O Estado de S. Paulo

O Estado de S. Paulo: 'Não podemos achar que segunda instância é a única urgência do Brasil', diz Maia

'Qualquer resposta precipitada que o Parlamento der, vai ser o responsável por gerar mais instabilidade política', diz o presidente da Câmara

Mariana Haubert e Camila Turtelli, de O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que a discussão sobre a prisão após condenação em segunda instância “não é a única urgência do Brasil” e defendeu cautela na análise do assunto pelo Congresso.

“Qualquer resposta precipitada que o Parlamento der, vai ser o responsável por gerar mais instabilidade política”, afirmou o deputado, em entrevista exclusiva ao Estado.

Mesmo assim, Maia admitiu liberar o avanço do tema na Câmara porque o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, transferiu parte da responsabilidade da Corte para o Legislativo.

“Ele não terminou o julgamento quando ele diz 'o Congresso pode mudar'", disse. “É óbvio que, se ele não entende isso como uma afronta à regra da harmonia, não sou eu que vou dizer que esse tema não poderá ser debatido na Câmara”.

Maia avaliou o discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após deixar a prisão, como "muito raivoso" e saiu em defesa do presidente Jair Bolsonaro. "Essa crise não foi inventada.

Vivemos dois anos de recessão com a Dilma", avaliou, em uma referência à presidente cassada, Dilma Rousseff.

Antes do julgamento do Supremo Tribunal Federal, o sr. disse que a PEC da segunda instância poderia ser uma afronta à decisão da Corte. Depois, afirmou que poderia pautá-la. O sr. é contra ou a favor a aprovação dessa proposta?

São coisas diferentes. Não sabíamos como o STF ia julgar. O que tramita na Câmara é uma proposta de emenda (PEC) que muda o artigo 5º da Constituição, que é flagrantemente inconstitucional, porque é cláusula pétrea. Ninguém está discutindo isso. Nem aqueles ministros que votaram pela segunda instância acham plausível que uma mudança no artigo 5º, inciso 57, possa ser feita. Eu esperava que o resultado do julgamento pudesse cercar a questão e deixar claro que isso não era possível de ser modificado. Mas o Supremo se ateve ao artigo 283 (do Código de Processo Penal) e, no final, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, de alguma forma transferiu a responsabilidade do julgamento dele. Ele não terminou o julgamento quando diz “o Congresso pode mudar”.

Foi, então, a fala do ministro Toffoli que deu essa liberdade para o sr. aceitar o avanço da PEC na Câmara?

Na hora que o presidente do STF compreende que o julgamento não acaba na decisão do Supremo e transfere para o Legislativo... É óbvio que, se ele não entende isso como uma afronta à regra da harmonia, não sou eu que vou dizer que esse tema não poderá ser debatido na Câmara. Mas, por lei eu sempre achei inconstitucional. Por PEC, tem de ser algo que respeite o que é cláusula pétrea na Constituição. Se (a proposta) for aprovada modificando o artigo 5º, vamos manter a instabilidade política. Se queremos dar uma solução definitiva para a 2ª instância, precisamos pensar em alguma mudança constitucional.

Qual seria a solução?

Há pessoas que acham que é mexer na interpretação do que é o trânsito em julgado. Uma outra tese é que poderia se mexer no recurso especial. Para gente seria muito fácil votar o artigo 5º, com urgência. E aí vai para o Supremo o quê? Uma matéria flagrantemente inconstitucional e vamos estar apenas empurrando apenas o problema para o STF.

Deputados anunciaram que vão obstruir outras votações até que a PEC da segunda instância seja votada. Isso pode atrapalhar o andamento das propostas econômicas?

Obstruir tudo é um erro. O Brasil não tem apenas a distorção na morosidade do Judiciário. O saneamento público está pronto para ir ao plenário. Vamos deixar de votar? Qualquer resposta precipitada que o Parlamento der, vai ser o responsável por gerar mais instabilidade política. Não podemos de forma nenhuma achar que essa é a única urgência que o Brasil tem. É uma das. O trabalho da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) é melhorar o texto. Falei já isso para o presidente do colegiado, Felipe Francischini (PSL-PR): ‘Acho que vocês deveriam melhorar, buscar outro caminho, outro artigo da Constituição, para que não se faça apenas um movimento político pragmático’.

Como deve ficar o pacote do ministro da Justiça, Sérgio Moro?

O que ele tratou de segunda instância por lei ficou claramente inconstitucional. Todo resto basicamente ele melhora, mas não resolve. O que vai resolver é a gente ter uma consciência de que precisa uma solução definitiva. Da mesma forma que a frase final do presidente Toffoli estendeu o julgamento para o Parlamento, o Parlamento não deve estender a votação para o Judiciário. Isso só vai gerar insegurança e isso só atrapalha a possibilidade de o País voltar a crescer.

A pressão em torno desse tema pode atrapalhar o andamento de outras pautas, como a reforma tributária?

Não vai ser um debate simples. Vai ter conflito em um momento em que o Parlamento está vivendo momento de muita tranquilidade na relação entre os partidos de direita, esquerda e de centro, mas foi um desafio que foi colocado. Até hoje era um momento de tranquilidade, excluindo alguma polaridade entre PSL e PT. É o melhor momento da Câmara, com certeza, desde que eu sou presidente.

O que o sr. achou do discurso do ex-presidente Lula de sábado, com os ataques ao presidente Jair Bolsonaro?

Foi um discurso muito raivoso, ruim. Ele é um ex-presidente da República, o presidente Bolsonaro não tem culpa pelos problemas que o Lula vive. É um discurso já politizando eleitoralmente e é ruim. O que mais me impactou é quando ele fala que nós não temos que nos defender, citando o Chile, (dizendo) ‘temos de atacar’. O Brasil já tem muitos problemas para ouvir um discurso desses. Algumas pessoas ficaram preocupadas com a virulência do discurso e vão aguardar as próximas semanas. Como também são os primeiros dias, é aguardar e ver qual vai ser a ação dele nos próximos, para ver se vai ser em um caminho de inviabilizar, de atrapalhar o governo.

O sr. disse não acreditar que o Supremo tornaria Lula elegível. Com o novo entendimento do STF sobre segunda instância e a soltura do ex-presidente, acha que esse será o próximo passo?

Acho que não. Não gosto de ficar falando sobre essas coisas, não gosto de personalizar. Não gosto de que seja "Lula Livre", "Lula Preso". Nesse caso do Lula é quase um Flamengo x Corinthians. Então, nós que estamos aqui olhando o jogo, temos que ter cuidado para não deixar que as torcidas gerem conflitos ainda maiores do que já aconteceu nos últimos anos.

O senador Humberto Costa (PT-PE) disse, em entrevista ao Estado, que a esquerda e o centro deveriam se unir já em 2020 para evitar um avanço da extrema-direita. O sr. concorda?

