O Estado de S. Paulo
Monica De Bolle: Dentro do túnel
Profundamente desigual, o Brasil foi o único País da América Latina que viu a pobreza aumentar desde 2014
Em 1973, o grande economista Albert O. Hirschman publicou artigo intitulado “A mutabilidade da tolerância à desigualdade de renda durante o desenvolvimento econômico”. Nesse artigo, ele elaborou a tese do “efeito túnel” a partir de metáfora prosaica. Imagine que você esteja preso em um engarrafamento dentro de um túnel. De repente, a faixa ao seu lado começa a se mover lentamente enquanto a sua continua absolutamente imóvel. A constatação de que enfim o tráfego começou a se mexer lhe dá esperanças de que eventualmente a sua faixa também passe a andar. Portanto, você haverá de tolerar a injustiça inicial de sua imobilidade pois há a expectativa de que em algum momento a movimentação incipiente lhe beneficie.
Assim descreve Hirschman os primeiros estágios do desenvolvimento econômico. Quando as economias começam a se desenvolver e crescer, algumas faixas de renda serão beneficiadas primeiro, deixando outras para trás. Há, portanto, um aumento da desigualdade.
Contudo, a população tende a tolerar esse aumento da desigualdade porque, como os carros dentro do túnel, têm a esperança de que em breve os benefícios do crescimento econômico acabará lhes trazendo ganhos semelhantes. Nas palavras de Hirschman, enquanto o efeito túnel durar, todos sentem que a qualidade de vida melhorou, ainda que alguns tenham ficado ricos e outros não.
É concebível, portanto, que distribuições desiguais de renda sejam preferíveis a distribuições mais igualitárias, o que torna o aumento da desigualdade politicamente tolerável, ou até desejável. Essa tolerância, obviamente, é apenas eterna enquanto dura. Caso o ciclo de crescimento e desenvolvimento acabe por frustrar as expectativas daqueles que não desfrutam de seus benefícios, a tolerância inicial com a maior desigualdade de renda se transformará rapidamente em ressentimento e intolerância. O efeito túnel é portanto especialmente perigoso para os políticos, que não têm como saber quando a tolerância haverá de se transformar subitamente em intolerância. Embalados pelas expectativas positivas das primeiras etapas do ciclo de crescimento, é provável que se tornem complacentes, ignorando a necessidade de enfrentar as desigualdades criadas. Quando percebem a mudança, já é tarde demais: o povo estará nas ruas ou nas urnas denunciando o mesmo processo que os fez inicialmente acreditar na melhoria de vida, afirmando que os ricos se tornaram mais ricos enquanto o resto ficou para trás.
O efeito túnel de Hirschman é incrivelmente poderoso para explicar o que se passa hoje na América Latina – possivelmente em outras partes do mundo também. Assim como no Brasil em 2013, as manifestações no Chile pegaram o presidente e seu entorno de surpresa.
A indignação aparentemente repentina tomou conta das ruas por uma razão aparentemente singela: um pequeno ajuste nas passagens de metrô. Contudo, não foi o aumento do metrô que levou o povo para a rua, assim como em 2013 não foram os 20 centavos. A frustração derramada, às vezes com violência, é fruto do esgotamento da tolerância, da sensação de que ficar naquela faixa engarrafada que não vai a lugar algum dentro de túnel onde não há saídas é insuportável. A conclusão inevitável é que políticas para retomar o crescimento econômico são desejáveis e toleráveis apenas até um certo ponto. Caso não resultem em redução das desigualdades e melhorias concretas de vida para todos tornar-se-ão politicamente inviáveis.
Penso nisso quando vejo a precariedade dos empregos no Brasil, o aumento da informalidade e da pobreza. Penso nisso quando vejo anúncios de medidas econômicas que podem acabar esgarçando ainda mais a rota rede de proteção social brasileira. Penso nisso quando vejo o ministro da Economia com propostas para criar empregos para os mais jovens financiando-as com tributos sobre o seguro-desemprego. Essas medidas revelam uma surdez cega não apenas dirigidas aos ruídos estrepitosos de uma região que se levanta para reclamar de seus líderes, como também em relação à realidade de um País profundamente desigual – o único na América Latina que viu a pobreza aumentar desde 2014, pouco importa de que governo seja a culpa por isso.
Pode ser que não aconteça nada. Pode ser que o Brasil continue impávido frente aos problemas sociais existentes e ao que acontece ao seu redor. Mas, não custa nada reler Hirschman. Em 1973, o alcance de sua visão era bem maior do que o dos economistas da Universidade de Chicago na época.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Paulo Fábio Dantas Neto: Política negativa e política positiva
Frente democrática terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político
A fórmula que inspira o título foi de San Tiago Dantas, ministro de Jango, nos idos de 1964. Ajuda a pensar a frente democrática exigida pela experiência de 10 meses de mandato de Jair Bolsonaro. Sistema político, instituições jurídicas, algumas corporações profissionais do Estado e setores da sociedade civil, imprensa incluída, reagem com cautela ao ataque do Executivo a fundamentos democráticos da ordem política. O professor Werneck Vianna chama essa estratégia defensiva de guerra de posição. Uso política positiva em sentido análogo.
Em conjuntura crítica, San Tiago Dantas chamou de esquerda positiva a política que propunha, com senso agônico de urgência de um político progressista que pressentia a aproximação do pior. O horizonte da política positiva era um país com progresso social e economicamente moderno, horizonte submetido a duas regras de ouro: respeito rigoroso às instituições políticas e recusa de ideias de revolução ou de refundação do País. Certos conservadorismo e ceticismo, em vez de obstáculos ou argumentos contra as reformas, eram o método político para fazê-las.
San Tiago perdeu e a derrota foi do Brasil, que viveu duas décadas de ditadura. Sua agenda foi, com o tempo, revisitada, pelos militares, do modo autocrático que ele rejeitava por convicção. Pragmatismos em contraste: o de San Tiago, que propunha um futuro pela via da democracia e da civilização do conflito social pela moderação da política; e o de Golbery do Couto e Silva, que atrelava o presente a uma guardiania contra o demos, um regime que revogava a política (ou a restringia a jogo palaciano) em nome de eliminar os extremos. Num caso, construção moderada do centro político, no outro, extremismo de centro, que a história de outros povos nos ensina ser um dos biombos do fascismo.
