O Estado de S. Paulo
Vera Magalhães: 300 dias
Reformas liberais disputam espaço com laivos autoritários e espuma ideológica
Jair Bolsonaro fez ontem, com uma semana de atraso, a pajelança para marcar os 300 dias de seu governo. Houve uma parte da comemoração substantiva, representada por um importante e complexo conjunto de mudanças na estrutura do Estado e do Orçamento de todos os entes da Federação, e outra marqueteira, marcada pela bateção de bumbo e um preocupante símbolo do “infinito” a designar os dois zeros do número 300.
A divisão de atos é bastante ilustrativa do que tem sido a dinâmica do governo nesses dez primeiros meses: de um lado, a equipe de Paulo Guedes propondo medidas liberalizantes, que foram prometidas na campanha e que podem, se aprovadas, levar à superação do quadro de profundo desacerto fiscal e levar a um crescimento mais vigoroso, e Bolsonaro e a ala mais ideológica, de outro, promovendo polêmicas estéreis, brigando com Deus e o mundo e, aqui e ali, deixando escapar laivos autoritários.
Guedes fez uma longa explanação sobre as razões intrínsecas ao conjunto de medidas que finalmente chega ao Congresso. A ideia de repactuar a relação entre União, Estados e municípios ao mesmo tempo em que se flexibiliza a aplicação dos recursos e se rediscute a estabilidade do funcionalismo é um todo que faz sentido dentro da ideia liberal de que o Estado deve ser menor para gastar menos consigo mesmo e mais com a sociedade.
Dito isso do todo, será preciso analisar as medidas uma a uma para que se tenha uma ideia mais acabada de sua viabilidade política. Mexer com a estrutura do gasto público e com toda a carreira de servidores no ano de eleições municipais não é um desafio simples.
Nesse aspecto, uma medida já nasce para ser o bode na sala do atual pacote: a que extingue municípios com menos de 5.000 habitantes. Não parece razoável crer que deputados e senadores vão votar pela aniquilação de suas bases eleitorais.
Mas Guedes acerta numa avaliação: há um ano não parecia possível que a reforma da Previdência pudesse ser aprovada com tamanha facilidade. Diante do caos fiscal e da recessão prolongada legada por Dilma Rousseff, a sociedade parece disposta a dar uma chance a uma agenda mais liberalizante, ainda que não entenda todas as implicações sociais e futuras que ela pode ter.
E nesse aspecto Guedes demonstrou ter feito uma curva de aprendizado nesses 300 dias de governo: abriu mão de ideias mais radicais que chegou a lançar como balões de ensaio, como a desvinculação total do Orçamento ou o congelamento do salário mínimo, porque sabe que não teriam viabilidade política nem adesão social.
Liberais não são revolucionários, mas reformistas, disse o ministro. Essa frase e a ênfase que deu à democracia em sua fala funcionaram como uma resposta aos arroubos da outra ala, a ideológica e política, que nas últimas semanas flertou até com a ressurreição do AI-5 e que aos poucos vai se distanciando do que seria a terceira perna do tripé de gestão, a ala militar, que chega aos 300 dias com seis de seus expoentes limados do governo e em crescente grau de desconfiança em relação aos propósitos de Bolsonaro.
O irônico dessa dinâmica peculiar do governo do “capitão” é que o sucesso de Guedes pode fortalecer a ala ideológica e dar a ela a sensação de que, consertada a economia, haverá licença para radicalizar e buscar sua reeleição em novas bases, menos liberais. É uma preocupação que já cala fundo em setores que até aqui olham o governo com crescente desconfiança, mas ainda torcem pela pauta econômica. O Congresso entende esse dilema desde que Paulinho da Força o enunciou em bases bem cruas, no Primeiro de Maio. A votação do pacote dos 300 dias vai mostrar quanto crédito os parlamentares estão a fim de colocar na conta do presidente.
O Estado de S. Paulo: Petrobrás arremata 2 campos do pré-sal e 2 não têm oferta; arrecadação frustra governo
Duas das quatro áreas leiloadas ficaram com a estatal e as outras não tiveram oferta; petroleiras de grande porte não participaram da disputa
RIO - Esperado como um trunfo para fechar as contas do governo, o megaleilão do pré-sal, nesta quarta-feira, 6, frustrou as expectativas da equipe econômica de arrecadar R$ 106,5 bilhões. A Petrobrás, com as chinesas CNOOC e CNODC, arrematou duas das quatro áreas oferecidas, pagando R$ 69,96 bilhões. As grandes petroleiras ficaram de fora e as outros dois campos não tiveram oferta.
LEIA TAMBÉM >Mercado teme pressão sobre Petrobrás
Além do impacto para as contas do governo federal, os recursos do leilão foram usados como moeda de troca para a aprovação de medidas de ajuste, como a reforma da Previdência. Dos quase R$ 70 bilhões, a Petrobrás vai ficar com R$ 34,6 bilhões e o restante deve ser dividido entre Estados (15%), municípios (15%), União e Rio de Janeiro.
Considerada a maior descoberta já feita no Brasil, o campo de Búzios foi vendido à estatal em parceria com as duas petroleiras chinesas, sem ágio. Isso significa que será partilhado com a União o porcentual mínimo do lucro com a produção. O governo vai ficar com 23,24% dos ganhos e o pagamento será feito em óleo.
Nessa concorrência, saiu vitorioso quem se comprometeu a partilhar maior fatia da produção com o governo federal, o chamado lucro-óleo. Os porcentuais mínimos são definidos em edital e o ágio é calculado sobre esses valores.
A Petrobrás foi também a única a apresentar oferta pelo campo de Itapu, com bônus de assinatura de R$ 1,76 bilhão e ágio mínimo de 18,15%. A empresa já tinha antecipado o interesse na área.
Os outros dois campos oferecidos - Atapu e Sépia - não receberam lances e serão oferecidos novamente em outros leilões pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). A previsão já aventada pelo governo é de que o novo pregão aconteça em nove meses.
Antes de começar o leilão, o diretor-geral da agência, Décio Oddone, antecipou a possibilidade de o leilão ser marcado pela baixa concorrência e de as duas áreas não saírem.
O leilão foi concluído em uma hora e quarenta minutos. Todas as empresas inscritas tiveram de depositar envelopes nas urnas, ainda que fosse para informar que não disputariam as áreas oferecidas.
A ausência das multinacionais é uma surpresa para o mercado e governo, que aguardavam a presença das petroleiras de grande porte, com capacidade financeira para fazer frente aos altos valores da licitação.
Além de ser o leilão de petróleo mais caro entre os realizadas até hoje, essa concorrência teve a peculiaridade de ser uma oportunidade única do ponto de vista geológico. Não existe a chance de os vencedores investirem e não acharem petróleo ou gás: a região já foi explorada pela Petrobrás, que confirmou a existência de um reservatório gigantesco de petróleo e gás de boa qualidade.
Outra característica singular é que os blocos oferecidos são extensões de outros cedidos pela União à Petrobrás em 2010, num regime conhecido como cessão onerosa. Na época, a empresa foi autorizada a ficar com 5 bilhões de barris de óleo equivalente (boe, que inclui petróleo e gás). Mas à medida que avançava na delimitação da descoberta, percebeu que era muito maior do que o esperado. Parte da extensão da cessão onerosa, que pode ser até três vezes maior do que o que ficou com a Petrobrás, foi leiloada.
O resultado da licitação, porém, pode ter sido comprometido pelas suas instabilidades financeiras e jurídicas. Os vencedores teriam de compensar a Petrobrás por investimentos já feitos e pela antecipação da produção. Por lei, a estatal tem o direito de extrair óleo e gás na área da cessão onerosa por até 40 anos. Apenas depois desse prazo, seria permitido o desenvolvimento dos blocos excedentes da cessão onerosa. Mas a estatal aceitou antecipar a produção das áreas leiloadas desde que fosse compensada por isso. Não estava definido, no entanto, o valor dessas compensações.