Eu concordo em dialogar com todos que tenham convergência com a agenda que eu considero vital para o Brasil. Infelizmente, o PT não considera a agenda das reformas, pelo menos até o momento, pelo resultado da Previdência. Mas acho que na reforma tributária vamos ter convergência. Mas é difícil pensar um projeto da esquerda com o centro, na verdade, a centro-direita. Acho que o centro e a centro-direita é que têm de procurar um projeto. Um projeto que não seja dos extremos. É mais fácil construir com a centro-esquerda, mais fácil ter convergência com o PDT do que com o PT. Não me parece possível que eu consiga estar com o PT no Rio, São Paulo ou Salvador.

Então é impossível um diálogo do DEM com o PT em 2022?

É. Com o Lula não é possível. O DEM não tem condição. Fomos oposição ao governo do PT, respeitamos o partido, só não temos condição de apoiar o candidato à Presidência. Mas já estivemos com o PT em algumas eleições pontuais.

O sr. começa a vislumbrar um caminho para concorrer à Presidência da República?

Quero participar de um projeto em 2022. Não tenho a pretensão de achar que meu nome é majoritário no Brasil hoje. Meu nome melhorou muito. Eu tinha 8% de ótimo e bom no Datafolha e no último, tive 25%. É um número considerável, um ator relevante e posso ajudar. Agora, acho que está muito longe para eu falar ainda que sou candidato a alguma coisa. Em 2018, ninguém me queria como vice, hoje muitos me querem. Daqui a pouco vou dizer para todos que me querem como vice que me apoiem e eu sou o candidato (risos). Mas acho que está longe.

Existe de fato uma articulação para se aprovar a reeleição do presidente da Câmara? O sr. apoia?

Não. Essas coisas de você mudar a Constituição para se manter no poder é muito perigosa. Eu não penso e não articulo e não tenho pretensão. Chega um momento em que é preciso respeitar um ciclo.

Recentemente o sr. comparou o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Heleno, ao escritor Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo. O sr. está decepcionado com ele? (Ao comentar declaração do deputado Eduardo Bolsonaro sobre um "novo AI-5", Heleno disse ao 'Estado' que 'se ele falou, tem de estudar como fazer')

Sou um grande admirador dele. Ele me mandou uma mensagem depois da minha crítica. Eu disse “Ministro, te peço desculpas, mas eu não tinha como. Para mim, o senhor acabou cometendo um erro, que é primário na política, e que eu aprendi com meu pai, logo com 26 anos, que não se usa ironia na política e a primeira resposta do senhor para mim foi uma ironia. Mas passou para a sociedade como se fosse uma coisa possível e, depois, o senhor ainda falou aquela coisa de que ninguém quer mudar nada, que não querem votar o projeto do Moro. Quase que eu falei que estou tendo de votar aqui, com essa pressão toda, o projeto das Forças Armadas, (então) o senhor pode querer que eu coloque isso para o último da fila e coloque do Moro para frente”. Nossa expectativa sempre foi de que ele conseguisse cumprir um papel de apoio ao presidente. Acho que essa entrevista (ao Estado) foi ruim, a ida à manifestação foi péssima. Quanto mais pontes o governo construir, mais forte vai ficar.

Após o deputado Eduardo Bolsonaro defender ‘um novo AI-5’ o sr. divulgou nota dizendo que a Constituição tinha instrumentos para punir quem não atente aos seus princípios. Essa punição se dará no Conselho de Ética da Câmara?

Não sei, porque não sou do Conselho de Ética. Sou deputado, não sou juiz. O AI-5 é um termo muito forte para um deputado brasileiro falar. A nota precisava ser dura para mostrar a ele que temos imunidade do que falamos, mas precisamos ter limite em relação ao que juramos que é a Constituição. Um País sem respeito a suas instituições democráticas vai caminhar para onde caminhou a Venezuela, que sei que não é o que Eduardo pensa. O tema é duro e para mim, pessoalmente, é muito pesado. Meu pai foi preso, torturado e exilado. A anistia foi pra todos e esse assunto tem de estar na nossa história para não cometermos os mesmos erros. O mais importante depois foi ele ter compreendido e ter pedidos desculpas. Da minha parte sim, foi o suficiente e espero que da parte do Conselho de Ética também, mas eu não estou no colegiado.

Presidente, em algumas situações neste ano, como na aprovação da reforma da Previdência, o sr. não escondeu lágrimas. Na semana passada, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), chorou na tribuna e foi criticada por colegas por supostamente ter demonstrado fraqueza. Há políticos que veem esse choro como demagogia para atrair apoio. Como o sr responde? O sr se considera um chorão?

Você nunca me viu chorar quando estou em conflito, fazendo uma disputa de um tema com muita agressividade. Só me viu chorar em momentos positivos da minha vida. Sou assim. Momentos como aquele da Previdência são históricos e geram emoção. É meu jeito de ser. Sempre fui assim, desde criança. Não vou esconder e ficar tomando calmante para não chorar. Uns que tratam isso como demagogia porque são machistas e acham que homem não chora, o que é algo meio ridículo. Entendo porque a Joice chorou. Ela não estava acostumada com aquilo vindo de pessoas que eram suas aliadas e é muito chocante e impactante. Principalmente para uma mulher, uma coisa machista. Uma coisa grosseira.

O escritor Yuval Harari esteve na Câmara e criticou o movimento de "políticos autênticos", que imediatamente dizem as coisas que vêm à cabeça. Foi um recado para a classe política brasileira?

Não acho que ele veio ao Brasil para falar para grupo A ou grupo B. Ele veio falar sobre o que está compreendendo, o que vai ser esse mundo. Ele fala que quem vai comandar a política é quem vai comandar o fluxo de dados. Se os governos controlarem os dados, corre-se o risco de se ter quase ditaduras. Esse é um debate que vai ter de se fazer no Parlamento com muita transparência e participação de todos. As plataformas digitais têm ojeriza a esse debate, sobre até onde vai a responsabilidade delas.

Existe algum projeto no Congresso sobre isso?

Temos a CPI Mista das Fake News, que deveria olhar muito mais para isso do que para o passado, sem querer contestar resultado eleitoral porque isso é uma besteira. A eleição foi legítima. (Devemos) ver o que está acontecendo no mundo e ver o que os outros Parlamentos estão pensando. Devemos ter um projeto e tentar discutir isso na CPI. Vai ter polêmica.

Mas o sr. acha que a CPI vai conseguir ter algum resultado prático?

Acho que deve olhar menos a eleição de 2018 e mais a preocupação com o futuro, exatamente nessa questão dos dados. Foi um erro do ex-presidente Michel Temer (MDB) ter encaminhado a Agência de Dados vinculada ao governo. É óbvio que não pode ser vinculado. Porque dados é o que vai mover a política. Também não poderia ficar na mão de uma empresa privada. Uma alternativa é uma agência de Estado, e não de governo. Tem de se pensar em um formato.