A transição democrática e a Carta de 88 remeteram Golbery ao passado e agora ele quer voltar. Sua estratégia para vencer a linha-dura do regime que ajudou a fundar parece inspirar movimentos da direita democrática que tentam conter o extremismo do presidente Jair Bolsonaro, de sua família e sua facção. Assim como Golbery e Geisel ajudaram, na política de porões, a nos livrar de coisa pior, ajudará se, na nossa democracia atual, a aliança liberal-conservadora do presidente da Câmara com o governador de São Paulo detiver a aventura obscurantista que ocupa o Planalto.
Essa estratégia positiva, porém, será insuficiente se limitada à união de liberais e conservadores. A frente democrática necessita de um pé esquerdo, para a dissidência se separar, de fato, da extrema direita e se tornar oposição. Outra lição da experiência da transição democrática é que a abertura lenta, gradual e segura de Golbery não seria viável sem o avanço, no sistema político e na sociedade civil, da estratégia que mirava a democracia, e não uma guardiania light. Se Rodrigo Maia quiser ter um papel à altura do que teve Tancredo, terá de encontrar seu Ulysses e seu PCB, quer dizer, aliados capazes de mobilizar a margem esquerda da política pela via positiva, dando à frente democrática seu pé esquerdo. Essa articulação precisará alcançar, além de todo o centro, a esquerda convencional, um maciço ideológico que hoje rejeita e pune jovens políticos que tentam renovar a política pela política, e não contra ela.
O andar da carruagem da esquerda não favoreceu o polo positivo. Sob mediação do arranjo de poder caído em 2015-2016, fabulações nacional-desenvolvimentistas, de comunitarismo cristão e de democracia de alta intensidade foram linkadas ao identitarismo pós-moderno, emergente na sociedade civil. Conexões de sentido que exilam ideias de nação, de povo, em assembleias, conselhos deliberativos e coletivos identitários deixaram a esquerda brasileira mais distante da via cosmopolita, institucional e incremental da esquerda positiva. A política da esquerda negativa difundiu crenças e mobilizou interesses artífices do estilingue que hoje a alveja com força de bumerangue. A ponta da lança é a política negativa da direita soberanista e autoritária.
Para construir a frente democrática há ainda que desfazer uma confusão: o termo conservador não ter uso para nomear esse mix de ideologia e pragmatismo míope. Um conservadorismo que se preze está na oposição a um governo cuja pauta, inédita no Brasil, é destruir instituições.
Além de formar a frente democrática, um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor. Ataques do capitão convertem consensos civis em dissensos selvagens, rebaixando crenças democráticas, mesmo se ficam na ameaça. Por isso dão razões para processos de denúncia formal e pedidos de impeachment.
O realismo político descarta essa via legal preventiva, ainda mais com Lula solto. O script racional da sua política atual é negar tudo o que está no governo, mas complementa o script de um governo que nega a complexidade legal e social do País. O quadro é favorável a essa mútua negatividade bipolar. A campanha de 2022 já começou e a frente da política positiva não se construirá em ritmo de valsa. Tocando dobrado, terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político, como em outros tempos encarnou em Tancredo e Ulysses, em FHC e no ex-Lula. Como não existe liderança natural, ela só pode sair de acordo político em torno de quem mais unir os fragmentos que hoje se supõe representarem 40% do eleitorado.
Para desmentir quem chamar essa solução de conluio sem programa, a voz do centro unificado precisará combinar realismo político, convicção democrática, responsabilidade econômica, pluralismo cultural e forte compromisso com reforma social. Para quem achar essa combinação impossível, ou indesejável, é simples: dobrar a aposta e alinhar-se a Lula ou a Bolsonaro.
*Cientista político, é professor da Universidade Federal da Bahia
Pedro Fernando Nery: Esmagados pelo presente
Para o papa Francisco, o elevado desemprego jovem é problemático não apenas pela falta de trabalho em si, mas pela falta de esperança
No 1.º ano de seu papado, Francisco apontou como o problema mais urgente que a Igreja enfrentava um tema surpreendente. Era o desemprego dos jovens, também apresentado como um dos mais sérios males do mundo atual. Em mais de uma ocasião o pontífice ecoou a preocupação, apontando o risco de uma “geração perdida” e criticando uma sociedade que descartava os jovens.
Para o papa, o elevado desemprego jovem é problemático não apenas pela falta de trabalho em si, mas pela falta de esperança. Os jovens foram “esmagados pelo presente”. Ao contrário das pessoas mais velhas, não têm lembranças para recordar. Mas tampouco teriam um amanhã para ansiar, como deveria ser na juventude. “Você me diz: é possível viver esmagado sob o peso do presente? Sem uma memória do passado e sem o desejo de olhar adiante para o futuro para construir algo, um futuro? Você conseguiria ir adiante assim?”
Se a crise do desemprego jovem na Europa chamou atenção até do Vaticano, os esmagados seguem largamente menosprezados por aqui. Nas eleições de 2018, tiveram protagonismo, excepcionalmente, apenas na ideia da “carteira de trabalho verde e amarela”. O plano foi apresentado na semana passada e, apesar de desidratado, foi recebido com antipatia pela opinião pública.
A taxa de desemprego ainda é de 27% entre os jovens de 18 a 24 anos. Apesar de alguma melhora desde o pior da crise, ela ainda supera 30% em vários Estados do Nordeste e do Norte. Mesmo no período áureo do mercado de trabalho, sempre foi o dobro da taxa geral, e nunca cedeu abaixo de 14%. Os jovens são, de longe, os mais afetados pelo desemprego. Sem experiência, qualificação ou contatos, são também embarreirados pelas mesmas regras trabalhistas dos demais – ao contrário do que ocorre em países desenvolvidos.
No início do mês, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais de 2018. Vivem abaixo da linha da pobreza 3 em cada 10 brasileiros entre 15 e 29 anos.
A faixa etária é também destaque em outra estatística, sendo os mais afetados pela violência urbana: são mais de 60% das vítimas de homicídios. Em 2017, quase 36 mil jovens entre 15 e 29 anos foram assassinados – novo recorde. Os nossos esmagados morrem.
É claro que a desgraça da juventude brasileira não deve motivar qualquer intervenção estatal. Mas o contrato de trabalho verde e amarelo está longe de ser uma iniciativa mal concebida. Ao contrário, vai ao encontro da literatura científica mais nova sobre a experiência internacional.