Para especialistas, essa indefinição e também a adoção de três regimes contratuais para a região contribuíram para que as multinacionais não comparecessem. O desenvolvimento da região envolve o regime de cessão onerosa, firmado entre a União e a Petrobrás em 2010, relativo aos 5 bilhões de boe. Há ainda o de partilha, próprio do pré-sal, que será assinado pelas empresas vencedoras do megaleilão. E, por fim, quem ficasse com o campo de Sépia teria de assinar também um contrato de concessão, próprio do pós-sal, porque esse campo se expande para uma região de pós-sal.
"É fundamental revisar a estratégia dos leilões de partilha para garantir a concorrência nos leilões através a oferta de ativos atrativos do ponto de vista econômico", avaliou Edmar Almeida, professor do Instituto de Economia da UFRJ.
PARA ENTENDER
Saiba o que é a cessão onerosa
Acordo feito entre União e a Petrobrás, em 2010, previa produção de até 5 bilhões de barris de óleo equivalente (boe), mas a estatal encontrou o triplo do volume de petróleo estipulado em contrato; excedente será leiloado
João Domingos: Pacote terá problemas no Congresso
O governo pode se preparar. O Congresso não aprovará as propostas do Plano Mais Brasil do jeito que foram entregues. Em alguns casos, haverá resistências intransponíveis, como a extinção de cerca de 1,2 mil municípios com menos de 5 mil habitantes e arrecadação menor do que 10% da receita total. Em outros, os projetos serão tocados, mas com mudanças. A única parte com chance de andar, talvez com votação em pelo menos uma das Casas este ano, é a que trata dos gatilhos para reduzir gastos.
O Congresso é formado na sua maioria por parlamentares que se dizem municipalistas. E, mesmo que nem todos saibam direito o que isso significa, sabem que precisam do apoio dos prefeitos para garantir a eleição. Acabar com mais de mil municípios é acabar com mais de mil cargos de prefeito e outro tanto de vices, além de cerca de 12 mil mandatos de vereador, todos cabos eleitorais importantes. Sem contar os servidores, eleitores que podem perder o emprego.
Para o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tudo leva a crer que essa iniciativa tem cheiro de jabuti em cima de uma árvore. “Tem segunda intenção por parte desse projeto”, disse Maia a este repórter ontem.
Deve-se levar em conta para o futuro do pacote dois fatores: a total dependência que Bolsonaro tem de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Sem base parlamentar, e com o único partido do governo, o PSL, em guerra interna, o presidente terá de contar com a boa vontade dos dois. Como contou na aprovação da reforma da Previdência.
Só que o momento é diferente. Maia está descontente com a forma como o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se comportado quanto à reforma tributária. A impressão que Guedes passa é a de que não deseja que nada seja feita. Outro tema que levanta o debate no Congresso são as crises que Bolsonaro e seus filhos criam do nada. Muitos líderes começam a demonstrar cansaço com a usina de crises do clã Bolsonaro.
Pedro Fernando Nery: Bem além do R$ 1 trilhão
A PEC paralela repete a bem-sucedida tramitação da reforma da Previdência do funcionalismo no governo Lula
A reforma da Previdência não acabou. Continuam em tramitação no Congresso Nacional proposições “satélites”, sejam enviadas pelo governo ou iniciadas pelo Parlamento. A principal delas é a PEC paralela, que facilita a adesão de Estados e municípios à reforma: com ela, o impacto da reforma da Previdência para as finanças do Estado brasileiro iria bem além do R$ 1 trilhão.
A PEC paralela repete a bem-sucedida tramitação da reforma da Previdência do funcionalismo no governo Lula. A Proposta de Emenda à Constituição é paralela porque foi criada, no Senado, concomitantemente à PEC principal da reforma. É um mecanismo de “economia legislativa”: permite que o Senado altere trechos da PEC principal sem fazer o todo voltar à Câmara, o que atrasaria em meses a promulgação da parte principal, a parte que ambas as Casas já concordaram. Com a PEC paralela, volta à Câmara somente o que é modificado.
E o que é modificado? Principalmente, as regras válidas para Estados e municípios. Até a reforma, as aposentadorias e pensões desses servidores eram regidas pela Constituição, como a dos federais. Na reforma, a Câmara passou essa atribuição aos Estados e municípios. Se o arranjo pode ter facilitado a expressiva votação que a reforma recebeu, dificultou o ajuste nos Estados. E eles podem quebrar.
Com a reforma aprovada, o Estado ou município que quiser aderir às regras válidas para servidores federais precisa de um pacote e votar diversas medidas no Legislativo local. A depender do tema, precisa-se de uma emenda à Constituição estadual ou lei orgânica, uma lei complementar ou de uma lei ordinária. Para governadores ou prefeitos com pouco apoio no Legislativo, as tarefas podem ser hercúleas demais, diante da proximidade de grupos organizados que pressionam contra, do calendário com eleições locais em 2020 e da falta de tradição de tratar do tema – complexo. A reforma aprovada também dificultaria o aumento de alíquotas de contribuição nesses entes.
Se não conseguirem reformar, a prestação dos serviços públicos mais essenciais ficará prejudicada. Cada brasileiro já aporta R$ 1 mil por ano apenas para cobrir o déficit das previdências estaduais (da ordem de R$ 100 bilhões). O déficit atuarial de Estados e municípios – o déficit nas próximas décadas – é de cerca de R$ 5 trilhões (mais de R$ 20 mil por brasileiro!), não muito menos impressionante que o déficit atuarial no regime do INSS.
De fato, a reforma aprovada atinge apenas uma minoria dos servidores: mais de 80% dos servidores em regimes próprios são estaduais ou municipais. Para serem alcançados, serão necessárias mais de 5 mil reformas pelo Brasil, porque diversas propostas têm de ser aprovadas para cada um dos mais de 2 mil regimes próprios.
No Brasil, Estados e municípios não decretam falência. É inevitável que ao menos parte da conta volte para a União – o que fez a economista Selena Peres chamar a mudança de jogo do joão-bobo. Vai e volta, e a volta é um risco importante, talvez ainda pouco compreendido, para a dívida pública e o teto de gastos.
A solução da PEC paralela é equilibrada. A decisão da Câmara não é revertida: Estados e municípios continuam tendo a atribuição para tratar de previdência. Mas a adoção das regras federais é facilitada e estimulada. É facilitada porque precisa apenas da aprovação de uma única lei ordinária (maioria simples), desde que o projeto seja de iniciativa do governador ou prefeito. E a aprovação da lei no Estado alcança também todos os municípios.
E é estimulada porque os que aprovarem as regras da União são premiados. Na reforma já aprovada, houve uma mudança importante para o federalismo brasileiro na Constituição. Fica impedido que a União faça transferências voluntárias, conceda avais e até empréstimos em bancos públicos para o Estado ou município que descumprir regras previdenciárias, o que poderia abranger inclusive a regra de equilíbrio financeiro ou atuarial. Na PEC paralela, há uma libertação: o Estado ou município que fizer a reforma é premiado e se livra das proibições.
Em dez anos, o impacto seria de R$ 350 bilhões caso as regras da União valessem para Estados e municípios – pelas contas do governo.
A paralela também traz ganhos fiscais para a União: apesar de alterações em alguns pontos da reforma da Previdência aprovada, há ajuste pelo lado da receita. As renúncias ao agronegócio exportador e parte das do Simples são revistas. As das filantrópicas são mantidas, mas deverão ser compensadas pela União, convite à fiscalização mais efetiva.
E com neutralidade do ponto de vista fiscal, a paralela autoriza o Benefício Universal Infantil: integração de quatro políticas públicas, com foco na primeira infância e na extrema pobreza, proposta por pesquisadores do Ipea.
*Doutor em economia e Consultor Legislativo
Eliane Cantanhêde: Cai mais um general
Há um temor de uso político de umas das principais marcas do Brasil: a das Forças Armadas
Os dois governos Bolsonaro estarão mais uma vez em choque hoje, quando o ministro Paulo Guedes entrega ao Congresso a segunda onda de reformas, enquanto os militares, perplexos, contabilizam a perda de mais um general sob o comando do capitão. E não uma perda qualquer. O general de quatro estrelas Maynard Santa Rosa é tão preparado quanto querido entre os colegas de farda.
A queda de Santa Rosa da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) por falta de suporte do Planalto já seria em si um bom motivo para insatisfação entre os disciplinados militares. Mas se torna ainda mais potencialmente explosiva pela sequência de generais que saíram do governo já no primeiro ano, por demissão ou decisão.
A demissão mais mal digerida foi a do general Carlos Alberto dos Santos Cruz da Secretaria de Governo. Assim como Santa Rosa, ele também despachava no Planalto, a passos do gabinete presidencial. Logo, gozava de confiança do presidente Jair Bolsonaro. Essa confiança, porém, esbarrou na força de Olavo de Carvalho, o guru, ideólogo ou seja lá o que for, que mora na Virgínia (EUA) há anos e, de lá, emana seu poder sobre os filhos de Bolsonaro, o chanceler, o ministro da Educação, o assessor internacional e o futuro embaixador nos EUA. Entre um general de primeiríssima linha e um guru de quinta, o presidente optou pelo guru.
Também foram defenestrados os generais Jesus Corrêa (Incra), Juarez Cunha (Correios), Franklimberg de Freitas (Funai), um atrás do outro, sem que se ouvisse um pio da Defesa, do Exército, muito menos da Marinha e da Aeronáutica, primas pobres e com baixa representação no governo.
O silêncio, porém, não pode ser confundido com amém, concordância, aplauso. Muito pelo contrário. Trata-se de uma cultura, de uma educação, de um comportamento construído ao longo de décadas de história militar e de aprendizado nas casernas e ratificados pelas oito diretrizes traçadas pela Defesa no início do governo. A primeira estabelece que militar não fala.
Longe de microfones e câmeras, o clima é outro. Há surpresa e muitas conversas entre velhos companheiros de farda, que dividiram cursos sofisticados, passaram por provas difíceis, missões duras, não raro em locais inóspitos e longínquos, muito diferentes de suas cidades de origem, do seu habitat. Impera a disciplina, mas não morreu a crítica – e a autocrítica.
Como se sentem os oficiais que conhecem bem a integridade e a força moral de Santos Cruz? E a competência de Santa Rosa, que sobreviveu a um curso do Exército no qual só 20% a 25% dos inscritos chegam ao final? Felizes, certamente eles não estão.
A retumbante declaração do deputado Rodrigo Maia sobre o general Augusto Heleno ecoou em setores das Forças Armadas. Não exatamente por discordância. Segundo o presidente da Câmara, Heleno “virou um auxiliar do radicalismo do Olavo de Carvalho” e acrescentou: “É uma pena que um general da qualidade dele tenha caminhado nessa linha”. O chefe do GSI, muito querido entre os colegas, nem imagina quantos deles podem estar pensando assim.
Líder natural, com um currículo invejável, o que se esperava de Heleno é que agregasse inteligência, bom senso e equilíbrio ao governo e ao presidente. Ao contrário, suspeita-se que ele esteja ajudando a atiçar o pior lado de Bolsonaro.
Nesse clima, o presidente da República poderá cometer um grande erro se emprestar o nome, a força do cargo e o capital eleitoral para um tal Partido Militar Brasileiro. É o fim da picada. Só vai reforçar a sensação, que começa a se espraiar entre os militares, de que Bolsonaro está fazendo uso político de uma das marcas de maior credibilidade no Brasil: a marca Forças Armadas.
Cida Damasco: Nuvens no horizonte
Cenário político instável cria incertezas para nova rodada de reformas
O clima anda mesmo meio estranho. E não estamos falando do efeito do aquecimento global, que às vezes faz a primavera parecer inverno num dia e verão logo no dia seguinte. No caso, trata-se do clima econômico, sujeito a variações extremas conforme o momento e conforme o público. Investidores, analistas e empresários começaram a semana passada animados com sinais de alguma melhora na atividade econômica e com a perspectiva de apresentação das propostas de reformas pós-Previdência. Terminaram frustrados com um novo adiamento do anúncio das medidas, consideradas essenciais para determinar o futuro do País. Como tem sido frequente nos últimos tempos, cada vez que um solzinho pálido surge na economia acaba encoberto pelas chuvas e trovoadas no cenário político – onde, segundo “meteorologistas” experientes, o clima não vai desanuviar tão cedo.
As rumorosas denúncias de ligações do clã Bolsonaro com os envolvidos na morte de Marielle Franco e a defesa do AI-5 pelo filho do presidente e líder do governo, Eduardo Bolsonaro, chegaram a jogar para segundo plano o pacotaço de mudanças preparado pela equipe de Paulo Guedes – que inclui pacto federativo, redução das amarras do Orçamento, extinção de fundos públicos, reforma administrativa, reforma tributária e mudança de regras para agilizar as privatizações. Tudo isso e mais um pouco. Na semana passada, só os mercados pareciam ignorar a instabilidade política e continuavam a exibir recordes atrás de recordes.
Passado o impacto do novo terremoto político, pelo menos momentaneamente, o clima no Planalto é na linha do “agora vai”. Ou seja, a programação é detalhar nesta semana todas as propostas do pacotaço, muitas delas cruciais para que o governo consiga honrar seus compromissos na área fiscal e, com isso, aliviar a pressão sobre a economia real. Apesar das inúmeras pistas dos últimos dias, ainda há dúvidas sobre todas as medidas que virão no pacotaço e mesmo sobre o ritmo de encaminhamento no Congresso.
Já se sabe, de toda forma, que um dos pontos centrais da reforma administrativa será o fim da estabilidade automática para os novos servidores públicos. Sabe-se também que serão propostas a desvinculação de gastos no Orçamento e a definição de gatilhos para barrar efetivamente as despesas em caso de descumprimento das metas fiscais. E ainda que a reforma tributária vai demorar mais, embora tenha a preferência de empresários e líderes parlamentares, como o próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
A proposta tributária de Guedes será limitada, inicialmente, à fusão de PIS, Cofins e IPI. A desoneração ampla da folha de pagamento das empresas foi comprometida pela derrubada da nova CPMF.
Se há uma coisa que não se pode dizer de Guedes é que ele se conforma com pouco. A reforma da Previdência é uma prova da ambição do ministro, que fincou o pé nos ganhos fiscais de R$ 1 trilhão em 10 anos e conseguiu segurar o resultado na marca dos R$ 800 bilhões. O regime de capitalização, contudo, que ele fez questão de incluir no texto, foi rejeitado logo no início da tramitação no Congresso, poupando negociações mais penosas à frente. Tudo indica que agora essa ambição será testada novamente, com as propostas que serão encaminhadas simultaneamente à Câmara e ao Senado. Isso porque elas vão além da reestruturação das finanças públicas, que volta e meia ameaçam entrar em colapso. Miram, na verdade, uma reforma do Estado brasileiro, como o próprio ministro define.
Pela complexidade das medidas antecipadas e, principalmente, pela amplitude dos interesses envolvidos, pode-se imaginar que a passagem pelo Congresso não será rápida nem tranquila. Especialmente porque ocorrerá em plena campanha eleitoral para prefeitos.
Não é compreensível, portanto, que a turma do Planalto continue a estressar suas relações com o mundo político em geral e com a própria base parlamentar. Para garantir a aprovação dos seus projetos no Congresso – ou, em outras palavras, para governar – não basta Bolsonaro agradar àquele eleitorado fiel, que tem demonstrado afinidade cega às suas declarações e ações. Céu de brigadeiro certamente Guedes não terá à sua frente, mas que pelo menos o presidente não atraia mais nuvens no horizonte.
O Estado de S. Paulo: 'Fala sobre AI-5 é gravíssima e incompatível com a Constituição', diz cientista político
Para José Álvaro Moisés, Brasil vive vácuo de lideranças políticas
Paulo Beraldo, de O Estado de S.Paulo
As declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sugerindo a possibilidade de volta de um AI-5 caso haja radicalização de movimentos da esquerda é incompatível com a Constituição Federal e gravíssima para um parlamentar eleito democraticamente. A avaliação é do cientista político José Álvaro Moisés, professor da Universidade de São Paulo e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da instituição.
Na entrevista, o pesquisador afirmou que cogitar alternativas assim é um reconhecimento implícito de que o governo não está indo bem. "Ao invés de adotar procedimentos próprios da democracia, como a busca de diálogo e entendimento com outras forças políticas, eles se voltam para políticas de exceção, como a hipótese de um golpe ou de uma radicalização dos conflitos políticos", afirmou Moisés, que lança o livro Crises da Democracia - O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos esta semana.
O cientista político afirmou ainda identificar no Brasil hoje um vácuo de lideranças capazes de interpretar o momento e os desafios do País, como a desigualdade de renda e a necessidade de crescimento econômico. "Há na sociedade um sentimento de que estamos sem alternativa, sem líderes capazes de interpretar o desafio do momento e oferecer perspectivas de futuro, que mostrem que podemos melhorar e recomeçar a construção de uma sociedade mais justa e solidária." Abaixo, a entrevista.
Como o senhor vê a declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro sugerindo a volta do AI-5 caso haja "radicalização da esquerda"?
Essa declaração é muito grave e suscita a necessidade de o Ministério Público Federal abrir um processo. Ele jurou compromisso com a Constituição. É uma declaração totalmente incompatível com a Constituição e uma coisa gravíssima que tem de ser objeto de ação da Justiça.
Não é a primeira vez que o núcleo próximo do presidente fala sobre a possibilidade de ruptura institucional. O senhor vê essa possibilidade?
É preciso ver esse cenário a partir de dois olhares. Por um lado, não creio que haja apoio social, nem mesmo nas Forças Armadas, para isso. Mas, por outro, o fato de pessoas próximas do presidente mencionarem essa possibilidade, em uma tentativa de identificar uma saída para os dilemas que o governo enfrenta e não consegue resolver, é preocupante.
Se o governo estivesse sendo bem-sucedido no enfrentamento das crises e desafios que o acometem - o fogo na Amazônia, o derramamento de óleo nas praias do Nordeste, o desemprego de milhões, a perda de renda da população - não seria necessário cogitar alternativas de exceção como essas.
Cogitar isso é um reconhecimento implícito de que o governo está fracassando e que, diante disso, ao invés de adotar procedimentos próprios da democracia, como a busca de diálogo e entendimento com outras forças políticas, eles se voltam para políticas de exceção, como a hipótese de um golpe ou de uma radicalização dos conflitos políticos.
Nesse contexto de radicalização, como vê a relação do presidente Jair Bolsonaro com a imprensa?
Líderes populistas no mundo inteiro não conseguem conviver bem com uma imprensa livre, crítica aos seus atos e decisões de governo. Bolsonaro não está fugindo desse perfil. Não consegue entender que a imprensa, e a mídia em geral, é um componente fundamental da democracia, mesmo quando essa venha a fazer críticas erradas, às quais governos democráticos sempre podem responder. Mas as suas reações à mídia não mostram tranquilidade para responder aos ataques que sofre. Ele reage destemperadamente a eles.
Qual sua avaliação da relação do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso Nacional?
O presidente adotou uma relação que não reconhece a importância de formação de uma coalizão de governo e nem de buscar a formação de uma maioria de apoio aos seus projetos. É uma escolha que não leva em consideração a natureza singular do sistema presidencialista que resultou da Constituição de 1988.
Esse sistema envolve em nosso caso uma assimetria entre as funções do Executivo e do Legislativo. O Executivo tem muito mais poder para definir a agenda política do Congresso e do País. Creio que isso é um déficit da qualidade da democracia no País, pois restringe o Congresso como representação da diversidade social, política e ideológica da sociedade brasileira. Essas características do presidencialismo de coalizão tendem a inibir parte das funções do Parlamento.
Quais as consequências de o presidente ter rompido essa lógica?
Como o presidente não entendeu essas circunstâncias por razões ideológicas, e também por sua concepção das relações entre Executivo e Legislativo, abriu-se espaço para maior protagonismo do Congresso, principalmente da Câmara dos Deputados. Isso é positivo, ao meu juízo, por estar estimulando o Congresso a definir alguns temas da agenda de reformas que o Executivo não conseguiu coordenar, mas que são de interesse público.
Ainda que o ministro Paulo Guedes fale em liberalização da economia, o fato é que tivemos um processo extremamente difícil de aprovação da reforma da Previdência. E outros temas ainda dependem de articulação do presidente, o que não está ocorrendo. Então, digamos que, por um caminho torto, o Congresso está ganhando maior protagonismo, o que pode melhorar a representação da sociedade e, de algum modo, responder às expectativas dos eleitores.
O senhor está lançando um livro que fala de crises da democracia. Por que crises no plural?
O livro Crises da Democracia - O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos se refere a questões que, no meu entendimento, são déficits e distorções do sistema político brasileiro, os quais acabam frequentemente gerando crises. Crises às vezes permanentes, às vezes momentâneas. Uma delas é relativa à qualidade da representação. O desempenho do Congresso Nacional é, em certo sentido, paradoxal, pois os parlamentares produzem muito, mas aproveitam pouco a sua própria produção.
Entre 1995 e 2010, em um período de 16 anos - segundo as pesquisas que coordenei -, os deputados brasileiros apresentaram cerca de 27 mil projetos de lei. Não é pouco, ao contrário, é um bom indicador de enorme capacidade de produção, de proposição de leis e de políticas públicas, por parte dos representantes do povo. 25% desses projetos se concentraram na área de direitos de cidadania, ampliação, confirmação, reexame dos direitos de cidadania. Também nas áreas de economia, segurança e saúde, o que significa, portanto, um desempenho nada ruim. Contudo, desses 27 mil projetos, pouco menos que 3% se transformaram em leis.
O Congresso não conseguiu aproveitar a sua própria produção e devolver para a sociedade um volume maior de propostas que pudessem atender aos anseios, reivindicações e aspirações dos eleitores. Isso compromete o seu desempenho. Agora, segundo tudo indica, sob o impacto da mudança de relação entre o Executivo e o Legislativo neste ano, a Câmara parece que está enfrentando esse dilema. Mas ainda temos outros déficits a serem enfrentados.
Elas são 52% da população e cerca de 15% do Congresso. Alguns se perguntam se aumentando a presença feminina melhora a representação. Eu entendo que sim, pois abre a possibilidade de as mulheres apresentarem seus pontos de vista, não tanto quanto a uma estrita agenda feminista, mas quanto a temas que interessam a elas e ao País como um todo.
O senhor falou em luz amarela. Desde o início do mandato, críticos do governo afirmam que o presidente Jair Bolsonaro tem governado mais para o seu núcleo de apoio do que para todos os brasileiros, que não estaria assumindo as responsabilidades de representar o País como um todo. O que o senhor pensa disso?
Minha avaliação vai nessa direção. Ele não assumiu a responsabilidade de governar para o conjunto do País, para uma sociedade que tem enormes diversidades sociais, regionais, culturais e também ideológicas. Ele se distanciou desta diversidade complexa e plural que constitui a sociedade brasileira, se isolou, se relacionando quase que exclusivamente com pouco menos de um terço dos eleitores para tentar manter seu apoio. Nas eleições de 2018, Bolsonaro foi eleito com 58 milhões de votos, Fernando Haddad teve 45 milhões, e outros 41 milhões foram votos brancos, nulos e ausentes. Então, temos quase dois terços de eleitores que não votaram nele. Qualquer governo deveria levar isso em consideração.
Mas Bolsonaro se dirige, fundamentalmente, para o pouco mais de um terço que o elegeu e que, agora, talvez até seja de um pouco menos. Ele não está mostrando ter vocação para ser o presidente que o País precisa em um contexto de grave crise como o que vivemos. Buscar se relacionar com o conjunto da diversidade de forças sociais e políticas que forma o País seria algo normal em qualquer época e com qualquer governo, mas não é o que temos.
Ao invés de apresentar um projeto claro de país, não temos hoje a menor noção do que nos espera a curto, médio e longo prazos, a não ser uma ou outra proposição na área da economia, mas mesmo assim isso ainda é incerto.
Mudando de assunto para a oposição agora. Qual avaliação o senhor faz dos primeiros meses de Jair Bolsonaro e o papel da oposição?
O grande desafio da oposição é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. Isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.
A oposição tem feito críticas a propostas do governo que fazem sentido, como as que ajudaram a melhorar a reforma da Previdência, mas isso é insuficiente.
Até agora ainda não surgiu uma liderança individualizada, algum partido, ou uma coligação de forças capaz de oferecer uma perspectiva nova e consistente para o conjunto de País.
Há na sociedade um sentimento de que o governo vai mal, faz coisas que não fazem muito sentido, mas quanto a isso estamos sem alternativa, sem líderes capazes de interpretar o desafio do momento e oferecer perspectivas de futuro, que mostrem, por exemplo, que podemos melhorar e recomeçar a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Nas eleições de 2018, as lideranças políticas tradicionais deixaram um vazio que não respondeu à insatisfação que emergiu nas manifestações de 2013, insatisfação quanto às políticas públicas, os partidos e as lideranças partidárias. Foi esse vazio que abriu espaço para que Bolsonaro fosse eleito, mas a oposição não se atualizou e ainda não apresentou uma alternativa a tudo que ele representa.
O senhor vê alguma figura emergindo? O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já foi chamado de primeiro-ministro pelo então líder do governo na Câmara, Delegado Waldir (PSL-GO), no início do mandato. A deputada Tábata Amaral (PDT-SP) afirmou que havia um vácuo na "questão social" e apresentou um pacote de medidas com apoio de Maia...
Rodrigo Maia, de fato, tem mencionado que não basta fazer as reformas e adotar medidas econômicas se não houver cuidado, um olhar especial, para a questão social. Isso é um sinal novo. Aliás, tanto no caso do Rodrigo Maia como de Tabata Amaral, e de algumas outras figuras que estão procurando definir uma nova perspectiva para o País, como o ex-governador Paulo Hartung, do Espírito Santo, poderá vir uma resposta para a crise de lideranças que eu mencionei. Luciano Huck também está dando sinais nessa direção. Ele foi mencionado como possível candidato no ano passado, o que não se concretizou, mas está ligado a movimentos de renovação política, e está se aprofundando no conhecimento de temas importantes para o País e se posicionando quanto a esses desafios. Essas figuras podem vir a ser uma resposta ao diagnóstico de crise de lideranças. Podem apontar para uma mudança.
Mario Vargas Llosa: O enigma chileno
Diferente das outras revoluções ao redor do mundo, no Chile, a falha está na falta de igualdade de oportunidades e mobilidade social
Em meio a esta catastrófica quinzena para a América Latina – derrota de Mauricio Macri e retorno do peronismo com Cristina Kirchner, na Argentina, fraude escandalosa nas eleições bolivianas que permitirá ao demagogo Evo Morales eternizar-se no poder e agitações revolucionárias dos indígenas no Equador – há um fato misterioso e surpreendente que me recuso a relacionar aos antes mencionados: a violenta explosão social no Chile contra o aumento das passagens de metrô, com saques e depredações, 20 mortos, milhares de presos e, por fim, manifestação de um milhão de pessoas nas ruas contra o governo de Sebastián Piñera.
Por que misterioso e surpreendente? Por uma razão muito objetiva: o Chile é o único país latino-americano que travou uma batalha eficaz contra o subdesenvolvimento e cresceu de maneira admirável nos últimos anos. Embora eu saiba que os relatórios internacionais não comovem ninguém, lembremos que a renda per capita chilena é de US$ 15 mil anuais (e o poder de compra é de US$ 23 mil, de acordo com organizações como o Banco Mundial).
O Chile acabou com a pobreza extrema, e em nenhuma outra nação latino-americana tantos setores populares passaram a fazer parte da classe média. O país desfruta de pleno emprego e de investimentos estrangeiros e o notável desenvolvimento de seu empresariado fez com que seu padrão de vida aumentasse rapidamente, deixando o restante do continente para trás.
No ano passado, viajei pelo interior chileno e fiquei impressionado ao ver o progresso que se manifestava por toda parte: os povoados esquecidos de 30 anos atrás são hoje cidades prósperas e modernas, com qualidade de vida muito alta, frente aos padrões do terceiro mundo.
É por isso que o Chile quase deixou de ser um país subdesenvolvido: está muito mais próximo do primeiro mundo que do terceiro. Isso não se deve à feroz ditadura do general Augusto Pinochet. Deve-se ao resultado do referendo de 31 anos atrás, com o qual o povo chileno pôs fim à ditadura (e no qual, aliás, Piñera fez campanha contra Pinochet), e ao consenso entre esquerda e direita em manter a política econômica que trouxe um progresso gigantesco para o país.
Em 29 anos de democracia, a direita governou apenas cinco e a esquerda – quer dizer, a Concertación – 24 anos. Não seria impróprio afirmar, portanto, que a esquerda contribuiu mais do que ninguém para essa política – de defesa da propriedade e das empresas privadas, de incentivo aos investimentos estrangeiros, de integração do país aos mercados mundiais e, é claro, de eleições livres e liberdade de expressão – que propiciou o extraordinário desenvolvimento do país. Um progresso de verdade, não apenas econômico, mas também político e social.
Como explicar o que aconteceu? Para tanto, precisamos dissociar os últimos acontecimentos chilenos da revolta camponesa equatoriana e dos distúrbios bolivianos ocasionados pela fraude eleitoral. A que comparar a explosão chilena, então? Ao movimento dos coletes amarelos na França e ao mal-estar generalizado na Europa, os quais denunciam que a globalização aumentou as diferenças entre pobres e ricos de maneira vertiginosa e exigem uma ação estatal para detê-la.
É uma mobilização de classe média, como a que agita grande parte da Europa e tem pouco ou nada a ver com as explosões latino-americanas daqueles que se sentem excluídos do sistema. No Chile, ninguém está excluído do sistema, embora a disparidade entre quem já tem e quem está começando a ter alguma coisa seja grande, é claro. Mas essa distância se reduziu bastante nos últimos anos.
Falhas
O que falhou, então? Creio que foi um aspecto fundamental do desenvolvimento democrático liberal: a igualdade de oportunidades, a mobilidade social. Estas últimas existem no Chile, mas não de maneira tão eficaz a ponto de reduzir a impaciência, perfeitamente compreensível, daqueles que se tornaram parte da classe média e aspiram progredir cada vez mais graças a seus esforços.
Ainda não existe uma educação pública de primeiro nível, nem uma saúde que consiga competir com a privada, nem aposentadorias que cresçam no ritmo dos padrões de vida. Não é um problema chileno, é algo que o Chile compartilha com os países mais avançados do mundo livre.
A sociedade aceita diferenças econômicas, diferentes níveis de vida, somente quando todos têm a sensação de que o sistema, justamente por ser aberto, permite que cada geração tenha um notável progresso individual e familiar, ou seja, que o sucesso – ou o fracasso – esteja no destino de todos. E que isso se deva ao esforço e à contribuição da sociedade como um todo, não ao privilégio de uma pequena minoria.
Esta é, provavelmente, a questão não resolvida do progresso chileno, como argumentou, em um ensaio muito inteligente, o colombiano Carlos Granés, de cujas opiniões compartilho, em grande medida.