Celso Lafer: Constituição e a supremacia do governo das leis

A ação política de governantes, no estado de direito republicano, está submetida à conformidade às normas constitucionais

O Brasil comemora, nesta sexta-feira, 130 anos do regime republicano, que modelou as instituições no âmbito das quais vivemos. É momento oportuno para clarificar o conceito de república, pois “as palavras se torcem conforme o interesse e o tempo”, como dizia Cecília Meirelles.

No Vocabulário de 1728 de Bluteau, “repúblico é o zeloso do bem da República, o amigo do bem público”. A tradição do republicanismo está alinhada com esta acepção no mapa do saber dedicado à discussão do bom governo. Tem características próprias, distintas de outras tradições, como a liberal, a democrática e a socialista, e não se cinge apenas à afirmação da liberdade e da igualdade e à oposição à tirania. Confere prioritário valor prescritivo ao tema do bem público como critério ordenador da clássica preocupação com o bom governo.

Parte da distinção clara entre res publica, o bem público, que é o comum e se desdobra no tempo, distinto do específico, que não é o comum a todos: as coisas privadas, domésticas e familiares. Estas têm as urgências dos interesses do curto prazo do ciclo da vida, nem sempre sensíveis ao bem comum.

Para Cícero, um dos inspiradores da tradição do republicanismo, o comum é o bem do povo (res populi). E o povo (o populus) não é uma multidão, mas sim um grupo numeroso de pessoas, associadas pela adesão a um mesmo direito e voltadas para o bem comum.

A superioridade do governo das leis para promover o bem público em contraste com o governo dos homens é conhecida discussão do pensamento político da Grécia. Adquiriu alcance adicional no mundo romano pelo papel que nele teve o Direito. Lex é uma palavra que tem como base a ideia de relação, de convenção, que liga os homens entre si e se efetiva, não através de um ato de força, mas sim politicamente através de um arranjo ou acordo mútuo. Daí, em matéria de governo das leis, a convergência republicana entre o consensus juris (o consenso do direito) e a communis utilitatis (a comum utilidade), que deve alcançar o povo como o destinatário do que deve ocorrer na res publica.

Cícero destaca, ainda, que a permanência do consensus juris do governo das leis requer que atendam à justiça e à igualdade. É também dele a conhecida formulação da relação entre o governo das leis e a liberdade: “Devemos ser servos da lei para podermos ser livres”.

Montesquieu deu ao tema do governo das leis uma feição própria no âmbito do republicanismo, introduzindo a diferença entre distintos princípios (honra, virtude, medo) que, de acordo com as características dos regimes, norteiam o seu modo de governar. Aponta que é a virtude que inspira a ação numa república, concebendo-a como um princípio que transita pela devoção do indivíduo à coletividade e pelo respeito às leis. O respeito às leis, para Montesquieu, assegura a liberdade na medida em que o poder de julgar for separado do Legislativo e do Executivo. Daí sua consagrada contribuição ao tema da separação de poderes, ponto de partida da crítica à concentração de poder dos absolutismos. A função jurisdicional como uma função autônoma do Executivo e do Legislativo permite não apenas a superioridade do governo das leis, mas o controle da supremacia das leis na gestão governamental.

Na perspectiva da tradição do republicanismo (no caso convergente com a liberal e a democrática), o desdobramento conceitual da sua visão é o constitucionalismo.

O constitucionalismo é a forma institucional de consagrar, por meio de uma constituição escrita, as “regras do jogo” do governo das leis, em cujo âmbito não há diferença entre governados e governantes (como no governo dos homens) e o poder dos governantes é exercido por normas jurídicas vinculantes. Daí porque a ação política dos governantes, num estado de direito republicano, estar submetida não apenas aos juízos de eficiência ou moralidade, mas também ao juízo de conformidade às normas constitucionais.

Este é o alcance do controle pelo Judiciário da constitucionalidade das leis e, nesta esfera, a tutela dos Direitos Humanos positivados nos textos constitucionais essencialmente em defesa dos governados. A guarda da constituição expressa a supremacia do governo das leis e foi adquirindo eficácia com a generalização do judicial review.

O governo das leis assegura a justiça? A justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito, pois a aspiração da justiça permeia a vida do Direito. A noção de justiça, no entanto, comporta mais de uma dimensão, inerentes ao lema liberdade, igualdade, fraternidade. São tuteláveis numa república, desde que atendidos os méritos do devido princípio legal do governo das leis. No seu contexto, a justiça aponta para as virtudes da legalidade (a conformidade da conduta com a norma jurídica) e pressupõe que as normas estejam voltadas para o bem público, lastreador da convivência coletiva. É o que faz da legalidade republicana uma qualidade no exercício do poder.

* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001- 2002)


Eliane Cantanhêde: Fogo no circo

A polarização do Brasil extrapola fronteiras e incendeia a região

A Bolívia ia bem à esquerda, o Chile era um exemplo na centro-direita e, de repente, os dois regimes implodem, com o povo na rua, a oposição fortalecida, os governos acuados. O que há em comum entre eles? A insatisfação crônica da sociedade, que agora usa o poder das redes sociais e cria falsos mitos para por fogo no circo.

Foi-se o tempo dos movimentos que se alastravam em ondas e na mesma direção na América do Sul. Hoje é de cada um por si, com eleições incertas no Uruguai, a volta do nefasto kirchnerismo na Argentina e protestos grandiosos no Chile, Bolívia, Equador e Peru. Sem falar na estraçalhada Venezuela.

O mundo abriu os olhos. E, quando se olha para a América do Sul, depara-se com o Brasil, o maior, mais rico e mais populoso país da região, o que costumava dar as cartas e agora vive suas próprias tensões internas, sujeito aos reflexos das crises ao redor.

Aqui também se dá, como nos vizinhos, mas sem confrontos de rua, tiros e mortes, o grande embate entre a velha esquerda e a nova direita, entre o populismo de Lula e um Bolsonaro que tenta se equilibrar entre o seu reacionarismo e o neoliberalismo de Paulo Guedes.

Os 13 anos de Evo Morales na Bolívia trouxeram desenvolvimento e inclusão social. Enquanto o Brasil passou por dois anos seguidos de recessão e patinou em 1% de crescimento ao ano, a pequena Bolívia, país mais pobre da região, atingiu a média de 4,9%. E, se o Brasil atravessa governos e regimes à direita e à esquerda sem efetiva inclusão social, organismos internacionais atestam que a Bolívia reduziu a miséria à metade.

Então, o que deu errado? O grande erro de Evo Morales, o mais pragmático dos “bolivarianos”, foi institucional. Foi a crença de que só ele é capaz de “salvar” o país. Foi assim, seguindo os passos de Hugo Chávez, que ele driblou a decisão popular contra um quarto mandato e ganhou num Judiciário amigão o direito de concorrer. Daí à denúncia de fraude foi um pulo.