As evidências mais recentes sobre políticas de emprego desse tipo preconizam desonerações seletivas, com foco em grupos específicos (no caso os jovens) e na contratação (apenas novas vagas estão desoneradas, vedada a troca de antigos por novos). Essas são duas ressalvas que diminuem o custo da mudança (e que marcam as principais diferenças da proposta com a desoneração de Dilma).
O badalado Emmanuel Saez – o economista de Berkeley que assessora a democrata Elizabeth Warren – publicou em outubro estudo sobre a experiência recente da Suécia. Ele e coautores mostram que a desoneração feita para jovens melhorou o emprego durante e após sua vigência (foi promovida pela centro-direita, e desfeita pela esquerda). O efeito foi positivo, e crescente, tanto para os beneficiados que saíram do programa porque ficaram mais velhos (por exemplo, pelo ganho de experiência) quanto para os jovens que não foram beneficiados pela desoneração (depois que ela se extinguiu).
A redução do custo lá foi de 12%, bem abaixo da redução do custo de cerca de 30% do contrato verde e amarelo (principalmente INSS e FGTS). Já Alessio Brown, do Instituto de Economia do Trabalho da Alemanha, compila efeitos positivos de subsídios a contratação, focalizados, na Alemanha, Austrália, Áustria, França, Polônia e Reino Unido (além da Suécia). Apesar da maior burocracia e dos custos administrativos da política focalizada, ela teria custo efetivo maior do que uma desoneração irrestrita.
O Congresso pode aperfeiçoar a medida: o financiamento pela arrecadação com a contagem de tempo do seguro-desemprego para o INSS deve ser substituído (afinal vigoram renúncias previdenciárias para faculdades e o agro) e os com mais de 55 anos podem ser incluídos (apesar do baixo desemprego, desligados têm dificuldade de reinserção). Outras políticas também merecem ser discutidas.
O essencial é que os esmagados não percam nossa atenção.
*Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: Morde e modula
Sob pressão, STF discute com demais Poderes 'modulação' de decisões incômodas
A sensação em Brasília é de que todos estão, ou estamos, paralisados e com a respiração suspensa à espera de quarta-feira, quando o Supremo começa a discutir e pode até concluir o julgamento sobre o que o Ministério Público e a Polícia Federal podem ou não fazer com dados de milhares ou milhões de cidadãos na Unidade de Inteligência Financeira (UIF, ex-Coaf).
Essa decisão diz respeito não só aos milhares de alvos de processos que fizeram festa com a decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, mas também à força-tarefa da combalida Lava Jato, aos órgãos de investigação em geral e à própria sociedade brasileira, exausta com a impunidade.
Quatro meses depois de parar quase mil investigações, Toffoli repete uma prática que vai se tornando corriqueira em julgamentos de grande impacto: a busca de uma tal de “modulação” – que no fim não dá certo. Fala-se muito em modular, mas na hora “H” não se modula nada. Melhor exemplo: o drástico recuo, por um voto, na prisão após segunda instância. Sem meio-termo, a decisão foi pura, direta. E tirou Lula da prisão.
O que é “modulação”? É a tentativa de votar a favor dos investigados e contra a vontade da sociedade, mas tentando maneirar e reduzir a avalanche de críticas. Ou seja: o STF se prepara para decidir contra o compartilhamento de dados, tão importante para o trabalho do MP e da PF, mas já pedindo desculpas e amenizando a decisão. Além de dividir responsabilidades.
No voto sobre segunda instância, Toffoli desistiu de última hora de buscar uma inviável modulação, mas empurrou o abacaxi para o Congresso, compartilhando a pressão e as críticas com o outro Poder. Aliás, um parênteses: em artigo ontem no Estado, o ministro Sérgio Moro bem destacou que, ao admitir que o Congresso poderia alterar o Código do Processo Penal e a própria Constituição, o presidente do Supremo admitia também, automaticamente, que a presunção de inocência não é cláusula pétrea da Constituição. Logo, está sujeita a “uma conformação diferente” da decisão do STF.
Assim como a segunda instância dizia diretamente a Lula, mas também a milhares de condenados e presos, a decisão de amanhã sobre o Coaf diz respeito a Flávio Bolsonaro, mas igualmente a milhares de sujeitos a investigações. Se não conseguiu soltar Lula sem favorecer também os demais, dificilmente o STF vai livrar Flávio sem beneficiar os outros milhares.
Apesar de muito difícil, Toffoli tenta uma modulação que evite um efeito tão abrangente e votos envergonhados. É por isso que ele vem conversando e ouvindo muito, inclusive Augusto Aras (PGR), Roberto Campos Neto (BC) e André Mendonça (AGU), enquanto o ministro Gilmar Mendes se reúne com o secretário e o procurador da Receita.
A intenção é buscar informações e compreender o sistema de troca de informações da nova UIF, da Receita e do próprio BC, para não apenas e simplesmente proibir a remessa de dados para o MP e a PF sem autorização judicial – como decidiu Toffoli originalmente no caso de Flávio. “Serão normas de organização e procedimento, o que não pode é continuar essa terra de ninguém”, disse à coluna Gilmar Mendes.
Pode-se concluir que o STF tenta chegar a fórmulas um tanto milagrosas para a UIF e a Receita compartilharem dados de uns, não de outros, dados tais, não quais. No caso da segunda instância, não funcionou. Vamos ver se agora funciona.
Ainda amanhã, o ministro Alexandre de Moraes recebe do deputado Rodrigo Maia a proposta da Câmara para “modular” o pacote anticrime de Moro e se antecipar ao Senado, onde as medidas estão na pauta de amanhã na CCJ. Toffoli já desistiu de brincar de “Grande Irmão” e tudo pode acontecer nesta quarta. A pressão da sociedade não é em vão.
José Goldemberg: As universidades e um projeto para a Nação
Há que estimulá-las a fazer estudos e debates sobre os grandes problemas nacionais
O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, fez no evento O que é o Poder?, realizado em outubro por este jornal, uma declaração contundente sobre o papel que as corporações e a burocracia ocupam hoje no cenário político do País. “Nós não temos uma elite nacional. A burocracia ocupou este espaço. Infelizmente, os partidos políticos não fazem projetos de nação. Infelizmente, as universidades não fazem projetos de nação”, disse ele.