Nesta crise, a obrigação do governo chileno não é, portanto, recuar em suas políticas econômicas, como pedem alguns loucos que querem que o Chile retroceda até se tornar uma segunda Venezuela, mas completá-las e fortalecê-las com reformas na educação pública, na saúde e nas aposentadorias, para dar à maior parte da população chilena – que nunca esteve melhor do que agora ao longo de toda a sua história – a sensação de que o desenvolvimento abrange também a igualdade de oportunidades, indispensável a um país que rejeitou o autoritarismo e escolheu a legalidade e a liberdade. A justiça deve estar no coração da democracia e todos devem sentir que a sociedade livre premia o esforço, e não as conexões e os apadrinhamentos.
O segundo homem da “revolução venezuelana”, o tenente Diosdado Cabello, teve a desfaçatez de dizer que todas as mobilizações e protestos latino-americanos se devem a um “terremoto chavista” que está abalando o continente. Parece não ter conhecimento do fato de que 4,5 milhões de venezuelanos fugiram de seu país para não morrer de fome, porque, na Venezuela socialista dos dias de hoje, só comem aqueles que estão no poder e seus companheiros, ou seja, aqueles que roubam, traficam e gozam dos privilégios típicos que as ditaduras da extrema esquerda (e, muitas vezes, da direita) concedem a seus súditos submissos.
Não é impossível que agitadores venezuelanos, enviados por Maduro, tenham turvado e agravado as reivindicações dos indígenas equatorianos e até ajudado Cristina Kirchner a retornar ao poder, meio oculta sob o guarda-chuva do presidente Fernández. Mas, no Chile, está claro que não. É de se imaginar que a cúpula venezuelana esteja comemorando com champanhe francês as dores de cabeça do governo de Piñera.
Mas é inconcebível que a Venezuela seja o motor da revolta, pois foram os garotos que queimaram 29 estações do metrô de Santiago e defenderam o socialismo no século 21. O paradoxo é que essas crianças nem pagam a passagem do metrô: a carteira de estudante os isenta desse trâmite. / Tradução de Renato Prelorentzou
*É prêmio Nobel de Literatura
José Roberto Mendonça de Barros: Poderemos ter crescimento sustentado?
A convicção de que a relação dívida/PIB começará a se reduzir é fundamental para manter ajustadas as expectativas
Depois de uma profunda recessão e de três anos de crescimento, inclusive no ano que finda, a grande pergunta que se faz é se será possível voltarmos a crescer de forma sustentável.
Qual seria a pauta mínima para que esse evento viesse a ocorrer?
Minha resposta a essa questão é positiva, isto é, poderemos voltar a crescer se pelo menos três condições se verificarem simultaneamente. São elas:
1) Se houver convicção por parte dos agentes e analistas de que a relação dívida/PIB voltará a cair, mesmo antes de um crescimento mais acelerado da economia. Isso ocorrerá se, além da reforma da Previdência agora finalizada, o Congresso aprovar um mínimo de regras que garantam que as despesas correntes não cresçam em termos reais de forma quase autônoma, ao contrário dos últimos muitos anos.
A convicção de que a relação dívida/PIB, hoje mantida a duras penas com controles e contingenciamentos, começará a se reduzir é fundamental para manter ajustadas as expectativas e permitir a continuidade da redução da taxa Selic, dando suporte a planos de expansão do crédito, de gastos de consumo e investimento.
Embora a apresentação de uma proposta abrangente seja importante para dar uma visão da rota a seguir, parece-me fundamental ter foco numa primeira rodada (provavelmente a chamada PEC Emergencial) de sorte a consolidar um avanço fiscal que, com a Previdência, permita destravar mais rapidamente os pontos 2 e 3 apresentados a seguir.
Na minha percepção, no caso da reforma tributária ainda estamos longe de qualquer consenso, sendo preciso muito mais discussão dentro e fora do Congresso para chegarmos ao ponto de uma proposta que possa ir a voto. Embora ela seja fundamental para melhorar a alocação na economia e diminuir custos das empresas, o arranque inicial do crescimento pode ser dado sem ela.
Finalmente, vale repetir que se não houver esse avanço mínimo na pauta fiscal, a melhora no crescimento não será sustentável.
2) O segundo ponto necessário para crescer é, naturalmente, uma retomada dos investimentos. Esses terão de se concentrar na infraestrutura, dada sua precariedade e a grande capacidade ociosa no setor industrial.
Também é certo que, com as agruras fiscais do Tesouro, os investimentos só ocorrerão como consequência de concessões, especialmente na área de logística. O Ministério da Infraestrutura nos informa que vários projetos relevantes estarão prontos para ir a leilão no ano que vem. Se bem-sucedidos significarão canteiros de obras em 2021, reforçando os novos investimentos em petróleo que se iniciarão em 2020, consequência dos leilões já ocorridos e a ocorrer.
Também deveremos ter em 2020 novos investimentos em telecomunicações (desde que a ideologia não adie por pressão externa os leilões de 5G) e em saneamento, cujo novo marco regulatório deve ser aprovado pelo Congresso ainda este ano. Também alguma coisa em energia elétrica deverá avançar.
Note-se que em meu cenário não espero nada relevante na área de privatização (exceto grandes promessas), dadas as notórias dificuldades enfrentadas por aqueles responsáveis pelas áreas. Apenas vendas de lotes de ações no mercado de capitais podem ocorrer, a exemplo do que fez a Caixa Econômica com ações da Petrobrás. Bom para o Tesouro, mas isso não é privatização.
3) A última peça necessária para uma retomada sustentável é, exatamente, a que está mais garantida nos dias de hoje: uma importante redução no custo do crédito, como resultado da baixa inflação, da queda da taxa Selic, das regulações do Banco Central (como a redução dos depósitos compulsórios) e dos efeitos competitivos da expansão dos novos bancos digitais e de empresas de serviços financeiros.
Caso esses avanços ocorram, o PIB voltará a crescer mais aceleradamente a partir de 2021. Nossas projeções são: 0,9% neste ano, 1,6% no ano que vem e 2,8% e 3% para 2021 e 2022.
Os riscos desse cenário são dois: a situação internacional caminha para uma crise no futuro próximo e, mesmo sendo o Brasil um país bastante fechado, seremos afetados por ela. O segundo risco é o mais óbvio: conflitos políticos atrasando a agenda legislativa, elevando a incerteza e reduzindo o otimismo.
A conturbada semana que finda é o exemplo mais evidente do que estamos falando.
*Economista e sócio da MB Associados.
Roberto Romano: Diplomacia e fé pública
Triste é a chefia diplomática do País, exercida por quem não respeita a instituição
O Brasil sempre esteve no centro de ações diplomáticas. No Tratado de Tordesilhas, posto ao arbítrio da suprema autoridade na época, a Igreja Católica, começa a ser definido o nosso patrimônio geográfico. Desobedecendo aos ditames dessa partilha, os bandeirantes aumentam o território lusitano e criam fronteiras imensas a serem defendidas. Território expandido na América do Sul, na África e na Ásia, Portugal vive algo peculiar a toda a Europa: a concentração administrativa, bélica e política. Não difere o trato internacional português que nos séculos 16 e 17 segue a raison d’État. Unida à tarefa de tudo dirigir e observar no plano interno dos países, com proeminência do governante sobre os antigos poderes (nobres, eclesiásticos, jurídicos), a diplomacia defende os interesses do Estado junto aos demais e previne atos hostis à sua condição soberana.
Para socorrer as cortes europeias em sua lide guerreira e de conquistas, a diplomacia obtém eficazes resultados técnicos e políticos. As doutrinas sobre o afazer diplomático reúnem grandes nomes, não apenas na teoria, mas na prática. A França emergente e pioneira na centralização monárquica produz grandes nomes e textos sobre o assunto. É o caso de J. Hotman (Do Cargo e Dignidade do Embaixador), F. Callières (Da Maneira de Negociar com os Soberanos), Rousseau de Chamoy (A Ideia do Perfeito Embaixador), A. de Vicquefort (O Embaixador e suas Funções), Pecquet (A Arte de Negociar).