A sociedade reagiu dando palanque para os líderes de oposição e pedindo a interferência ainda velada das Forças Armadas. Mas a guinada começa mal. Além do gesto da renúncia, Morales pediu aos adversários que pacifiquem a nação, mas o oposicionista Luís Camacho radicalizou, exigindo a prisão dele e seus aliados. Para que? Se Morales, o vice, o governo e a cadeia sucessória ruíram por inteiro, isso só serve para acirrar os ânimos. Vitoriosos devem ter grandeza.

No Chile, como já explorado, a questão não foi política e social, na medida em que os indicadores iam bem, mas o povo ia mal. Diz-se que quem tem fome tem pressa. E quem está na base da pirâmide grita que as fórmulas de crescimento não estão gerando igualdade e inclusão.

Os ingredientes e as palavras de ordem já pipocavam no Brasil e emergem com força quando Lula sai da cadeia atacando os três pilares do governo: Bolsonaro, Guedes e Moro. O governo contra-ataca com uma arma válida contra Cristina Kirchner na Argentina, mas é acessória no Chile e na Bolívia: o combate à corrupção. Lula acusa o regime Bolsonaro de antipovo, Bolsonaro e Moro martelam que Lula é “condenado” e “criminoso”.

Não se trata de um debate sobre o que é melhor para o País e para todos, mas uma guerra de acusações e de desconstrução de adversários, em que vale tudo, principalmente o jogo sujo das fake news. Isso piora muito porque Lula precisa de Bolsonaro para reanimar sua tropa e Bolsonaro usa Lula para reaglutinar o bolsonarismo.

A reunião dos Brics começa hoje em Brasília com a Rússia acusando a direita de ter dado um “golpe” na Bolívia e os investidores pisando no freio. Quem quer investir numa confusão dessas, que vem de fora para dentro, mas encontra campo fértil dentro do próprio Brasil?


Vera Magalhães: Bolsonaro fora do PSL. Bom negócio?

Presidente soma polarização com Lula a desnecessária diáspora de sua base: qual o ganho?

Espalha-roda. No momento em que a até aqui apática oposição ganha um elemento de aglutinação, com a volta de Lula ao palanque, o presidente dobra a aposta na dispersão de sua já minguada base de apoio. Chama os pesselistas que lhe são fiéis para deixar a sigla que elegeu a ele e aos aliados e fundar uma nova.

Cipoal burocrático. O processo de criação de um partido é lento, e as leis que regulam a divisão de tempo de TV e fundos partidário e eleitoral, além da discussão sobre a fidelidade partidária, são todos temas passíveis de infindáveis controvérsias jurídicas.

Para quê? Por que o presidente da República ocasiona uma cizânia de tal grau com a legenda que o elegeu a ponto de precisar pular do barco três anos antes da própria reeleição, mas a menos de um ano de decisivas eleições municipais, é algo que desafia a lógica tradicional da política - como de resto, quase tudo no bolsonarismo.

Reinvenção da roda? Pouco provável. Bolsonaro trata de reforçar divisões numa direita que já é um emaranhado ideológico cujo amálgama eram o antipetismo e as redes sociais. Bem agora que Lula nas ruas poderia funcionar como uma cola na porcelana trincada dessa direita, ele trata de macerar ainda mais os caquinhos.

Enquanto isso, na economia. Paulo Guedes vai tentando combinar reformas estruturais com medidas de curto prazo para dinamizar o crescimento e a geração de empregos, que andam a passos de tartaruga. O anunciado programa Verde e Amarelo foi anunciado nesta segunda-feira, mas com apenas um dos focos previamente prometidos: os jovens. As pessoas acima de 55 anos ficaram de fora da MP lançada pela equipe de Guedes.

E no cenário externo. A renúncia de Evo Morales suscitou um infindável debate no Brasil e no mundo: foi golpe ou não? A pressão para que o presidente da Bolívia renunciasse e os métodos empregados para isso levam à resposta de que sim, mas não se tratou de uma medida de força do Exército e da polícia contra uma franca maioria pró-Morales: ele já perdera apoio entre os setores que sempre lhe deram suporte, as eleições foram consideradas fraudulentas pela OEA e o próprio ex-presidente reconheceu apoio "cívico" à sua saída, tanto que antes de decidir deixar o poder admitira convocar novas eleições.


Pedro Fernando Nery: Guedes quer novo direito

Os brasileiros que nascem herdam juros altos e uma carga tributária maior

Associado a “corte de direitos” (46.400 ocorrências no Google), “retirada de direitos” (47.200) e “perda de direitos” (51.900), Paulo Guedes apresentou a PEC do pacto federativo, que inclui um novo direito no art. 6.º da Constituição (o artigo contém o rol dos direitos sociais). É o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional, que condicionaria os demais.

É como um direito a ter direitos por parte das próximas gerações. Com uma dívida se aproximando de 80% do PIB, os brasileiros que nascem herdam juros altos e uma carga tributária maior, que inibem a criação de oportunidades para que prosperem. Nessa ótica, perdem também direitos, porque cortes em políticas públicas serão necessários para quitar a dívida deixada por gerações anteriores.

A dívida já é de R$ 20 mil por brasileiro. Mesmo com a reforma da Previdência, a dívida seguirá crescendo algo como 1 ponto porcentual por ano na dinâmica atual de PIB modesto. O próprio governo prevê que até o fim do atual mandato seguirá incorrendo em déficits primários (a diferença entre a arrecadação dos tributos e as despesas primárias, isto é, antes de se considerar qualquer gasto com a dívida). Para 2020, o déficit é previsto em cerca de R$ 120 bilhões.

Na verdade, a Constituição já possui mecanismos de proteção a gerações futuras e restrições ao endividamento da geração presente.

Mas eles estão colocados em artigos menos centrais e em linguagem menos acessível do que na proposta de Guedes. O texto original de 1988 proíbe que se deixe dívida sem um legado de investimento – uma ótima definição de equilíbrio fiscal intergeracional. Mas a redação da chamada regra de ouro é demasiado técnica e um convite ao esquecimento por parte dos operadores do direito: “São vedadas a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.

Há ainda a previsão de equilíbrio atuarial nas previdências, mas as definições não são simples. A PEC da reforma da Previdência definiu como “garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das despesas projetadas, apuradas atuarialmente, que, juntamente com os bens, direitos e ativos vinculados, comparados às obrigações assumidas, evidenciem a solvência e a liquidez do plano de benefícios”. Novamente, não é um texto de ganhar corações e mentes para o problema da dívida.

A PEC de Guedes pauta o tema em um artigo com cláusulas pétreas da Constituição e o associa a um direito: o de nossos filhos e netos. Nessa narrativa, os beneficiários pelo ajuste fiscal e o equilíbrio orçamentário deixam de ser bancos e o mercado para ser as gerações futuras. A saúde das contas não é um fim em si mesma.