Há tempos não se ouve no Brasil um chamado tão importante como este para que as universidades ocupem um papel mais importante no cenário nacional. O que temos visto, ao contrário, são, por um lado, declarações desarrazoadas e até truculentas de ministros da Educação desqualificando as universidades públicas e, por outro, grupos parassindicais dentro delas concentrados na defesa de seus interesses corporativos.
Sucede que universidades não são apenas locais em que se aprende uma profissão, mas um espaço em que se tenta entender o mundo que nos cerca, tanto do ponto de vista físico como humano e social.
Foi assim que elas surgiram, há mais de 800 anos Começando com a Universidade de Bolonha, em 1088, onde grupos de estudantes de várias regiões da Europa se agruparam em torno de grandes professores estudando humanidades e Direito Civil.
Sucede que o imperador Frederico I (Barbarossa) do Sacro Império Romano-Germânico (1122-1190) reconheceu a importância desses estudos, sobretudo os que diziam respeito ao Direito Romano, que ele considerava fundamental para legitimar seu poder. Frederico deu autonomia e proteção à nascente universidade.
Ao longo dos séculos inúmeras outras universidades foram criadas em toda a Europa e sua autonomia – de modo geral – era respeitada como forma de garantir a qualidade dos estudos e pesquisas que realizava. Também ao longo dos séculos a procura do conhecimento e uma melhor compreensão da natureza, promovida por homens como Bacon, Galileu, Newton, Rousseau e muitos outros provocaram uma grande efervescência cultural e científica, que deu origem ao Iluminismo, o qual solapou as ideias retrógradas da Igreja Católica da época, que legitimavam monarquias absolutistas e os privilégios da aristocracia. O resultado foi a Revolução Francesa, de 1789, que criou o regime republicano que se espalhou pelo mundo todo.
Foram as grandes universidades, como Oxford (na Inglaterra), Harvard (nos Estados Unidos), Humboldt (na Alemanha) e Paris (na França), que consolidaram o avanço do progresso no mundo todo e foi nelas que se inspiraram brasileiros esclarecidos como Armando de Salles Oliveira, que criou a Universidade de São Paulo (USP), em 1934. A Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro) seguiu o mesmo caminho. Essas universidades educaram gerações de profissionais e homens públicos que contribuíram muito para a formulação de políticas públicas no País.
Na USP, o reitor Miguel Reale, na década dos 1970, deu-lhe uma dimensão tal que teve influência decisiva na organização do sistema universitário brasileiro. A Escola Politécnica, antes disso, teve enorme papel na consolidação da engenharia nacional. Na área médica, o prestígio da Faculdade de Medicina e o trabalho do professor (e ministro) Adib Jatene e de Sergio Arouca, da Fiocruz, foram essenciais para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos mais abrangentes do mundo. E na área ambiental o professor Paulo Nogueira Neto criou não só a legislação, como também a estrutura de todo o sistema de proteção ambiental do País.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o professor Alberto Luiz Coimbra criou a Coordenadoria de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), que é a espinha dorsal da pesquisa tecnológica na área de petróleo do Brasil.
Em 1987 o presidente José Sarney estimulou na USP a discussão sobre o papel dos partidos políticos e a convocação de uma Assembleia Constituinte.
Esses são apenas alguns exemplos do muito que já foi feito pelas universidades brasileiras na formulação de políticas públicas para o País, em que conhecimento e competência são essenciais. Um exemplo corrente é o papel que um professor como José Pastore teve na formulação da reforma trabalhista em 2018.
Contudo não se pode esperar demais das universidades. No regime presidencialista o governo escolhe suas prioridades e seus projetos para a Nação e os submete ao Legislativo, ao mesmo tempo que tenta mobilizar a sociedade para apoiá-los.
No passado recente tivemos até governos cujos projetos de Nação foram tão mal implementados que nos levaram à maior recessão que o Brasil atravessou. O atual governo não parece ter um projeto propositivo para o País, exceto na área de costumes, e seu papel acabou sendo assumido pelo Congresso Nacional, numa espécie de “parlamentarismo branco”. Em tese, isso deveria reforçar o papel dos partidos políticos, o que lamentavelmente ainda não aconteceu. Tem razão, portanto, o ministro Toffoli ao lamentar que as universidades não estejam fazendo “projetos de Nação”, como se viu no passado.
Parece oportuno tentar recuperar esse desempenho estimulando-as a realizar estudos e debates sobre os grandes problemas nacionais. O presidente Lincoln, dos Estados Unidos, fez isto 150 anos atrás (em plena Guerra Civil Americana), criando a Academia Nacional de Ciências para “prover recomendações objetivas à nação em matérias relacionadas com ciência e tecnologia”.
Essa missão é um pouco restrita para ser copiada. Um bom começo, porém, seria proceder a uma análise objetiva de algumas políticas públicas para o País, a começar por políticas educacionais, de saúde, energia e infraestrutura, áreas nas quais a competência das universidades brasileiras é indiscutível.
*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo
Carlos Pereira: Ideologia como analgésico
Decisões judiciais não congruentes com as nossas próprias ideologias e interesses também são legítimas
As pessoas, especialmente em ambientes polarizados, preferem valorizar argumentos que reforçam as suas crenças anteriores e não fatos objetivos. Elas tendem a se auto identificar a partir de atalhos políticos, ideológicos, religiosos etc. Uma espécie de trajetória cognitiva que facilita suas avaliações, mas que tende a ignorar fatos e informações, principalmente as que contrariam suas crenças com o objetivo de tornar suas escolhas mais fáceis, rápidas e congruentes.
Por exemplo, médicos americanos relataram em pesquisa que o recebimento de presentes da indústria farmacêutica geralmente seria errado. Mas quando eles mesmos enfrentaram diretamente essa situação, suas avaliações mudaram e eles passaram a enxergar essa atitude não tão errada assim, principalmente quando se lembraram do sacrifício que fizeram durante os vários anos de treinamento médico.
O mais interessante é que as pessoas tendem a desconsiderar fatos e informações sobre comportamento desonesto com mais frequência quando a pessoa que se comporta de forma desviante é ela mesma, em vez de outras pessoas distantes dela. Supostamente, é mais doloroso para as pessoas se verem desonestas do que aos outros. Como as pessoas usam estratégias de autoengano para proteger suas crenças e comportamentos, descontar informações desonestas funciona como analgésico, facilitando a atuação antiética.