Um estudioso escreve sobre textos e pessoas dedicadas ao labor em pauta: “A diplomacia, nascida no século 15 nas repúblicas italianas, sobretudo em Veneza, permanece durante grande parte do século 16 uma instituição que se desenvolve, se modifica, se adapta gradualmente às circunstâncias. É um fenômeno em via de transformação com toda a vida, a variedade, as surpresas que comporta tal momento de evolução”. Das legações medievais esporádicas às permanentes ocorrem descobertas marítimas, constituição de grandes Estados, avanços muçulmanos, grandes guerras. Surgem as embaixadas permanentes. Desde 1455 Veneza mantém legados constantes em Roma, Nápoles, Florença e Milão. Outros países criam embaixadas fixas após a Paz de Westfalia, em 1648 (Cf. Romano, Roberto: A Paz de Westfalia, em História da Paz; Léon Van der Essen, Le Rôle d’un Ambassadeur au XVIe Siècle, Contribution à l’Histoire de la Diplomatie, em Révue Belge de Philologie et d’Histoire).
Com as soberanias nacionais e o trato dos poderes se dá o aprendizado institucional no campo diplomático. Escolhidos entre os próximos aos reis e papas, os legados assumem regras e costumes que, se não os integram numa burocracia moderna, definem padrões de pensamento e ação. A diferença entre a representação antiga e a nova é salientada por Jean Hotman. Na Antiguidade só havia motivo para tratar da legação sem discutir o embaixador. Os enviados “eram pessoas cheias de honra, virtude, experiência, tendo exercido os mais belos e grandes cargos da República (...) os doutos políticos jamais acreditaram que os príncipes e os Estados seriam tão imprudentes a ponto de honrar com uma embaixada – a qual importa ao Estado por inteiro – um incapaz que dela não fosse digno”. Embaixadores são “os que, na segurança da fé pública autorizada pelo direito das gentes, negociam com os príncipes ou repúblicas estrangeiros assuntos de seus senhores, representam com dignidade suas pessoas e grandeza durante a legação” (L’Ambassadeur, Coleção Eletrônica da Gallica, Biblioteca Nacional da França).
Hotman mostra quanto o cargo de embaixador foi cobiçado por espertalhões e comenta o caso de um jovem preso nos domínios palatinos que forjara cartas, assinaturas, o próprio selo do rei Tiago I para se apresentar como representante. Trata-se “do maior e mais ousado impostor visto em séculos”. Qual a causa do crime cometido pelo garoto? O prazer de ganhar celebrações, honras, agrados. E qual o motivo para o punir com a morte? As “supostas legações” não apenas ofendem os soberanos, mas prejudicariam povos e Estados ao forjar contratos e compromissos bélicos, econômicos, religiosos. Se lembramos que, para citar Hobbes, as relações internacionais se situam no estado de natureza onde não existe direito sólido, a desconfiança impera, ao criar uma versão fraudulenta do governante o impostor viola a integridade do soberano, macula todos os seus atos, sobretudo a fé pública, piora os tratos entre os seres humanos da maneira mais ampla. (Cf. Hampton, Timothy: Fictions of Embassy).
O Brasil surge unido diretamente à moderna diplomacia. Em sua gênese como poder soberano temos as marcas da raison d’État absolutista que precisou gerir enormes extensões de território e imensas fronteiras com povos nem sempre bem dispostos em relação a ele. Qualquer que seja a explicação para os fatos bélicos na colônia e no Império, jamais nossos exércitos cumpriram sua missão sem diplomatas exímios. Aqui foi efetivada uma forma de trato internacional refinado, capaz de dialogar com pequenas e grandes potências. De Rio Branco a Rui Barbosa, chegando a San Tiago Dantas e João Guimarães Rosa, Luiz Martins de Souza Dantas, Marcílio Marques Moreira e outros, o País se ampara na escala planetária. É por tais motivos que causou espécie a indicação de jovem nada afeito aos saberes diplomáticos para embaixada em país poderoso. Talvez o vexame tenha sido afastado.
Triste é a chefia diplomática do País, exercida por alguém que não demonstra visão cosmopolita, prende-se a uma ala política e não respeita a própria instituição. Retirar do espaço público o busto de San Tiago Dantas por motivos injustificáveis, censurar o prefácio de um livro sobre Alexandre de Gusmão, admoestar um juiz da Suprema Corte e outras façanhas fazem o Itamaraty perder as raízes do nosso próprio Estado. Como disse Hotman, é preciso que os responsáveis pela diplomacia tenham o apoio da fé pública, mais ampla que as facções, e sejam garantidos pelo direito das gentes, mais relevante do que as doutrinas mantidas pelo poder ocasional.
* Professor da Unicamp, é autor de 'Razões de Estado e outros estados da razão' (Perspectiva)
Fernando Henrique Cardoso: A esfinge e os líderes
É do interesse da maioria um governo que respeite o mercado e as necessidades do povo
Nos últimos artigos tenho insistido na necessidade da formação de um “centro democrático progressista”. O que é isso? Desde logo, não se trata de um “centrão”, ou seja, de um agrupamento de pessoas que dominam legendas de partidos e, na prática, se unem para apoiar ou rejeitar propostas do governo, cobrando um preço clientelístico. O “centro democrático” tampouco pode ser um agrupamento anódino, que ora se define como favorável ao povo e esbanja recursos, como os populistas, ora se comporta de modo austero, com bom manejo das contas públicas, mas sem olhar para o povo, como os “neoliberais”. Então, o que seria?
Escrevi sobre o “liberalismo progressista” dizendo que ele se diferencia do “liberalismo conservador, de corte autoritário”. Neste, o mercado é o deus ex-machina que molda a sociedade. O primeiro respeita os mercados, sabe que as economias contemporâneas são “de mercado” (quase sem exceção), mas sustenta que elas não dispensam a regulação e mesmo a ação do Estado na economia. A atuação estatal, não sendo a única e nem mesmo a principal mola do crescimento econômico, continua a ser necessária para evitar que a desigualdade mine a democracia e o crescimento.
Na prática, o risco maior do liberalismo conservador, de caráter autoritário, é o de derrapar para formas abertamente não democráticas de decidir e assim aumentar o fosso entre dirigentes e dirigidos, abrindo espaço para manifestações populares antagônicas ao poder. Já o risco do progressismo é se transformar em populismo e, com o propósito ou o pretexto de servir ao “povo”, desorganizar as finanças públicas, levar à inflação e ao desemprego. O país cai na estagnação, abrindo espaço para a “direita” (ou seja, para formas disfarçadas ou abertas de autoritarismo).
Não terá sido um vaivém entre essas formas de liberalismo, autoritarismo e populismo (mais do que o risco de fascismos ou comunismos) o que vem caracterizando boa parte das formas políticas do mundo contemporâneo? Desse vaivém escapam os países onde liberdade e democracia não formam parte do ethos nacional (os que não são ocidentais ou ocidentalizados). A oscilação acima referida, e mesmo a dúvida sobre o valor da democracia representativa, tem aumentado muito, afetando nações de tradição liberal. Não faltam autores que chamam a atenção para estes desdobramentos: a crise das democracias, como morrem as democracias, o povo contra as elites, e assim por diante, dão título a muitos dos volumes que tratam dos fenômenos políticos contemporâneos.
Por trás desse desaguisado estão os novos meios produtivos e as formas contemporâneas de comunicação, que moldam as sociedades. A primeira vez que me dei conta disso foi em maio de 1968, quando eu era professor da Universidade de Paris em Nanterre. Anos mais tarde, procurando teorizar a esse respeito, disse no discurso em que transmiti a presidência da Associação Internacional de Sociologia, em 1986, que os fios desencapados da sociedade podem se tocar de repente, produzindo curtos-circuitos fora da polaridade tradicional “proprietários versus trabalhadores” e dos partidos que no passado os representavam. Havendo comunicação em rede, as faíscas que se acendem num ponto se propagam para os demais e o protesto atravessa os limites entre classes e segmentos sociais, contaminando amplos setores da sociedade. Essa dinâmica do protesto e a velocidade da sua expansão já eram perceptíveis em 1968. Foi somente quando a TV e o rádio passaram a cobrir as manifestações estudantis que estas entraram em contato com as negociações sindicais, que antes se davam à parte e à distância.
Que dizer agora, quando a internet e as redes conectam as pessoas e saltam as organizações? Se Descartes dizia cogito ergo sum (penso, logo existo), hoje a frase síntese é outra: estou conectado, logo existo. Mais ainda: as forças produtivas contemporâneas, com robôs e inteligência artificial, aumentam a produtividade, concentram a renda e não geram empregos na proporção da procura por trabalho, a despeito da redução da taxa de crescimento da população. E graças à internet muitos ficam sabendo do que acontece.
Não será esse o fantasma por trás dos “coletes amarelos” de Paris, dos partidários do Brexit na Grã-Bretanha ou dos eleitores de Trump que querem ver os Estados Unidos great again? E não haverá risco, em nuestra America, de confundir a Frente Ampla (eventualmente vitoriosa no Uruguai), ou os peronistas argentinos e agora as manifestações no Chile, que lembram o Brasil de 2013, e mesmo no Equador ou na Bolívia, com uma luta tradicional da “esquerda” contra a “direita”, como se ainda estivéssemos nos tempos da guerra fria? A guerra agora é outra: menos desigualdade, fim da corrupção política, mais empregos e melhores salários. E quando há diminuição do ritmo de crescimento, como lembrava Tocqueville sobre a Revolução Francesa, a insatisfação eclode forte, como atualmente no Chile.
Dito isso, o centro liberal precisa ser progressista não apenas porque a igualdade de oportunidades e a garantia de um patamar de condições de vida dignas para todos são essenciais para uma democracia estável e uma sociedade civilizada, mas também porque vivemos outro momento do capitalismo, no qual as políticas públicas devem ser complementadas pela ação da sociedade civil. É do interesse da maioria existir um governo ativo e com rumo. Capaz de respeitar as regras do mercado, mas também os interesses e necessidades do povo. E estes não se resolvem automaticamente na pauta econômica, requerem ação política e ação da sociedade.
Não será esse o miolo de um centro radicalmente democrático e economicamente responsável? Talvez, mas na vida política não basta ter ideias, é preciso que alguém as encarne. Ou aparece quem tenha competência para agir e falar em nome dos que mais precisam ou a esfinge nos devora.
* Sociólogo, foi presidente da República
Raul Jungmann e Flávio Basílio: Por uma diplomacia ativa de defesa e inovação
É essencial que os empreendedores contem com apoio para iniciarem seus projetos
No Brasil, a agenda de desenvolvimento industrial é normalmente associada a questões relacionadas a preços relativos, sejam eles derivados de câmbio ou de juros, ou mesmo vinculados a algum mecanismo de proteção ou de reserva de mercado. Mas ao tomarmos como exemplo a economia americana, sempre associamos o desenvolvimento industrial a questões relacionadas à inovação, ao capital humano e ao ambiente de negócios.
Contudo um importante canal de transmissão do desenvolvimento passa despercebido por parte dos analistas e estudiosos: o papel das inversões e das compras militares. Como o processo de inovação é extremamente arriscado e dependente de vultosos investimentos, inclusive no campo da pesquisa básica, é essencial que os empreendedores contem com algum apoio para iniciar seus projetos. Fundada em 1958, a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa) tem esse objetivo e conta com um orçamento para 2019 de US$ 3,44 bilhões.
O modelo Darpa é focado em inversões disruptivas, com foco em pesquisa aplicada no desenvolvimento da alta tecnologia e na resolução de problemas. Outra característica fundamental do modelo é a gestão de projetos ou programas, que são contratados após seleção ou pit por um período limitado, geralmente de três a cinco anos. Com isso se estabelece um fluxo contínuo de novos programas e novas ideias, de modo a transformar questões abstratas em realidade no menor espaço de tempo.
Tendo em vista que os investimentos sob a égide da Defesa não estão sujeitos a regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), toda essa rede de apoio e de inovação proporcionada pela Darpa e pelas inversões militares não podem ser questionadas pelos países concorrentes como práticas anticompetitivas. Esse mecanismo foi um motor de aceleração do desenvolvimento da Embraer, por exemplo.
Para desenvolver a indústria de defesa é indispensável a realização permanente de missões oficiais de alto nível aos países importadores, uma vez que esse mecanismo abre portas e mercados que não podem ser acessados por iniciativa de empresas, mas de governos. Com efeito, é preciso exercer na plenitude a força do Estado brasileiro numa verdadeira diplomacia ativa de defesa para que tenhamos sucesso na venda dos nossos produtos.
Assegurar um programa permanente para empresas, com participação de startups e o apoio do Estado direcionado para inovação e para a mitigação do risco de demanda com a aquisição do primeiro lote de produção, pode contribuir para o desenvolvimento desse modelo. Como resultado adicional o Brasil poderá retomar o caminho perdido no campo da ciência, da tecnologia, da inovação, do desenvolvimento produtivo e sustentável.
Outro importante fator de desenvolvimento do setor é o Regime Tributário da Indústria da Defesa (Retid), efetivado com a promulgação da Lei 12.598, gestada no cenário de expansão fiscal entre 2012 e 2016, com o desenvolvimento de inúmeros projetos estratégicos no Brasil. Foi o período do lançamento do programa de submarino de propulsão nuclear (Prosub), do programa de aquisições de aeronaves de combate (FX-2), do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), da aquisição dos blindados Guarani, do programa de defesa cibernética, dos helicópteros de transporte pelo programa H-XBR, do satélite geoestacionário de defesa e segurança (SGDC), do projeto do míssil A-Darter e do cargueiro tático KC-390, entre outros.
Com toda essa movimentação, a atividade na indústria de defesa brasileira foi intensa e a euforia dos empresários levou à entrada de novos players no mercado e à ideia de que as aquisições militares poderiam sustentar essa renascente indústria. Contudo em 2016 o Brasil vivenciou a maior retração acumulada da atividade econômica da História. Por muito pouco, vários dos projetos iniciados não foram suspensos. Nesse sentido, era preciso pensar “fora da caixa” para minimizar o impacto adverso e manter acesa a indústria de defesa.
A necessidade de readequação dos contratos firmados alargou o cronograma de encerramento dos projetos, causando importantes impactos na cadeia produtiva e na geração de emprego e renda. Nesse período, importantes empresas estratégicas fecharam, foram redimensionadas ou incorporadas por outras empresas, como nos casos da Mectron, da Odebrecht Defesa e Tecnologia e de outras da Base Industrial de Defesa (BID).
Como parte da reação, todo o arcabouço regulatório foi revisitado por nós. Mas, apesar da isenção de impostos (PIS, Cofins e IPI), apenas cinco empresas utilizavam o Retid. Além disso, a dificuldade de cálculo da renúncia tributária causava incertezas nas empresas, de modo que o benefício desenhado em 2012 causava pouco ou nenhum efeito sobre a BID. Para resolver esse problema em 2017 o Ministério da Defesa conduziu com a Receita Federal uma série de inovações e benefícios para a indústria.
Dentre essas inovações, o cálculo da isenção tributária passou a ser estendido a toda a cadeia produtiva, e não apenas ao último elo de produção. Além disso, empresas de defesa com capital estrangeiro (não estratégicas) também se beneficiaram da medida. O resultado, somada a inclusão dos produtos de defesa no ajuste Confaz n.º 95, é uma redução de tributos de até 69%!
É bem verdade que as aquisições de produtos de defesa ainda sofrem com a perversa assimetria tributária em relação aos produtos importados, que não pagam nenhum imposto. Mas é certo que a medida incentiva o desenvolvimento da indústria de defesa e minimiza a distorção de se ter um regime tributário diferenciado sem nenhuma utilidade real.
* Raul Jungmann e Flávio Basílio são, respectivamente, ex-ministro da Defesa, da Segurança Pública e da Reforma agrária; e PH.D. em economia, foi secretário Nacional de Produtos da Defesa (Seprod).