O Prêmio Nobel Jean Tirole relaciona a dificuldade de fazer reformas com o que é chamado na psicologia de “efeito da vítima identificável”. Nosso cérebro tem mais empatia com vítimas claramente identificadas (uma pessoa que se aposentará mais tarde, um servidor que terá redução de jornada, uma empresa que perde subsídio) do que com vítimas definidas de forma mais vaga, que seriam “vítimas estatísticas”. Na PEC de Guedes, o equilíbrio das contas passa a ser direito de outros brasileiros, os mais jovens.

Caso aprovada, será apenas a segunda vez que nossa Constituição presentista usa alguma variação do termo “geração”. Hoje, consta somente no capítulo do meio ambiente, que prevê que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado, sendo dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as próximas gerações. Por que não estender a lógica a uma economia saudável?

Na coluna Aviões que vão cair, exploramos como direita e esquerda no Brasil têm discursos contraditórios quando o assunto é as próximas gerações. Uma tem se apegado mais ao discurso na questão fiscal, menosprezando a ambiental – e vice-versa.

Contudo, o direito das próximas gerações ao equilíbrio fiscal não é necessariamente uma ideia de direita, embora esteja sendo usada para legitimar o atual ajuste fiscal. O princípio poderia ser usado, por exemplo, para pautar agendas como um aumento da carga tributária focado em grupos subtributados e bem posicionados na distribuição de renda, assim com o corte de renúncias tributárias.

*Doutor em economia


Vera Magalhães: O PhD de Guedes

Com volta de Lula, agenda do ministro pode ser sacrificada no altar da polarização

A semana começou com Paulo Guedes no centro da cena, fazendo uma longa e densa explanação sobre a proposta do governo de Jair Bolsonaro para reformar o Estado e o Orçamento, revendo a relação entre União, Estados e municípios, criando mecanismos novos (alguns draconianos) de responsabilidade fiscal e atacando de frente a corporação dos servidores. E terminou com Lula em cima de um palanque, solto, embora não livre, prometendo percorrer o Brasil para bombardear a agenda liberal do ministro para a economia. Com a volta da polarização entre bolsonarismo e lulopetismo ao seu grau máximo de exacerbação, Guedes corre sério risco de se tornar boi de piranha.

Todo mundo sabe que a fé de Bolsonaro no credo liberal é nenhuma. O próprio Posto Ipiranga demonstra que vem aprendendo a entender as leis da política. Os ventos de 2018 levaram a uma conversão sem convicção do velho nacionalista corporativista do baixo clero aos fundamentos da Escola de Chicago.

Afinal, a nova matriz econômica de Dilma Rousseff levara o País ao buraco, o PT era o inimigo a ser batido e o mercado comprou Bolsonaro na alta da facada e se convenceu de que ele era o Cavalo de Troia para levar o Brasil a cruzar os portões do livre mercado e da ortodoxia fiscal.

Mas ventos mudam, e os da política com maior velocidade e imprevisibilidade que os da natureza. Já escrevi neste mesmo espaço a respeito de como a revolta inesperada e violenta da população do Chile com a desigualdade social e os privilégios dos ricos recomendava atenção das autoridades brasileiras à necessidade de se colocar o povo na equação do necessário ajuste.

Essa preocupação, inclusive, transpareceu na fala de Guedes no lançamento da fase dois das reformas, quando disse que Bolsonaro não o autorizou a pisar demais no acelerador.

Lula nas ruas representa o catalisador da insatisfação popular com uma agenda que pode facilmente ser traduzida nos palanques por uma em que Saúde e Educação passam a ser uma rubrica única e de gastos flexíveis, programas sociais são entraves à decoração da sala e o funcionalismo público é o vilão a impedir o acesso do “pagador de impostos” a serviços dignos de seu desembolso.

Bolsonaro pode ser tudo, menos politicamente desatento. Ele sabe que a polarização está de volta e que tem tudo para tirar dela dividendos eleitorais. Entende que tem a chance de ouro de trazer de volta para seu colo os conservadores moderados que estavam se afastando diante dos seus laivos autoritários e os lavajatistas de luto pela soltura de Lula. Tanto que já voltou a fazer mesuras ao tantas vezes desautorizado Sérgio Moro.

Mas sabe que não pode deixar que Lula consiga aglutinar em torno de si todos os pobres, o Nordeste e ainda a centro-esquerda aviltada pelos ataques de Bolsonaro, seus filhos e acólitos olavistas aos direitos, à cultura, à diversidade e às liberdades individuais.

Por isso mandou os radicais se calarem diante da decisão do STF (por isso e porque tem um filho, Flávio, pendurado em favores da dupla Gilmar Mendes e Dias Toffoli). E graças a isso pode começar a deixar a agenda do Posto Ipiranga em banho-maria, algo que o timing de fim de ano do Congresso ajudará naturalmente que aconteça.

A força de Lula e sua capacidade de replicar aqui um sentimento de saudosismo com o populismo de esquerda que resgatou até Cristina Kirchner do limbo vão ditar a forma como seu antípoda, Bolsonaro, vai adaptar o liberalismo que prometeu aos novos ventos. Guedes pode ter aprendido muito de política, mas a entrada de Lula no cenário vai obrigá-lo a passar do estágio probatório ao PhD nessa arte tão imprevisível quanto fascinante.


Eliane Cantanhêde: Corredor polonês

Com sociedade entre Lula e Bolsonaro, centro progressista produz tertúlias e ‘papers’

Já nos primeiros instantes do fim da prisão após segunda instância, com a volta da impunidade, confirmou-se que o objetivo não era o princípio da “presunção de inocência” nem favorecer cinco mil, mil, cem ou dez condenados, mas apenas um: Luiz Inácio Lula da Silva. Todas as peripécias, jeitinhos e ousadias foram em nome do “Lula Livre”, que embaralha o jogo político e recrudesce a polarização entre a velha esquerda e a nova direita.

O símbolo desse esforço concentrado é o ministro Gilmar Mendes, que de petista não tem nada, mas produziu as mais sinceras manifestações ao longo do ano. “Chega, já está na hora de tirar o Lula da cadeia.” “O País está devendo um julgamento justo para Lula.” E, na véspera, quando o resultado de 6 X 5 era dado como líquido e certo, mas havia fiapos de dúvidas quanto à “modulação”, o ministro só tinha uma certeza: “Lula vai ser solto”. E foi.

Os obstáculos ainda não acabaram, porém. Lula está solto, mas continua condenado em primeira instância, pelo TRF-4 e pelo STJ no caso do triplex do Guarujá e responde pelo sítio de Atibaia, Instituto Lula e apartamento vizinho em São Bernardo, tráfico de influência na compra dos Gripen da FAB, “quadrilhão do PT” na Petrobrás e propinas da Odebrecht. Ufa! A Justiça e o Supremo terão um trabalhão para completar o serviço.

Em paralelo, o Congresso tende a deixar em segundo plano as essenciais reformas fiscal, administrativa e tributária para se digladiar em torno de uma Emenda Constitucional que reintroduza a prisão após a segunda instância e encerre o brusco vai-e-vem do Supremo, que derrete a credibilidade da justiça na sociedade brasileira.