A ideologia faz parte da própria identidade da pessoa de tal maneira que ela tende a se identificar com outras que compartilham a mesma preferência política. Porque as pessoas tendem a ver outras que compartilham da mesma ideologia como seu reflexo, aceitar um líder corrupto da mesma ideologia é algo muito doloroso, daí tenderem a usar suas posições ideológicas como lentes protetoras da sua consciência moral.
A ideologia, portanto, pode criar um estado de cegueira no qual as pessoas desconsideram as informações factuais quando não confirmam suas crenças anteriores. Por esse motivo, eles podem não considerar a má conduta do seu líder como errada o suficiente para reprová-la. Se o desvio não é visto como tão errado, as pessoas podem acreditar que não é um problema suficientemente forte para deixar de admirar e seguir esse líder.
Talvez não seja por coincidência que partidários e simpatizantes do ex-presidente Lula tenham comprado a sua justificativa de perseguição política para relevar sua condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, inicialmente imposta em primeira instância pelo então juiz Sérgio Moro, mas confirmada por colegiados de instâncias superiores, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que a execução da pena de um condenado pela justiça só pode ter início após o trânsito em julgado (e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau) veio a beneficiar várias personalidades investigadas pela Lava Jato, sendo o mais ilustre deles o ex-presidente Lula.
Essa decisão dividiu o País. Uma grande parcela da população a considerou ilegítima e com riscos de retrocessos à Operação Lava Jato e com potencial de inibir o combate à corrupção e à impunidade. Já para outros, em particular Lula e seus seguidores, a decisão do STF correspondeu a realização da mais pura justiça.
Ainda que tenha desagradado parte considerável da população, a decisão do STF foi legítima independentemente do placar e da direção tomada, já que obedeceu a regras e procedimentos vigentes.
Especificamente com relação ao ex-presidente Lula, seu apoio à decisão do STF que o beneficiou fecha o caminho para que o discurso de auto vitimização e de ilegitimidade das decisões que o condenaram venha a ser utilizado caso essa mesma Corte, no futuro próximo, decida contrariamente aos seus interesses. Afinal de contas, não é possível aceitar como legítimas apenas decisões judiciais que sejam congruentes com as nossas próprias ideologias.
Marcelo Godoy: Para generais, Weintraub é o ministro da ‘falta de educação’
Ataque a Deodoro da Fonseca no dia da República é mal visto por militares
Dado o ódio que dedica ao ex-presidente, podemos imaginar o tamanho da ofensa que o ministro queria dirigir ao marechal que proclamou a República há 130 anos.
Weintraub se candidata assim ao cargo de Olavo de Carvalho da Esplanada, pelo agravo aos militares e às tradições do Exército brasileiro. A ofensa não recai só sobre o velho marechal. Os cadetes que entram nas Agulhas Negras logo se familiarizam com a imagem de Deodoro no dia 15 de Novembro de 1889.
Chegamos ao traidor: tinha a confiança do Imperador, participou do golpe e não teve coragem de falar pessoalmente com Dom Pedro II que ele e sua família seriam exilados. O Brasil foi entregue às famílias oligarcas que, além do poderio econômico, queriam a supremacia política.
“Nunca vi nada igual”, disse sobre o ataque um general que passou pelo Comando Militar do Planalto e pelo Comando Militar do Sudeste. “Faltam educação e civismo ao ministro da Educação”, afirmou. “E respeito às Forças Armadas”, completou um coronel.
Dias antes, o general Edson Pujol, comandante do Exército, dera uma lição em texto publicado pelo 'Estado' sobre o papel do Exército na Proclamação da República. Disse Pujol sobre o republicanismo e os militares:
“Tal posicionamento refletia a adesão à causa republicana de parcela da oficialidade, em grande parte jovens influenciados pelas ideias positivistas de Augusto Comte, professadas pelo tenente-coronel Benjamin Constant e difundidas em sua cátedra na Escola Militar da Praia Vermelha. Com a criação do Clube Militar, em 1887, sob a liderança do marechal Deodoro e do próprio Benjamin Constant, fortaleceu-se a participação do Exército na mudança do regime.”
O dançarino Weintraub tem o direito de ser monarquista. Dentro e fora do governo. Mas, dentro dele, deve saber que é um ministro e não devia ofender a memória de Deodoro. Weintraub desrespeita não só o marechal. Também ataca os valores republicanos ao chamar a Proclamação de “infâmia”.
A República é o governo das leis, contra os privilégios, em busca do bem comum. O ministro se compraz com suas convicções. Esquece da escravidão, do Conselho de Estado, do Senado vitalício, do governo irresponsável... O problema é que os fatos criam aporias insuperáveis às visões desconectadas do real. Sobra-lhe um discurso vazio, sem a ossatura da realidade.
O agravo ao marechal esquece ainda que ele foi um herói da Guerra do Paraguai, de combates como Tuiuti, Humaitá, Curupaiti e outros. Ele transforma a honra do militar em artigo para memes lacradores nas redes sociais. Nada mais vulgar.
O ministro age dentro da lógica da milícia virtual que o bolsonarismo mantém na internet, que se diverte ao enxovalhar a honra e ameaçar a família dos que se lhe opõem. Que o digam a deputada federal Joice Hasselmann e o ex-ministro Gustavo Bebianno.
O bolsonarismo cria as próprias crises que põem em risco o governo, como salientou, recentemente, o general Paulo Chagas. Como resposta ao ministro, Deodoro poderia repetir o que disse em entrevista dois meses antes de dar cabo ao regime monárquico: “Se tivesse de ir ao céu, São Pedro servir-me-ia de vaqueano; se tivesse de ir ao inferno, pediria a qualquer político que me guiasse.”
O leitor viu aqui que o general Pujol explicou o sentido da participação do Exército na República. “Transcorridos 130 anos de experiência republicana, os integrantes do Exército de hoje encontram-se empenhados em um processo de transformação com vistas à obtenção de novas capacidades para o cumprimento de renovadas missões. Mas mantêm o compromisso legado pelas gerações passadas, calcando no culto à liberdade e à democracia e no amor à Pátria, o que confere ao Exército os mais altos índices de credibilidade junto à Nação brasileira.”
Weintraub, o ministro da falta de educação - nas palavras de outro general -, não se desculpará pela ofensa a Deodoro. Ele conta com o silêncio do capitão Jair Bolsonaro diante do agravo lançado ao marechal. São circunstâncias como essa que demonstram o quanto os valores militares e da República são importantes para o presidente e para seu governo.
