias sobre a redução da pobreza e o desenvolvimento econômico. Livros e teses abundam. O problema é que na maioria das vezes eles não trazem a pesquisa de campo, a inserção nas comunidades e na vida das pessoas, para justificar suas recomendações. Portanto, podem levar a equívocos e desperdícios.
A pesquisa científica de campo para reduzir a pobreza e os seus vários sucessos deveria ser comemorada, sobretudo em países onde ainda há muita pobreza, como é o caso do Brasil. Infelizmente, a reação nas redes sociais de gente que se identifica com a direita extrema retrógrada do País foi de condenar a premiação de diversas formas. Seja pela negação de que o Nobel de economia exista – o prêmio existe, ainda que não tenha sido originalmente estabelecido por Alfred Nobel – seja ao afirmar que a pobreza é um “estado natural” e que as políticas públicas para combatê-las são inúteis. Por certo, esse pensamento repercute não entre gente que sofra da pobreza real, material, mas de quem sofre de profunda pobreza intelectual. Quem sabe seja possível algum dia desenhar intervenções públicas para a pobreza mental. Quem sabe seja possível resgatar algumas cabeças da ignomínia que ocupa os espaços públicos. Quem sabe nada disso seja possível e o Brasil permaneça preso na sua terraplanice atual.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Ana Carla Abrão: Realidade que se impõe, liderança que se coloca
Apesar dos mais de 11 milhões de servidores, o setor público brasileiro não é dos que mais empregam no mundo como proporção da população
Evidências ainda mais contundentes em favor de uma urgente reforma na gestão de pessoas no setor público vieram à tona na última semana. No Estado, matéria de José Fucs trouxe dados compilados pelo Ministério da Economia que mostram a evolução das despesas de pessoal no serviço público federal nos últimos anos. Os números são mais uma prova de quanto a máquina pública no Brasil se descolou da realidade nacional e veio ocupando, com voracidade, espaço crescente nos orçamentos públicos.
Apesar dos mais de 11 milhões de servidores, o setor público brasileiro não é dos que mais empregam no mundo como proporção da população. Mas ele está no topo do ranking dos que mais gastam com salários e benefícios de servidores. A despesa de pessoal supera os 10% do PIB nos cálculos do Banco Mundial (13,1% pelos cálculos da OCDE), número muito superior ao que gasta o setor público de outros países que empregam parcelas maiores da população como, por exemplo, o Reino Unido. Parte dessa evolução é explicada pela trajetória do salário médio no serviço público brasileiro, cujo crescimento nas últimas duas décadas traça uma trajetória muito distinta daquela observada no setor privado. Com isso, o setor público no Brasil não só se tornou uma proteção garantida contra o desemprego, fruto da estabilidade prevista na Constituição Federal, como também vem garantindo ganhos reais de salários desvinculados da realidade econômica e de eventuais aumentos de produtividade.
Essas distorções se refletem num contexto de gastos excessivos, baixíssimos resultados e numa crescente deterioração da máquina pública. Como consequência, e apesar da quantidade de recursos gastos, ocupamos posições vergonhosas nos rankings globais de avaliação da qualidade dos serviços públicos, ou de eficiência dos gastos, conforme publicações da OCDE.
Aos números antecipados pela matéria do Estado, juntaram-se outros igualmente importantes divulgados pelo Banco Mundial no relatório Gestão de Pessoas e Folha de Pagamento no Setor Público Brasileiro. As comparações internacionais ressaltam as distorções do nosso modelo de gestão de pessoas no setor público. Em uma comparação com 53 países, o prêmio salarial do setor público federal em relação ao setor privado desponta e atinge 96%. Com salários crescendo a uma taxa média de 2,9% real nos últimos dez anos, os gastos com salários e benefícios já somam 22% dos gastos primários do governo federal. Destaque para os gastos com pessoal do Judiciário, que atingiram 13,8% do total de gastos de pessoal de 2018, equivalente a 0,61% do PIB.
Mas continua sendo nos Estados que o tema das despesas de pessoal é mais crítico e urgente. Das 27 unidades federativas, nada menos do que 20 apresentaram atraso no pagamento de servidores efetivos ou terceirizados. Prova inquestionável do descumprimento dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), está cada vez mais claro que não há mais espaço para contabilidades criativas ou argumentos que colocam na dívida com a União a causa do atual colapso financeiro dos entes subnacionais. A situação é reflexo de aumentos salariais médios reais superiores a 4% ao ano entre 2003 e 2017. Os dados até 2014 são ainda mais impressionantes. O crescimento anual real atinge 5,4% o que, com o crescimento de quase 1% ao ano no número de servidores, elevaram as despesas de pessoal no Estados em 6,4% ao ano em termos reais nesse período.