Assim, o Judiciário vai continuar dando tratos à bola para garantir Lula livre, leve e solto e Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre vão se esfalfar para, em movimentos opostos, assegurar que as reformas de Paulo Guedes andem e a prisão em segunda instância suma de vista. Enquanto isso, confirma-se que a balança se inverteu. A Lava Jato afunda e Lula emerge bradando contra a “banda podre” do Estado, que ele nomeia: Polícia Federal, Ministério Público, Receita Federal e a Justiça que agora arrisca sua própria credibilidade e a confiança da sociedade para livrá-lo do cárcere.

Atenção, porém: Lula pode sair por aí em caravana pelo País, desancar Sérgio Moro e a Lava Jato, condenar o governo e provocar o presidente Jair Bolsonaro, mas não pode, ao menos por enquanto, se arvorar candidato a coisa nenhuma. A decisão de quinta-feira do Supremo foi suficiente para soltá-lo, não para anular a condenação e a inelegibilidade de oito anos. Para isso, o Supremo teria de ter a incrível audácia de aprovar a suspeição de Sérgio Moro no caso do triplex e anular a condenação. Nem o presidente Dias Toffoli, lendo reportagens de jornais em julgamentos históricos, seria capaz de tanto.

Ou seria, nesse ambiente surreal?

Bolsonaro no Planalto e Lula livre são uma combinação explosiva. O presidente é o que a direita insana sempre pediu a Deus: um líder populista civil (no caso híbrido), que sabe pouco, fala muito e não tem pruridos para defender os maiores absurdos e abrir fogo contra a cultura, o meio ambiente, a mídia, os direitos humanos e parceiros internacionais tradicionais. O outro é o único que a esquerda conseguiu produzir: também populista e sem pruridos, boa lábia, capaz de mover as massas.

E o tal “centro progressista” de que Fernando Henrique tanto fala? Vai continuar fazendo tertúlias intelectuais, “papers” teóricos, entrevistas racionais que atraiam aplausos. É bonito, mas nada prático quando o pau está comendo. Cidadãos do sul ao norte estão num corredor polonês entre Lula e Bolsonaro, sem ter para onde correr. Salve-se quem puder.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro passa a ter algo novo, a oposição

Juntando as duas pontas, significa que a polarização política do País, já forte e irracional, deve atingir níveis praticamente insuportáveis

O ex-presidente Lula já saiu da prisão chamando o presidente Jair Bolsonaro para briga. Depois de correr solto neste seu primeiro ano de governo, digladiando contra a mídia e inimigos imaginários, Bolsonaro passa, portanto, a ter finalmente oposição. E não uma oposição qualquer.

Juntando as duas pontas, significa que a polarização política do País, já forte e irracional, deve atingir níveis praticamente insuportáveis. De um lado, as esquerdas reunidas em torno de Lula, tentando se livrar e erros e acusações que não evaporam com o "Lula Livre". Do outro, a direita pendurando-se em Bolsonaro, fingindo que não há nada demais na defesa de tortura e AI-5 nem nos ataques ao meio ambiente e aos aliados históricos do Brasil no mundo.

O que ainda não está claro é em que arena esse embate vai ocorrer. Lula terá força para arregimentar multidões nas ruas das capitais e grandes cidades? Bolsonaro conseguirá reagir à altura? E até que ponto pode contagiar o Congresso, numa época de votações de grandes reformas estruturais?

Os precedentes não indicam uma guerra campal, depois que o impeachment de Dilma Rousseff ocorreu sem grandes manifestações pelo País ou protestos diante do Congresso Nacional. Na prisão de Lula ninguém matou, ninguém morreu, como previra a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. E até a reforma da Previdência passou tranquilamente, sem oposição de rua (ou gramados).

No seu discurso a militantes, logo ao sair da carceragem da PF em Curitiba, Lula elegeu aliados e inimigos. Os aliados são os de sempre, o PCdoB, o PSOL, a CUT, o MST... Os inimigos são Bolsonaro, tratado com provocações, e a força-tarefa da Operação Lava Jato, acusada de "banda podre" do Estado. Aí incluídos Justiça, Ministério Público e Polícia Federal, que, segundo ele, "não prenderam um homem, tentaram matar uma ideia".

Foi uma repetição praticamente literal do que o mesmo Lula já tinha dito quando da prisão, 580 dias antes. Isso reforçou a sensação de que ele entrou e saiu com o mesmo discurso, os mesmos alvos e os mesmos amigos do peito, como a própria Glesi. Aliás, Lula confirmou que vai casar com a socióloga Rosângela Silva e não dedicou uma única palavra a Dona Marisa, companheira de décadas, mãe de seus filhos.


João Domingos: O STF e o pacto de 2022

Lula, Sérgio Moro e Bolsonaro tendem a ganhar maior espaço

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir a prisão após condenação em segunda instância tem tudo para se tornar um marco na História do País. Por alguns motivos em especial. Um, porque foi - e continuará sendo - um teste para se medir a força das instituições pilares da sustentação do Estado Democrático de Direito. Mesmo sob forte pressão para que mantivesse a jurisprudência de 2016, a favor da prisão, a Corte não se intimidou. A sessão foi transmitida ao vivo pela TV e quem quis pôde ver em detalhes como se comportou cada ministro. Goste-se ou não do resultado, ele está aí.

O motivo número 2 que fará com que o julgamento entre para a História existe porque, embora se trate de uma questão técnica - se um artigo do Código de Processo Penal é compatível com a Constituição -, o resultado principal foi político. Daqui para a frente começa a ser montado o palco da eleição presidencial de 2022. Agora, com todos os personagens que, de alguma forma, movimentarão as forças políticas do País, ou na frente de alguma chapa, ou nos bastidores.

O ex-presidente Lula, motivo de toda a barulheira em torno do julgamento, passa a ter liberdade de locomoção para continuar a fazer aquilo que sempre fez, e que não deixou de fazer nem na cadeia, que é política. Se será candidato ou não, isso é outra coisa. Lula está enquadrado na Lei da Ficha Limpa e, caso o STF não anule sua sentença, o que, se não é impossível, é muito difícil, não poderá se candidatar. Mas poderá percorrer o País para fazer campanha por um candidato do PT. Quer dizer que vencerá a eleição, como venceu com Dilma? Necessariamente não. Hoje a situação é muito diferente da de 2010. A rejeição ao PT é maior. Ninguém deve se esquecer que o processo de corrupção que arruinou o partido é recente, está na memória do eleitor e fez nascer novas forças políticas no País, uma delas no poder com Jair Bolsonaro. Mas o peso de Lula é grande.