Eliane Cantanhêde: É ‘toma lá, dá cá’?
Toffoli e Bolsonaro precisam afastar a suspeita de ‘toma lá, dá cá’ entre Executivo e Judiciário
O ano está terminando? Depende para quem, porque o Supremo, que está passando por 2019 sob pressão, ainda tem longos dias pela frente até o recesso de fim de ano e promete um 2020 também agitado. Desde já, 2019 está adentrando 2020 no STF. Isso, aliás, vale não só para o Supremo, mas particularmente para seu presidente, Dias Toffoli.
A percepção da sociedade sobre a mais alta corte do País já foi muito boa, em especial no julgamento do mensalão, considerado o mais importante da história no combate à corrupção. Mas essa percepção foi amarelando e não anda lá às mil maravilhas.
Há uma forte incompreensão sobre a liberação em série de presos e às vezes corretas e necessárias advertências contra o excesso de prisões preventivas e temporárias, nem sempre deferidas dentro da estrita legalidade e geralmente se estendendo além do razoável, ou permitido.
A isso se some a divisão do STF, o ambiente belicoso e a exposição pela TV Justiça das trocas de desaforos e insinuações entre aqueles senhores tão solenes em suas togas e nem tão elegantes na manifestação de suas divergências. Todos esses fatores somados, o resultado é uma suspeita que se consolidou por toda parte: a de “acordão” para esvaziar a Lava Jato.
O caldo entornou de vez, principalmente no caldeirão das redes sociais, com a reviravolta na autorização da prisão após condenação em segunda instância, com um voto estranho e desconfortável de Toffoli, que foi quem levou a questão à pauta apesar de não haver fato novo nem mudança no plenário e, no fim, num voto mais do que estranho, jogou a confusão no colo do Congresso.
Câmara e Senado que se virem para trazer de volta a regra, confirmada pela terceira vez e agora derrubada pelo mesmo plenário do STF, o que torna tudo ainda mais irritante para uma opinião pública aflita e exaurida com a eterna impunidade e injustiça quando se trata de réus ricos e poderosos.
Nesse mix de erros, de condução, de decisões e de comunicação, confundindo os cidadãos, desgastando a imagem da instituição e subtraindo confiança na Justiça, só faltava uma coisa: o presidente do Supremo personificar esses erros e concentrar a ira das redes. Não falta mais.
A revelação de que Toffoli exigiu do Banco Central o acesso aos relatórios financeiros produzidos nos últimos três anos pelo Coaf, agora em novo endereço e rebatizado como Unidade de Inteligência Financeira (UIF), joga muito mais lenha na fogueira.
Para piorar, essa decisão de Toffoli veio a reboque de seu ato monocrático que suspendeu centenas de investigações da PF e do Ministério Público com base em dados fornecidos pelo então Coaf sem autorização judicial, beneficiando alvos de toda a natureza.
E... Toffoli assim agiu atendendo pedido justamente da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República.
Enquanto Toffoli se recusa a considerar o recurso do procurador-geral da República, Augusto Aras, e desistir de ter acesso a dados financeiros de 600 mil cidadãos, o plenário do STF se prepara para julgar nesta quarta-feira, dia 20, se mantém ou não aquela primeira decisão do presidente da Casa, favorecendo o senador Flávio e os investigados com base no Coaf.
Esse julgamento é mais um importantíssimo neste 2019 sem fim, porque traz de volta o já bem conhecido Queiroz e joga o foco em Flávio Bolsonaro, Toffoli, Supremo e o próprio presidente Jair Bolsonaro. Ele alardeia que não se rendeu ao “toma lá, dá cá” do Executivo com o Legislativo, mas o que precisa muito é afastar a suspeita de que o “toma lá, dá cá” passou a ser com o Judiciário. Mais grave ainda: dele com Toffoli.
Vera Magalhães: Contradição suprema
Enquanto presidente depende do STF, bolsonaristas pedem impeachment de ministros
Este domingo será um teste interessante para o bolsonarismo. Grupos que apoiam Jair Bolsonaro e tiveram um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff, na campanha presidencial de 2018 e, neste ano, ao levar pessoas às ruas em defesa de pautas do governo, convocam para hoje uma manifestação pelo impeachment de Gilmar Mendes. E poucas pautas poderiam ser mais inconvenientes para o “mito” dos organizadores do que esta. E aí reside a contradição suprema do governo Bolsonaro, aquela que pode ser sua kriptonita.
A pregação anti-instituições e a campanha sistemática contra os demais Poderes, tendo as milícias virtuais como exército, são da essência do projeto bolsonarista de poder, todo ele calcado no culto à personalidade do líder e de sua família barulhenta.
Acontece que cedo demais, já na transição, o filho 01 saiu do meio dos moralistas de ocasião em que o bolsonarismo calcou seu discurso para cair no noticiário da mais velha política: seu assessor Fabrício Queiroz, amigo da vida toda do patriarca Jair e faz-tudo dos gabinetes da família, surgiu em movimentação financeira para lá de atípica a partir de um relatório do Coaf. A partir daí descortinou-se um cenário de funcionários fantasmas, muitos ligados à milícia carioca, depósitos de assessores na conta de Queiroz, transferências deste para a conta da primeira-dama, Michelle, saques em dinheiro de Flávio e toda sorte de práticas seguidas de explicações furadas – empréstimos não declarados no Imposto de Renda, supostas transações com carros e até a admissão de que se recolhia dos funcionários dinheiro para as campanhas de Flávio.
Do jeito que a coisa ia, o caso do filho ameaçava dragar a família presidencial para um escândalo do tipo em que uma informação puxa outra mais desconcertante e difícil de justificar. Até que, em julho, uma liminar de Dias Toffoli paralisou não só o caso Queiroz, mas todas as investigações a partir de relatórios do Coaf sem autorização judicial.
Pane na cabeça da militância bolsonarista: como assim? O até então inimigo Toffoli, do até então combatido STF, passou a ser o fiador da paz política da família Bolsonaro. E seguiu-se no entorno do presidente um silêncio ensurdecedor em relação a tudo que partisse do Supremo: inquérito que tudo pode, possibilidade de anulação da sentença de Lula, fim da prisão em segunda instância.