A trajetória de crescimento – tanto de salários quanto de contingente de servidores – está assentada em leis de carreiras que se multiplicaram Brasil afora. São milhares de leis, espalhadas nos três níveis da federação, e que precisam ser racionalizadas, revistas e consolidadas. Sem uma profunda reforma dessas leis – e portanto do modelo atual de serviço público, Estados continuarão quebrando e o Brasil não conseguirá atender às demandas urgentes da população, que dirá avançar na direção de um país mais moderno, desenvolvido economicamente e justo do ponto de vista social.
É nessa agenda que, mais uma vez, o governador Eduardo Leite do Rio Grande do Sul sai na frente. Em um vídeo divulgado na internet no início da semana passada, antes mesmo que os novos números nos chocassem, o jovem governador se dirige aos servidores do seu Estado convidando-os ao debate e convocando-os para construírem juntos a reforma das suas carreiras.
Com transparência, coragem e liderança, Leite enfrenta a realidade que se impôs e dá o pontapé inicial de uma reforma que, se feita de forma profunda e estrutural, deverá devolver o Estado aos gaúchos, a necessária motivação aos servidores e, ao governo, as condições de administrar e atender à população.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
Marcelo de Moraes: STF pode derrubar prisão após condenação em segunda instância e lavajatistas reagem
O ministro Dias Tóffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, marcou para a próxima quinta o julgamento de três ações que questionam a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. O resultado pode atingir cerca de 193 mil presos, incluindo o ex-presidente Lula.
Pressão. Imediatamente depois do anúncio, a bancada lavajatista no Congresso começou a se mobilizar para pressionar os ministros do Supremo a manter a prisão após a condenação em segunda instância. A gritaria foi grande no Parlamento. "A prisão após a condenação em segunda instância é uma medida para evitar a impunidade. As ações que correm nas instâncias superiores, STJ e STF, são meramente protelatórias. Ou seja, não se julgam os fatos, e sim questões processuais, com o único objetivo de adiar o cumprimento da pena. Caso o STF decida rever a decisão, 193 mil condenados podem ser beneficiados, entre eles o ex-presidente Lula, o que é inaceitável", criticou o senador Marcos Rogério (DEM-RO).
Fim do mundo? Integrantes da Força Tarefa da Lava Jato também se colocaram contra a possibilidade de derrubada da prisão após a condenação em segunda instância por entender que as investigações feitas até hoje poderiam ser comprometidas. Mas havia ceticismo até mesmo do ministro da Justiça, Sérgio Moro, em relação à mudança de interpretação do Supremo.
Novela infinita. O grande problema é que a questão da segunda instância se transformou numa novela interminável dentro do Supremo por conta da prisão de Lula. Volta e meia, o mesmo assunto retorna à pauta, com outro enfoque, mas, no fundo, tratando sempre de algo relacionado à prisão de Lula.
Equilíbrio. E outro problema é que a interpretação dos ministros sobre o assunto é muito dividida. Qualquer decisão que venha a ser tomada pode ser definida por um voto de diferença. E, sem maioria clara, o debate vai se eternizando.
Centrão ajudando Lula? Outra decisão pode também favorecer o ex-presidente no Congresso. A CPI do BNDES tenta aprovar o relatório que pediu o indiciamento de mais de 70 pessoas, incluindo os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, além de Joesley e Wesley Batista por envolvimento em irregularidades em operações feitas pelo banco no exterior. Um acordão envolvendo deputados da esquerda com setores do Centrão se organiza para derrubar o indiciamento de Lula e Dilma.
Absurdo. Conversei com o presidente da CPI, deputado Vanderlei Macris (PSDB-SP), sobre essa possibilidade. "Isso seria um absurdo", disse. "A CPI fez um trabalho muito bom, investigando as irregularidades com muita responsabilidade. Se esse movimento acontecer corremos o risco de jogar fora um trabalho muito bom. Prefiro não acreditar que isso possa ocorrer", disse. O relatório precisa de 18 votos favoráveis para ser aprovado.
Cida Damasco: Ecos de Portugal
Claro que o Brasil é o Brasil e ainda não virou um imenso Portugal, como dizia Chico Buarque, mas qualquer experiência que fuja de extremos e busque a conciliação é uma luz num cenário escuro
O Partido Socialista de Portugal, que há uma semana venceu de novo as eleições e renovou o mandato do primeiro-ministro Antônio Costa, decidiu governar sozinho o país e não renovar o acordo informal com parceiros do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, batizado como Geringonça – a intenção é negociar caso a caso, e não ceder às pretensões do Bloco de Esquerda, de fechar um acordo por escrito, com horizonte de toda a legislatura. Mas isso não esvaziou o debate sobre o que permitiu à Geringonça superar a crise econômica de Portugal e o que pode ser replicado em outros países, como o Brasil. A pergunta que mais se ouve por aqui é: “dá para fazer uma geringonça na economia brasileira?”
Os bons resultados de um programa econômico não identificado com “tudo pela austeridade fiscal” se transformaram, como já era de se esperar, em mais um motivo para a polarização que há bom tempo caracteriza a vida do País. De um lado, estão os adeptos da tese de que Portugal mostrou que é possível reativar a economia, sem adotar a receita fiscalista em vigor em vários países. De outro, os defensores da ideia de que a centro-esquerda portuguesa tem demonstrado forte preocupação com o equilíbrio fiscal, o que no Brasil continua patrimônio da centro-direita.
Não é por outra razão que a vitória de Costa e, por tabela, da equipe liderada pelo festejado ministro Mário Centeno ganhou espaço nas redes sociais, como se não estivesse ocorrendo do outro lado do Atlântico. E alimenta posts irônicos contra os brasileiros que estão se mudando para Portugal, em busca de melhores oportunidades de trabalho e maior segurança – grande parte deles atribuindo o quadro desfavorável no Brasil ao domínio da “esquerda” nos últimos anos, traduzido nos governos petistas.
Quando se olha para a economia dos dois países, é até compreensível o interesse despertado pela Geringonça. Não que os governos do Brasil tenham conseguido impor a austeridade na dimensão prometida – está à mostra, para quem quiser ver, a dramática situação financeira dos Estados, como o Rio, apesar dos compromissos assumidos para obter ajuda federal. Mas o discurso do momento é de linha dura no combate aos gastos públicos. Dia sim, outro também, a equipe econômica anuncia alguma medida da reforma administrativa que está em finalização, com foco na compressão das despesas com pessoal: limitações de reajustes salariais, promoções, contratações, e assim por diante.
O lado real da economia, por sua vez, também não manda boas notícias. Os indicadores antecedentes de PIB que serão divulgados nesta semana, IBC-Br e Monitor do PIB, devem confirmar o quadro de uma economia ainda em slow motion. Não é por outro motivo que setembro trouxe de volta uma deflação – pequena, é fato, mas um alerta de consumo fraco. Todas as esperanças de alguma reanimação da atividade econômica a curto prazo dirigem-se para os saques das contas do FGTS e PIS-Pasep e para as novas rodadas de baixas nos juros. Há, além disso, uma torcida para que o BC reforce a aposta “estimulativa” e libere dinheiro dos depósitos compulsórios.
Lá em Portugal, objeto de “inveja” dos brasileiros, é certíssimo que o primeiro-ministro terá desafios no seu novo mandato, que começa em clima de desaceleração da economia mundial. Especialmente a melhora da infraestrutura, que foi sacrificada em nome do corte de despesas do governo. Mas é inegável que ele já mostrou serviço anteriormente.
O governo de Costa tomou a direção contrária das recomendações de entidades financeiras internacionais, ao reduzir impostos sobre alimentação e aumentar o salário mínimo, entre outras medidas. Em quatro anos, reduziu o desemprego à metade, para 6,3%, derrubou o prêmio de risco dos títulos do país, e o PIB, que cresceu 2,4% no ano passado, vem se sustentando em níveis superiores aos da União Europeia, principalmente por causa do turismo – o que permitiu ao país atingir um nível recorde de renda per capita.
Tudo isso sem se afastar das metas dos programas de estabilidade.
Claro que o Brasil é o Brasil e ainda não virou um imenso Portugal, como dizia Chico Buarque. Mas toda e qualquer experiência que, antes e tudo, fuja de extremos e busque a conciliação é uma luz num cenário escuro.
Vera Magalhães: Pastiche de direita
Bolsonarismo imita alt right americana com dinheiro público e métodos do PT
A foto de Eduardo Bolsonaro abraçado a um mastro com a Bandeira do Brasil, copiando até o semblante “enternecido” de Donald Trump na mesma pose com a bandeira dos Estados Unidos, é o resumo do que é a direita bolsonarista hoje: um pastiche cafona da alt-right norte-americana, sem consistência filosófica e ideológica nenhuma, que se utiliza de dinheiro público do Fundo Partidário e dos métodos do PT para se financiar e se comunicar e envolta em brigas intestinas justamente pela falta de coesão política.
A semana foi tomada por uma crise provocada pelo presidente da República, que decidiu atirar contra seu partido, o PSL, ao tirar uma selfie com um admirador. A partir daí, ameaçou deixar a legenda, os parlamentares que o seguem ficaram que nem barata tonta sem saber para onde iam, mas, por enquanto, fica todo mundo onde está. E por quê?
Porque o PSL enriqueceu na esteira da febre bolsonarista. É ele, por meio da Fundação Índigo, que financia eventos como a versão brazuca da CPAC, feita sob medida para o filho do presidente e candidato a embaixador posar de especialista em relações internacionais e a plateia saudar Trump a plenos pulmões.
Portanto, a “nova direita” brasileira faz o que a velha política sempre fez: se financia com dinheiro público injetado em partidos sem nenhuma identidade programática, por pura conveniência. Também na semana que passou veio à tona em mais detalhes, por meio de reportagem da revista Crusoé, a conexão entre o comando bolsonarista e uma rede de blogueiros, youtubers, sites de propaganda e milicianos digitais, alguns com polpudos salários em cargos públicos e gabinetes, para fritar ministros, tutelar o presidente, assassinar reputações e plantar fake news.
Também nisso a direita bolsonarista bebe dos métodos da alt-right representada por Steve Bannon, que, a despeito de ter sido afastado pelo papai Trump pelo seu potencial tóxico, é idolatrado pela família e pelos assessores do presidente do Brasil.
Mas Bannon não é a única fonte de inspiração: afinal, foi o odiado PT que inaugurou a engenharia de financiar blogs e sites “alternativos” contra o “PIG”, então chamado por Lula e asseclas de Partido da Imprensa Golpista. Os extremos sempre se encontram num ponto: a demonização da imprensa como forma de banir o contraditório e tentar espalhar seu populismo, seja de direita ou de esquerda.
E o que o Brasil colhe em termos de política externa com sua casta dirigente fazendo cosplay do trumpismo para ficar bem na fita com os Estados Unidos? Na semana que passou o saldo foi um mico monumental. A expectativa de que tanta adulação fosse valer um fast track para a entrada brasileira na OCDE, o clube dos países ricos, sucumbiu diante da realidade pragmática: os Estados Unidos continuarão usando a retórica da boa vizinhança com o Brasil, mas na hora do “vamos ver” vão cuidar dos próprios interesses, sobretudo na pauta econômica e comercial.
Bolsonaro e os filhos vivem a ilusão de que sua chegada ao poder representa uma transformação súbita do Brasil – um País desigual social, econômica, cultural e regionalmente – numa pátria de direitistas empunhando a Bíblia e lendo Olavo de Carvalho.
Eliane Cantanhêde: Laranjal e rachadinha
Quadro partidário desolador: o velho caducou, o novo ainda não nasceu
Na “velha política”, o governo de José Sarney alçou o MDB à condição de “maior partido do Ocidente” e os de Fernando Henrique, Lula e Dilma inflaram o PSDB e o PT, que, aliás, se digladiam por décadas. Mas, na “nova política”, ocorre o contrário: já no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, o PSL está às turras e sob risco de voltar a ser nanico, como antes de 2018.
Bolívar Lamounier: A boa tartaruga e a lebre malvada
Se estamos patinando numa questão simples, a defesa da democracia, que futuro nos aguarda?
Se é verdade que a democracia brasileira está à beira da morte, precisamos saber quem a está matando e quem, em tese, poderá salvá-la.
Ninguém em sã consciência suporá que a democracia esteja morrendo de morte morrida, sob o efeito de algum fator genérico, ou por causa das queimadas na Amazônia. Democracia é um sistema político, um conjunto de instituições dirigidas por elites investidas em funções de autoridade. Ou seja, por seres de carne e osso. Mesmo uma crise econômica prolongada só lhe é fatal se as referidas elites, ou parte delas, em conluio ou não com grupos situados fora do Estado, conspirarem para liquidá-la. Outra hipótese seria se uma contraelite, vale dizer, um movimento social de grande porte – por definição, desprovido da legitimidade estatal, mas decidido e armado –, quisesse pô-la abaixo.
Ora, no Brasil do tsunami causado por Dilma Rousseff e seu fiel escudeiro Guido Mantega, a ação de massas mais contundente foi a de 2013, um protesto contra o custo do transporte humano e contra os gastos com estádios para a Copa do Mundo de 2014. Em seguida vieram manifestações de apoio à Operação Lava Jato, de caráter inteiramente pacífico. Por exclusão, portanto, o potencial assassino da democracia tem de ser procurado entre as elites estatais, vale dizer, entre as autoridades públicas, num dos três Poderes ou na ação (ou inação) conjunta dos três. Penso que esta proposição expressa de maneira exata o sentimento médio da sociedade neste momento.
Saudável e robusta, convenhamos, a democracia não está. Mas passar ao extremo oposto e dizer que está moribunda é um patente exagero. O que podemos afirmar sem temor de errar é que ela está vulnerável, muito vulnerável, a desacertos de comportamento entre elites institucionais – o Supremo Tribunal Federal (STF) vem logo à mente. Aqui chegamos à nossa segunda indagação. Se existe uma percepção, mesmo exagerada, de que a democracia está fragilizada e de que uma parcela da elite estatal trabalha contra ela, quem terá ânimo e capacidade de organização para impedir a consumação de tal intento?
Não creio que se possa esperar muito do que se convencionou chamar de “sociedade civil”. Com o tempo, caímos na real e entendemos que essa expressão, se não é de todo vazia, diz o contrário do que antes imaginávamos. Faz referência à miríade de grupos aferrados à defesa de interesses estreitos – grupos corporativos –, com a agravante de que não temos atualmente partidos políticos capazes de agregar tais interesses e, assim, neutralizar uma parte do poder que caiu sob o controle deles na estrutura do Estado. Sim, porque partidos políticos, numa acepção rigorosa da expressão, são organizações capazes de agregar interesses, transcendendo a força isolada dos grupos corporativos. A Câmara dos Deputados conta hoje com 28 partidos (siglas), nenhum dos quais controla sequer 20% das cadeiras. Nesse sentido, tanto faz dizer que a Câmara conta com 28 ou com nenhum partido, uma vez que aquele conjunto amorfo não é capaz de deter o processo de corporativização do Estado.
É plausível supor que alguma contraelite – um movimento social de grande porte – encherá os pulmões e sairá às ruas, assumindo diretamente a incumbência de barrar uma derrocada mais séria das instituições. Hipótese, a meu juízo, improvável, desde logo em vista do sentimento de impotência (ou de desânimo ou de indiferença) que se alastrou pelo País à medida que a sociedade percebeu que as elites estatais seriam capazes de frustrar o combate à corrupção. Àquelas altas expectativas se seguiu o referido sentimento de impotência. Alto o galho, duro o tombo.
Penso que a ideia exposta no parágrafo anterior requer dois complementos. O primeiro tem que ver com o que os economistas denominam “teoria da ação coletiva”. Num movimento social de grande porte, cada indivíduo tende a se sentir como um grão de areia numa extensa praia. Sente – e vejam que esse sentimento é profundamente racional – que seu esforço individual pouco acrescenta à força do conjunto. Se o objetivo for alcançado, ele será parte da “vitória”, recebendo uma parcela quase imperceptível do benefício coletivo. Se não o for, ele não será o culpado; aliás ninguém, individualmente, terá de arcar com o sentimento de culpa.
Acrescente-se que a maioria dos cidadãos comuns tem dificuldade de entender o que “defender a democracia” significa como tese abstrata. Não a compreende no diáfano plano das ideologias. Pensemos num simples “panelaço”. Num clima de desânimo generalizado, relativamente poucos empunharão seus utensílios domésticos e irão à janela manifestar sua indignação. Um panelaço não mobiliza ideologias longamente consolidadas. Mobiliza uma atitude recentemente formada, talvez efêmera: a ideia de um “nós” que, aqui e agora, precisa se contrapor a um “eles”. Claro, a indignação contra o STF e o retrocesso no combate à corrupção podem turbinar tal mobilização. Existem, entretanto, divisões também recentes, feridas abertas, que tenderão a dificultar mesmo essa singela ação conjunta.
A conclusão desta fábula é preocupante. Se nós, brasileiros, estamos patinando em cima de uma questão teoricamente simples, a defesa da democracia, que futuro nos aguarda daqui a dez ou 15 anos? Nossa renda anual per capita anda aí pela casa dos US$ 12 mil: metade da de Portugal, igual à de Porto Rico, um quarto da do Mississippi, o mais pobre dos Estados da parte continental dos Estados Unidos. Aumentando 3% ao ano, precisaremos de 25 anos para alcançar Portugal. Essa é a realidade. Fincamos as patas nesse buraco e dele não conseguimos sair. E a lebre malvada (educação, criminalidade, saneamento...) ficará sentada esperando a boa tartaruga? É claro que não.
* Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Adriana Fernandes: BNDES na PEC emergencial
PEC trará uma lista de medidas duras para serem adotadas
A suspensão do repasse obrigatório ao BNDES dos recursos do Fundo do Amparo ao Trabalhador (FAT) voltou ao debate, agora, dentro da equipe econômica.
A coluna apurou que a ideia em análise é incluir uma interrupção temporária do repasse ao banco de desenvolvimento, por um prazo de dois anos, dentro de uma proposta do guarda-chuva do pacto federativo, que foi batizada no Ministério da Economia de “PEC emergencial”.
A transferência do dinheiro do FAT está prevista na Constituição e é hoje a principal fonte de novos recursos ao BNDES.
Na reforma da Previdência, o fim dos repasses foi incluído no substitutivo do relator, deputado Samuel Moreira (PDSB-SP), mas acabou sendo retirado depois de forte pressão de um grupo de parlamentares e mobilização dos funcionários do banco contrários ao corte do dinheiro.
O tema já tinha sido tratado, mesmo que indiretamente, na MP que libera o saque do FGTS e que contém artigo dando ao ministro da Economia poderes para disciplinar os critérios e as condições de devolução ao FAT dos recursos especiais repassados ao BNDES para cobrir falta de dinheiro para pagamento de seguro-desemprego e abono salarial.
Não há consenso entre os técnicos da eficácia dessa medida para o ajuste, mas a reação já se sabe deverá ser forte como foi na reforma da Previdência. Por isso, nenhuma decisão foi tomada ainda.
A PEC emergencial trará uma lista de medidas duras para serem adotadas por um prazo de dois anos e outras permanentes. Ela é mais enxuta do que a PEC do deputado Pedro Paulo (DEM- RJ) da Câmara, que prevê o acionamento de uma série de gatilhos (medidas duras) para garantir a redução das despesas obrigatórias e abrir espaço no teto de gastos.
Com pouco tempo até fim do ano, o governo optou em fazer uma PEC emergencial para garantir a viabilidade da sua adoção já em 2020. Faz parte do acordo firmado, há três semanas, entre o ministro Paulo Guedes e os presidentes Davi Alcolumbre (Senado) e Rodrigo Maia (Câmara), e que levou depois ao acerto para a divisão dos recursos do megaleilão.
A PEC emergencial entrará pelo Senado e será apresentada por um senador aliado. Não deve mexer no teto de gastos (que trava as despesas à inflação) e vai fazer um pequeno ajuste na chamada regra de ouro, mecanismo que impede que o governo faça dívidas para pagar despesas correntes, como salários.
Hoje, o governo manda o Orçamento desequilibrado em relação à regra de ouro e no ano seguinte busca aprovar no Congresso um crédito extra para não descumpri-la. A proposta da PEC emergencial é reverter a lógica. Mandar o Orçamento já com o crédito adicional para serem aprovados juntos e o governo não depender de duas votações.
No segundo momento, provavelmente em 2020, o governo vai tratar de uma proposta maior, bem mais ambiciosa, que vai cuidar de desvincular (retirar os “carimbos”), desindexar (remover a necessidade de conceder automaticamente reajustes) e desobrigar o pagamento de despesas. Essa nova proposta tem recebido o apelido de “PEC DDD”.
Tensão
Um ponto delicado será mexer no BNDES. A direção do banco já está em pé de guerra por conta da antecipação de dividendos, cobrada pelo Ministério da Economia, e a venda de ações do banco para aumentar o seu lucro.
Uma crise maior está por um fio no BNDES e a saída do diretor de Participações, Mercado de Capitais e Crédito Indireto, André Laloni, é mais um sinal.
O clima azedou de vez nesta semana depois que a Associação dos Funcionários do BNDES divulgou uma nota duríssima se dizendo perplexa com a forma como tem sido conduzido o BNDESPar, braço de participação acionária do banco. Os funcionários colocam luz sobre a decisão de afastar uma das mais respeitadas advogadas do banco. Eles alertam que a governança do banco está sob sério risco.
A maior crítica é à preferência em fazer a venda de ações por oferta pública em vez da venda pela sua mesa de operações. A oferta pública implica custos com comissões a outros bancos.
100% Guedes
Depois do fogo amigo de ala do governo contra Guedes, a calmaria. O ministro está bem mais próximo do presidente Bolsonaro. Ele brinca que o presidente lhe deu sobrevida ao dizer que é 100% Guedes em entrevista exclusiva ao Estado, publicada no domingo passado. Bolsonaro respondeu que eles estarão juntos até 2026. O ministro querendo ou não.
João Domingos: Um governo em dívida
Onde estão a reforma tributária e o plano de salvação da indústria?
Com a reforma da Previdência praticamente concluída, muitas perguntas relacionadas com temas fundamentais para a recuperação econômica e a retomada do emprego começam a ficar no ar, à espera de respostas. Cadê o projeto de reforma tributária do governo? Será possível que a qualificada equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, só tinha como ideia para mudar o arcaico, burocrático e confuso sistema tributário brasileiro a criação de um imposto semelhante à CPMF?
E onde está o plano de salvação da indústria do País? O que o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica pensam a respeito do setor calçadista, da indústria de confecções, do chão de fábrica das autopeças, da cerâmica? Essas perguntas os congressistas já começam a fazer. Alguns chegam a duvidar de que o governo vá mesmo fazer um projeto de privatização radical das estatais, como Paulo Guedes anunciou. Afinal, parece que alguém já conseguiu tirar a EPL da lista das que serão vendidas ou liquidada
A EPL, só para lembrar, é a empresa criada no governo de Dilma Rousseff para tocar o projeto do trem de alta velocidade que ligaria o Rio de Janeiro a Campinas, passando por São Paulo. Tal linha deveria ter sido inaugurada meses antes do início da Copa da Fifa de 2014. Alguns bilhões foram gastos em estudos e o brasileiro continua sem ver sinal do trem-bala. Ou mesmo do trem-pangaré.
Plano industrial, venda de estatais, reforma da Previdência, tudo faz parte de um conjunto de medidas necessárias à salvação do País depois do desastre econômico que foi o governo de Dilma. A reforma previdenciária andou bem. Qual foi o Congresso de qualquer nação democrática do mundo que votou e aprovou mudanças profundas no sistema de Previdência em oito meses, a contar da entrega do projeto pelo Executivo?
Se na Previdência tudo andou até melhor do que o imaginado, no restante as coisas ameaçam empacar. Vejamos a reforma tributária.
Para muitos, principalmente para o setor produtivo, ela é até mais importante do que a reforma da Previdência. Mas corre sério risco de não avançar. Ou, se avançar, fazê-lo lentamente. Câmara e Senado até que tentaram tocar sua parte.
Cada um abraçou um projeto já pronto. O Senado, a proposta trabalhada há anos pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR); a Câmara, uma liderada pelo economista Bernard Appy. Mas sem a proposta do governo não dá para fazer quase nada. Afinal, a União, assim como os Estados, os municípios e o setor produtivo, é parte interessada na reforma.
O atraso do envio do projeto de reforma tributária pela equipe econômica não é o único problema no momento. Há um outro complicador. Se, por um lado, os cerca de R$ 24 bilhões (R$ 10,9 bilhões para Estados, igual quantia para os municípios e mais R$ 2,18 bilhões para os Estados confrontantes com as plataformas marinhas onde há exploração de petróleo) do futuro leilão do pré-sal devem dar um fôlego ao caixa de entes da Federação que se encontram na maior quebradeira, de outro tal alívio pode atrasar a reforma tributária. Deve-se levar em consideração que a União também receberá seu quinhão, R$ 48,84 bilhões.
Em 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Lei Kandir quando havia pressão por uma reforma tributária. A lei obriga a União a compensar os Estados que concedem isenção de ICMS para produtos de exportação. Contentes com o dinheiro, os Estados pararam de falar na reforma. O mesmo ocorreu com a Emenda Constitucional 84, aprovada em 2014, com efeitos a partir de 2015, que aumentou em 1% a alíquota do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Prefeitos que faziam pressão por uma reforma tributária deram-se por satisfeitos.
Carlos Melo: Doria e Bolsonaro na mesma pista estreita e limitada
Com os olhos nos mesmos cargo e eleitores, não há como evitar colisões entre presidente e governador
Doria e Bolsonaro estão na mesma pista estreita e limitada, mas não desistirão de alçar voo. Enquanto simultaneamente não miravam a presidência, o “bolsodoria” fez sentido — foi até uma forma de retirar Geraldo Alckmin do caminho. Agora, com os olhos nos mesmos cargo e eleitores, não há como evitar colisões.
Fenômeno de 2018, Bolsonaro se entende hoje como uma máquina eleitoral. A despeito de seu governo definhar, a razão obsessiva de sua ação é sempre eleitoreira: consolidar os 30% que ainda lhe apoiam, fechando as portas às pretensões de adversários no seu campo. Se conseguir, estará no 2.º turno, torcendo por novo confronto com o PT.
Para Doria, é mais difícil: precisa arrancar considerável naco de eleitores do presidente, confinando-o ao gueto da direita extremada e cruza os dedos para que também nenhuma candidatura viável se imponha do centro-direita ao centro-esquerda, esmagando-o no mesmo espaço que o rival.
Logo, para além do fato, não se deve dar maior relevo à vaia ou à ovação recebidas por Doria e Bolsonaro, respectivamente, na cerimônia dos sargentos da PM, em São Paulo. Primeiro lugar, porque ainda faltam peças no tabuleiro. Depois, naquele espaço de soldados armados, quem vaiava e ovacionava era desde sempre o eleitor cativo do capitão. Mesmo em casa, ali Doria já não entra — e talvez prefira não entrar. A questão é se ocupará outros cômodos.
*Cientista político e professor do INSPER
Eliane Cantanhêde: Brasil first?
Lula com Sarkozy, contra os EUA, e Bolsonaro com Trump, contra a França. E o Brasil?
Donald Trump está para Jair Bolsonaro assim como Nicolás Sarkozy esteve para Lula e essas duas situações comprovam a máxima da política externa: amigos, amigos, negócios à parte. Na hora de prometer mundos e fundos, é fácil. Na hora de cumprir o prometido, a história é bem outra. O que vale para Trump é “America first”, assim como o que valia para Sarkozy era “La France avant tout”.
Lula se encantou com Sarkozy, caiu na lábia dele e por pouco não atrelou todo o arsenal brasileiro a uma única fonte: a França. Depois de fechar com os franceses o ambicioso Prosub, programa de submarinos da Marinha, inclusive o submarino de propulsão nuclear, Lula atuou o tempo todo para renovar a frota da FAB com jatos supersônicos do país.
Havia três concorrentes, o Rafale da francesa Dassault, o F-18 da norte-americana Boeing e o Gripen NG da sueca Saab. Depois de se encontrar três vezes com Sarkozy num único ano, coisa rara em relações bilaterais, Lula chegou a criar uma saia-justa ao anunciar a vitória do Rafale antes do fim do relatório técnico da FAB. O então ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez um malabarismo para desmentir o presidente.
Concluído o relatório, com milhares de páginas, o Rafale ficou no terceiro e último lugar, atrás do F-18 e do Gripen, que acabou sendo finalmente escolhido – mas só no governo seguinte, de Dilma Rousseff, quando o namoro de Lula com Sarkozy já tinha terminado melancolicamente.
A obsessão de Lula teve dupla motivação: a empatia pessoal com Sarkozy e a crença de que uma tal “aliança estratégica” do Brasil com a França seria decisiva para combater o “mundo unipolar” – algo como “colocar os EUA no seu devido lugar”. A fantasia ruiu quando o Brasil e a Turquia operaram juntos o acordo do Irã, contra o armamento nuclear do país. Um dos pilares da estratégia era o voto da França no Conselho de Segurança, mas, na última hora, Sarkozy tirou o corpo fora, votou com Washington e deixou Brasil e Turquia a ver navios.
Há que se aprender com a história, principalmente quando se trata de dois lados da mesma moeda: a ideologia empurrava Lula para a França contra os EUA; a ideologia trocada de Bolsonaro joga o Brasil no colo dos EUA, contra a França. E onde fica o interesse do Brasil nesses dois casos?
Diplomatas de diferentes gerações estão perplexos com o excesso de reverência, até de encantamento, de Bolsonaro com Donald Trump, que já foi até comparado a Deus num agora famoso artigo do chanceler Ernesto Araújo. Trump passa, mais cedo ou mais tarde, mas os EUA ficam, o mundo fica e nunca se inventou nada melhor em política externa do que o velho e bom pragmatismo. Adotado, aliás, pelos excelentes diplomatas dos governos Geisel e Figueiredo, no fim da ditadura.
Ao receber Bolsonaro no Salão Oval da Casa Branca, em março, Trump disse vagamente que apoia a entrada do Brasil para a OCDE, mas não disse como nem quando. Saltitante, feliz da vida, o presidente brasileiro se precipitou e já saiu pagando a dívida antes de contraí-la. Aceitou, inclusive, abdicar da classificação de país em desenvolvimento da Organização Mundial do Comércio (OMC), mesmo perdendo condições camaradas de tarifas. Foi temerário, como se vê agora.
Trump apoiou a Argentina (além da Romênia) para a OCDE, mantendo o apoio ao Brasil, mas só depois. Alegou que a Argentina pediu primeiro, sem considerar a grave situação social e econômica e a volta do peronismo.
Após Lula cair como um patinho na tal “aliança estratégica com a França”, Bolsonaro não pode cair no conto da “aliança estratégica com Trump”. Está na hora de parar, pensar e assumir o “Brasil first”.