Outro personagem que pode ser resgatado, embora no momento se encontre um pouco apagado, é o ministro da Justiça, Sérgio Moro. É possível que a decisão do STF reacenda a lembrança de que foi Moro que condenou Lula no processo do triplex do Guarujá. Não só Lula, mas dezenas de empresários até então intocáveis, dirigentes de partidos, parlamentares e burocratas de estatais. Não se deve esquecer ainda que foi Moro o maior responsável pelo impeachment de Dilma Rousseff. Ele divulgou o grampo de uma conversa entre Dilma e Lula, na qual a então presidente da República mandava a seu mentor o termo de posse na Casa Civil, o salvo-conduto para que não fosse preso. Tal grampo levou o ministro Gilmar Mendes a proibir a posse de Lula. Sem cargo no governo, Lula não pôde fazer nenhuma articulação política para salvar Dilma, que logo teria o mandato cassado.

A respeito de Moro, Jair Bolsonaro aproveitou ontem cerimônia de formatura de policiais federais para dizer que se não fosse o ex-juiz de Curitiba ele não estaria ali como presidente da República. “Parte do que acontece na política do Brasil devemos a Sérgio Moro”, afirmou.

Nada mais verdadeiro. Para, em seguida, dizer essa frase enigmática, que pode ser interpretada de várias maneiras: “Ele (Moro) estava cumprindo uma missão. Se a missão não fosse bem cumprida eu também não estaria aqui”. Bolsonaro é outro personagem político que tende a se manter em evidência por causa da decisão do STF. Ainda encarado como o “anti-PT” e o “anti-Lula”, ele vai aguardar a forma como se comportará o ex-presidente. Se Lula radicalizar o discurso, ficará à vontade para também radicalizar o seu e tentar tirar o mesmo proveito do antagonismo com os petistas que tirou na eleição de 2018.


Eliane Cantanhêde: A guerra continua

Não terá quebra-quebra, mas Dodge vê 'triplo retrocesso' em decisão do Supremo

O Supremo finalmente cumpriu a ameaça de derrubar a prisão após condenação em segunda instância – instrumento importantíssimo contra os crimes, em especial de colarinho branco –, mas é bom que se saiba que a guerra continua. Agora num outro foro também improvável, mas igualmente legítimo: o Congresso Nacional.

“Sim, a guerra continua”, concordou ontem a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge, descartando o frágil argumento de que o “trâmite em julgado”, que se contrapõe à prisão em segunda instância, é cláusula pétrea da Constituição. Não é. Logo, pode ser mudada por Proposta de Emenda Constitucional (PEC).

Se fosse cláusula pétrea, argumenta ela, o Supremo jamais poderia ter admitido a prisão após a condenação em segunda instância, como até ontem, e, aliás, teria votado por unanimidade contra sua aplicação.

Como PGR (aliás, a primeira mulher a ocupar o cargo), Dodge assinou longo parecer contra nova mudança de entendimento. E, muito antes, quando a prisão em segunda instância voltou, era procuradora junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atuou para o cumprimento antecipado da pena passasse a valer rapidamente.

Dodge, que tem no currículo também três anos na prestigiada universidade de Harvard, elogia a firme decisão da ministra Carmen Lúcia que, em seus dois anos de presidência do STF, se negou peremptoriamente a colocar em pauta, mais uma vez, uma questão já decidida pelo plenário em três oportunidades muito recentes.

“Não há fatos novos nem mudança na composição do plenário”, diz a procuradora, repetindo quase que literalmente os argumentos de Carmen Lúcia, que enfrentou ameaças, agressões, insinuações e ironias, inclusive de colegas e em sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça, mas não arredou pé da sua convicção. Seu sucessor na presidência, Dias Toffoli, esperou mais de um ano para fazer o oposto e por em votação, mas já assumiu determinado a fazê-lo. Tardou, mas não falhou.

Como vem dizendo Dodge, o fim da prisão após segunda instância é um triplo retrocesso: falta de estabilidade, com idas e vindas; perda de eficiência do sistema, com a volta de processos penais infindáveis, recursos protelatórios e prescrições; risco de perda de credibilidade junto à sociedade, pela eterna sensação de impunidade, principalmente de réus ricos e poderosos.

Assim como os especialistas militares defendem pesados investimentos em Defesa e Forças Armadas para garantir o “papel dissuasório” dos países, mesmo os mais pacíficos, como o Brasil, Raquel Dodge lembra da importância da “força inibitória” da Justiça. Uma justiça efetiva, ágil e realmente justa ( pleonasmo necessário) é fundamental para inibir ímpetos criminosos e, portanto, os próprios crimes. A estabilidade e a credibilidade são fatores inalienáveis nessa direção.

Quanto à questão política, sobre a qual Dodge não fala, há que se destacar que se pode apoiar ou discordar da decisão do Supremo, mas esqueçam a possibilidade de rebeliões, manifestações imensas, tumultos.


Elena Landau: Agora vai

A perda de momentum no Senado no segundo semestre não abalou a fé dos investidores

Mesmo que o resultado do megaleilão tenha jogado água no chope, esta foi uma boa semana para economia. O Relatório Focus aponta inflação baixa, redução da taxa básica de juros e melhora nas projeções para o crescimento de 2020. Sempre é preciso cautela com essas estimativas. Vamos lembrar que o ano começou com expectativa de 2,8% para o PIB e vai terminar perto de 1%. Claro que a crise da Argentina e a tragédia de Brumadinho atrapalharam. Mas não se pode desprezar o erro estratégico do governo de colocar todas as fichas na reforma da Previdência, gerando uma paralisia dos investimentos no 1o semestre.

A perda de momentum no Senado no segundo semestre não abalou a fé dos investidores. Sem esses fatores negativos, a retomada cíclica aponta para um crescimento de, pelo menos, o dobro para ano que vem. Ainda medíocre. Se nada atrapalhar os bons ventos, pode-se pensar em algo próximo de 3%, segundo algumas das projeções do mercado. Oxalá.

Para ajudar no bom humor, Paulo Guedes, enfim, anuncia seu projeto para a economia. Mas o papel do ministro não se encerra com o envio do pacote ao Congresso. São inúmeras PECs a serem discutidas ao longo de 2020 e que afetam privilégios de grupos específicos. O lobby dos descontentes vai tentar convencer que o ajuste é ruim para todo mundo. O mesmo filme que se viu na Previdência.

O chefe da PGR foi rápido e já se manifestou contra a “injusta” redução de seu período de 60 dias de férias. A reforma da seguridade também atravessou uma guerra de narrativas durante dois anos e chegou este ano ao Congresso madura para discussão. Ainda assim, sua aprovação se arrastou meses - deu até tempo da aprovação da PEC Paralela em 1º turno pelos senadores. O presidente interrompeu o ritmo das discussões no Senado ao impor a indicação de um filho para uma embaixada. Prioridades.