Mas como esse tipo de contradição costuma gerar curto-circuito mesmo em robôs fidelizados, uma parcela da tropa não aceitou o “caladão” e continuou a campanha pelo “fora Gilmar” (autor de uma liminar que reforçou a blindagem a Flávio) e “fora Toffoli”. Este domingo será o teste, que ocorrerá justamente às vésperas de o plenário da Corte analisar o mérito da liminar que sustou as investigações do Coaf (hoje UIF) e da Receita.
O tamanho dos atos e a presença ou não de bolsonaristas de carteirinha – como a deputada Carla Zambelli, ligada ao movimento Nas Ruas, que está à frente das mobilizações – mostrará se a ordem unida pelo silêncio antes de decisão tão importante para a família presidencial foi respeitado.
De toda forma, a cizânia no antes monolítico movimento bolsonarista – que se dá nas redes e também na implosão do PSL e dissidência rumo à ultrarreacionária Aliança pelo Brasil– é evidente e tende a se aprofundar quanto mais ficar claro que todo o apelo moralista da nova política não resiste à contraposição com a história de Bolsonaro, que fez da política um negócio familiar, à custa do qual construiu um patrimônio milionário e cujas ramificações ainda podem vir à tona. Neste momento, mais do que nas ruas, a faca e o queijo estão nas mãos do Supremo Tribunal Federal, de novo.
Alberto Aggio: Aporias da ‘frente democrática’
A competição eleitoral não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação
A queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro fez com que se abrissem especulações a propósito do quadro sucessório, que, por sinal, ainda vai longe. Diante das dificuldades de governança cada vez mais evidentes, o próprio presidente não se furtou a estimular o desvelamento do quadro de oponentes, fosse ele composto pelo que resta da oposição derrotada na eleição que lhe garantiu o poder ou por aqueles que, vendo os problemas de largo calado do governo, passaram a buscar um espaço para iniciar a órbita em direção a uma possível candidatura futura.
Sem um projeto claro a perseguir como marca de seu governo, além da confusa intenção de destruir o que “a esquerda impôs ao País” durante as três últimas décadas, a Bolsonaro interessa que a questão eleitoral permaneça flutuando como tema a possibilitar-lhe uma contraposição retórica com seus possíveis adversários. Sua sucessão passou a ser um instrumento usado pelo presidente para medir a temperatura em relação aos seus apoios, sem necessitar, mais uma vez, ceder à articulação com o mundo político. Bolsonaro continua investindo suas fichas nas correias de transmissão que lhe garantiram a vitória eleitoral, com prevalência nas redes sociais.
Permanecer com o porcentual de apoio que lhe garanta a passagem para o segundo turno em 2022 parece ser o objetivo que está por trás dessa estratégia.
Ao admitir que disputará sua própria sucessão, contraditando discurso de campanha, quando defendeu o fim da reeleição, Bolsonaro aferra-se à ideia de que o melhor cenário seria não permitir o surgimento de novos postulantes, consolidando a contraposição eleitoral com o PT, o que lhe garante um público cativo e, supostamente, poderia dar-lhe novamente a vitória. Contudo, como se viu, emergiram alguns nomes, uns mais e outros menos abertamente, que procuraram aproveitar-se da oportunidade para se colocarem como protagonistas dessa precoce contenda. No cenário que se instalou, podem-se identificar alguns “dissidentes” em velada campanha. Outros, na oposição derrotada, pleiteiam uma nova identidade para esse campo, mas há ainda aqueles que acalentam uma confrontação entre “mitos” e continuam a reiterar os velhos bordões de antes. De novidade apenas uma reaparição, até certo ponto esperada, a prometer superar o “último” dos vários “ciclos de erros” vividos pelo país nos últimos tempos.
Em razão da fraqueza da oposição, voltou-se a especular sobre a necessidade de articulação de “frentes” para se contraporem a Bolsonaro. De imediato se propôs uma “frente de esquerda”, antigo mote de uma esquerda ancilosada. Uma opção pela afirmação ideológica e pelo isolamento político, sem nenhuma chance eleitoral verdadeira. De outro lado, fala-se numa “frente democrática”, repondo, de certa maneira, os termos do enfrentamento virtuoso contra a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980. Trata-se de uma proposição mais realista, de memória positiva, bastante complexa nos tempos atuais, que carrega, é preciso dizer, uma certa coloração passadista.
É verdade que foi Bolsonaro quem passou a enfatizar um certo apadrinhamento de seu governo com o regime militar (1964-1984). Mas Bolsonaro expressa mais um setor ou facção reacionária daquele regime do que o seu conjunto. Essencialmente reacionárias, suas declarações e ações políticas guardam um tom de ameaça ao regime democrático da Carta de 1988, o que justificaria a união de forças em defesa da democracia. Sob Bolsonaro boa parte da Nação começa a dar-se conta de que não pode permanecer sob tutela de uma facção insidiosa e deve buscar o diálogo entre diferentes setores político-ideológicos.
No passado, a existência de um “partido-frente”, como foi o MDB, facilitou o sentimento de unidade e a construção daquela “frente democrática”. Atualmente, os partidos e atores políticos estão abertamente em competição eleitoral e isso dificulta a reposição daquele sentimento, bem como sua articulação política num ator relevante. Depois do êxito do PT e de Lula, abriu-se uma fase de “democracia de audiência”, na qual a combinação de interesses com os da mídia, sancionados por pesquisas quase diárias, se estabeleceu como critério decisivo para os atores políticos. Daí partidos e lideranças se terem tornado essencialmente pragmáticos, além de midiáticos, o que acabou por redefinir os termos da competição política. É de perguntar se uma “frente democrática”, baseada numa perspectiva defensiva, encontrará passagem no tipo de política que vivenciamos.
Uma “frente democrática” contra o reacionarismo bolsonarista necessitará apresentar propostas de reformas concretas à Nação, como exposto na entrevista do cientista político José Álvaro Moisés ao Estado (30/9), na qual se postulam temas de qualificação da nossa democracia, como a implantação imediata do voto distrital misto. Certamente outras pautas, de caráter econômico-social, poderiam ser agregadas a essa.
A decisão do STF cancelando a prisão em segunda instância e a soltura de Lula jogam o PT no centro da cena política, complicando mais ainda o quadro eleitoral. Em certo sentido, dá falsas esperanças a uma “frente de esquerda”, que dificilmente se agregará em torno de Lula. Além disso, não dilui a tese da divisão de três terços, acentua a polarização e, por fim, coloca barreiras intransponíveis à fórmula da “frente democrática”.
