O Estado de S. Paulo
Vera Magalhães: Exterminadores do futuro
Salles e Weintraub demonstram desprezo pelas áreas que comandam
De todas as áreas em que Jair Bolsonaro escolheu ministros a partir de critérios ideológicos, as que mais comprometem o presente e o futuro do Brasil são Educação e Meio Ambiente. Não à toa, a semana que passou foi tomada por mais demonstrações de incompetência e inadequação aos cargos por parte de Ricardo Salles e Abraham Weintraub.
Uma característica em comum norteia a atuação de ambos: eles nutrem profundo desprezo pelas áreas que comandam. No caso do titular do Meio Ambiente, ele considera sustentabilidade, preservação, mudança climática e outros temas concernentes à sua pasta bobagens, maquinações da esquerda contra o desenvolvimento do País, agendas a serem superadas.
O problema de Weintraub é de outra natureza: vindo de uma carreira acadêmica apagada, sem nenhuma produção intelectual relevante, ele demonstra ter recalque da academia, dos intelectuais e pesquisadores, se julga perseguido pela universidade e adota, como ministro, um discurso revanchista. Em ambos os casos, ter pessoas com essas perspectivas a determinar políticas públicas é uma temeridade, e os resultados nefastos já se mostram. O desempenho de Salles em 11 meses é o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental no País. Deliberada. Em comum acordo com o presidente. Resultou no recorde de desmatamento em uma década e na lambança no combate ao inédito vazamento de óleo nas praias brasileiras.
E o recorde tende a não ser um ponto fora da curva, porque todas as deliberações do Ministério do Meio Ambiente vão na direção de aprofundar o afrouxamento das punições e limitações: o Ibama flexibilizou os critérios para multar serrarias que compram madeira ilegal, se estuda o fim da moratória da soja, projeto de lei que corre no Senado libera o plantio de cana na Amazônia, e o governo prepara medidas para permitir mineração em terras indígenas.
Weintraub se transformou no ministro da balbúrdia, como bem definiu Priscila Cruz, do Todos pela Educação, em artigo depois da mais nova diatribe do ministro, que deu uma entrevista delirante em que aponta a existência de grandes extensões de plantação de maconha em universidades federais.
Enquanto usa o Twitter para lacrar, ofender, bloquear e fazer guerra cultural, o País segue sem saber qual é a proposta do MEC para a substituição do Fundeb, a partir de 2021. As prioridades da pasta, em vez de temas centrais como este, são a perseguição a professores a partir de um canal de denúncias e a disseminação das escolas cívico-militares, cujos resultados acadêmicos são questionados pelos especialistas.
Não se espera de um ministro do Meio Ambiente que seja um braço direito da Agricultura. Nem que o da Educação atue como um inimigo de professores, reitores e da comunidade educacional. Comandar áreas pressupõe, na gestão pública ou na iniciativa privada, compreender suas necessidades, liderar equipes a partir do compromisso com metas e defender os interesses do seu setor no conjunto da administração ou da empresa. Salles e Weintraub fazem justamente o contrário: tratam subordinados como conspiradores, sabotam os objetivos das próprias pastas e atuam como linhas auxiliares de outras áreas do governo, puxando o saco do presidente para se manterem nos cargos.
Nas duas áreas, há uma consolidada e pública série histórica de dados que permitirá aferir em tempo real o desastre de tanto chorume ideológico transformado em política de Estado. Neste momento, não adiantará a Bolsonaro terceirizar a responsabilidade para os auxiliares que escolheu e chancelou, como tem feito. A História carimbará em seu governo retrocessos em campos que impactam de forma brutal o futuro do País. A conta já começou a chegar.
José Augusto Guilhon Albuquerque: Uma ideia é uma ideia, é uma ideia...
As do pacote de reforma do Estado parecem boas. Mas daí a serem uma revolução...
O mundo seria muito diferente se uma ideia fosse mais do que uma ideia. O novo pacote de reforma do Estado pode-se dizer que é cheio de boas ideias. Mas, convenhamos, ideias não se realizam por vontade própria, nem mesmo por mérito. Assim sendo, compartilho a opinião de que as ideias do pacote levado ao Congresso parecem boas. Mas daí a serem consideradas uma revolução...
A reforma da Previdência já foi longe e, uma vez proclamada, terá efeitos legais, apesar de esses efeitos terem sido castrados pela metade entre a ideia inicial de R$ 1,3 trilhão e os cálculos do Instituto Financeiro Independente, de R$ 600 bilhões. Mas é forçoso reconhecer que esta reforma Guedes/Bolsonaro não é mais do que uma nova versão das reformas igualmente incompletas de Fernando Henrique e Lula. Afinal, só terá resultados plenos em dez anos, quando o crescimento do déficit previdenciário provavelmente já terá sido acrescido de novos dispositivos para favorecer, ainda mais, os já mais favorecidos.
Não podemos esquecer que nenhuma emenda foi aprovada para melhorar o soneto dos menos aquinhoados, mas, ao contrário, para manter, e mesmo aumentar, as desigualdades já existentes. Nada nos garante, tampouco, que a caneta criativa do atual presidente não tente reescrever a Constituição por via de decretos, como tem sido feito na regulamentação de legislação de seu interesse pessoal, familiar ou político.
Não esqueçamos que o capítulo da Previdência ainda está sujeito a novas investidas corporativas e regionalistas via PEC paralela e na tramitação do próprio pacote agora apresentado. Afinal, por que diabos esse pacote ainda mais audacioso escaparia à desfiguração habitual? Sejamos otimistas, mas contentando-nos com pouco. Afinal, as ideias da “reforma do Estado” são razoavelmente boas, como foi boa a ideia da reforma da Previdência, que já chegou castrada no papel. Quando chegar a ser aplicada, sabe Deus...
Também foram ótimas as ideias do megaleilão do pré-sal. Já a execução, um fracasso. Pode-se culpar o Lula, que tentou reestatizar a exploração do petróleo com a obrigação da partilha e com o semimonopólio da Petrobrás. Nem por isso deixaria de ser um fracasso, e a granada sem grampo da incompetência vai para o colo do capitão Jair e de sua tropa de escolhidos.
Ademais, desfiar o emaranhado da política brasileira, do funcionamento das instituições, e dominar a arte de transformar ideias em políticas concretas e viáveis, as políticas em planos e os planos em ação, tudo isso exige mais conhecimento e experiência do que para desarmar um artefato. Assim sendo, creio que seja dever do observador, que se baseia em conhecimentos bem estabelecidos e em fatos comprovados, avaliar as ideias em função de sua viabilidade.
A viabilidade de passar legislação para adotar políticas públicas depende dos recursos de poder político a serem efetivamente empregados pelos atores individuais, organizacionais e institucionais, de acordo com seus respectivos interesses. Tais interesses, por sua vez, vistos na ótica da racionalidade limitada, não refletem um cálculo objetivo de custo-benefício, mas sim a autopercepção do valor desses interesses e do ganho/perda que a decisão de adotar ou vetar essa política implica para esses atores.
Minha hipótese é que existe, na Presidência Bolsonaro, incompatibilidade de gênios entre a missão e os missionários. E, por conseguinte, uma incompatibilidade de fato entre o arco de interesses prontos a engrossar a missão de realizar a reforma do Estado e o arco de interesses efetivamente manejáveis pelo governo Bolsonaro.
Independentemente do conteúdo da reforma ser bom ou mau, útil ou inútil, necessário ou irrelevante para os destinos do País, quais as opções de política econômica e de gestão pública incluídas no pacote?
Uma lista de opões, que é insuficiente, mas basta para o raciocínio, poderia ser: 1) o Estado tem por missão servir primordialmente ao povo, e não aos servidores públicos; 2) as entidades públicas devem ser dirigidas por representantes políticos do povo e pelas partes interessadas da sociedade, e não apenas por membros de sua corporação interna; 3) a política econômica deve ser conduzida com austeridade, e não por critérios demagógicos, sob pressão de interesses especiais; 4) o orçamento público deve dar prioridade a investimentos e à melhoria do atendimento de seu público e de sua atividade-fim, e não ao bem-estar de seus servidores; 5) o sistema fiscal deve poupar relativamente mais os mais pobres e taxar mais os mais ricos; 6) a máquina estatal, em todos os níveis, precisa ser redimensionada, tornando-se menos custosa e mais eficiente.
Minha hipótese é que, se alguém concorda com a maioria dessas opções, ou não votou em Bolsonaro ou votou porque não tinha alternativa, não apoia as condutas do presidente nem as decisões de seu governo, não está satisfeito com os rumos do País nem acha que Bolsonaro é a pessoa mais indicada para liderar uma mudança positiva de rumo. Quanto a Bolsonaro, suas palavras e obras tendem a mostrar que ele ou se declara contra, mas é obrigado a seguir algumas dessas opções, ou intervém abertamente contra elas.
O núcleo duro de sua base de fiéis – vigilantes da lei e da ordem e cruzados da revolução moral e civilizatória – é ou de indiferentes ou de abertamente contrários à maioria das políticas incluídas na reforma. Dentro do seu governo, a ala não fundamentalista, composta por uma parcela dos militares e alguns ministérios técnicos, ainda que no âmago possa apoiar políticas moderadas, não tem peso para interferir contra a vontade do chefe. Até os autores do pacote já aderiram ao mantra presidencial: já fiz a minha parte, agora é com o Congresso.
Não é não, o Congresso só reage sob intensa pressão.
Então, mãos à obra.
* José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular da USP
Adriana Fernandes: Reforma interrompida
Bolsonaro quer uma proposta mais suave; está cansado de pautas impopulares
A obstrução da reforma administrativa pelo Palácio do Planalto nada tem a ver com a necessidade de garantir mais foco aos projetos de reformas fiscais e ao pacote de estímulo ao emprego, que já estão no Congresso.
Desde o início, a estratégia governista foi a de enviar as principais agendas de reformas no primeiro ano de governo e acomodar as prioridades de votação na articulação com as lideranças políticas. Passada a Previdência, esse era o roteiro. Todas as reformas num embalo só.
O fato é que a equipe econômica costurou um projeto ambicioso de mudanças no RH do serviço público, mas não acertou direitinho os detalhes com o presidente e seus principais auxiliares. Jair Bolsonaro já declarou que quer uma proposta de reforma mais “suave”.
O presidente está cansado das pautas impopulares.
Os sinais de irritação do Palácio foram sentidos quando a equipe econômica deixou para a última hora a decisão de enviar, à Casa Civil, o texto final das Propostas de Emenda à Constituição (PEC) do pacto federativo, do ajuste emergencial e de alteração dos fundos setoriais.
Na véspera do anúncio das três PECs, o clima esquentou, com bate-boca entre as equipes. Itens foram retirados do texto, entre eles uma medida que permitia que as despesas dos Estados e municípios com salários de inativos pudessem ser utilizadas para cumprir os mínimos constitucionais de gastos com saúde e educação.
Gato escaldado, o Palácio do Planalto adiou o lançamento da reforma administrativa, uma peça importante do ajuste fiscal de três pontas pensado pela equipe de Guedes: manutenção do teto de gastos, reforma da Previdência e controle das despesas de pessoal – um gasto que ameaça mais as contas dos Estados do que as da União.
Deu que no deu: vários adiamentos do seu lançamento e aumento da pressão para que o envio do texto ficasse para 2020. Isso se ocorrer. Já há quem duvide que a reforma saia no ano que vem. Na melhor das hipóteses, sairá do Palácio bem menor do que entrou.
Depois de tentar reverter, ao longo da semana, a posição do presidente de segurar a reforma, Guedes acabou admitindo, nesta sexta-feira, que ela ficará para depois.
Um erro de estratégia já apontado por seus auxiliares foi o desejo do Ministério da Economia de fazer uma mudança geral para todo o serviço público e carreiras da União, Estados e municípios. Isso afeta diretamente apoiadores do presidente oriundos da área de segurança, com muita força no Palácio do Planalto.
Embora negue oficialmente, o ministro da Justiça, Sergio Moro, também interferiu ao manifestar preocupações com a reforma. O procurador-geral da República, Augusto Aras, foi outro que reclamou.
Integrantes dos demais Poderes e representantes dos sindicatos mais influentes do funcionalismo foram chamados, em seguida, para diálogo. O argumento dado pelo governo aos líderes sindicais, de que proposta só atingirá os novos servidores que entrarem no serviço publico, não colou.
O texto será avaliado com lupa pela equipe palaciana, mais interessada em não prejudicar as carreiras que lhe dão apoio político.
Minirreforma
A rejeição à reforma administrativa agora esbarra também na proposta da equipe econômica de incluir nas PECs fiscais uma “cota de sacrifício” aos servidores. Uma delas prevê, entre outros pontos, a possibilidade de reduzir, por dois anos, a jornada e os salários de servidores em até 25%, reajustes, concursos e também congelar novas promoções – o que, na prática, alongaria o tempo necessário para chegar ao topo da carreira. Essas medidas poderão ser adotadas se for decretado estado de emergência fiscal para correção dos desequilíbrios fiscais.
A possibilidade de corte da jornada de trabalho caiu com uma bomba no funcionalismo de todo o País. Ninguém quer perder de uma hora para outra 25% da sua renda. Na prática, essas propostas de ajuste já estão sendo consideradas uma minirreforma administrativa antecipada.
Os debates mais fortes sobre as medidas fiscais vão se concentrar nesse ponto no ano que vem. Nada vai passar neste ano, nem mesmo no Senado, que prometeu agilidade na tramitação para ter mais protagonismo que a Câmara na agenda econômica. Embora o fim dos privilégios da elite do funcionalismo, principalmente no Judiciário, tenha apoio da população, essa mesma narrativa usada na reforma da Previdência ficou desgastada com as exceções abertas para algumas categorias.
O próprio governo fez uma reserva de mercado nas PECs fiscais. Juízes, procuradores do Ministério Público, militares e diplomatas continuarão sendo promovidos, mesmo se for decretado o estado de emergência pelo Estado ou município em que trabalha ou pela União, no caso dos servidores federais. Esse ponto passou despercebido com tantas medidas, mas vai voltar ao debate. E, claro, dificultar o discurso de “fim dos privilégios” para todos.
João Domingos: A antítese do PT
Até por falta de tempo, falta medir o tamanho do partido de Bolsonaro
O partido que o presidente Jair Bolsonaro está criando, do qual é presidente da comissão provisória, e o filho, o senador Flávio Bolsonaro (RJ), é o vice, surge como a antítese do PT.
E, como o PT, provavelmente será falado, estudado e dissecado. Luiz Inácio Lula da Silva foi o sindicalista que ganhou notoriedade na segunda metade dos anos 1970 e fundou o PT no início dos 80, ainda na ditadura militar. Tal partido, que depois chegaria à Presidência da República e só sairia com o processo de impeachment de Dilma Rousseff, nasceu da junção do pensamento da elite sindical, do clero progressista, de acadêmicos de esquerda que rejeitavam o PCdoB e o antigo PCB, por tê-los como inviáveis, retrógrados e dogmáticos, e de trotskistas fundamentalistas.
Jair Bolsonaro fundou o Aliança pelo Brasil (APB) a partir do próprio clã familiar, de parlamentares que foram eleitos em sua onda política e de adeptos de uma linha de pensamento da direita que ainda não é possível definir muito bem. Só já se sabe que está se acostumando a misturar política com religião, é conservadora ao extremo e confia na tese de Bolsonaro de que uma pessoa pode se armar para se defender de quem estiver armado e ameaçar a sua segurança ou a de seus familiares. Um grupo que até pouco tempo não costumava aparecer nem expor suas ideias.
Não expunham suas ideias nem apareciam porque, também até pouco tempo, era vexatório e até se arriscava a levar uma vaia quem ousasse falar que era de direita.
Bolsonaro disputou a Presidência da República como o anti-PT, o anti-Lula. A partir de seu gesto, conseguiu despertar essa direita envergonhada e uni-la em torno dele. A ponto de por ela ser chamado de “mito” e de ganhar outdoors por todo o Brasil de 2016 para cá sem que nem ao menos soubesse quem é que mandou fazer a propaganda.
O PT, o Brasil já sabe o tamanho que tem. Sabe que é um partido de tendências hegemônicas, que não gosta muito de dividir, que numa autocrítica que fez em maio de 2016, logo depois da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, se disse descuidado por não ter reformado o Estado, “o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de 5 verbas publicitárias para os monopólios da informação”.
Caso fosse fazer uma autocrítica, o partido de Bolsonaro se queixaria de ter sido descuidado quando esteve no governo, como o PT se queixou? É possível que sim. Ninguém que planeja ficar no poder gosta de descuidos, principalmente quando podem atrapalhar seus planos. O próprio Bolsonaro já deu mostras de sobra de que quer tudo sob seu controle. Já negou verba publicitária para meios de comunicação dos quais não gosta, já escolheu o chefe do Ministério Público que melhor se enquadrava em seu estilo, já determinou o fim da prática ideológica no Itamaraty, já exigiu a demissão de quem considerou sem comprometimento consigo ou vinculado a partido ou movimento que, no entender do presidente da República, é adversário do seu governo.
Até por falta de tempo, falta medir o tamanho que o partido de Bolsonaro tem. Isso poderá acontecer quando o APB estiver regularizado. Os institutos de pesquisa acham que os bolsonaristas podem ser uma parcela de 15% da população. Se tal porcentual se confirmar, o partido de Bolsonaro já nasce grande. É de fato um fenômeno a ser muito bem estudado. E dissecado.
José Roberto Batochio: A afronta à Constituição e a volúpia de prender
Oxalá a sensatez deite raízes e iniba de vez a fúria do indevido encarceramento
“Não há tirania mais cruel que aquela que se exerce à sombra das leis e com as cores da justiça”
Montesquieu, em Do Espírito das Leis
Uma das formas mais comuns de a tirania se manifestar no Estado “punitivista” é o encarceramento que desrespeita o princípio da presunção de inocência do cidadão investigado – sobretudo quando nem foi condenado e sequer denunciado se acha como autor de um suposto crime ainda em apuração. Como abundantes jabuticabeiras penais, essa forma de violência institucional está em permanente expansão na esfera do aparato da persecução penal do Brasil. Antes de investigar, prende-se. Antes de denunciar, prende-se. Antes de condenar, prende-se. E a prisão, que deveria ser a resposta final imposta como punição ao réu induvidosamente culpado, passa a ser uma aleatória e opressiva antecipação do imprevisível desfecho do que seria o devido processo legal.
A volúpia, se não sanha, de aprisionamento que empolga certas autoridades, tradicional e abusivamente lançada no lombo de centenas de milhares de pessoas do povo, agora deu para se estender a ex-presidentes da República cujo crime é figurar em depoimentos de terceiros (delatores premiados) em inconclusos inquéritos policiais ou outros feitos. Um foi detido recentemente por breve tempo e um segundo agora teve sua detenção pretendida pela Polícia Federal com a impenitente e jamais demonstrada alegação de que poderia obstruir investigações.
O aluvião de prisões cautelares avoluma-se hoje naquilo que Rui Barbosa chamou em 1920 de “praga pública”. O Brasil contava em agosto 812 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça. Nada menos que 337 mil desses reclusos são os chamados provisórios, é dizer, aguardam um julgamento em que, afinal, será decidido se ao rigor da lei merecem ou não ficar na cadeia. Pela lei, são presumidamente inocentes. Julgados, muitos serão absolvidos e libertados, ou seja, foram presos indevidamente, entre eles grande parcela de pretos e pobres, condições que em geral se conjugam na legião de despossuídos humilhados e ofendidos, vítimas de uma certa polícia que, quando não prende, aleija ou mata – considerando que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 morreram 5.159 pessoas em decorrência de intervenções policiais.
Apesar de escandalosos, os oceânicos números parecem não satisfazer a vontade incontrolável de aprisionamento que tem animado nossas autoridades. Os holofotes não chegam a eles. Maior repercussão tem essa cruzada quando lança sua rede de arrasto em figuras proeminentes da República. Foi por essa modalidade de extração midiática que o ex-presidente Michel Temer acabou detido em plena rua, em maio, em espetáculo cercado de câmeras, com base em delação premiada – aquela modalidade de investigação penal que se sustenta num castelo de palavras a que falta o alicerce da prova e da verdade.
Talvez animados pelo sucesso dessa ação espetacular, por ordem de um desses juízes “celebridades”, embora instâncias superiores o tenham libertado imediatamente pelo fato de reconhecerem a ilegalidade do ato, nossos insaciáveis carcereiros vêm de dirigir sua sanha de aprisionamento à ex-presidente Dilma Rousseff. Ao investigar supostos fatos ilícitos da campanha eleitoral de 2014, e novamente com base na verbiagem das delações premiadas, solicitaram ao Supremo Tribunal Federal a decretação da sua prisão processual, novamente recorrendo ao artificioso argumento de que ela, em liberdade, hipoteticamente poderia obstruir as investigações – já documentadas num volume de 218 páginas. O sofisma processual é tamanho que, decorridos quase 2 mil dias dos fatos, que utilidade social ou mesmo investigativa haveria em a Polícia Federal manter a ex-presidente presa por exíguos cinco dias? A resposta é simples: a prisão humilha, desprestigia, fragiliza a dignidade do ser humano – e quanto mais famoso ele o é, mais empoderados se sentem os algozes. O pormenor esdrúxulo do episódio em si já de todo extravagante é que a ex-presidente nem sequer fora intimada a prestar esclarecimentos sobre os fatos em apuração, em suma, acerca das suspeitas que os policiais consideram tão comprometedoras a ponto de quererem levá-la odiosa e prematuramente ao cárcere.
Que sentido haveria em aprisionar uma pessoa por fatos de cinco anos pretéritos, ainda em investigação, se é precisamente esta que deve determinar a existência material de crime e apontar os seus autores, que serão devidamente processados e, se culpados e condenados, enfim punidos? O indisfarçável e único propósito dessa prisão é, sem dúvida, a volúpia de aprisionamento, que acomete determinados agentes da autoridade do Estado.
Desta vez, porém, falou mais alto o Direito e a arbitrariedade foi barrada, contando com o raro concurso do Ministério Público, também afeito às penas antecipadas, mas com sensibilidade para detectar e repelir a excrescência. Decisiva, no entanto, foi a ausência na cadeia de arbitrariedades do elemento nuclear desses atentados aos direitos fundamentais vigentes no Estado Democrático de Direito, ou seja, o juiz justiceiro, que manda prender por dá cá aquela palha. Relator da matéria no STF, o ministro Edson Fachin negou o pedido de prisão, com a lúcida observação de que “a pretensão de restrição da liberdade de locomoção dos investigados não se encontra provida da indicação de concretas condutas atentatórias às apurações que evidenciem a necessidade da medida extrema”. Ademais, com a diligência de julgador que deve zelar pela legalidade do processo, determinou que a ex-presidente fosse, apenas e enfim, intimada a depor.
Oxalá o sensato decisório deite raízes e iniba de vez a fúria de encarceramento indevido – espécime maligno da imposição legal da tirania de que falou o grande Montesquieu.
*Advogado criminalista.
Carlos Melo: Aliança pelo Brasil nasce como expressão do personalismo
Partido do presidente Jair Bolsonaro não busca o governo das leis, mas de um homem em especial e de seu clã
A revolução tecnológica das últimas décadas desestruturou o mundo do trabalho e aumentou o desconforto econômico e social de enormes parcelas da população. Novas formas de comunicação e expressão surgiram e desorganizaram sistemas políticos, que, perplexos com tal vertigem, foram apanhados por escândalos de corrupção. Logo, não é disparate que Estados estejam em crise e, por decorrência, partidos políticos também.
A necessidade deveria obrigar a olhar para frente: fazer um bom e correto diagnóstico do que se passa, buscar alternativas e soluções; mitigar os custos de uma inevitável transição; reestruturar e aperfeiçoar as instituições. Como se diz, para sair do buraco é preciso parar de cavar; no mais, fazer do medo uma escada.
Não é o que tem ocorrido. Até que tudo volte a melhorar é possível que piore. O mal-estar questiona quase tudo o que se pôs em pé:
o iluminismo, a democracia, a ideia de que, acima dos indivíduos, a sociedade deve ser governada por instituições. Ao contrário, cresce o apelo às religiões e, paradoxalmente, o ímpeto de recorrer à força.
Barricadas são reerguidas: forja-se a polaridade esquerda-direita quando avançar ou retroceder é de fato a questão.
A Aliança pelo Brasil, do presidente Jair Bolsonaro e de seus próximos, não foge ao figurino: falta-lhe diagnóstico correto e seu propósito é regressivo. Recorre à infalibilidade do mito e à sua disposição guerreira. Nasce como expressão do personalismo, do patriarcalismo e do messianismo ancestrais. Não busca o governo das leis, mas de um homem em especial e de seu clã. Apela a Deus e esquece a civilização.
* Cientista político e professor do Insper
Marco Aurélio Nogueira: Polarizações paralisantes
A que está dada entre o bolsonarismo e o lulismo só beneficia o atraso político
Política é luta, disputa, busca de poder. Não pode ser vivida e praticada como se a harmonia e o entendimento apagassem contradições e diferenças. O elogio do conflito como fator de propulsão política é comum ao pluralismo liberal e à teoria da luta de classes.
O dissenso – o direito a ele, a liberdade de expressão, pensamento e crítica – faz parte da democracia, que não pode viver sem ele e sem os embates por ele propiciados. Nem toda polarização produz guerra de extermínio. Nas democracias os polos se respeitam, convivem, fiscalizam-se, podem até cooperar.
A ideia de consenso deve ser posta em termos claros, determinados. Apresentada em abstrato é uma ilusão perigosa, que pode levar à banalização do conflito e à “reconciliação” entre atores que precisam manter-se como diferentes para que a luta política adquira pleno significado e possa até mesmo dissolver os antagonismos maniqueístas. Consenso de modo algum significa a suspensão do conflito ou a dissolução das diferenças.
Observadores da cena política nacional dizem que a atual polarização entre bolsonarismo e lulismo não pode ser eliminada por um consenso centrista, que não teria força social para prevalecer. Alguns veem o consenso não como algo a ser construído, mas como mera tradução da realidade. Acreditam que, se nenhum bloco de forças é suficientemente forte, a proposição de um amplo entendimento seria diversionismo fadado ao fracasso.
Para complicar, entendem a polarização de modo restrito: só a percebem como virtude, numa reprodução empobrecida da visão liberal-pluralista que concebe o conflito como impulsionador da democracia. Preocupam-se em atacar uma hipotética “terceira via”, que entendem em chave funcionalista, como “meio-termo”. Pensam que ser radical é proclamar as razões de um polo contra outro, com o que rejeitam qualquer esforço de mediação.
A política é sempre polarizada, mas nem toda polarização fornece oxigênio à política. É necessário ir além das abstrações teóricas, admitir e reconhecer especificidades para, então, compreender o limite e o equívoco das polarizações binárias, não dialéticas: nós contra eles.
Polarizações paralisantes podem ser inevitáveis, mas não são virtuosas. Envenenam a luta política e alienam a população, na medida em que sugerem que toda decisão sempre reflete o interesse de um polo em combater o polo oposto. Nelas não há um movimento de superação, o encontro de um terceiro termo que negue os termos polares e os incorpore num novo arranjo.
É o caso da atual contraposição entre bolsonaristas e lulistas, que impede a sociedade de conhecer propostas renovadoras. Tudo é exibido na cena pública como um filme já visto. Vive-se o conflito polarizado com doses extra de intolerância e agressividade, de onde sai uma névoa de desentendimentos (mais aparentes que reais) que incrementam o atrito e a fragmentação.
Romper polarizações desse tipo requer tenacidade, liderança personalizada, símbolos fortes, ideias. Nenhum sucesso virá da repetição ad nauseam do mantra do “centro”. Mas é improvável que haja avanço substantivo na vida nacional sem uma inflexão para o centro de um dos polos dominantes. Se tal não ocorrer, uma eventual disputa eleitoral será vencida pelo polo que detiver mais recursos de poder, usá-los com frieza e alcançar uma boa narrativa de campanha. Não é preciso muita inteligência para descobrir qual polo seria esse.
O bolsonarismo não tem capacidade de infletir para o centro, nem sequer para o centro liberal-conservador, em que pese ter hoje a seu lado uma figura como Paulo Guedes, que está no governo por questões outras. Seu autoritarismo retrógrado e suas grosserias abjetas o tornam repulsivo ao moderantismo liberal, do mesmo modo que o “libertarismo” cosmopolita dos liberais causa engulhos nos bolsonaristas.
Uma unidade democrática pelo centro e com o centro só será vitoriosa se for progressista. Ou seja, se estiver aberta para a esquerda, se for sensível aos problemas sociais do País e fizer da democracia política uma cláusula pétrea. Seu sucesso depende da capacidade que tiver de articular as correntes moderadas numa operação democrática com vocação para se aprofundar. Nas circunstâncias de hoje, significa pensar em unidade democrática: um teto sob o qual os diferentes se reúnam.
A hipótese de um “centro progressista” que exclua ao mesmo tempo os eleitores do bolsonarismo e do lulismo não tem espaço suficiente para progredir, o que explica suas recorrentes dificuldades de afirmação.
Muita coisa passa pelos cálculos de Lula e do PT, que hoje oscilam entre uma frente ampla e um frente de esquerda. Nas personalidades e forças que orbitam o partido, a ideia de “frente ampla” não é tão ampla assim e prevê alta dose de protagonismo petista, o que a restringe. Se o foco for o confronto generalizado – rage against the machine –, com ataques às instituições e apelos a um revolucionarismo retórico, se essa esquerda agir em nome da autoafirmação e de uma visão programática sectária, ela se autoexcluirá e o “centro progressista” terá de buscar novas fontes de energia, por ora inexistentes.
O problema são os vetos cruzados.
A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre lulistas e bolsonaristas, conservadores e reacionários, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política perfeita. Estrutura-se como choque de “narrativas” que se excluem reciprocamente, misturadas com postulações identitárias e batalhas corporativistas. A polarização paralisante reflete a dificuldade que democratas liberais, de centro e de esquerda têm de apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder. Cada um, até agora, permanece mergulhado em seus meandros e fantasias.
A polarização entre lulismo e bolsonarismo está dada, mas não interessa à democracia. Só beneficia o atraso político. Não deveria ser alimentada.
Elena Landau: Chama o Chacrinha
Para ganhar apoio da sociedade, importância de PECs deve ficar bem clara
O governo enviou, recentemente, três propostas de emendas constitucionais visando reorganizar as finanças públicas e recuperar os princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal, que foram sendo abandonados pelo caminho com aval dos Tribunais de Contas dos Estados, e mesmo do STF.
As emendas são bastante complexas, mas mesmo que apresentadas em separado, elas estão conectadas. A lógica do processo não é de fácil entendimento, ficando circunscrita aos especialistas em contas públicas. Para ganhar apoio da sociedade, é fundamental que fique clara a importância de cada uma das medidas propostas, como se articulam, qual o objetivo final e por que o saldo das mudanças é positivo, ainda que imponha perdas para alguns grupos. Foi assim que a reforma da Previdência conseguiu ser aprovada este ano, após dois anos de debates, campanhas de esclarecimento e negociação política.
Complementando essas três PECs, o governo anunciou outra para a simplificação tributária, que deve ocorrer em etapas, ao longo de 2020. A prometida reforma administrativa subiu no telhado, deve ser desidratada, mas não foi ainda abandonada. Tudo isso aprovado, no conjunto, começa a dar um novo desenho ao Estado brasileiro. Mas refundar o Estado ainda vai exigir muitas outras medidas e mais radicais, lembrando que a privatização continua muito tímida. Que o governo não pare por aqui.
Temos uma carga tributária elevada, empresas estatais que não se justificam, número excessivo de funcionários públicos, baixa produtividade e serviços públicos de péssima qualidade. Não deveria, portanto, haver dúvidas sobre a importância das medidas. Mas em uma sociedade patrimonial, acostumada a depender do Estado para tudo, o programa proposto é mais que um pacote econômico, é um choque cultural. Começa agora a fase mais difícil dos trabalhos, que é o convencimento da sociedade e de seus representantes no Legislativo. Ela envolve todo o governo, não só a equipe econômica.
A ausência de uma boa estratégia de comunicação pode ser fatal. Os exemplos da inabilidade deste governo nesse quesito são muitos e, por isso, não surpreende o número de iniciativas de Bolsonaro derrubadas pelo Congresso. Essas PECs são importantes demais para que deslizes na comunicação coloquem tudo a perder. Não são vendetas pessoais, nem fazem parte de uma guerra ideológica.
Fora o contexto geral de grande complexidade, há detalhes em cada uma das emendas que vieram à tona conforme as propostas foram sendo destrinchadas. E neles mora o diabo. Duas propostas causaram reação imediata: o fim dos municípios sem autonomia financeira e a desobrigação do governo em construir escolas públicas em locais carentes de vagas, utilizando bolsas para inscrição em escolas privadas, os vouchers.
A ideia de reduzir número de municípios pode ser boa, se o objetivo é a redução de gastos públicos. Mas não estão claros os critérios, nem como será feita a transição. Os habitantes de lugares isolados reagiram imediatamente. Temem o esquecimento. Lembrando que esse assunto será votado em plenas eleições municipais, tornando o desafio da comunicação ainda maior.
A questão das escolas públicas é bem mais complicada. Nem mesmo entre os especialistas há consenso sobre a ideia dos vouchers. O ideal é fazer um experimento estatisticamente controlado antes de partir para uma mudança constitucional. E se o governo acha a ideia tão boa, com base no fato de o custo por aluno em escolas privadas ser menor, não deveria limitá-la a locais com carência em vagas nas escolas públicas. Não deveria haver restrições. Educação é um tema que exige bem mais reflexão.
A objetividade e simplicidade de uma PEC ajuda imensamente na sua compreensão. Esses jabutis colocados pelo próprio governo em nada contribuem para sua aprovação. Dizem que são bodes na sala, não me parece o caso. E podem contaminar a apreciação de todo o resto.
A coerência também é fundamental para a persuasão. A ideia de submeter os Tribunais de Conta Estaduais ao TCU vai na contramão do compromisso “Mais Brasil, menos Brasília”. E ainda deve sofrer questionamento sobre sua constitucionalidade. Da mesma forma, a política de desoneração para estimular o 1.º emprego é contraditória, com a redução de subsídios e incentivos prevista na PEC do pacto federativo. Mas se o governo abriu exceção para Zona Franca de Manaus, por que não para o jovem desempregado? E por que deixar o idoso de fora? Conter outras demandas será mais uma árdua tarefa política.
Vem sendo exibido em escolas e centros acadêmicos um documentário sobre os 25 anos do real, produzido pelo Livres. Talvez a melhor lição que se tira das entrevistas com os autores do plano é a importância da boa comunicação. Esclarecer, dialogar e convencer foi o segredo. Quem não se comunica, se estrumbica.
*Economista e advogada
Eros Grau: O STF, a prisão e a Constituição
Só nova Constituinte poderá impor a prisão após condenação em segunda instância
Podemos falar e escrever como juízes, advogados ou cidadãos. Agora, escrevo como a relembrar voto que proferi como relator do Habeas Corpus 84.078-7, em 2009, quando eu era membro daquele tribunal lá de Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao me referir aos juízes, desembargadores e ministros dos nossos tribunais seguidamente me repito, lembrando um texto de Sartre a propósito da conduta do garçom que executa uma série de gestos solícitos para atender o cliente. Os garçons cumprem seu papel no café ou restaurante onde trabalham sendo gentis até mesmo com clientes que detestem.
Assim é o juiz. Cumpre o papel que a Constituição lhe atribui. Não é perpetuamente juiz. Mas enquanto juiz deve representar o papel de magistrado, nos termos da Constituição e da legalidade. Não o que é (e pensa) ao cumprir outros papéis, quais os de artesão ou jardineiro, por exemplo. Poderão então prevalecer os seus valores. Enquanto juízes, contudo, hão de se submeter à Constituição e às leis.
O que me traz a escrever este texto é o recente julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) n.ºs 43, 44 e 54, o Supremo Tribunal Federal recuperando e reafirmando o quanto decidiu em 2009, no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7.
Outro é o meu sentimento como cidadão, distinto do que dispõe a Constituição, que estabelece, no seu artigo 5.º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E o inciso LXI desse mesmo artigo 5.º, por outro lado, aplica-se não ao cumprimento de pena, mas à prisão preventiva “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.
A distinção entre ambos é evidente: o primeiro – inciso LVII – diz respeito à prisão preventiva e o segundo – inciso LXI –, ao cumprimento de pena.
Mais, o preceito estabelecido pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, não é suficiente para justificar a execução antecipada da sentença. Preceitos constitucionais não podem ser expurgados por leis ordinárias.
A circunstância de ter procedido como um “garantista” durante o tempo no qual exerci a magistratura – e não como “consequencialista”, designação hoje atribuída aos juízes praticantes de direito alternativo – me traz serenidade.
Não me cansarei de repetir que vamos à Faculdade de Direito aprender Direito e não justiça. Uma indagação de Bernd Rüthers é de todo aplicável aos nossos tribunais e juízes: pode um Estado, pode uma democracia existir sem que os juízes sejam servos da lei? A resposta é negativa, dado que a independência judicial é vinculada à sua fiel obediência ao Direito positivo.
Pequenos trechos extraídos do voto que proferi no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7, no STF, dizem o quanto desejo aqui enfatizar.
A ampla defesa não pode, em face do que dispõe a nossa Constituição, ser visualizada de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, incluídas as recursais de natureza extraordinária. A execução de sentenças após o julgamento do recurso de apelação significa restrição do direito de defesa. Uma assertiva de um meu amigo de verdade, o ministro Evandro Lins, tudo sintetiza: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.
Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não meros objetos processuais. E as singularidades de cada infração penal somente podem ser plenamente apuradas quando, nos termos do que define o artigo 5.º, inciso LVII, da nossa Constituição, transitada em julgado a condenação de seus autores.
Não fosse assim, melhor seria que os magistrados abandonassem o seu ofício e saíssem por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem os contrariasse. Cada qual com o seu porrete! Cada um por si e a Constituição contra...
A lição do profeta Isaías que se lê na Bíblia (32,15-17) basta-me por tudo: “O direito habitará no deserto e a justiça morará no vergel. O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre”.
É certo que enquanto cidadãos gozamos da liberdade de falar como quisermos, mesmo correndo o risco de afirmar o que não tem sentido. A respeito da chamada “prisão em segunda instância”, por exemplo, há até quem chame os ministros do STF de “centauros com quatro patas de cavalo”.
Essa liberdade não deveria ser excedida mesmo pelos que não frequentaram Faculdades de Direito. Leio aqui e ali afirmações inconcebíveis, tal qual a de que as regras jurídicas podem elidir os princípios jurídicos – vale dizer regras-princípio. Mais, ignorância total do fato de que nossa Constituição, como afirmei linhas acima, nos incisos LVII e LXI do seu artigo 5.º distingue a prisão preventiva do cumprimento de pena. E, sobretudo, ironias, qual a de que o Supremo Tribunal Federal solta presos que não foram condenados em última instância para beneficiar outros.
Sei bem que uns e outros desejam fazer justiça com as próprias mãos, mas não me cansarei de reafirmar que nem mesmo os juízes fazem justiça. Pois são vinculados pelo dever de aplicar as leis e a Constituição. Justiça é lá no Céu!
Permito-me, por fim, lembrar que, como dispõe o artigo 60, parágrafo 4.º, IV, da nossa Constituição, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Percebem? Somente uma nova Assembleia Constituinte poderá impor o cumprimento de sentença condenatória a partir de condenação em segunda instância!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF
Eugênio Bucci: Bom dia, escravo
Perto do novo formato de exploração, dar espelhinho a índio é um gesto solidário
Nos EUA, a senadora democrata Elizabeth Warren abriu uma cruzada contra o Facebook e outros titãs da tecnologia digital (tech industry), como Amazon e Google. Possível candidata à sucessão de Donald Trump, ela pretende quebrar os monopólios exercidos por essas empresas.
Do outro lado do Atlântico, a União Europeia (UE) procura fazer a sua parte. Tentou proibir os gigantes Facebook e WhatsApp (ambos controlados pelo cyberimperador Mark Zuckerberg) de compartilhar dados sobre seus usuários, uma prática que, segundo o Parlamento Europeu, violaria as políticas de proteção de dados do continente e favoreceria ainda mais o mercado monopolista. A UE também vem exigindo que os conglomerados digitais adotem medidas mais efetivas contra as fake news, mas não impôs recuos significativos aos tais titãs.
No Velho Mundo, como no Novo, as democracias ainda estão longe de enquadrar os conglomerados. Ao contrário, eles é que ameaçam engolir a democracia de uma vez.
Não é difícil de entender por quê. Se uma sociedade que se pretende livre deixa os eleitores se afogarem na desinformação, as decisões aprovadas por esses mesmos eleitores tendem a perder racionalidade, legitimidade e sustentabilidade. Quando a desinformação é crônica, aflora o risco real de que o processo decisório da democracia deságue na negação da democracia. O risco, aliás, já está posto. Em diversos países, líderes nacionais, depois de ganharem eleições livres, passam a combater a ordem democrática: em várias partes do mundo a democracia vem gestando seu oposto.
Por certo, são muitos os fatores que concorrem para esse quadro alarmante, mas, qualquer que seja o prisma analítico, as corporações que monopolizam as tecnologias digitais e as mídias sociais têm tudo que ver com isso. Na essência de seu negócio, elas não têm compromisso com a qualidade dos processos democráticos e com a verdade dos fatos. Isso porque a essência do seu negócio não é informar. Nunca foi. O negócio delas é capturar o olhar mediante todo tipo de apelação e, por meio do olhar capturado, extrair os dados pessoais de cada um de nós – dados que depois serão comercializados, sem que a gente ganhe um centavo em troca.
Nesse jogo extrativista que fez degringolar o padrão do debate público o centro do capitalismo se deslocou. Em 1998 as cinco empresas mais valiosas do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. Na lista, apenas a Microsoft, vendendo softwares, já estava no negócio de extração de dados pessoais (as outras quatro fabricavam mercadorias palpáveis, coisas corpóreas e outras antiguidades). Em 2018, passados apenas 20 anos, as cinco empresas mais valiosas do mundo eram Apple, Amazon (as duas já triscavam, no ano passado, o valor de US$ 1 trilhão), Alphabet (Google), Microsoft e Facebook.Todas eram (e são) atratoras de olhar e extratoras de dados pessoais.
A revista The Economist percebeu a mutação do capitalismo quando estampou na capa, em 6/5/2017, que os dados pessoais eram o novo petróleo. A Economist também lançava um alerta: a nova economia dos dados pedia uma nova atitude das regulações antitruste. Quem se habilitou a tomar providências? Elizabeth Warren? A União Europeia? Até agora, estamos no plano das boas intenções.
Soltos no vazio legal, os monopolistas do olhar, atuando acima do alcance das legislações nacionais, desenvolveram escalas de exploração inimagináveis. Não precisaram contratar assaltantes armados para invadir os lares e torturar os moradores até arrancar deles os seus segredos mais íntimos, como seus resultados de exames clínicos, sua fé religiosa, seus amores secretos, seus perfis de gastos no cartão de crédito, seus itinerários pela cidade e seus temores inconfessáveis. Em vez de recrutar assaltantes a domicílio, criaram estratégias sedutoras para que as multidões entregassem tudo isso e mais um pouco de mão beijada – de livre, espontânea e deslumbrada vontade.
Num Facebook da vida, o usuário sente-se um rei, como se recebesse de presente ferramentas maravilhosas para encontrar os amigos de infância e falar mal dos inimigos de morte. O pobre rei, contudo, não passa de mão de obra escrava e matéria-prima gratuita. De uma vez só. Enquanto imagina se divertir, embevecido de si mesmo, trabalha mais do que um remador das galés romanas. O Facebook não precisa empregar digitadores ou fotógrafos, pois o usuário faz isso de graça. O Facebook não precisa comprar os dados pessoais dos seus escravos, a matéria-prima vem sem custo algum, seja nas fotos de prato de comida, seja nos movimentos dos olhos diante da tela. Depois os dados viram dinheiro, na casa dos trilhões de dólares, e o usuário lá, rei imaginário, não recebe nem esmola.
Perto desse novo formato de exploração, o truque infame de dar espelhinho para índio é um gesto solidário. As crianças que trabalhavam 16 horas por dia nas fábricas infectas do século 19 não eram tão aviltadas em sua dignidade.
Estamos submetidos a uma ordem totalitária, na qual a vida privada dos reles mortais é devassada pelo poder dos conglomerados, enquanto o que se passa no núcleo do poder dos conglomerados é perfeitamente invisível para os reles mortais. As empresas mais valiosas do nosso tempo sabem tudo de nós e nós não sabemos nada sobre elas. Mais ainda, o centro dos conglomerados é opaco para o Estado democrático de direito. O poder legítimo do Estado não sabe o que se passa dentro deles. Google e Facebook escondem até quanto faturam em publicidade em países como o Brasil. Não prestam contas às sociedades que exploram.
E tudo isso para quê? Para espalhar fake news, para deteriorar a razão dos argumentos na esfera pública, para consagrar líderes que vencem eleições livres e depois bombardeiam a liberdade. Elizabeth Warren tem razão. Ou as democracias impõem limites a essas empresas, ou elas vão fazer sangrar até a morte aquela que, precariamente, teríamos chamado de civilização.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
William Waack: O STF e o senso comum
Transformado em instância política, o STF enfrenta o descrédito da própria instituição
Dias Toffoli deu prosseguimento ao que o Supremo vem fazendo há anos – tratar de identificar o que é a repercussão política e popular daquilo que decide – quando praticamente instou o Congresso a alterar normas para permitir a execução de sentença condenatória antes do famoso “trânsito em julgado”. É o que o Congresso está fazendo, motivado sobretudo pelo próprio voto de Toffoli, segundo o qual não se trata de alterar (na pretendida modificação do Código Penal) uma cláusula pétrea da Constituição.
A questão jurídica é fascinante pois, como assinalou aqui Ives Gandra Martins na edição desta quarta-feira as duas teses que se opõem na discussão são consistentes. A saber: a) como alguém que, até o trânsito em julgado, é inocente, pode ser levado a cumprir pena? b) tribunais superiores não tratam mais das questões fáticas decididas nas duas instâncias iniciais de um processo, portanto recursos à terceira e quarta instâncias não se destinam mais a provar inocência.
O que está em jogo, no fundo, é uma questão sobretudo política, de central relevância para qualquer sociedade que pretende viver num Estado de direito, pois envolve o trato de princípios fundamentais como o da presunção da inocência. No campo da disputa política a discussão (como tudo que acontece hoje) descambou segundo a caracterização de uns como “fanáticos punitivistas” (os que defendem a execução de pena após a segunda instância) e de outros, seus oponentes, como “garantistas que favorecem corruptos e criminosos”.
No campo dos grandes fatos da política não se pode ignorar que a sociedade brasileira demonstrou um enorme apoio à Lava Jato, sobretudo pelo consenso de que nossos códigos processuais (indecifráveis para leigos), nosso sistema recursal (incompreensível para leigos) e a própria Justiça (com sua obscena morosidade) em vez de punir corruptos tornam a vida deles mais fácil e tranquila.
Diante desse reconhecimento, sustentado por fatos, se os expoentes da Lava Jato extrapolaram ou não suas funções e ignoraram ou não normas legais é irrelevante – do ponto de vista da compreensão dos fatos por vastas camadas da sociedade – diante dos resultados apresentados: a descoberta da inédita roubalheira e a punição de seus principais responsáveis. Para uma imensa quantidade de pessoas o que está em jogo não são princípios jurídicos, mas uma correção de rumos inaceitáveis.
É uma espécie de “senso comum de justiça” (costuma ser em si muito perigoso, dada a possibilidade de manipulação por populistas) amplamente disseminado que empurra Congresso e, como Toffoli permitiu, o próprio Judiciário a dar um jeito de fazer o que uma parte relevante dos participantes na discussão sustenta que a Constituição diz que não se deveria fazer (a execução da pena após segunda instância).
Simplificando bastante, a reiteração categórica desse princípio na Constituição obedecia lá atrás a um forte “desejo” da sociedade, na saída do regime militar, de estabelecer garantias contra arbítrios do Estado. Mas, agora, passados 30 anos e o País tão desigual, pobre e injusto como antes, e a política tão depreciada como sempre, prevalece no público a noção de que as garantias contra arbítrios passaram a beneficiar o que a sociedade entende (até erroneamente) como sendo o principal problema a se resolver, a saber, o da ação dos corruptos.
É real e justificável o lamento dos que assinalam que no embate das forças políticas para tirar do poder os responsáveis mais recentes pela corrupção institucionalizada foram pisoteados princípios fundamentais para o funcionamento de sociedades abertas, principalmente o respeito ao que está escrito na Lei.
Mas é o que acontece quando uma sociedade perde confiança no funcionamento de suas instituições, a começar pelo Judiciário, no topo dele o STF.
Vera Magalhães: Chega de treta?
Supremo Tribunal Federal pisa no freio das polêmicas na reta final do ano
“Chega de temas traumáticos e conflituosos. Estamos correndo maratona em ritmo de 100 metros, e isso não é bom.” A frase me foi dita nesta terça-feira por um ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele nega que a pisada no freio na maratona de decisões controversas seja uma reação à pressão popular contra a Corte, traduzida em manifestações de rua com pautas como a defesa da prisão após condenação em segunda instância e o impeachment de integrantes do tribunal. Mas o timing veio exatamente a calhar.
A principal consequência prática da propensão do STF de refrear as polêmicas deverá ser o recuo na ideia de que a Segunda Turma analise ainda neste ano o pedido de suspeição do ex-juiz e hoje ministro Sérgio Moro no julgamento de Lula no caso do triplex.
Antes, a ideia de Gilmar Mendes era levar o habeas corpus de volta à turma ainda neste mês. Agora, ministros do colegiado já dizem que o caso não deve ser analisado neste ano.
No entendimento de observadores dos humores supremos, o fato de que a decisão sobre prisão após condenação em segunda instância já levou à soltura de Lula ajudou a arrefecer a pressão pelo julgamento da suspeição de Moro.
Assim, seria dar mais corda às manifestações nas ruas e nas redes sociais contra a Corte pautar um HC que poderia levar à anulação da sentença que condenou Lula – e que foi confirmada posteriormente por dois colegiados, o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e o Superior Tribunal de Justiça.
“Seria muita ousadia até para o Supremo de hoje anular uma sentença confirmada por tantos juízes, usando para isso evidências obtidas por meio do cometimento de um crime”, observa um ministro do STF que não integra a Segunda Turma. Significaria relativizar o escrutínio amplo dos desembargadores do TRF-4 sobre as provas colhidas no processo em nome de mensagens obtidas a partir do hackeamento dos procuradores que, ainda que mostrem conversas impróprias entre eles e Moro, não trazem nenhuma evidência de fraude processual ou existência de prova falsa ou forjada.
Assim, nesta quarta-feira o STF deve encerrar a temporada de julgamentos espinhosos, de ampla repercussão política e em investigações criminais. Nem os próprios ministros se arriscam a um palpite a respeito de que tese vai prevalecer na análise do mérito de liminar do presidente da Corte, Dias Toffoli, que sustou todas as investigações do País que tenham tido origem em relatórios de inteligência do antigo Coaf e da Receita Federal.
Conversas com ministros de diversas vertentes permitem esperar que alguma restrição ao compartilhamento de dados da Unidade de Inteligência Financeira deve ser imposta, mas provavelmente não se exigirá autorização judicial para todos os casos, nem para que todos os órgãos tenham acesso.
Mesmo muitos ministros que concordam com alguma forma de regulamentação discordam da extensão da liminar de Toffoli, que paralisou todas as investigações do País decorrentes de relatórios do Coaf e da Receita – sendo que, no caso desta última, o próprio Supremo já julgou Adin que reconheceu uma lei complementar do governo FHC que regulamentou a atuação do órgão.
Portanto, a liminar tal qual a conhecemos – e que teve como beneficiário direto o senador Flávio Bolsonaro, autor do pedido de paralisar o inquérito de seu ex-assessor Fabrício Queiroz, – pode cair e dar lugar a alguma decisão de caráter geral e menos draconiana.
Se de fato tirar o pé do acelerador depois do caso Coaf, o STF tentará aplicar nos estertores de 2019 aquilo que Toffoli prometeu em sua posse: que o Supremo pare de ser o protagonista da vida política do País. Até aqui, foi rigorosamente o oposto.