O conjunto de mudanças não trouxe surpresas, é uma proposta de ampla reforma fiscal na linha já esperada. A verdadeira batalha será organizar prioridades e a sequência de votações, já que foram abertas muitas frentes ao mesmo tempo. Todo cuidado é pouco, toda a habilidade será necessária. Inexplicavelmente a Zona Franca de Manaus mantém seus benefícios e algumas carreiras, como militares, juízes e procuradores, ficaram de fora do aperto. Começou errado. A contribuição tem que ser de todos os segmentos. Se outras exceções forem concedidas – não faltará pressão –, podemos terminar com corte de gastos abaixo do projetado, no contexto de um novo pacto federativo que prevê a transferência de recursos para estados e municípios.

Depois dos desacertos na insistência com capitalização e CPMF, que nos fez perder um tempo precioso, Guedes entendeu que sem articulação política não se faz uma PEC, muito menos quatro. Maia e Alcolumbre já parecem estar comprometidos no esforço de aprovação.

Da mesma forma, o STF precisa estar ciente de que regras para funcionalismo e vinculações orçamentárias devem mudar para diminuir despesas obrigatórias e abrir espaço para investimentos públicos. Mas, acima tudo, a sociedade deve estar convencida de que, se algumas categorias perdem, no conjunto, o país sairá melhor.

O governo também acena com um novo rito para as privatizações, seguindo um procedimento que propus em minha coluna passada, que é inverter o ônus da prova: a existência de uma estatal deve ser justificada, e não a sua desestatização. A proposta oficial não é tão ousada ao não incluir todas as empresas no projeto de uma vez, como eu sugiro. Petrobras, por exemplo, fica de fora. Mas parece que as privatizações vão finalmente começar a andar. Com muitos meses de atraso, o PL para a venda da Eletrobras saiu muito semelhante à proposta de Temer.

A boa novidade foi a retirada da golden share, já que não há nada de estratégico na operação da empresa, e afetaria negativamente o preço de venda. A União deverá manter ainda entre 30% a 40% de participação, exigindo um bom desenho de governança para blindar qualquer influência estatal na empresa e deixá-la imune a mudanças de governo.

Notícias boas na economia em tempos estranhos na política. Bolsonaro e seus filhos podem atrapalhar muito o andamento das reformas se continuarem na mesma toada dos últimos dias. De uma tacada, destruíram sua frágil base parlamentar; atacaram a imprensa, parceira no convencimento sobre Previdência; o Congresso, que deve aprovar as mudanças nas contas públicas, e o STF, que vai julgar sua constitucionalidade.

Os arroubos autoritários da família vão num crescendo, chegando à ameaça de um novo AI-5. Bolsonaro finge que repreende os filhos e a vida segue. Não são apenas ações de um homem que não liga para o politicamente correto. São ataques à democracia liberal por parte do presidente da República. O propósito em gerar uma crise institucional é cada vez mais evidente. Pode ser uma cortina de fumaça. Se Ustra é o herói, Chávez pode ser o modelo.

*Economista e advogada


Zeina Latif: Navegar é preciso

Nada como a falta de dinheiro para forçar o Brasil a rever as políticas públicas

Nada como a falta de dinheiro para forçar o Brasil a rever as políticas públicas. Atribuindo ou não o rótulo de agenda liberal, o fato é que o debate econômico avança. Velhos temas que preocupam há anos ou décadas, inclusive com tentativas fracassadas de avanço, emergem no debate público, com a liderança de Paulo Guedes.

Foram enviadas ao Congresso propostas de emenda à Constituição (PEC) que visam a melhorar a gestão das contas públicas no longo prazo e produzir alguma economia de recursos no curto prazo. São muitos temas polêmicos divididos em três PECs. Essa estratégia parece arriscada, pois poderá produzir um congestionamento de pautas no Congresso e ataques prematuros, sendo que cada PEC terá de seguir seu rito. Não se sabe a ordem de prioridades do governo, mas provavelmente as medidas emergenciais de curto prazo serão priorizadas.

São várias frentes de discussão, e algumas se destacam.

Pretende-se dividir com Estados e municípios a receita de exploração do pré-sal (na casa de R$ 400 bilhões em 15 anos), mas com mudanças na relação do Tesouro com esses entes, com medidas como: proibir empréstimos do Tesouro e limitar as garantias a empréstimos de terceiros a partir de 2026; encerrar a (longa) disputa judicial sobre a Lei Kandir, que representa expressivo risco fiscal ao Tesouro; eliminar a linha de crédito para pagamento de precatórios; e proibir o uso de fundos de pensão e depósitos judiciais entre partes privadas (expedientes utilizados para Estados fecharem as contas).

Não são muitas as contrapartidas tendo em vista o grande volume de recursos transferido. De qualquer forma, será essencial garantir sua aprovação, e não apenas a transferência de recursos, como o ocorrido na renegociação da dívida dos Estados em 2016. Conceder recursos sem a garantia de seu bom uso vai agravar o quadro fiscal. Toda atenção é pouca.

O governo quer tornar obrigatória a avaliação de renúncias tributárias (equivalem a 4% do PIB). Essas políticas, muitas delas equivocadas, cresceram muito até 2015 e têm sido preservadas ou renovadas, sem o devido estudo de efetividade e de justiça social. Muitas têm caráter permanente, como o Simples Nacional (R$ 75 bilhões), isenções no Imposto de Renda (R$ 51 bilhões) e isenções para entidades sem fins lucrativos (R$ 27 bilhões). E a Zona Franca de Manaus (R$ 25 bilhões), prevista na Constituição, foi renovada. Não há como fazer “canetada”. Será necessária a análise caso a caso. Trata-se de uma agenda de longo prazo.

Há o chamado 3D – Desobrigação, Desindexação e Desvinculação –, visando, corretamente, à maior flexibilidade dos orçamentos públicos. São medidas que vão desde a consolidação dos pisos de gastos com saúde e educação dos entes subnacionais (não gera economia de recursos, mas dá maior liberdade para ajustar os gastos às demandas de uma sociedade que envelhece) à diminuição da jornada de trabalho do funcionalismo, com redução proporcional da remuneração. Tema antigo que necessita de ajuste na Constituição, tendo em vista o impasse no STF. É o caso também da autorização de contingenciamento do orçamento do Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, em caso de risco de não cumprimento de regras fiscais, na mesma proporção feita ao Executivo. Esse dispositivo já vale para a esfera federal, conforme previsto na regra do teto, mas não nos demais entes, o que penaliza a oferta de serviços públicos do Executivo.

Há medidas temporárias de caráter emergencial. Ainda assim, são muito importantes para o cumprimento da regra do teto, que é alicerce da taxa de juros do BC em patamares inéditos. Prevê-se o acionamento de medidas corretivas, visando, principalmente, a conter o crescimento dos gastos com pessoal. Essas medidas, que prometem economia de R$ 24,8 bilhões no próximo ano, têm maior chance de prosperar.

O Brasil precisa avançar no ajuste fiscal e melhorar a alocação de recursos públicos. Haverá resistência dos grupos impactados. Vamos ao debate democrático.

*Economista-Chefe da XP Investimentos