O Estado de S. Paulo

Lourival Sant'Anna: Golpes à democracia

Rússia, China, Brasil e EUA assistem a processos de enfraquecimento da democracia ao longo do ano

A democracia sofreu golpes na Rússia, China e Estados Unidos na semana que passou, mas recebeu alentos na Europa e no Brasil.

Um referendo aprovou mudanças constitucionais que permitem a Vladimir Putin se eleger para mais dois mandatos de seis anos, a partir de 2024, quando termina o atual. Muitos russos gostam de Putin, que identificam com a estabilidade, depois das rupturas traumáticas dos anos 90. Mas muitos não votaram exatamente pela sua perpetuação no poder. A consulta era sobre um pacote de emendas, que atrela o salário mínimo a um cálculo de renda mínima, corrige as aposentadorias pela inflação e declara casamento união entre homem e mulher. As opções eram sim ou não para o pacote todo.

A propaganda em torno do referendo focou nos benefícios salariais e no ataque ao casamento de homossexuais, numa Rússia que se tornou mais conservadora nas últimas duas décadas sob Putin, aliado da Igreja Ortodoxa. Ele governa a Rússia desde 1999. Em 2036, terá 83 anos.

O regime chinês emendou a Lei Básica de Hong Kong, introduzindo normas de segurança que, essencialmente, criminalizam os protestos, com prisões perpétuas por motivos vagos, como “subversão” ou “vinculação com estrangeiros”. Centenas de pessoas já foram presas. Na prática, deixa de existir o status de semiautonomia, e o modelo de “um país, dois sistemas”, consagrado no acordo da devolução do território à China pelo Reino Unido, que deveria durar 50 anos, até 2047.

O presidente Donald Trump deixou claro que investirá na divisão dos americanos para tentar se reeleger em novembro. Em um tuíte, por exemplo, ele disse que pode revogar uma lei que beneficia moradia de negros nos subúrbios, porque ela “desvaloriza” o patrimônio de “grandes americanos”. Noutro, afirmou que a frase “Vidas Negras Importam”, pintada pela prefeitura de Nova York na 5.ª Avenida, onde ele tem escritório, “denigre uma avenida luxuosa”.

Em contrapartida, a vitória dos Verdes nas eleições municipais francesas, domingo passado, representa um alento para a democracia: trata-se de uma corrente da esquerda europeia que se atualizou, entendeu a importância do papel das empresas na preservação ambiental, e se prontifica a fazer alianças com grupos conservadores. Essas alianças já aconteceram em seis Estados alemães, no governo da Áustria e, há uma semana, no da Irlanda. Os ambientalistas se tornam, assim, uma alternativa à extrema direita e à esquerda estatizante, na formação dos governos europeus.

A Alemanha assumiu a presidência de turno da União Europeia. No que poderá ser a última grande missão da chanceler Angela Merkel antes de se aposentar, a UE tem três desafios este semestre: levar adiante a discussão sobre o aprofundamento de sua integração, cujas falhas ficaram evidentes na gestão desigual e descoordenada da pandemia; repartir os custos das políticas de mitigação frente à crise sanitária; e negociar os termos finais da saída do Reino Unido, cujo prazo termina no fim do ano.

O liberalismo, a expressão da democracia na economia, também ganhou um ânimo, na reunião de cúpula do Mercosul. Brasil, Paraguai e Uruguai mantiveram-se alinhados no projeto de reduzir as tarifas do bloco e negociar acordos de livre-comércio com Canadá, Coreia do Sul, Cingapura, Índia e Líbano. A voz dissonante foi a do presidente argentino, Alberto Fernández.

A democracia brasileira demonstra vitalidade, com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal retomando a iniciativa, para colocar limites às extrapolações de integrantes do governo federal. O cuidado maior com as palavras no círculo do presidente Jair Bolsonaro e a demissão de Abraham Weintraub do Ministério da Educação sugerem um reconhecimento da força dos freios e contrapesos.

Nada está jamais garantido para a democracia. Ela é uma construção cotidiana.


O Estado de S. Paulo: Estudo detecta anticorpos ao coronavírus em 5% dos moradores de São Paulo

De 520 amostras de sangue coletadas em 6 distritos de São Paulo, 27 apresentaram defesa contra a covid-19

Ricardo Galhardo e Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo

Pesquisa inédita nos seis bairros com maior incidência de covid-19 na cidade de São Paulo mostra que até o início desta semana 5,19% dos moradores dessas localidades desenvolveram anticorpos ao coronavírus. O levantamento aponta também que 91,6% dos casos de infecção estão fora das estatísticas oficiais. 

O estudo, comandado por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com apoio do Instituto Semeia e participação de profissionais do Laboratório Fleury e Ibope Inteligência, fez exames sorológicos em 520 pessoas com mais de 18 anos nesses seis bairros. E 27 apresentaram anticorpos. Estudos com testes sorológicos são importantes porque ajudam a avaliar se uma determinada população está próxima ou distante da chamada “imunidade de rebanho” – momento em que o vírus passa a ter poucas rotas de contágio, pois a maioria das pessoas apresenta anticorpos por já ter sido contaminada. Com isso, autoridades planejam com mais precisão estratégias de flexibilização das medidas restritivas. 

Na quarta, o governo do Rio Grande do Sul divulgou os resultados de estudo segundo o qual apenas 0,2% dos gaúchos já foram contaminados com o novo coronavírus. O levantamento, coordenado pela Universidade Federal de Pelotas, também estimou alta subnotificação: haveria nove casos para cada um dos notificados até o momento pelo sistema de saúde. Também na quarta-feira, o governo da Espanha anunciou dados de uma pesquisa em que cerca de 61 mil pessoas foram testadas em todo o país. O resultado decepcionou os que esperavam estar próximos da imunidade. Na média nacional, 5% dos espanhóis já foram contaminados pelo novo coronavírus – ou seja, 95% da população ainda é suscetível. Outro estudo, feito pelo Instituto Pasteur, na França, chegou a resultado parecido: 4,4% de contaminados na média do país. 

Não se sabe com segurança qual é o porcentual de habitantes que precisam desenvolver anticorpos até que se atinja a imunidade de rebanho. No caso do novo coronavírus, há estimativas que variam de 70% a 90%. Segundo o infectologista Celso Granato, diretor clínico do Fleury e um dos responsáveis pelo projeto, o número inicial reforça a necessidade das medidas de isolamento. “A Espanha teve três meses de lockdown. Nós estamos em plena fase de subida da curva e já temos mais de 5%”, disse ele. Os cientistas planejam refazer os exames pelo menos uma vez por mês. No primeiro teste foram escolhidos os três bairros com maior registro de contaminação (Morumbi, Bela Vista e Jardim Paulista) e os três com maior número de óbitos (Pari, Belém e Água Rasa), segundo a Prefeitura. 

Equipes formadas por técnicos do Fleury e pesquisadores do Ibope foram de casa em casa para coletar amostras de sangue venal dos moradores escolhidos por critérios exclusivamente estatísticos, inclusive os que não apresentaram sintoma.

O próximo levantamento, marcado para começar no dia 10 de junho, vai incluir toda a cidade. “São Paulo é o epicentro da pandemia no Brasil. Nós queríamos o epicentro do epicentro. Agora vamos fazer em toda a cidade”, disse o biólogo Fernando Reinach, colunista do Estadão, responsável por aglutinar os diversos agentes envolvidos no levantamento. A partir dos números coletados na próxima da pesquisa será possível calcular a velocidade com que a doença está se espalhando na cidade. “Os dados divulgados hoje são o ponto zero. Na próxima etapa vamos saber qual a velocidade”, disse a CEO do Ibope Inteligência, Marcia Nunes Cavallari. 

A pesquisa ajuda a dimensionar o alto índice de subnotificação. Segundo o levantamento, 91,6% dos casos estão fora dos números oficiais. O motivo é a falta de testes. Com poucos recursos apenas os casos mais graves, de pessoas que chegam a ir aos hospitais, são testados e contabilizados. Os pacientes assintomáticos ou com sintomas leves dificilmente chegam a ser testados. Estima-se que, entre os infectados, 80% desenvolvam sinais leves da doença como cansaço, febre ou dor de garganta. Já a nova pesquisa fez exames sorológicos com precisão de até 99,5% em pessoas escolhidas de acordo com critérios estatísticos, desconsiderando se os examinados desenvolveram ou não sintomas da doença. “Até agora essas pessoas eram invisíveis nas estatísticas oficiais”, disse Reinach.

Outro número revelador é a taxa de letalidade de 0,95% do vírus, bem inferior à média nacional de 6,9% do Ministério da Saúde. O motivo da diferença, mais uma vez, são pessoas assintomáticas ou com sintomas leves. “O índice de letalidade logicamente é mais alto entre as pessoas que tiveram sintomas graves, foram ao hospital ou morreram”, disse o biólogo.

Em artigo publicado nesta sexta-feira, a revista científica britânica The Lancet destaca a importância dos testes sorológicos para detectar indivíduos que desenvolveram anticorpos na formulação de políticas pós-pandemia. “A discussão atual, por exemplo, aborda a noção de que a ampliação do teste de anticorpos determinará quem é imune, fornecendo assim uma indicação da extensão da imunidade do rebanho e confirmando quem poderia entrar novamente na força de trabalho”, diz o artigo. “Mas quanto tempo dura a imunidade? A melhor estimativa vem dos coronavírus intimamente relacionados e sugere que, em pessoas que tiveram uma resposta de anticorpos, a imunidade pode diminuir, mas é detectável além de um ano após a hospitalização. Obviamente, estudos longitudinais com duração de pouco mais de um ano são pouco tranquilizantes, dada a possibilidade de outra onda de casos de covid-19 em 3 ou 4 anos.” 


Eliane Cantanhêde: Fim do Mundo

Brasil no epicentro da pandemia, Moro depondo, Bolsonaro e povo sem entender nada

O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, grande orador e um dos maiores estadistas do século 20, previu numa conferência do InterAction Council, fundação que reúne ex-chefes de Estado e de governo, em Xangai, em 1994, que o fim do mundo não seria por guerras e bombas, mas sim por uma doença desconhecida disseminada pelas migrações massivas. O Homo Sapiens surgiu de uma mutação genética e seria destruído por um vírus.

O relato é do ex-presidente José Sarney, que estava presente, ao lado de figuras lendárias como Henry Kissinger, Robert Mcnamara e o fundador de Cingapura, Lee Kuan Yew. Ao completar 90 anos, Sarney mantém íntegros a memória primorosa e o capricho ao contar histórias, uma característica dos maranhenses.

Quanto ao fim do próprio mundo não se sabe, e espera-se não saber tão cedo, mas a sensação é de fim do mundo no Brasil, que vai se transformando no novo epicentro da covid-19, com a economia e os empregos implodindo e uma crise política absurda. Em meio ao caos, o presidente da República e milhões de pessoas continuam sem entender nada.

As manchetes de sábado reproduziam a realidade. Estado: “Impeachment é a última opção”, segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso; “Ninguém vai querer dar um golpe em cima de mim”, declarava o presidente Jair Bolsonaro; “A incógnita Mourão nos bastidores do poder”, informava a Coluna do Estadão. Globo: “Brasil vira um dos polos globais da covid-19”. UOL: “Bolsonaro ameaça demitir ministro que não ceder cargos ao Centrão”.

O ex-ministro Sérgio Moro detalhava à PF e ao MP suas acusações ao presidente. Local: justamente a Superintendência da PF em Curitiba, onde o ex-presidente Lula ficou preso por 580 dias, condenado por Moro e pelo TRF-4 no caso do triplex do Guarujá. Alvo do depoimento: Bolsonaro, pivô da ação que pede ao STF o impedimento do ex-juiz nos processos de Lula. Moro condenou Lula e pode condenar Bolsonaro. Alvo da esquerda lulista, é agora também da direita bolsonarista.

O destino de Bolsonaro está nas mãos e nas provas que Moro diz ter. O destino do governo depende institucionalmente do STF e do Congresso e, politicamente, dos militares e do Centrão. Tudo embrulhado nas milhares de mortes, a maior recessão da história, um oceano de empresários quebrados e trabalhadores desempregados e, portanto, um cenário social nada tranquilizador.

Alheio à realidade, o povo volta em massa às ruas e à sanha do coronavírus, que ganha a guerra sem esforço e adversários. Há os desesperados que se amontoam para dividir o vírus e a esperança de R$ 600,00. Os que enfrentam o vírus “como homens, não como moleques”. E os perversos, que salvam a própria pele, mas não estão nem aí para a pele de pobres e trabalhadores.

É assim que o Brasil vai se destacando nas manchetes internacionais e até nas entrevistas de Donald Trump como a “bola da vez”, mesmo com a China sob críticas, desconfianças e forte recessão, a Europa juntando os cacos, a África esperando bovinamente a sua vez e os próprios EUA atingindo 70 mil mortos e uma avalanche de desempregados jamais vista.

A imagem do Brasil vem sendo devastada por ataques à OMS, votos na ONU, o presidente contra o isolamento e pró atos golpistas, os textos alucinados do chanceler Ernesto Araújo. E o casal de bolsonaristas, com a bandeira nacional, atacando enfermeiros clamando pacificamente por melhores condições de trabalho e portando cruzes negras pela morte de colegas?

Em todos os países, homenagem e reverência ao pessoal da saúde, que arrisca (e perde) a própria vida para salvar vidas. Não na capital do Brasil. Aqui, até os enfermeiros são “comunistas”, os vilões da história.


Vera Magalhães: O ‘e daí’ como política

Ao agir como inimputável sem sê-lo, Bolsonaro banaliza as instituições e a vida

A Constituição diz que todos são iguais perante a lei e, assim, devem responder por seus atos, com exceção dos inimputáveis, que ela mesma trata de apontar. Os inimputáveis são considerados assim porque, no momento em que cometem alguma infração, são incapazes de discernir a gravidade de seus atos.

Jair Bolsonaro, desde o início de 2020, age como alguém que pretende alcançar a inimputabilidade. Alheio à forma como coloca em risco a saúde pública, num momento, e afronta as instituições democráticas, no seguinte, apela a uma narrativa em que se esquiva de responsabilidade pelos seus atos, aponta inimigos imaginários a justificar as próprias arbitrariedades e pede ao povo, o mesmo que coloca em risco, uma blindagem para as contenções de suas atitudes previstas na Constituição, e exercidas pelos demais Poderes, pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade civil organizada.

É o “e daí”, não por acaso uma das expressões mais repetidas pelo capitão, elevado à condição de política de Estado. Resta saber se esses mesmos agentes sobre os quais recai a missão de conter o presidente vão dar de ombros à pergunta cínica ou vão responder a Bolsonaro que “e daí o senhor não pode agir como está agindo”.

Neste sábado, pela enésima vez desde o início da pandemia do novo coronavírus e depois de o Brasil cruzar a marca de 6.000 mortos pela covid-19, o presidente da República que se quer inimputável promoveu aglomeração de pobres e idosos num entorno desfavorecido de Brasília. Demonstra num só ato sua absoluta ausência de empatia com os mais vulneráveis, sua completa incapacidade para gerir o País numa emergência de saúde e sua covardia política, pois só foi dar o novo rolê da morte porque queria chamar a atenção da imprensa e dos poucos fanáticos que continuam a apoiá-lo e desviá-la do temível depoimento que Sérgio Moro daria em seguida no inquérito que investiga se o presidente tentou aparelhar politicamente a Polícia Federal para blindar apoiadores e filhos.

Ao agir como um inimputável sem sê-lo, o presidente dá uma banana para as instituições e para seus governados. Dobra a aposta na crença de que ninguém fará nada contra ele e mostra que, para ele, a vida é algo banal, que pode ser mercadejada na bacia das almas da tentativa de salvação política.

Afinal, se mais pessoas morrerem, não se poderá jogar “no seu colo” a responsabilidade, pois, afinal, o STF deu aos governadores prerrogativa de determinar as regras de distanciamento social. Ignora – e acredita que a opinião pública fará o mesmo, pois a subestima, medindo-a pela régua da própria mediocridade – que é justamente o boicote que promove diuturnamente ao necessário isolamento que o torna poroso, insuficiente, e agrava o quadro de saúde Brasil afora.

Não adianta arrotar orgulhosamente a própria inimputabilidade, presidente. O Supremo, a imprensa, o Congresso e a sociedade existem e vão cobrar do senhor, que foi eleito democraticamente, embora escarneça até da própria vitória, colocando-a irresponsavelmente e sem provas em dúvida, para governar o Brasil segundo os preceitos constitucionais.

Não adiantará tentar redefinir o princípio da impessoalidade, dizendo que amigo não está enquadrado nele, como fez em mais um pronunciamento sem pé nem cabeça.

Os mortos que se somam em progressão geométrica são a demonstração corpórea, inescapável, de que o “e daí” elevado à condição de política de Estado é, sim, razão para que o presidente seja confrontado com os limites institucionais. Que o Supremo se mantenha firme no caminho – que tem demonstrado que está consciente de ser o seu dever – de mostrar ao pretenso inimputável que ele não o é.


Antônio Claudio Mariz e Fábio Tofic: Há crime quando não há ética nem há política

O rancor, a arrogância e a prepotência podem se transformar em fatores criminógenos

O direito penal nunca deixou de ser assunto na vida nacional, mas de uns anos para cá assumiu um protagonismo fora do normal. Restrito antigamente às páginas policiais ou lembrado vez ou outra em algum evento da política, nos últimos anos roubou a cena, de modo que não há dia em que ao menos uma grande manchete do caderno de política não seja sobre crime, acusações, inquéritos, sentenças, etc...

A pandemia de covid-19 parecia que ia pôr um fim ao penal-centrismo, com forte viés punitivo, a que o País vinha assistindo. No entanto, o direito penal no Brasil parece predestinado a ocupar lugar de destaque mesmo em momentos excepcionais como este que vivemos.

Primeiro foi o próprio Executivo federal criando polêmica com a edição de portarias que anunciavam risco de prisão a quem descumprisse regras de isolamento e quarentena, prisões que até chegaram a ser feitas, como noticiado pela mídia.

Foi, porém, o pronunciamento do ex-ministro Sergio Moro, ao anunciar sua saída do governo, o responsável por trazer de volta, e a galope, o direito penal para o centro do debate político nacional.

Moro desfiou um rosário de crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente da República, desde falsidade ideológica até corrupção, prevaricação, passando ainda pelo novato crime de obstrução de Justiça. A fala cifrada do ex-ministro põe suspeitas até sobre sua própria conduta, como no caso de ter admitido que solicitou ao presidente a edição de uma lei que, em caso de atentado, pudesse garantir alguma salvaguarda financeira à sua família.

Ambos, presidente e ex-ministro, parecem se achar protegidos pela aura de cidadãos especiais, merecedores de tratamento diferenciado perante a lei. Afinal, que espécie de lei seria essa que já não exista para socorrer as famílias dos milhares de policiais, bombeiros e outros agentes que lidam com o alto risco em suas funções? Ou, se deficiente a lei vigente, por que uma salvaguarda especial para o ministro, e não algo extensivo a todos? Enquanto o presidente parece acreditar que, enquanto chefe do Executivo, pode usar a Polícia Federal como escritório privado de investigação a serviço dos próprios interesses, o ex-ministro se arroga o direito a um estrambólico seguro para um cargo demissível ad nutum.

Muito embora o direito penal possa parecer a panaceia para todos os males que nos afligem, ele não é capaz de nos tirar da crise em que nos encontramos. A crise é política e só a política é capaz de fornecer os antídotos que nos livrarão dela.

A política, entendida como arte e ciência empregadas para o alcance do bem comum, tem como substrato a ética, que constitui um dos pilares de sustentação da sociedade. Para o enfrentamento de questões cruciais de interesse coletivo, política e ética não podem ficar afastadas, sob pena de se instalar o caos e a ruptura sociais.

No entanto, a política e a ética, neste momento da História brasileira, parecem ter sido postas de lado pelos dois protagonistas citados, e por tantos outros homens públicos. Foram substituídas por condutas que claramente violam os princípios e objetivos que regem a política sã e afrontam a ética no seu sentido mais abrangente.

Observe-se que outros princípios que valorizam e emprestam dignidade à vida em sociedade foram postos de lado, e já há algum tempo, abrindo espaço ao destempero, à desarmonia e à belicosidade. Assim, o respeito à divergência e à convivência com os contrários, que é da essência da democracia, o respeito à verdade, o respeito à liberdade e aos direitos alheios e tantas outras qualidades civilizatórias estão dando lugar à intemperança e à intolerância raivosa.

Esse comportamento vem dando mau exemplo e espalhando um ensinamento que poderá levar, se já não está levando, o homem brasileiro a revelar uma face cruel e abjeta, que é o ódio.

Hanna Arendt disse que o mal banalizado rompe todas as barreiras éticas e morais e vai se incorporando ao nosso cotidiano. É exatamente esse o clima que está sendo implantado no seio da nossa sociedade.

Na verdade, o mal da intolerância está permeando todo relacionamento interpessoal. Não há tolerância com o pensar diferente, com o contrário. De fato, essa característica representa a negação do espírito democrático, que deveria reger toda ação política.

A democracia não se exaure com o exercício do voto. Deve constituir um instrumento de paz social, pois conduz à convivência harmoniosa dos contrários. Infelizmente, o quadro hoje posto provoca preocupantes efeitos colaterais. O principal é a intolerância, que se tem tornado um padrão de comportamento.

O rancor, a arrogância e a prepotência, filhos diletos da intolerância e do ódio, podem se transformar em fatores criminógenos. Aliás, os crimes contidos nas falas acima referidas, do presidente e do ex-ministro, são um espelho de uma convivência marcada por antagonismo, incompreensão e não aceitação do contrário.

Em realidade, o comportamento desabrido daqueles que deveriam dar exemplos edificantes tem causado hábitos de intemperança e desrespeito ao próximo. Maculam-se reputações sem nenhum escrúpulo, com assustadora leviandade, por meio das redes sociais, hoje transformadas em instrumento de difusão de mentiras e de agressões.

*Advogados criminais


Fernando Henrique Cardoso: Não esquecer

Passada a tormenta, vê-se que o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes

O tema é repetitivo e desafiador: o coronavírus. Procuro me afastar dele dia e noite, mas ele nos envolve. O vírus está por toda parte, principalmente em nossa alma. Meus pais tinham na memória a “gripe espanhola”. Quiseram de novo tachar o coronavírus como “vírus chinês”. Não pegou, e ainda bem. A propagação do vírus pelo mundo faz-me recordar a advertência do Antigo Testamento: “Pulvis est et in pulvis reverteris” - somos pó e a ele voltaremos. Diante da morte, somos todos iguais. O vírus não distingue gênero, idade, riqueza ou o que seja. Mata muitos e se não nos cuidarmos... Às vezes até mesmo nos cuidando.

Será que esta pandemia servirá para nos darmos conta disso? Sei bem que os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer. Passada a crise, poucos se lembrarão dela. Mas suas marcas vão permanecer e delas devemos cuidar.

Na minha geração não se pode dizer: “Nunca vi tanto horror perante os céus”. Os terremotos matam indiscriminadamente. As guerras também. A bomba atômica dizimou centenas de milhares, e por aí vai. Isso não diminui o pavor diante do que está acontecendo e do que poderá acontecer. A situação obriga-nos a mais humildade e a reconhecer que a desigualdade faz os mais pobres pagarem o preço mais alto das tragédias pandêmicas.

O coronavírus chegou ao Brasil “de avião”. Pessoas das classes mais altas (quanto à renda) viajam mais. No começo foram as que se contaminaram. Agora se vê que é enorme a propagação do vírus nas periferias pobres, nos cortiços, nas comunidades urbanas que ontem chamávamos de favelas (desde a revolta de Canudos, quando os soldados regressavam das campanhas e se amontoavam no Morro da Favela, no Rio). O atendimento da saúde “não dá conta”.

É injusto cobrar só do SUS as falhas havidas. Não fosse ele, só os que podem pagar os serviços médicos e hospitalares seriam atendidos. Ele atende de modo universal. Mas é possível cobrar de quem decide o porquê de tanta “falta”: falta equipamento para os atendimentos, faltam luvas adequadas, faltam máquinas para ajudar a respirar, falta não sei o que mais. Contudo pelo menos há um sistema de saúde pública estruturado, mesmo carente. Na bonança é difícil prever as prioridades e haverá argumentos, até mesmo econômicos, para dizer: isso não é prioritário. E não é só no Brasil que se veem dificuldades no atendimento à saúde, basta olhar para Nova York. É preciso prever.

Que pelo menos a crise atual sirva de advertência para o futuro: há que olhar com mais carinho a saúde pública, a começar pela água tratada e pelo sistema de esgotamento sanitário. Reconhecer que alcançamos melhoria na saúde não quer dizer que conseguimos o necessário. Ao sair da atual pandemia, não nos esqueçamos: ela pode voltar. Quando? Ninguém sabe. Preparemo-nos.

E assumamos que, se é verdade que a crise atual de saúde alcança todo o mundo, também é verdade que ela é mais devastadora para os mais pobres. Por enquanto (sem que se saiba até quando) não dispomos de vacinas nem de medicamentos específicos. Só resta o “isolamento social”. O refrão “fiquem em casa” está por toda parte. Mas que casa? Para os que dispõem do aconchego familiar e dos meios necessários, trabalhar em casa é suportável. Mas quando as pessoas moram empilhadas, sem conforto mínimo, que fazer? Vão para a rua e nem sempre guardam a distância recomendável. E os que trabalham em situações que são essenciais para a sociedade continuar a funcionar, nas fábricas, nos hospitais, no transporte ou onde seja, também ficam em casa? Haverá dois pesos e duas medidas?

Não acho que o mote esteja errado. Ao contrário. Mas urge ampliar nosso senso de realidade. Espero que a gratidão seja concreta para alcançar os que, não tendo meios para ficar em casa, vão à luta. Nesta, que usem máscaras, tomem os cuidados necessários e façam o possível para derrotar o vírus. A luta é dos governos, mas também é de cada um de nós.

O que é descabido é a insensibilidade diante do que acontece, sem ver que estamos imersos num mau momento. Precisamos de coesão. Insistir em que se trata de uma “gripezinha”, ou que “eu fui atleta” e nada me acontecerá, é mais do que equivocado. É irresponsável.

Além de recursos financeiros, precisamos de coesão. Na crise viramos “keynesianos”, cremos que é necessário gastar, pois “o governo” tem de salvar as empresas e as pessoas. Mas nada substitui o carinho, o dar a mão aos que mais precisam e sofrem. Não apenas à moda antiga, dos bons samaritanos. Passada a tormenta, vê-se que foi possível ultrapassá-la porque o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes.

Não basta escolher quem é “do contra”. Os governantes precisam saber decidir e entender que nas sociedades contemporâneas as redes de internet pesam na eleição, mas não dá para governar “contra”. Para fazer frente à situação de tantas crises, fazem falta o senso comum e o do universal. Só juntos se constrói uma nação. A escolha foi e, espero, será nossa, de cada um. Que o erro não se repita. Assim teremos aprendido com a crise.

*Sociólogo, foi presidente da República


José Roberto Mendonça de Barros: Descendo a rampa

O governo Bolsonaro caminhará para bater no muro por volta de agosto/setembro

Não bastassem os desafios trazidos pela pandemia e a recessão decorrente da parada súbita da vida econômica, o governo viveu desde meados do mês passado uma sucessão de eventos que resultaram num ponto de inflexão da atual gestão que, a meu ver, é irreversível.

No dia 16 de abril, o então ministro da Saúde, Mandetta, foi dispensado do cargo. Seu trabalho de enfrentamento do coronavírus estava sendo muito importante para o País, embora não fosse isento de críticas, como a pouca atenção dada à testagem em larga escala. Em consequência, sua popularidade subiu e começou a fazer sombra ao presidente, que com isso não conseguiu conviver. Aparentemente, o que dá certo não pode ser mantido. Seu sucessor está totalmente perdido.

No dia 22 de abril, o chefe da Casa Civil anunciou um plano de investimentos (Pró-Brasil) destinado a promover a volta do crescimento econômico a partir de obras de infraestrutura. Projetos de investimento público direto e concessões ao setor privado seriam elencados, sem uma articulação entre eles.

O anúncio, primariamente destinado a injetar ânimo na plateia, não encantou ninguém por um robusto conjunto de razões:

- O plano lembra duas tentativas semelhantes que acabaram por resultar em períodos muito ruins: o II PND e a década perdida dos anos 80; e o PAC do PT e a grande recessão de 2014/2016.

- A comparação com o Plano Marshall peca, naturalmente, pela notável ausência do Tesouro americano.

- O plano não menciona como o capital externo, ora em fuga do País, voltaria a fluir em grandes proporções.

- O plano não menciona como seria financiado: com novos impostos? Com emissões? Estourando o teto de gastos? Isso num momento em que as despesas necessárias para enfrentar a pandemia resultarão numa piora substancial de nossa posição fiscal. Mais ainda, passada a emergência, caberá uma correção nas prioridades de gasto, incluindo a saúde. Mais uma razão para que não abracemos um rumo que já se mostrou fracassado mais de uma vez.

- Finalmente, o plano foi desenvolvido e anunciado sem a participação do Ministério da Economia, que, claramente sinalizou sua contrariedade.

Não é, pois, de se estranhar que os mercados tenham reagido mal, com desvalorização cambial e alta nas taxas de juros, pois foi colocado em dúvida o compromisso com a adequada gestão das contas públicas passado o período da emergência.

A recente entrevista conjunta dos ministros da Casa Civil e da Economia não teve o poder de tranquilizar ninguém. Vem aí mais tumulto.

Após a demissão de Moro, fica consolidada uma constatação. Bolsonaro tem três características importantes: limitada capacidade de percepção da realidade, é profundamente autoritário e é bastante descontrolado.

Os eventos acima descritos e as negociações recentes com o chamado Centrão mostram que o presidente apertou o botão emergência e deu uma guinada no seu governo, buscando blindar sua família e sua posição no Congresso.

Se as coisas parassem por aqui já não estaríamos bem. Entretanto, nos próximos meses a situação da pandemia, das pessoas e das empresas ainda irá piorar substancialmente.

Caminhamos rapidamente para ser o segundo país do mundo com maior número diário de óbitos, atrás dos Estados Unidos. A dificuldade de manter as quarentenas deverá empurrar o pico da doença para o final do semestre.

O salto do desemprego deverá ser atingido no terceiro trimestre, quando os esquemas temporários de suporte começam a vencer. Da mesma forma, a pressão financeira sobre as empresas vai se elevar, levando muitas delas a insolvência e a pedidos de recuperação judicial.

Por tudo, acredito que haverá uma convergência negativa por volta de agosto/setembro, pressionando para piorar a situação política. O que ocorrerá a partir daí é incerto, mas não tenho dúvida que o governo Bolsonaro caminhará para bater no muro. A questão é apenas quanto tempo vai levar para isso.


Adriana Fernandes: Transações tenebrosas

Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios

A pandemia da covid-19 mudou a noção de tempo e urgência. Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios, enquanto a população brasileira assiste atônita a matemática da morte com o avanço da doença.

Já se passaram 19 dias da aprovação do projeto na Câmara. O texto está no Senado, com votação prevista para este sábado. Mas nada garante a sua aprovação. Pelo contrário. O projeto modificado terá que retornar para a Câmara para nova votação e o mais provável é que nem mesmo ocorra na próxima semana.

O acordo fechado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, diretamente com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para o repasse de R$ 60 bilhões está provocando brigas justamente pela regra de divisão dos recursos. Os senadores dos Estados mais prejudicados estão se sentindo traídos.

Para ter domínio do projeto e coordenar a articulação do apoio ao texto que irá à votação, o próprio presidente do Senado assumiu a relatoria. O parecer foi divulgado com explicações detalhadas acompanhado de um arquivo em PowerPoint de fazer inveja (isso não é ironia) aos idealizadores do polêmico programa Pró-Brasil.

Faltou Alcolumbre, porém, mostrar a tabela principal. A que compara o valor a receber pelos Estados e municípios entre o texto do Senado e a proposta da Câmara, motivo de rompimento entre Paulo Guedes e o presidente Rodrigo Maia.

Acontece que diversas tabelas preparadas por assessores econômicos dos parlamentares, entre elas, a do relator do projeto na Câmara, deputado Pedro Paulo, começaram a circular mostrando que o Amapá, o Estado do presidente do Senado, ocupa o segundo lugar no topo do ranking que mostra a divisão dos recursos quando comparado com o número de habitantes. Atrás apenas de Roraima.

Os Estados onde a pandemia é mais grave, e que deveriam receber a maior parte do dinheiro, não vão receber o bolo maior. Se não bastasse o clima ruim com a divisão dos R$ 60 bilhões prometidos por Guedes em quatro meses, a subsecretária do Tesouro, Pricilla Maria Santana, em videoconferência assistida pelo repórter Daniel Weterman, do Broadcast, revelou que foi feita uma divisão de rateio que nem o Tesouro conhecia por “critérios políticos”.

Como assim? O governo fechou um acordo em que a secretária responsável pela relação do Tesouro com os governos regionais não podia se meter porque o assunto era político.

O desgaste tem sido grande. Lideranças do Senado já avisaram que o valor do socorro pode subir para R$ 80 bilhões para acomodar as reclamações. Quem perde muito está reagindo. A começar por São Paulo, epicentro da pandemia no Brasil.

O senador paulista José Serra é o mais indignado. O tucano apresentou uma proposta para preservar o objetivo do projeto que veio da Câmara. Na justificativa, ele diz que a nova proposta estabelece critérios pouco transparentes, beneficiando mais os municípios pouco afetados pela queda da arrecadação tributária.

À coluna, o economista José Roberto Afonso, especialista em contas públicas e assuntos federativos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), afirma que proposta do Senado é uma irresponsabilidade porque aposta na divisão regional e ignora os critérios técnicos que pautam tributação, orçamento e saúde. Guedes, por outro lado, se diz confiante no acerto do acordo.

Quando o político prevalece sobre o técnico, porém, não tem com dar certo. No cenário atual, no limite, mesmo que não queira politicamente, o governo terá que socorrer os governos das unidades mais ricas, se o colapso for eminente.

Os graves problemas na distribuição do auxílio emergencial de R$ 600, com filas nas agências da Caixa e desespero das pessoas para receber o benefício estampados todos os dias, mostram que sozinho o governo federal não pode tudo. Mesmo que a verba esteja na sua mão.

Se o governo tivesse organizado uma parceria genuína com Estados e prefeituras, talvez, a distribuição do auxílio estivesse hoje com menos problemas. É a prova também que não basta o dinheiro. É preciso boa gestão. Por isso, as ações de saúde para o combate do coronavírus estão para trás na execução das despesas do Orçamento, com mostrou reportagem do Estado.

A Brasília do Palácio do Planalto, da Esplanada dos Ministérios e dos gabinetes agora virtuais dos parlamentares continua virada de costas para o País. No seu pior momento, está metida em transações tenebrosas.

A coluna pede desculpas por ter insistido, nas últimas semanas, no tema federativo. Mas o resultado da negociação das próximas horas e dias vai dizer muito como muitas cidades estarão em condições de enfrentar os efeitos da covid-19.


Miguel Reale Júnior: Pandemônio

Comportamentos de Bolsonaro indicam possível anormalidade de personalidade

Em entrevista ao programa Câmera Aberta, da Band, em 1999, Bolsonaro, indagado se, caso fosse presidente, fecharia o Congresso, respondeu: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia”. Nessa entrevista defendeu a tortura e disse que o Brasil “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil (...) matando uns 30 mil (...). Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.

Ao votar no impeachment, ele o fez em homenagem ao torturador coronel Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, disse.

Pela segunda vez, em plena pandemia, dia 19/4, Bolsonaro foi à manifestação dominical contra o Congresso Nacional e a favor da ditadura. Antes da fala de Bolsonaro, circunstantes gritavam “Fora Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF” e carregavam faixas pedindo “intervenção militar já com Bolsonaro”, que em seu discurso falou: “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil” – adotando como seu, portanto, o teor do encontro.

A identificação com essa reunião se comprova ao pretender interferir a favor dos manifestantes, com a mudança do diretor da Polícia Federal: na mensagem enviada a Moro, ministro da Justiça, Bolsonaro reproduz nota do site O Antagonista segundo a qual a PF está “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas.

O presidente, então, escreveu: “Mais um motivo para a troca”. Patente, destarte, que buscava intervir no inquérito determinado pelo ministro Alexandre de Moraes instaurado para verificar “a existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano”. A nomeação de pessoa íntima para a diretoria da PF, cuja posse foi obstada pelo STF, é prova do interesse de demissão do então dirigente para se imiscuir nas investigações.

A atitude de Bolsonaro em face da pandemia, “uma gripezinha”, mostra indiferença pelo que poderia acontecer se desrespeitadas as normas de isolamento e quarentena determinadas pela OMS e pelo ex-ministro Mandetta.

Na última terça-feira, 28, indagado sobre o aumento do número de mortes, o presidente deu resposta agressiva: “E daí? Lamento. Eu sou Messias, mas não faço milagres”. A soberba, todavia, revela-se no uso das expressões “eu sou a Constituição”, “tenho a caneta”, “o presidente sou eu”, “quem manda sou eu”.

Tais comportamentos indicam possível anormalidade de personalidade, a merecer análise médica acurada.

Já opinei ser a interdição um caminho eventual para Bolsonaro. Não estava a fazer blague. As atitudes habituais permitem supor possível transtorno de personalidade, falha profundamente estudada por Odon Ramos Maranhão, titular de Medicina Legal (Psicologia do crime, 2.ª ed. Malheiros, 1995, cap. 7) e objeto de classificação pela CID-10, a Classificação Internacional de Doenças da OMS, em livro específico sobre doenças mentais (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, editor Artes Médicas, pág. 199).

Nessa classificação, o transtorno de personalidade antissocial tem por características a “indiferença insensível face aos sentimentos alheios; uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito a regras; a baixa tolerância à frustração; a incapacidade para experimentar culpa e propensão a culpar os outros”.

Poderia haver, eventualmente, transtorno de personalidade paranoide, cujos sintomas seriam, por exemplo, “combativo e obstinado senso de direitos pessoais; tendência a experimentar autovalorização excessiva e preocupação com explicações conspiratórias”.

Outra publicação respeitada é o DSM-5, da Associação Psiquiátrica Americana, que em http://www.niip.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-Mentais-DSM-5-1-pdf.pdf, nas páginas 645 e seguintes, estuda os tipos de transtornos da personalidade, cabendo destacar: “1- paranoide, caracterizado por desconfiança e suspeita tamanhas que as motivações dos outros são interpretadas como malévolas; 2- antissocial, cujo padrão é desrespeito e violação dos direitos dos outros; 3- narcisista, que apresenta sentimento de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia”.

Atentemos para o comportamento reiterado de Bolsonaro, ao longo do tempo, em favor de situações que geram dor, em apoio a manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF, chegando a agir, como presidente, para não se apurar devidamente a organização do ato de domingo 19 de abril; em campanha contra o isolamento social, única medida possível para reduzir mortes; usando a trágica expressão, “e daí?” acerca do aumento do número de mortes; no gosto pelo aplauso popular, pois, no domingo 15 de março, ao ser ovacionado em frente ao Planalto falou: “Isso não tem preço”.

São esses os sinais indicativos de possível enquadramento nas categorias psiquiátricas acima lembradas, o que cumpre ser verificado por experts em medida adotada em defesa do País.

No meio da pandemia, um pandemônio.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Rogério L. Furquim Werneck: Cálculo político revelador

Os benefícios esperados superavam com folga os custos envolvidos na decisão de enfrentar Sergio Moro

Não lhe bastassem a pandemia e a recessão, o presidente decidiu abrir uma terceira frente, ao deflagrar grave crise política que poderá até lhe custar o mandato.

Tendo se permitido incorrer nos custos de destituir Mandetta em meio à pandemia, Bolsonaro não se deu por satisfeito. Três dias depois, aceitou ser protagonista central de grotesca manifestação antidemocrática, em frente ao QG do Exército, em Brasília. E, em seguida, não teve melhor ideia do que armar novo pandemônio político que culminou na renúncia do mais popular de seus ministros.

Diante de tantos despropósitos, é natural que muitos analistas estejam tentados a crer que o presidente já não se pauta por considerações racionais. E é até possível que estejam certos. Mas, por ora, parece mais realista presumir que o presidente continua tentando ser racional, ainda que com objetivos muito estreitos, péssima assessoria e manejo lamentável dos seus recursos políticos. É uma perspectiva analítica mais promissora, porque permite vislumbrar elementos cruciais do cálculo político do Planalto que escapariam a análises baseadas na presunção de irracionalidade.

Já é hora de passar a entender Bolsonaro & Filhos como um grupo político indissociável. Tendo conquistado a Presidência da República nas condições especialíssimas da eleição de 2018, o grupo atravessou 2019 cada vez mais convicto de que o feito poderia ser repetido em outubro de 2022.

Tal convicção viria a ser fatalmente abalada pela pandemia e seus complexos desdobramentos econômicos e sociais. E, para o grupo, a brusca reversão de expectativas seria traumática.
Mandetta caiu, em parte, por ter mostrado mais sucesso do que deveria. Mas, primordialmente, por ter insistido numa linha bem fundamentada de combate à epidemia que eliminava qualquer esperança de que a economia pudesse vir a ter, em 2020, desempenho compatível com o projeto de reeleição de Bolsonaro.

Ao erro crasso da destituição de Mandetta, seguiram-se novos e graves equívocos. Inseguro com a extensão do desgaste que a troca do ministro da Saúde provocara, o presidente foi convencido a ter desastrosa participação na demonstração antidemocrática de domingo, 19, em Brasília. O que lhe rendeu, já no dia seguinte, solicitação da Procuradoria-Geral da República, ao STF, de instauração de inquérito sobre os patrocinadores da demonstração.

E aqui vem a questão crucial. Por que Bolsonaro & Filhos não pararam por aí? Por que, tendo já incorrido em tanto desgaste, decidiram desencadear, em momento tão inconveniente, a disputa pelo controle da Polícia Federal (PF), que redundaria na renúncia de Moro?

Na resposta a tal indagação, faz toda diferença supor que Bolsonaro & Filhos ainda tomam decisões racionais ou que já estão entregues à inconsequência. Se a decisão de enfrentar Moro adveio de um cálculo político racional, é porque os benefícios esperados superavam com folga os custos envolvidos.

Saltam aos olhos quão enormemente custosa, para o Planalto, foi a renúncia de Sergio Moro. É difícil que Bolsonaro & Filhos tenham se surpreendido com as proporções do desgaste político que lhes foi imposto. Se, mesmo assim, foram em frente com a decisão, é porque os benefícios que esperavam auferir com o controle da PF lhes pareciam largamente compensadores.

Como é fácil perceber, a simples suposição de que a decisão de desafiar Moro decorreu de um cálculo político racional é o que basta para entrever quão alarmado estava o Planalto com sua vulnerabilidade. E quão urgente lhe parecia assumir controle imediato e absoluto sobre a PF.

Com a suspensão da nomeação do novo diretor da PF, por liminar do STF, o oneroso episódio que redundou na renúncia de Moro converteu-se no que no mundo anglo-saxão se rotula de all-cost operation. Só custos, nenhum benefício. Por ora, Bolsonaro & Filhos voltaram a se ver tão vulneráveis como antes se viam.

É assombrado por essa vulnerabilidade que o governo, agora, terá de lidar com o avanço da pandemia e a brutal crise econômica e social que o país tem pela frente.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Fernando Gabeira: Pergunte ao coronavírus

O Brasil politizou o vírus. O governo mergulhou na cegueira ideológica

Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.

Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.

Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.

Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.

Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.

Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.

Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.

Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.

Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.

Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.

É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.

Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.

Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.

Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.

O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.

Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.

Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.

*Jornalista


William Waack: Dentro do alçapão

A crise tripla que Bolsonaro enfrenta é inédita e não permite dizer o que vai acontecer

Com a vivência de 28 anos de política em Brasília, provavelmente Jair Bolsonaro sabe ou pelo menos intui que está, agora, nas mãos de profissionais. Os do Centrão e os do STF. Na linguagem militar, trata-se de um formidável movimento de pinça, do qual o presidente tem poucos recursos para escapar.

O alçapão armou, Bolsonaro está dentro dele e ali ficará debatendo-se em limites muito estreitos, salvo o imponderável (o número de mortos da crise de saúde pública e um impeachment são hoje os imponderáveis). Mantida a situação atual de precário equilíbrio, suas opções são reduzidas.

Ele criou a armadilha para si mesmo agindo por medo e com muita pressa. Bolsonaro é um personagem político autêntico e de extraordinária transparência. Faz questão de reiterar publicamente que se sente sempre o alvo de uma grande conspiração, integrada por membros da velha política, imprensa, juízes e ministros do STF, comunistas, ministros com alta popularidade, governadores – a lista é longa.

Por algum tempo o “cerco” urdido por conspiradores era apenas uma distorcida percepção da realidade. Hoje, de fato, o presidente está cercado. Pelos profissionais do Centrão, que dispõem de tempo e de circunstâncias inesperadamente favoráveis para extrair do presidente o preço máximo em troca de apoio político.

E pelos profissionais do Judiciário, sobre os quais Bolsonaro tem pouco ou nenhum tipo de controle. A judicialização da política na era Bolsonaro assumiu contornos muito semelhantes aos da era Dilma, quando uma liminar proferida por um integrante do STF a impediu de nomear Lula como ministro. Desvio de finalidade – o mesmo tipo de figura jurídica da liminar que bloqueou a nomeação por Bolsonaro de um novo diretor-geral da Polícia Federal.

Os perigos para Bolsonaro estão hoje no STF – uma instituição contra a qual seus apoiadores foram mobilizados com a ferocidade e irresponsabilidade típicas de redes sociais nas quais o presidente acredita residir seu maior capital político. A figura do presidente já seria lateralmente atingida por investigações em curso nas quais se pretende apurar quem e como organizou e financiou campanhas contra o Judiciário, mas, agora, está no centro do inquérito que o procurador-geral da República requereu “sem apontar A ou B”. O STF apontou para o B de Bolsonaro.

Salvo imponderáveis, o Centrão não tem o apetite para tocar adiante um processo de impeachment. Os parlamentares não enxergam nenhuma vantagem prática em derrubar o presidente neste momento, e se consideram bem situados do ponto de vista político em assegurar “governabilidade” que, nestes dias de enorme crise de saúde pública, significa sobretudo abrir os cofres públicos para ver como é que fica depois. O movimento para moer Bolsonaro está vindo do STF.

A preciosa intuição que Bolsonaro exibiu na campanha eleitoral faltou-lhe agora. Sem que nenhum de seus opositores precisasse se esforçar, ele mesmo acabou solapando os pilares da sua imagem e está perdendo rapidamente o apoio em camadas de eleitores que não são tão numerosos, mas têm peso na propagação e formação de opinião. E, em vez de evitar comoções, Bolsonaro se esmera em criá-las constantemente. Seu jeito “autêntico” de ser (como ao dizer “E daí? Que quer que eu faça?” diante de um recorde de mortos pelo coronavírus) é visto com repulsa em círculos cada vez mais amplos.

Como tudo na atualidade, a situação que Bolsonaro enfrenta também é inédita. Dilma tinha de lidar com uma dupla crise, econômica e política. A situação de Bolsonaro é de uma tripla crise: a terceira é a pandemia. Mas não há parâmetros históricos para dizer o que vai acontecer.