A rearticulação do centro político em torno de ações políticas renovadoras em sentido democrático talvez seja o novo nome da “frente democrática”. O cenário latino-americano é, como sabemos, de crispação. O Brasil pode se afastar disso forjando um programa comum que se apresente como alternativa a este governo reacionário de facção que aí está. A competição eleitoral, como na Espanha, não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação, para espantar as divisões e o facciosismo.
Luiz Sérgio Henriques: De curtos-circuitos e centelhas
A sedução do homem providencial percorre como praga a política latino-americana
Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.
Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.
Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.
No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.
A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.
Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.
A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.
Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.
Almir Pazzianotto Pinto: Velha e desacreditada
É inadiável a substituição, sem golpe de Estado, da atual Constituição
Para os padrões brasileiros, a Constituição de 1988 atingiu a velhice. Mais longevas, a Carta Imperial de 25 de março de 1824 e a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. A primeira durou 65 anos; a segunda, 40. Ambas foram emendadas uma só vez.
A Constituição de 16 de julho de 1934 foi abatida pelo golpe de 10 de novembro de 1937, aos três anos de vida. A Carta Constitucional editada no mesmo dia teve vida acidentada. Recebeu 21 emendas e sobreviveu até a queda de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945. A Constituição promulgada em 18 setembro de 1946 sofreu o impacto do Ato Institucional de 10 de abril de 1964, editado pelos comandantes-chefes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em nome do “movimento militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva do seu futuro”, como escreveram no manifesto à Nação. Seguidos atos institucionais e complementares, baixados pelo presidente Castelo Branco, impuseram-lhe a pena de morte e a substituição pela Constituição de 24 de janeiro de 1967, de brevíssima duração. Ferida pelo Ato Institucional n.º 5, de 13/12/1968, sucumbiu diante da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1968, nossa sétima Constituição e a segunda de origem discricionária.
Depositária dos anseios dos miseráveis esquecidos, da classe média empobrecida, dos desempregados, a Assembleia Nacional Constituinte eleita em 15 de outubro de 1986 foi instalada no em 1.º de fevereiro de 1987 sem pompa e circunstância, em sessão ruidosa e tumultuada. Deveria ser o primeiro passo na tarefa de erradicação de antigos problemas sociais, políticos, morais e econômicos. Passados mais de 30 anos, o exagerado otimismo foi desmentido pelos fatos.
Entre os 559 constituintes destacavam-se veteranos e escolados representantes da velha política, conhecidos como “raposas”. A maioria não tinha conhecimentos da história, de economia, da origem e do conteúdo das Constituições anteriores. Alguns poderiam ser qualificados como medíocres. Poucos juristas se confundiam entre deputados e senadores ávidos de poder e sob a pressão de lobistas. Para muitos a experiência parlamentar se reduziu a um único mandato. Nas eleições seguintes voltaram ao justo anonimato.
Construída ao sabor do acaso, sem arcabouço elaborado por especialistas imbuídos de espírito cívico, a oitava Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988 com 245 artigos, ao qual veio apensado o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), trazendo 70 regras de transição. O artigo 3. º do ADCT fixou período de carência de cinco anos a partir do qual seriam admitidas emendas de revisão. Em 6 de outubro de 1993 abriram-se largos portões aos remendos, iniciados com a promulgação da Emenda n.º 1, em 2 de março de 1994. Desde então foram introduzidas seis emendas de revisão e cem emendas constitucionais, às vésperas da 101.ª, que tratará da reforma administrativa, à qual se seguirão outras à espera de movimentação.
O prazo de validade da Lei Fundamental está vencido. Não serão emendas que vão reconstruí-la, para aproximá-la do ideal. Ao contrário, quanto mais emendada, maior e mais aberta a violações e perigosas interpretações.
Sendo assim, por que não cobrar dos partidos que apresentem, nas eleições de 2022, como plataforma de governo, o projeto de nova e breve Lei Orgânica Nacional, limitada a descrever a composição e as competências dos três Poderes e as relações entre eles e os cidadãos? O que não é constitucional ficará para a legislação ordinária, flexível, facilmente reformável. Assim ordenava o artigo 178 da Carta Imperial de 1824, inspirado no constitucionalismo inglês, apontado como chave de seu êxito e durabilidade.
A nona Constituição poderá ser presidencialista ou parlamentarista. Preservará, porém, a República federativa, a pluralidade partidária, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, o princípio da legalidade, o devido processo legal, o habeas corpus, a ordem econômica fundada na livre-iniciativa, a liberdade de imprensa, a função social da propriedade, a dignidade do trabalho, a busca do pleno emprego. Para assegurar-lhe estabilidade cláusula pétrea deverá defendê-la de alterações durante 20 anos.
Os candidatos se comprometerão a reduzir o tamanho do Estado, a robustecer o sistema federativo, a restabelecer o princípio do duplo grau de jurisdição, a extinguir o Fundo Partidário e o Fundo de Financiamento Eleitoral, a diminuir o número de deputados federais, estaduais e senadores, a reduzir a carga fiscal.
Imprimindo caráter plebiscitário às eleições de 2022, os partidos deverão apresentar como alternativas: 1) revisão integral da Constituição de 1988, destinada a enxugá-la de maneira definitiva, ou 2) convocação de Assembleia Constituinte exclusiva, destinada a referendar Lei Fundamental projetada por equipe de constitucionalistas de ilibada reputação e reconhecido saber jurídico, referendada em consulta nacional.
O defeito da Constituição de 1988 reside no texto minucioso, extenso, impreciso. Vêm à lembrança palavras de Pablo Lucas Verdú: “A prolixidade de uma Constituição se paga ao preço da dificuldade de interpretação. A dificuldade de interpretação, com o fracasso da aplicação” (Curso de Direito Político, Ed. Tecnos, Madri, 1986, vol. II, pág. 440). Transbordante de boas intenções, a Constituição foi elaborada com desprezo à realidade. Os resultados são conhecidos. Podem ser aferidos na radicalização do cenário político, na insegurança jurídica, na crise econômica, no aumento da litigiosidade, na corrupção, na expansão da miséria.
“Fazer um Estado que seja verdadeiro quer dizer fazer uma Constituição que seja verdadeira”, disse Charles de Gaulle e registrou André Malraux em Antimemórias. É inadiável a substituição, sem golpe de Estado, da Constituição. Não se incorrendo, porém, nos excessos da Assembleia Nacional Constituinte.
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho