O Estado de S. Paulo

Vera Magalhães: Bolsonaro viaja, mas leva crise do PSL na mala

Mesmo no Japão, presidente não se descola da guerra no partido, que teve novos (e não os últimos lances). Até onde isso vai?

Imprevisível. Nenhum dos lados é capaz de prever um desfecho de longo prazo para o estica e puxa que virou a disputa pela liderança da sigla na Câmara. Parecia que um acordo estava no horizonte quando o ex-líder, Delegado Waldir (GO), gravou um vídeo em que aceitava passar o bastão. O líder do governo na Câmara, o também goiano Major Vitor Hugo, protocolou nova lista com 28 assinaturas designando Eduardo Bolsonaro para o posto - mudança aceita, desta vez, pela Secretaria Geral da Mesa da Casa.

Ser ou não ser. Ainda assim, o próprio filho do presidente deu entrevistas dizendo que não tinha garantias de que se manteria no comando da bancada. Dito e feito: a ala ligada ao presidente do partido, Luciano Bivar, se articula para tentar retomar o comando da bancada. Enquanto isso, no entanto, Eduardo já depôs todos os vice-líderes ligados a Bivar. A artilharia de uns contra outros continuou nas redes sociais e em programas de rádio e TV.

Agenda. Coube ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tentar resgatar alguma discussão programática em meio ao tiroteio no partido do presidente. Ele se reuniu com o ministro Paulo Guedes (que novamente deixou de ir numa viagem ao exterior para entabular as propostas de reformas) para dizer que a reforma administrativa terá prioridade até o fim do ano. Apesar disso, ninguém acredita que haja clima político para se votar outra reforma estrutural ainda neste ano.

Previdência. O grande temor do mercado é que os solavancos da Câmara atravessem as Casas do Congresso e contaminem a votação final da reforma da Previdência no Senado. Mas senadores disseram ao BRP que a proposta está blindada, graças a acordos anteriores, ligados ao pacto federativo. Ainda assim, a DR permanente do PSL deve deixar sequelas na Casa: ninguém mais acredita ser viável, por exemplo, a indicação do agora (pelo menos até o envio desta edição) líder Eduardo Bolsonaro para a Embaixada do Brasil em Washington.


Pedro Fernando Nery: O muro do salário mínimo

A avanço do mínimo poderia dar lugar a uma política de valorização do Bolsa Família

O Congresso aprovou o salário mínimo de R$ 1.040 para 2020, reajustado pela inflação, encerrando a política de valorização do salário mínimo (SM). Até 2019, o reajuste era pela inflação do ano anterior e o crescimento do PIB de dois anos antes. Nos EUA, os candidatos democratas prometem dobrar o salário mínimo nacional, que passaria a superar o mínimo da maior parte das cidades. Lá como aqui o debate é centrado em uma preocupação: aumentar o salário mínimo aumenta o desemprego?

Partindo da lei da demanda, a elevação de um preço (o do trabalho) reduziria a demanda (a contratação de trabalhadores). A visão democrata tem rejeitado a tese, embalada por experiências como a de Seattle e outras cidades da Costa Oeste, que apesar dos maiores salários mínimos do país mantiveram baixo desemprego. Nessa visão, o mercado de trabalho seria grande demais para receber a mesma análise de outros (equilíbrio parcial), que ignoraria o poderoso efeito positivo do SM no consumo e, assim, no emprego. O aumento do SM não aumentaria o desemprego.

Pesquisadores têm alertado que estudos sobre experiências como a de Seattle desconsideram que, apesar de impacto desimportante no agregado da taxa de desemprego, grupos vulneráveis sofreriam impacto desproporcional (Clemens, 2019; Meer, 2019). É o caso de trabalhadores de baixa produtividade, de jovens inexperientes e daqueles das ocupações mais tendentes à automação.

Os estudos otimistas desconsiderariam também a migração dos trabalhadores afetados para fora desses centros urbanos, que não seria captada na taxa de desemprego dos habitantes (Pérez, 2018). E alertam que a substituição do trabalho por automação em decorrência leva tempo a ser implementada, por exigir investimento em capital, não sendo bem captada nos primeiros períodos após o aumento. No estudo de Lordan e Neumark (2018), os efeitos seriam piores para mulheres, por predominarem em ocupações como as de atendentes e recepcionistas. Na internet, páginas à direita ironizam a campanha do aumento do SM como uma conspiração de robôs buscando ocupar funções de humanos.

Em países emergentes, a literatura foca em um aspecto adicional: a informalidade, que absorve trabalhadores entre o emprego formal e o desemprego. Para o caso brasileiro, a literatura encontrava efeitos negativos expressivos até o início dos anos 2000, que desapareceram no período de desemprego baixo. Depois de aumentos que colocaram no Brasil a relação entre o SM e o salário médio acima da OCDE, e depois de uma crise que deixou legado de desemprego alto, qual seria o efeito de altas do SM?

Estudos feitos para o período de menor desemprego dão margem para preocupação. O de Jales (2018) atribui ao SM entre 2001 e 2009 expressivo crescimento do mercado informal, principalmente no Nordeste. O de Foguel, Ulyssea e Courseil (2014) identificou efeitos altos e crescentes de expulsão de trabalhadores para fora da força de trabalho entre 2009 e 2013. Aumentos do salário mínimo sem contrapartida de produtividade teriam efeitos deletérios na informalidade e inatividade mais fortes do que os efeitos positivos sobre a desigualdade salarial. Já Saltiel e Urzúa (2018) observam efeitos negativos significativos do aumento do mínimo entre 2003 e 2012 nas regiões menos afetadas pelo boom de commodities, acendendo alerta sobre a repetição da política depois do boom.

Com desemprego alto, especialmente em grupos vulneráveis como jovens e mães solteiras, o salário mínimo pode ser um muro que exclui essa população do mercado de trabalho formal, onde estão os melhores empregos, das grandes empresas, e a proteção social. O objetivo de resguardar da pobreza os que o recebem (os incluídos), prejudicaria os sem emprego ou os que venham a ser demitidos (os excluídos). Em cada aumento do SM, o muro ficaria maior.

Com encargos, um mínimo de R$ 1.040 significa que o trabalhador deve gerar ao menos R$ 2.100 em produtividade para a contratação compensar à empresa. Para jovens egressos de um sistema educacional falido, pode ser um muro alto demais. Nos EUA, Fone et al. (2019) associam aumento de 10% do SM a aumento de 2% dos crimes contra o patrimônio cometidos por jovens.

O Banco Mundial sugere mínimo menor para jovens e Paulo Guedes ambiciona menos encargos para eles, como funciona em muitos países desenvolvidos. O trabalho intermitente da reforma trabalhista também quebra o muro, ao permitir trabalhadores de baixa produtividade acessarem o mercado formal, mas ainda não pegou: pena à espera do STF.

A política de valorização do SM poderia dar lugar uma política de valorização do Bolsa Família, concentrando recursos fiscais em famílias mais pobres e sem os efeitos colaterais. Ou poderia ser mantida condicionada a níveis de desemprego, com aumentos maiores somente quando ele estiver baixo. Nossos muros já são altos demais.

*Doutor em economia e Consultor Legislativo


Ana Carla Abrão: Mitos ou verdades

O Brasil tem gastos públicos que atingem hoje o equivalente a 39% do PIB; boa parte disso, com o financiamento da máquina pública

A reforma administrativa do governo federal nem chegou ao Congresso Nacional, mas a mobilização contrária já ganha corpo. Na última semana, antes mesmo do governo trazer a público o teor da sua proposta, um conjunto de entidades representativas dos servidores públicos federais divulgou um extenso documento em que verdades absolutas são questionadas e seus objetivos desvirtuados. Há que se reforçar, portanto, as motivações que justificam uma reforma da máquina pública brasileira. E elas são, fundamentalmente, a melhora da qualidade do serviço público, o aumento da produtividade da economia brasileira e a necessária redução dos gastos obrigatórios que vêm comprimindo a capacidade do Estado de investir e melhor servir a população.

Embora legítimo na defesa dos interesses das entidades que apoiaram a sua elaboração, o documento da Frente Parlamentar Mista pela Defesa do Serviço Público precisa ser confrontado com dados e informações que jogam por terra as teses que ele busca defender. Afinal, há fartas evidências na direção contrária. Além disso, a necessidade de se reformar a máquina pública não está vinculada ao seu desmonte, mas sim à sua melhora operacional, com impactos positivos significativos também para o servidor público.

O Brasil tem gastos públicos que atingem hoje o equivalente a 39% do PIB. Boa parte disso, com o financiamento da máquina pública. Esse número, calculado pelo Tesouro Nacional com informações de 2016, é muito superior ao que países como México ou Chile gastam e se aproxima dos níveis de gastos observados em países como Inglaterra ou França. Pode-se argumentar (corretamente) que o Brasil, sendo um país em desenvolvimento e com uma população tão carente, deve mesmo ter uma máquina pública maior e mais cara. Verdade, desde que a contrapartida fossem serviços públicos de qualidade e uma população bem atendida. Não é o caso. Estamos dentre os países com pior avaliação na qualidade dos serviços públicos, segundo pesquisa da OCDE. Portanto, relativamente ao que deveríamos estar oferecendo à população brasileira, sim, o Estado no Brasil é muito grande e a máquina pública está inchada, consumindo recursos em níveis e trajetórias que não se refletem na qualidade do serviço público e no atendimento à população.

E a explicação principal está na alocação dos recursos públicos. Gastamos, segundo dados do Banco Mundial publicados recentemente, cerca de 10% do PIB com o pagamento de salários e benefícios a servidores da ativa. Somando as despesas com os regimes próprios de Previdência, chega-se a cerca de 15% do PIB. Como o número de servidores não parece alto em relação à população empregada no setor privado, o gasto de pessoal no serviço público se mostra elevado quando comparado a outros países.

Some-se a isso a desigualdade salarial no setor público brasileiro, há disfunções que precisam ser corrigidas se quisermos melhorar os serviços públicos na ponta, o atendimento ao cidadão. A Inglaterra, por exemplo, gasta cerca de 6% do PIB com salários e benefícios dos seus servidores e tem o melhor serviço público do mundo, segundo índice da Blavatnik School. Além disso, as despesas de pessoal no serviço público brasileiro vêm consumindo parcelas crescentes das receitas totais graças ao crescimento orgânico e vegetativo dos gastos com salários no setor público. Tanto que, entre 2008 e 2018, o crescimento acumulado real do gasto com servidores ativos foi de 26%, ainda segundo o Banco Mundial. Sim, as despesas de pessoal são muito altas e estão descontroladas.

As outras quatro verdades divulgadas como mitos no documento da Frente Parlamentar Mista tratam da ineficiência do Estado, do privilégio da estabilidade, do fato de que chegamos ao colapso fiscal e finalmente da importância das reformas estruturais para a retomada do crescimento. Todas questões amplamente debatidas e amadurecidas e que merecerão mais algumas linhas nesse espaço nas próximas semanas.

Mas vale aqui ressaltar a relevância do tema e comemorar a entrada desse debate na pauta nacional. A construção de uma reforma estrutural da máquina pública se dará a partir do Executivo, passará pelo necessário debate legislativo e pela negociação com os servidores e seus representantes e carecerá do entendimento do Judiciário. Mas para que os resultados convirjam para o seu objetivo, qual seja o de melhorar o funcionamento do setor público brasileiro e garantir que os serviços públicos básicos sejam instrumento de justiça social, gerando igualdade de oportunidades para os mais pobres, ele terá de contar com o envolvimento da sociedade. Daí a importância de deixar claro desde já que verdades são verdades. Não são mitos.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman


José Roberto Mendonça de Barros: Tempo para consolidar

Não temos paciência para ver as coisas avançarem, porque crise pede resultados rápidos

Mudanças mais profundas exigem tempo para se consolidar. Isso é particularmente importante num país como o Brasil, onde as leis mais relevantes só “pegam” após alguns anos de muita discussão, especialmente, nas Cortes superiores.

Por exemplo, consideremos o caso da concessão de rodovias no Estado de São Paulo, cujo programa vai fazer 20 anos. Lançado por Mário Covas, a gestão privada de estradas foi arduamente questionada nos tribunais por vários anos, período no qual os contratos foram sendo aprimorados. Hoje, 19 das 20 melhores estradas do Brasil estão em São Paulo e sob gestão privada.

Temos aqui uma rede de rodovias duplicadas que têm uma densidade (km de rodovias/km2 de território) comparável a de países europeus, como a Espanha e a Alemanha. É o único Estado do País a dispor de uma rede rodoviária de qualidade.

Entretanto, não temos paciência para ver as coisas avançando, o que é compreensível dado que a crise que vivemos pede resultados muito rápidos.

É o que está ocorrendo em pelo menos dois casos: a reforma trabalhista e os avanços na área de crédito.

No primeiro caso, a reação dos sindicatos e outros agentes os levou a questionar o fim do imposto sindical e os novos regimes de contratação de mão de obra, bem como vários juízes de primeira instância julgaram casos contrariando a lei aprovada.

Depois de um certo tempo, tanto o Tribunal Superior do Trabalho como o Supremo Tribunal Federal acabaram por reconhecer a legalidade e a constitucionalidade da reforma.

Como consequência, o número de novas ações vem caindo, especialmente porque a parte perdedora tem de pagar as despesas legais com o processo, o que tornou muito arriscado o litígio exagerado ou de má-fé.

Na área do crédito, a combinação de baixa inflação, da redução drástica da taxa básica de juros (Selic), das mudanças regulatórias do Banco Central (como alterações no cheque especial ou a diminuição de depósitos compulsórios) e a concorrência com as fintechs produziu uma revolução da operação de cartões de crédito, beneficiando milhares e milhares de pequenos e médios negócios, via menores custos operacionais e liberação de capital de giro.

Por esse caminho, o crédito em geral, que era absurdamente caro para todos (e muito barato para alguns campeões nacionais amigos), pode passar a ser mais acessível.

Mas ainda levará algum tempo para que a reconstrução do mercado avance o suficiente para ser suporte do crescimento sustentado.

* * * * *

Chegamos a um consenso na questão fiscal: além da reforma da Previdência, é indispensável que se reduzam os gastos de pessoal, de sorte a compatibilizar ajuste e volta de investimento público. O governo digital (e-government) é a única forma de reduzir o peso da máquina pública, melhorando, ao mesmo tempo, a qualidade do serviço prestado, o bem-estar das pessoas e contribuindo para a redução no custo das empresas. Além disso, há um claro efeito no ajuste fiscal, ao permitir a redução do tamanho do contingente de funcionalismo público à medida que os mais velhos se aposentem.

Os exemplos abaixo mostrados, e publicados pela revista Exame (A hora e a vez do governo 4.0, 29/05/2019), mostram o poder desse movimento.

1) Emissão do certificado de vacinação e profilaxia, emitido pela Anvisa: o número de funcionários envolvidos na operação, que era de 800, reduziu-se para 75, com uma economia anual de R$ 31 milhões.

2) Certificado Veterinário Internacional, expedido pelo Ministério da Agricultura: número de veterinários envolvidos na operação (profissionais extremamente escassos nos quadros públicos), que era de 200, depois da digitalização, foi reduzido para 28, com uma economia anual de R$ 13,6 milhões.

3) Alistamento do serviço militar, coordenado pelo Ministério da Defesa: o número de militares envolvidos na operação foi reduzido de 2.307 para 829, com uma economia anual de R$ 181 milhões.

Os casos nos quais a digitalização pode avançar são inumeráveis e, naturalmente, devem envolver também os níveis estaduais e municipais. O Judiciário, em especial, ainda tem uma avenida a avançar.

*Economista e sócio da MB Associados.


José Goldemberg: O futuro das energias renováveis no Brasil

É essencial construir hidrelétricas com reservatório, prática que está sendo abandonada

O Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou recentemente a publicação do Plano de Expansão de Energia para o decênio 2019-2029, que consiste de estudos e projeções realizadas pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do próprio ministério, e contém estimativas de custos das obras, mas não especifica as fontes desses recursos.

No passado distante os planos da Eletrobrás – onde eles eram preparados – tinham relação direta com os recursos da empresa ou dos aportes do Tesouro. Isso acabou, não só porque essas fontes de recursos “secaram”, mas porque as obras são agora licenciadas pelas agências reguladoras de eletricidade (Anel) e petróleo (ANP) e postas em leilão.

Apesar dessas limitações o Plano de Expansão tem influência em orientar os investidores privados e as próprias estatais como a Eletrobrás, a Cemig, a Copel e outras que podem competir nos leilões, que são diferenciados para os diferentes tipos de energia. Esse procedimento garante espaço para as diferentes fontes – energia hidrelétrica, térmica a gás e carvão, eólica, biomassa e solar fotovoltaica.

Uma novidade anunciada pelo governo é que pretende incluir nos planos de expansão seis usinas nucleares (de 1 milhão de quilowatts) do tipo da de Angra-2, a um custo estimado de US$ 30 bilhões, a serem instaladas até 2050. O custo por quilowatt seria, então, de US$ 5 mil por quilowatt, muito mais elevado do que outras opções, como energia hidrelétrica ou eólica.

A instalação de um grande parque nuclear no Brasil – mesmo no horizonte de 2050 – implica também outros investimentos, porque seria necessário garantir a produção do combustível para esses reatores nucleares. A intenção do Ministério de Minas e Energia é retomar a mineração – que se encontra praticamente paralisada – e ampliar a usina de enriquecimento de urânio. A justificativa para essas propostas é a de garantir a autonomia energética numa área considerada estratégica e tornar o País um exportador de urânio enriquecido.

Essas ideias podem ser questionadas tanto do ponto de vista político como econômico. Há um excesso de produção de urânio enriquecido no mundo e seu preço está caindo, porque as perspectivas de expansão da energia nuclear estão se reduzindo. Eletricidade nuclear, que chegou a representar mais de 15% da produção mundial de eletricidade, caiu para menos de 11% em 2019.

Planos de um “Brasil grande” produtor e exportador de urânio enriquecido existem desde o período militar e persistiram nos governos Lula-Dilma, mas, ao que parece, jamais foram analisados do ponto de vista de sua viabilidade econômica.

O mais sensato seria garantir apenas o combustível necessário para os reatores instalados no País e abandonar sonhos fantasiosos de grande potência nessa área. Urânio enriquecido pode ser comprado no exterior, como está sendo feito até hoje para suprir as necessidades dos reatores de Angra dos Reis (RJ). O Brasil pode fazê-lo porque deixou de ser suspeito de pretender fabricar armas nucleares quando assinou acordos internacionais com a Agencia Internacional de Viena e um acordo bilateral com a Argentina de inspeções mútuas.

Além disso é tempo de o governo abrir uma discussão séria sobre o que seria melhor para garantir a independência energética na produção de eletricidade no País, já que a de petróleo e gás está assegurada com a produção do pré-sal.

A verdade é que existe ainda um grande potencial inexplorado para a instalação de hidrelétricas no País, principalmente na Região Amazônica, mas os planos do governo federal mostram que ele praticamente desistiu de implementar grandes projetos hidrológicos na Amazônia por causa dos problemas que foram encontrados na construção da Usina de Belo Monte. O próximo leilão de energia a ser realizado será dominado por energia eólica, solar e térmica. Hidrelétricas, só de pequeno porte.

Esse é um grave equívoco, que terá fortes consequências no futuro.

Argumenta-se que hidrelétricas se tornaram inviáveis porque inundam grandes áreas da floresta e afetam as populações ribeirinhas e populações indígenas. Esses impactos são reais, mas, frequentemente, exagerados. Em Belo Monte a construção da usina causou o deslocamento de 22 mil pessoas que viviam às margens do Rio Xingu e na cidade de Altamira e tiveram que ser realocadas. No entretanto, a eletricidade produzida pela usina ilumina cerca de 5 milhões de residências nos grandes centros urbanos do País, que foi a razão para construir a hidrelétrica. Os danos causados pela construção devem e podem ser reparados, como é feito de forma satisfatória em muitas outras usinas, como Itaipu.

Mesmo a área da floresta inundada, de cerca de 500 quilômetros quadrados, em Belo Monte é pequena (e ocorreu apenas uma vez) se comparada com o desmatamento ilegal que é perpetrado todos os anos na Amazônia, que é de cerca de 7 mil quilômetros quadrados.

Argumenta-se, incorretamente, que outras energias renováveis, como a eólica e a solar, também produzem energia limpa e renovável, como as hidrelétricas, tornando estas desnecessárias. Contudo essas energias são intermitentes, isto é, não são disponíveis quando ventos não sopram e o sol não brilha. Elas precisam ser usadas em conjunto com energia estável, que vem das hidrelétricas (ou de reatores nucleares), economizando água nos reservatórios para ser usada quando não houver vento ou sol. Sem isso não será possível ampliar muito a contribuição das fontes intermitentes.

É por essa razão que é essencial construir usinas com reservatórios, que é uma prática que está sendo abandonada no Brasil. Se ela não for revertida, usinas nucleares ou térmicas usando combustíveis fósseis serão as alternativas.

* Professor emérito da USP, foi presidente da companhia energética de São Paulo (Cesp)


Cida Damasco: O perigo Bolsonaro

Crise com PSL é ameaça, justamente quando há sinais de alívio na economia

Se há alguém que pode comprometer os planos da equipe econômica do governo Bolsonaro, pode-se dizer que esse alguém é o próprio Bolsonaro. Depois de uma penosa negociação para facilitar a aprovação final da nova Previdência no Senado com a liberação de parte dos recursos do megaleilão do petróleo para Estados e municípios, parecia que estava aberto o caminho para o encaminhamento das outras reformas – a administrativa, a tributária, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) emergencial, para cortar despesas, e a chamada PEC DDD, para retirar amarras do Orçamento.

Pois não é que o Planalto implode as relações com o PSL, seu próprio partido, na ânsia de se livrar dos respingos das investigações sobre candidaturas laranjas e promove uma troca intempestiva das suas lideranças no Congresso? Uma crise e tanto no quintal do bolsonarismo, com os oposicionistas limitados a mero espectadores. E uma crise justamente num momento em que será preciso conquistar apoios parlamentares para um conjunto de medidas importantes. Algumas delas bastante indigestas, que contrariam interesses corporativos, como a reforma administrativa, que mexe em salários, carreiras e na estabilidade dos servidores. Depois de várias idas e vindas sobre o cronograma de apresentação das propostas, as últimas notícias são de que primeiro virão a PEC dos gastos e a reforma administrativa. Uma reforma tributária fatiada, com a primeira etapa concentrada na fusão de alguns impostos, ficaria para o fim da fila.

Num cenário político mais tranquilo, isso poderia funcionar como um reordenamento das iniciativas econômicas do governo, um ano depois das eleições, rompendo a aparente paralisia pós-Previdência e respondendo às críticas de que o ministro Paulo Guedes promete mais do que entrega. Agora, porém, qualquer que seja o roteiro, o encaminhamento das mudanças exigirá um esforço redobrado, para convencer os parlamentares de que as necessidades da economia terão de se sobrepor às disputas partidárias – ainda que a experiência mostre que, em muitos casos, a sensibilidade do Congresso a essas argumentações é diretamente proporcional aos agrados feitos pelo Executivo. Lição, por sinal, que vários integrantes do time do Bolsonaro já aprenderam, depois de todo desgaste produzido pelas tentativas de governar com bancadas temáticas e redes sociais, no lugar de acertos formais com partidos.

O partido de Bolsonaro, do qual se espera fidelidade nas votações, está em guerra aberta com o próprio presidente e seus herdeiros. E, mesmo que haja uma acomodação nos próximos dias, favorecida inclusive pela viagem do presidente à Ásia, é quase impossível que a “união estável” seja restabelecida. Além disso, a estridência dos conflitos políticos, extremamente amplificada nos últimos dias, não esgota seus efeitos negativos na complicação do jogo parlamentar e, por tabela, na tramitação dos projetos de interesse do Planalto.

Teme-se também uma contaminação do clima econômico, que começava a desanuviar com algumas providências ensaiadas pela equipe de Guedes para incentivar a demanda de curto prazo – o que vinha sendo recomendado por especialistas de várias tendências, diante da persistente estagnação da economia. A própria evolução na criação de vagas formais no mercado de trabalho, constatada pelo Caged nos últimos meses, contribuiria para reforçar esse quadro de alívio.

A entrada na praça do dinheiro das contas de FGTS e PIS-Pasep, a continuidade da queda dos juros básicos, o 13º salário para o Bolsa Família e o Refis repaginado, tanto para empresas como para pessoas físicas, entre outras medidas, podem não configurar um programa pronto e acabado para reanimar a atividade econômica, mas têm condições de provocar pelo menos um respiro neste final de ano. Nada capaz de acelerar de fato o crescimento, mas suficiente, por exemplo, para levar a expectativa de alta do PIB em 2019 mais para perto de 1% – e, mais ainda, para preparar a entrada em 2020 numa situação um pouco mais confortável.

A questão é que isso depende, em grande parte, do “fator Bolsonaro”. E é aí que está o perigo. O fator Bolsonaro não tem funcionado para reduzir tensões e pacificar o País, como seria de se esperar de um presidente, mas tem agido exatamente na direção oposta.


Vera Magalhães: Voto de Rosa Weber, de novo, vai definir momento da execução de pena

Serão pelo menos mais três sessões do plenário do Supremo Tribunal Federal nesta semana para que os 11 ministros tentem chegar, enfim, a um veredicto: afinal, em que momento deve se dar a execução de pena de prisão no Brasil? A novela se arrasta há anos, e virou assunto nacional em 2016, quando o STF mudou a sua jurisprudência a respeito do assunto, passando a entender que a pena de prisão poderia ser cumprida a partir da condenação em segunda instância, por um colegiado, e não precisaria aguardar o trânsito final em julgado – entendimento que vigorava desde 2009.

Desde então, a questão já voltou à pauta inúmeras vezes. Em outubro do mesmo 2016, os ministros reafirmaram o entendimento, por 6 votos a 5, ao julgarem liminares nas mesmas Ações Declaratórias de Constitucionalidade cujo mérito analisam agora. Em novembro daquele ano, reconheceram repercussão geral para a tese da prisão após condenação em segunda instância, num julgamento no plenário virtual.

E em junho do ano passado, ao analisar um habeas corpus do ex-presidente Lula, que havia sido preso em abril, o plenário manteve a validade da nova jurisprudência. Votaram pela execução da pena a partir da condenação em segunda instância Edson Fachin, Luiz Fux, Luís Barroso, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. Pelo trânsito final em julgado Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello (relator das ADCs que estão em julgamento agora), Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Celso de Mello.

Na ocasião, como agora, o voto decisivo foi da ministra Rosa Weber: apesar de, em 2016, ela ter entendido que o cumprimento da pena só deveria se dar depois do trânsito final em julgado, ao analisar o HC de Lula ela opinou que a jurisprudência era muito recente, e que alterá-la provocaria insegurança jurídica.

Como agora se trata de um julgamento de constitucionalidade, ministros que defendem a revogação da permissão geral para a execução da pena a partir da segunda instância acreditam que ela vai retomar seu voto de mérito de três anos atrás. Mas não há como ter garantia disso: Rosa é, entre os 11 ministros do Supremo, aquela que menos costuma antecipar os votos a colegas ou à imprensa.

A forma como ela votou em 2018, no entanto, mostra que a ministra não é impermeável às consequências políticas do assunto. O Supremo está sob pressão. Protestos têm sido realizados na frente do tribunal e uma campanha que veicula bordões como #STFVergonhaNacional se alastra pelas redes sociais, sob os auspícios, inclusive, de grupos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

O ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas fez uma postagem no Twitter novamente aventando o risco de convulsão social a depender da decisão que o STF tomar. Três ministros – o presidente da Corte, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes – estiveram com Jair Bolsonaro na véspera do início do julgamento, e o filho do presidente, Carlos, teve de pedir desculpas por ter feito uma postagem em nome do pai defendendo a prisão após condenação em segunda instância.

Um dos pivôs por trás da volta do assunto à baila, Lula, diz que não está interessado no julgamento e dá a entender que só aceita a anulação de sua condenação, aumentando a já elevada politização de um julgamento que deveria ser técnico.

A discussão de uma saída “alternativa”, que que se aguardasse a análise do recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, que chegou a ser defendida por Toffoli, perdeu força. O que os ministros pró-presunção de inocência dizem agora é que alguma modulação só seria possível para se prever a execução provisória da pena em casos de crimes como homicídio ou estupro.

Serão pelo menos mais três sessões até que todos os ministros votem: quarta-feira de manhã e à tarde e quinta-feira à tarde. Mas alguns ministros acham que a novela pode se estender ainda pela semana seguinte, dada a extensão caudalosa dos votos. O BRPolítico ouviu 4 ministros da Corte e 2 integrantes do governo de quinta-feira a domingo, e todos convergem para a expectativa de que o STF reveja a tese da prisão em segunda instância. Mesmo aqueles que são favoráveis a sua aplicação.

A tentativa dos ministros de mitigar a reação da sociedade estipulando que crimes violentos poderão ser cumpridos antecipadamente apenas deixa mais evidente que a motivação para rever a prisão em segunda instância são os casos de condenados por crimes do colarinho branco.

Só na Lava Jato, 38 condenados podem ser afetados caso o entendimento mude. Nem todos sairiam da prisão de imediato: há alguns que cumprem pena com medidas cautelares, como prisão preventiva. Este é o caso de Eduardo Cunha, por exemplo.

A decisão não seria a primeira a abalar operação deflagrada em 2014. Pelo menos três decisões recentes do STF enfraqueceram os alicerces da Lava Jato: a de que crimes conexos ao de caixa 2 devem ser julgados pela Justiça Eleitoral, e não pela Federal, a anulação de sentenças nas quais réus delatados não tenham se manifestado depois de delatores, apesar de não haver previsão legal expressa para isso, e a liminar concedida por Dias Toffoli anulando compartilhamento de relatórios do Coaf e da Receita Federal sem autorização judicial.


Luiz Sérgio Henriques: Fado tropical

Nada mau se nós pudéssemos recriá-lo, o Brasil se tornando um imenso Portugal...

Na vida cotidiana, geringonça é um mecanismo mal-ajambrado, de escassa utilidade para quem o concebe ou quer usar para fins práticos. As artes da política, por contraste, têm tal natureza que são capazes de transformar um mecanismo fadado a ter curta duração numa solução razoável e até bem-sucedida, unindo parceiros improváveis – daí o aspecto de “geringonça” – para dirigir um país moderno e arejado, que já registra expressivos ganhos civilizatórios desde que deu partida à “terceira onda” redemocratizadora nos anos 70 do século passado. A mesma onda, por sinal, em que, alguns anos depois, nosso próprio país ingressaria, tanto assim que não poucos especialistas associam as Cartas que, em ambos os países, assinalaram a ruptura com o antigo regime.

Referimo-nos, evidentemente, a Portugal, cujas recentes eleições devolveram alguma esperança aos que avaliamos, com preocupação difícil de disfarçar, a atual “estrutura do mundo”, trincada por ataques frontais à ideia de democracia que nos pareceriam inimagináveis ainda há alguns anos. Uma esperança, aliás, que rebrota aqui e ali – tal como a flor no asfalto do poeta – com os freios e contrapesos que ultimamente começaram a ser acionados contra as transgressões de Donald Trump ou de Boris Johnson, bem como contra as pretensões autoritárias de Matteo Salvini e outros arautos menores do antiliberalismo político.

Ao falar de Portugal, os paralelos com o Brasil devem ser bem medidos. Não se trata só das óbvias questões de dimensão ou de geopolítica. Limitando-nos à esfera propriamente política, salta aos olhos o fato de que desde a redemocratização esse país teve – e tem até agora – o que rigorosamente não soubemos construir de modo duradouro: um sistema partidário com um mínimo de racionalidade, previsivelmente bem mais resistente a eventuais tentativas de transformá-lo na terra arrasada que, entre nós, se mostrou propícia ao sucesso do bolsonarismo. Uma aventura parecida em terras lusas pressuporia a desarticulação de tal sistema e mesmo a desmoralização da direita constitucional, com a ascensão de grupúsculos da extrema direita ainda insignificantes na sociedade e no Parlamento, o que não está à vista.

Como muito pouco ou quase nada está inscrito nas coisas a ponto de determinar fatos inexoráveis, o bom resultado não teria sido possível sem a ação de uma esquerda democrática, representada de modo majoritário, mas sem exclusividade, pelo Partido Socialista (PS) de Mário Soares já a partir da Revolução dos Cravos. Por alguns breves anos o pequeno país voltaria a estar na rota dos grandes acontecimentos, atraindo a atenção de personalidades políticas e intelectuais ávidas por um processo revolucionário que rompesse com o que parecia ser a “mesmice” social-democrata da Europa. Uma espécie de Cuba na ponta do continente pode ter estado na cogitação de “revolucionários sinceros, mas radicais”, hipótese que, no entanto, se distanciava dos interesses e das aspirações de uma sociedade que mal se livrava de décadas de asfixia.

Os socialistas interpretaram o sentimento majoritário. Mesmo subjugado por um regime retrógrado e depauperado por um empreendimento colonial extemporâneo, Portugal pertencia ao mundo ocidental. Devia, por isso, reconstituir as instituições correspondentes e, por meio delas, encaminhar sua revolução democrática. O papel do ator é, aqui, digno de nota. Enquanto os comunistas, combatentes antifascistas da primeira hora, se cingiam eleitoralmente aos cinturões industriais e ao bravo Alentejo rural, os socialistas decifravam com muito maior clareza o enigma do centro político, disputando-o com os partidos constitucionais de centro-direita, também participantes, com todos os títulos de legitimidade, dos prélios eleitorais e, em geral, da reconstrução pós-ditadura. O PS, em suma, jamais se deixou encerrar num gueto.

O ator socialista surpreendeu ainda por outro aspecto. Numa terra que viu nascer e vigorar por séculos o sebastianismo – a irracional espera por um herói salvador perdido num ponto do passado, mito que, por sinal, se transportaria em alguma nau desgovernada também para a Terra brasilis –, o PS não restou em estado de menoridade, aprisionado à figura de Mário Soares. O pai fundador seria influente até o fim, especialmente do ponto de vista simbólico, mas outros dirigentes foram oferecidos ao País, como Jorge Sampaio, António Guterres (atual secretário-geral da ONU) ou José Sócrates (cujas desventuras judiciárias não contaminaram o PS além de certa medida).

E o mais recente nome desse elenco, António Costa, foi o idealizador da “geringonça”, habilíssima manobra que, em 2015, levaria a um competente governo socialista com apoio parlamentar “externo” de até então renhidos adversários do próprio campo, como o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda.

Nestes tempos de turbulência incomum, toda previsão, até sobre o futuro próximo, parece temerária: de fato, não sabemos como será o novo governo, por quanto tempo durará e se os ventos raivosos do extremismo de direita continuarão a poupar o país. Não sabemos sequer se o ator socialista vai fazer, como tem feito, os movimentos típicos da grande política. Só o que se pode afirmar é que, vistas retrospectivamente, estas quase cinco décadas do Portugal redemocratizado são – basicamente – exemplares e não seria nada mau se pudéssemos recriar, também nós, o fado tropical que em outro momento, e de modo irônico, o atual vencedor do Camões nos ensinou a entoar. O Brasil se tornaria um imenso Portugal, próspero e pacificado – ainda por cima com a participação decisiva, mas não monopolizadora, de uma esquerda mudancista, plural e tolerante, como bem o sabem os milhares de compatriotas que, nos últimos anos, passaram a ver no outro lado do Atlântico uma possibilidade de vida decente e segura, que por aqui a tantos se nega.


João Domingos: Jogar para perder?

Difícil entender a estratégia de Bolsonaro na crise do PSL

A coluna deste sábado poderia se referir à aprovação da reforma tributária, uma proposta tão moderna e desburocratizante que se tornará modelo para o mundo. Ou sobre a reforma administrativa que acabou com privilégios e deixou a máquina pública enxuta e pronta para servir ao cidadão que paga impostos. Talvez a respeito do novo plano industrial. Quem sabe sobre o sucesso do programa de combate ao desemprego, que levou ao pleno emprego, fez a renda crescer e devolveu ao cidadão brasileiro esperança e felicidade.

Mas não será a respeito de nenhum desses temas. O governo nem conseguiu montar seu projeto de reforma tributária. A reforma administrativa é um sonho mais do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do que do presidente Jair Bolsonaro. O plano industrial, se existe, existe só no papel. O programa de criação de empregos ainda não apareceu. E a renda do cidadão é uma tragédia. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) com dados de 2018, divulgada na quarta-feira, 16, mostra que mais de 100 milhões de brasileiros – quase a metade da população – vivem com apenas R$ 413 mensais.

A vergonha nacional revelada pelo estudo da Pnad Contínua, com aumento ainda maior da desigualdade entre ricos e pobres, nem foi tão comentada porque um outro tema a encobriu. Trata-se da crise do PSL, o escândalo da arapongagem que grampeou todo mundo, até o presidente da República, e suas possíveis consequências para o projeto de reformas do País. Como até agora só a reforma da Previdência entrou na pauta, e esta parece estar resolvida, pois depende apenas da votação do segundo turno, pelo Senado, pode-se deixar as considerações sobre a agenda econômica para um futuro próximo. E ater-se ao comportamento político do presidente Jair Bolsonaro na crise do PSL.

Nos 28 anos em que foi deputado federal, Bolsonaro se diferenciou muito de seus colegas. Não ocupou presidência de comissão nem disputou relatorias. Teve como foco as pautas conservadoras, a defesa de direitos de militares, uma aversão a reformas, o combate à corrupção e o enfrentamento à centro-esquerda. Se tudo isso fez parte de um projeto político, foi um projeto vitorioso. Bolsonaro conseguiu firmar-se como o antiPT e o antiLula num momento de crise dos petistas e do centro, fez uma campanha eleitoral sem dinheiro nenhum, sem tempo de propaganda na TV e venceu. Alguns atribuem a vitória dele ao atentado à faca que sofreu em Juiz de Fora, que o transformou em vítima e o livrou dos debates com os adversários. Mas isso é apenas uma afirmação empírica.

Ao assumir a Presidência da República, Bolsonaro abominou o fatiamento da Esplanada dos Ministérios adotado por seus antecessores como forma de garantir a governabilidade. Decidiu que o governo era dele, porque ganhara a Presidência praticamente sozinho. Partidos reclamaram. Mas, sem ter o que fazer, e não podendo votar contra uma pauta positiva para o País como a reforma da Previdência, tiveram de aprová-la. Até então, a estratégia política de Bolsonaro vinha dando certo.

Por isso, é difícil entender seu comportamento na crise do PSL. Primeiro, a fez detonar, ao dizer a um eleitor que esquecesse o partido, esquecesse o presidente do partido, Luciano Bivar, “queimado para caramba”. Depois, liderou pessoalmente a tentativa de destituição do líder na Câmara, Delegado Waldir (GO), para em seu lugar pôr o filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), também seu preferido para a Embaixada em Washington. Foi derrotado, grampeado e ainda xingado de “vagabundo”, por Waldir.

Quando um presidente da República entra numa briga, tem de entrar para ganhar. Pior é que a derrota de Bolsonaro foi dupla. Dele e do filho.


Rogério L. Furquim Werneck: Quanto tempo desperdiçado

Reformas pendentes em meio à mobilização do Congresso com as eleições municipais do ano que vem

Margaret Atwood – a consagrada romancista canadense, recém-agraciada com o Booker Prize e popularizada como autora do livro em que se baseia a série The Handmaid’s Tale – tem uma frase inspirada sobre o tempo que dá o que pensar sobre o avanço do programa de reformas do governo Bolsonaro: “As areias do tempo são movediças... quanto nelas pode desaparecer sem deixar vestígio”. (The sands of time are quicksands... so much can sink into them without a trace.)

Tendo se recusado a montar uma base parlamentar sólida, o Planalto descobre aos poucos quão problemática tem se mostrado essa impensada decisão. Além de ter de enfrentar dificuldades óbvias, relativas à aprovação de projetos de seu interesse e ao bloqueio de iniciativas parlamentares a que se opõe, o governo vem sendo obrigado a se conformar com prazos de tramitação excessivamente dilatados, ao sabor das prioridades e dos caprichos do Congresso.

A reforma da Previdência, que parecia praticamente aprovada em meados do ano, continua a se arrastar no Senado. Com sorte, será aprovada, afinal, na semana que vem, já a dois meses do recesso parlamentar de final de ano. E não houve só morosidade. Houve desfiguração. Mudanças perfeitamente defensáveis no abono salarial, já aprovadas na Câmara, foram alteradas no Senado.

Num momento em que o Planalto parecia menos preocupado com a tramitação da reforma previdenciária que com que a aprovação do nome do novo embaixador do Brasil em Washington, a articulação política do governo nem zelou para que todos os senadores contrários às alterações participassem da votação em que a questão foi decidida. A incúria decepou nada menos que 1/10 do valor da melhora fiscal que a reforma poderá propiciar, em dez anos.

O pior é que a tramitação da reforma no Senado só foi possível mediante pagamento de vultoso pedágio, na forma de aprovação prévia de participações generosas de Estados e municípios nos recursos que advirão do leilão de excedentes da área de cessão onerosa do pré-sal. Como se temia, a ideia de que o acesso a tais recursos ficaria vinculado à aprovação de reformas fiscais nos governos subnacionais não subsistiu. Tendo acenado, desavisadamente, com a possibilidade de farta distribuição desses recursos aos Estados e municípios, o governo, sem capacidade de bloqueio no Congresso, não teve como resistir às pressões por distribuição imediata e incondicional dos resultados do leilão aos governos subnacionais.

É, pois, de mãos vazias, sem os recursos fiscais oriundos do pré-sal para oferecer, que o governo se prepara para desencadear reformas pendentes que deverão afetar em grande medida Estados e municípios. O que agora se noticia é que a reforma tributária ficaria para 2020. Por ora, a prioridade teria passado a ser o esforço de flexibilização dos orçamentos dos três níveis de governo, sob o lema “desvincular, desindexar e desobrigar”, que o Ministério da Economia insiste em rotular de Novo Pacto Federativo.

A prioridade pode até fazer sentido. O problema, mais uma vez, é o timing. Com base no que se viu nos últimos meses, é difícil que uma reforma de tamanha complexidade possa ser concluída, ou ao menos aprovada, em uma das Casas do Congresso até o recesso parlamentar. Isso significa que a fase mais crítica do esforço de flexibilização dos orçamentos dos três níveis de governo terá lugar a partir de fevereiro de 2020, quando a mobilização do Congresso com as eleições municipais já terá tornado bem mais difícil a aprovação das medidas requeridas.

Sobram evidências de que a mobilização do Congresso com as eleições do ano que vem deverá ser especialmente precoce. Basta ter em mente a batalha campal que já vem sendo travada entre a família Bolsonaro e o presidente do PSL, Luciano Bivar, pelo controle dos R$ 350 milhões de recursos públicos com que contará o partido na eleição de 2020. Um embate que poderá deixar o apoio do governo no Congresso ainda mais precário.

* Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Fernando Gabeira: Choro sobre o óleo derramado

Inútil culpar a esquerda, que levou anos para ver o verde e deve levar séculos para ver o azul

Há três semanas ando pelas praias do Nordeste e não consigo chegar a uma conclusão sobre esse desastre. Foi relativamente fácil seguir os efeitos da mancha, no sentido norte-sul, observar seus efeitos na areia e nos seres marinhos. No entanto, é muito complicado seguir a mancha para trás, em busca de suas origens. Satélites americanos foram usados para isso e não encontraram rastros. Parece que a mancha engana satélites.

Baseado em fotos postas à disposição pelos europeus, pesquisadores da Universidade da Bahia chegaram a ver o que poderia ser uma nova mancha de 22 quilômetros quadrados a caminho da costa baiana. Essa possibilidade foi desmentida. O Ibama sobrevoou a região e não a viu. Chegou a supor que os pesquisadores se tivessem enganado, pois havia nuvens dificultando a visibilidade. A técnica usada para calcular a mancha baseia-se na rugosidade da água. A região apontada como problemática era lisa, chata. A suposição era de que o óleo dominasse a superfície.

Os americanos, ao afirmarem não ter conseguido rastrear a mancha, confirmam indiretamente a ideia de que o óleo, mais pesado, afunda e navega numa camada inferior.

Minha experiência induz a uma comparação com o desastre na Galícia, que cobri em 2003. Um petroleiro chamado Prestige derramou 770 mil toneladas de óleo na costa da Espanha. A Galícia, região cruzada por petroleiros mal equipados e semiclandestinos, já conhecera outros vazamentos.

Pode ser que isso esteja acontecendo com navios que saem da Venezuela, de onde veio o petróleo vazado. Pressionados pelas sanções americanas, fazem de tudo para escoar a produção, que, de modo geral, vai para a Índia e a China.

Barris de rejeitos foram encontrados nas praias com inscrições da Shell. Pesquisadores dizem que rejeitos e óleo derramado na praia são a mesma substância. A Marinha discorda. A Shell também desmente.

Tudo isso se passa com relativo desinteresse nacional. Deputados e senadores foram ao Vaticano e deram as costas para as praias manchadas. O próprio Bolsonaro acusou esquerda, ONU e ONGs de ocultarem o desastre por a origem do óleo ser a Venezuela.

Além de denunciar a esquerda, Bolsonaro pouco fez. Em Sergipe foi preciso uma determinação judicial para que protegessem a foz dos Rios São Francisco, Sergipe, Vaza Barris e Real, entre outros.

Embora possa haver um componente político no relativo desinteresse, vejo outras razões para ele. Há muita atenção para certos biomas, como a Amazônia, pois são vistos como decisivos para as mudanças climáticas. Ignoram-se em grande escala o papel dos oceanos e a importância das correntes marinhas no aquecimento do planeta. Num encontro internacional realizado na Inglaterra, alguns cientistas chegaram a dizer que as correntes marinhas e sua dinâmica é que iam determinar a irreversibilidade do aquecimento global.

Uma semana antes do desastre comecei a ler o livro de Rachel Carson sobre o litoral. Além de excelente escritora, Rachel Carson dedicou-se à zoologia marinha. A riqueza biológica do litoral é descrita por ela com detalhes, desde caranguejos do tamanho da unha do polegar a seres maiores, passando por medusas, nereidas, uma paisagem visual e verbalmente encantadora. Na medida em que conseguirmos transmitir a riqueza da vida oceânica, talvez o interesse aumente.

Na Galícia, em 2003, vi muitos voluntários limpando as praias. Neste desastre no Nordeste também houve movimento, crianças em Alagoas, artistas na Bahia, todos empenhados em tirar a sujeira da praia. Discussão política, requerimentos, comissões, enfim, todo o zum-zum em torno de um desastre tem o seu papel. Usar uma pá e sujar os pés é mais eficaz.

Assim como na Galícia, estamos diante de um problema internacional. Como controlar os navios bandalhas que enganam a fiscalização e descumprem normas de segurança?

Se o desastre foi mesmo provocado por um petroleiro, o que me parece mais lógico, o Brasil teria de acionar mecanismos internacionais de controle. Não fazer nada implica esperar um novo desastre, que fatalmente virá.

Ainda não sabemos o impacto real do óleo derramado. Temos as praias como alvo porque sua limpeza é essencial para o turismo. Mas há os manguezais e o consumo de crustáceos e moluscos tem um grande papel na dieta da população litorânea. Aí se joga também um jogo mais difícil: limpar os mangues demanda técnica e roupa especial. Ainda assim, é difícil.

Fico pensando num peixe-boi que é acompanhado pela Fundação de Mamíferos Aquáticos. Chama-se Astro e nada agora entre a Praia do Coqueiro e Mangue Seco, na Bahia. Astro é tão tranquilo quanto à presença humana que foi atropelado por barcos 13 vezes. Depois de escapar com vida dessas trombadas, enfrenta um novo momento. O equipamento que o monitora está coberto de óleo. Ele parece que segue bem.

Mas, sem dúvida, a vida no mar, que é o berço da própria vida, tornou-se uma aventura perigosa. O transporte clandestino de combustível é um tema que merece cuidado especial. Tende a produzir desastres.

Inúmeras vezes, entre Boa Vista e Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, parei para documentar os destroços de carros incendiados. Em geral eram de pequenos contrabandistas fugindo da polícia.

Não adianta apenas criticar a esquerda e as ONGs que cuidam mais dos biomas que estão na moda. Ou culpar a esquerda, que levou anos para descobrir o verde e possivelmente levará séculos para ver o azul.

O transporte marítimo de petróleo depende de um controle internacional das embarcações. O Brasil foi vítima. Precisa fazer algo, caso contrário as possibilidades de novo desastre aumentam. O oceano que deixaremos para as novas gerações nunca mais será o que encontramos. Mesmo assim, é preciso resistir.

 


William Waack: Inspiração da Espanha

Ao contrário do que acontece no Brasil, partidos e Judiciário enfrentaram a grave crise

Poderosas, as memórias de olfato nas noites desta semana na esplêndida capital da Catalunha jogam a gente de volta para junho de 2013 em São Paulo. É o cheiro de lixo queimando nas ruas, plástico se derretendo no calor das chamas, sirenes das tropas de choque correndo de um canto para o outro das ruas atrás de bandos de mascarados que improvisam barricadas, provocam a polícia, mandam selfies e stories nas redes sociais enquanto “lutam”, dispersam, correm e se juntam no próximo quarteirão.

Um bocado de gente está ali nas ruas do centro só para olhar. Há alguma simpatia com a causa geral, ainda que o público se mantenha a prudente distância do fogaréu e dos jovens encapuzados brigando com a polícia. No caso de Barcelona, as manifestações foram convocadas para protestar contra as penas de prisão impostas segunda-feira última pela Justiça espanhola a nove líderes e articuladores da tentativa de separar a Catalunha do resto do país, há uns dois anos. A independência da região, afirmam os juízes na condenação, nunca passou de uma “quimera”, criada e explorada por políticos.

Talvez seja uma boa descrição do que aconteceu, mas o ponto relevante é o fato de que o “independismo”, como é chamado aqui o separatismo catalão, já tinha sido derrotado politicamente antes da sentença condenatória. O principal fator que circunscreveu a aventura política articulada na Catalunha foi o funcionamento do sistema político partidário espanhol, a grande participação popular em várias eleições subsequentes apesar da crise fiscal e de representatividade que esfacelou forças políticas tradicionais e seus grandes nomes.

A Justiça espanhola precisou de menos de dois anos para o “processo”, como ficou conhecido no país a perseguição, julgamento e condenação dos acusados de violar a constituição ao promover o separatismo da Catalunha. E foi tudo, a julgar pela grande maioria dos comentaristas espanhóis, dentro da lei, do devido processo legal e com a participação direta dos líderes dos principais partidos. De fato, é só mesmo o cheiro do lixo queimando nas ruas, ateado por jovens encapuzados, que lembra São Paulo de 2013.

No Brasil, o esfacelamento do PSL numa disputa entre o presidente e os “donos” da agremiação é antes de mais nada um retrato perfeito da deterioração do sistema partidário brasileiro, seu fracionamento em siglas de aluguel, sua incapacidade de representar diretamente interesses legítimos de grupos definidos (profissionais, regionais, econômicos, culturais, etc.), sua dedicação em converter pedaços da máquina pública em ferramenta para uso próprio. Difícil esperar impulsos políticos de horizonte amplo de agremiações partidárias desse tipo, populares ou não. É um aspecto no qual o Brasil está muito atrás de uma Espanha.

Considere-se também o julgamento “definitivo” que o STF faz da confusão que ele mesmo criou sobre a prisão de condenados em segunda instância. É a expressão acabada do fato da mais alta corte do País ter se transformado numa das grandes fontes da insegurança jurídica. A percepção que se generalizou de um lado (o da Lava Jato) e de outro (quem cobra da Lava Jato respeito aos preceitos legais) é a de que as decisões do Supremo são sempre políticas, ao sabor do momento – como aconteceu em 2016, quando respondia ao ímpeto da Lava Jato, e agora, quando responde ao ímpeto de frear a Lava Jato.

A Espanha andou relativamente rápido no tratamento de um problema político difícil mesmo enfrentando severa crise fiscal e de desemprego. Foi pelo funcionamento de partidos, sistemas políticos e judiciário respeitado. Os mais veteranos vão se lembrar que a experiência espanhola de saída de um regime ditatorial para uma democracia já havia sido uma inspiração para um general presidente do Brasil em 1977 – Ernesto Geisel e sua abertura lenta, gradual e segura. Quem sabe a Espanha acaba sendo uma inspiração mais uma vez.