O Estado de S. Paulo

João Domingos: A banalidade autoritária

‘Sem liberdade de imprensa, além de acuados, estaremos perdidos’

Ninguém que defenda a democracia pode considerar normal a banalidade com que se tem invocado a edição de um novo AI-5. Com o AI-5, o Congresso foi fechado, o presidente da República foi autorizado a decretar estado de sítio por tempo indeterminado, demitir pessoas do serviço público, cassar mandatos, confiscar bens e intervir nos Estados e municípios. A liberdade de imprensa e de expressão foi extinta. Essa é a verdade dos fatos. Escondê-la é distorcer a realidade, é fabricar fake news.

Autor do recém-lançado Existe democracia sem verdade factual? (Estação da Letra e Cores Editora), no qual dialoga sobre o impacto da desinformação no debate público com o pensamento da filósofa Hannah Arendt, criadora da teoria da “banalidade do mal”, Eugênio Bucci, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, faz uma analogia entre a tentativa de negar a verdade dos fatos e a ameaça ao estado democrático de direito.

À coluna, Bucci lembrou que a democracia é uma construção histórica, um engenho social, um projeto humano. “Sem cuidados, ela pode perder vigor e desaparecer. A democracia existe porque existiram e existem seres humanos que cuidam dela, com muito trabalho. Sem eles, nada feito.”

Para existir a democracia, é preciso haver liberdade de expressão e de imprensa. Mas até quando a liberdade de imprensa e de expressão sobreviverá à ameaça de soluções autoritárias, como a da volta do AI-5, ou à tentativa de banalização do uso das Forças Armadas em conflitos urbanos e rurais, que podem esconder intervenções nos Estados e quebra do princípio federativo?

Bucci observa que no Brasil e em outros países aumentam a atividade e o espaço dos que trabalham contra e combatem as liberdades individuais, os direitos fundamentais, as conquistas sociais, a tolerância, o pluralismo e a cultura de paz, valores que servem de balizas civilizatórias. “A democracia ainda está aí, as instituições estão funcionando, mas as ameaças contra ela se avolumam.”

Nesse contexto, os primeiros ataques tentam atingir a liberdade de imprensa – a frente mais frágil e mais visível das sociedades democráticas, diz Bucci. “No Brasil, o clima de ameaças se tornou escancarado. Artistas são xingados e execrados. As universidades sofrem infâmias diárias, como a de que não passam de centro de consumo e de produção de drogas. Por que isso? Porque na universidade há pensamento livre, coisa que os autoritários não suportam. E porque nas artes há imaginação à solta, coisa que os apavora. Mas é contra a imprensa que se detonam os bombardeios mais baixos e mais covardes, incluindo intimidações pessoais, ameaças de morte e de prisão, chantagens e tentativas, vindas do Estado, de quebrar o negócio de órgãos jornalísticos.”

Para Bucci, não há nada mais frágil do que a verdade factual, mas, ao mesmo tempo, não há nada que o autoritarismo mais tema. “Cerremos fileiras com a liberdade de imprensa. Se ela cair, todo o resto cairá logo em seguida. Se queremos uma democracia que não dobre os joelhos, queremos uma imprensa incômoda, independente e sustentável. A liberdade de imprensa será o fiel da balança no Brasil de agora, como já foi no passado. Sem ela, além de acuados, estaremos perdidos.”

Despedida
Esta é minha última coluna. A intenção, ao pedir a Eugênio Bucci que falasse sobre a liberdade de imprensa para o texto de despedida, foi lembrar que essa liberdade sofre ameaças muito sérias. Entendo que Bucci, ao lado do ex-presidente do STF Ayres Britto, e de veículos de comunicação como o Estado, simbolizam, cada um em seu espaço, a luta pela liberdade de expressão. Que, em resumo, é a defesa da democracia. E a garantia da liberdade.


Eliane Cantanhêde: Um espanto!

Negros contra negros, índios contra índios, aparelhamento da cultura, Funai e Ambiente

Um negro que nega o racismo, uma índia contrária aos movimentos indígenas, um diretor da Funai aliado aos ruralistas, a estrutura de Meio Ambiente descolada do Meio Ambiente, um secretário de Cultura que xinga Fernanda Montenegro, uma secretária de Audiovisual distante do cinema e da televisão. Sem falar em ministros.

O que que é isso, minha gente? O presidente Jair Bolsonaro vive criticando os antecessores pelo “excesso de ideologia” e rejeita indicações de políticos eleitos tão democraticamente quanto ele próprio, mas não faz outra coisa senão nomear pessoas que simplesmente se classificam “de direita”, mesmo que não tenham nada a ver com os cargos. Boa governança?

O que dizer de Sérgio Camargo, que foi nomeado para a Fundação Palmares, apesar de negar o racismo, atacar a “negrada militante” e reduzir a injustiça e as humilhações contra os negros a um “racismo nutella?” Até o próprio irmão desse senhor, o músico e produtor cultural Oswaldo Camargo Júnior, abriu um abaixo-assinado contra a nomeação. Para Oswaldo, Sérgio é um “capitão do mato”. Um capitão do mato na Fundação Palmares...

Assim como pinçou um negro para desqualificar os movimentos negros, Bolsonaro levou para a abertura da Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, a youtuber índia Ysani Kalapalo, que vive entre São Paulo e sua aldeia no Xingu (MT). Isso tem nome: “Lugar de fala”. Brancos não podem atacar os movimentos, mas um negro contra negros e uma índia contra índios faz toda a diferença.

Tratada como troféu, a jovem se diz “80% de direita”, considera as queimadas “um acidente” e ataca os líderes como “índios esquerdistas que fazem baderna em Brasília”. Exultante, Bolsonaro decretou o fim do “monopólio do sr. Raoni”. Referia-se a um ícone, indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Famoso por chamar Fernanda Montenegro de “sórdida e mentirosa”, o diretor de teatro Roberto Alvim foi nomeado secretário de Cultura e não apenas define a política cultural como nomeia direitistas por serem direitistas. Exemplo: Katiane Gouveia, da Cúpula Conservadora das Américas, manda na estratégica área de audiovisual.

No prestigiado ICMBio, o PM Homero de Giorge Cerqueira. Na resistente Funai, o delegado da PF Marcelo Augusto Xavier, com apoio da bancada ruralista – amiga de Bolsonaro, inimiga das comunidades indígenas. Ele substituiu o general Franklimberg Freitas, que é indígena.

O embaixador júnior Ernesto Araújo virou chanceler depois de sabatinado pelo filho do presidente e jurar que é a favor de Deus, da família e de Trump e contra o “globalismo” e a China (que, segundo ele, quer destruir os valores cristãos do Ocidente).

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi escolhido por conhecer pouco o setor, não saber nada de Amazônia e se comprometer a entupir o ministério de militares da reserva, escanteando ambientalistas atuando há décadas em mares, rios, florestas e reservas. Ruralistas e parte do empresariado estão felizes. Não se pode dizer o mesmo de especialistas e da comunidade internacional.

Damares Alves deu um salto de uma obscura assessoria do Congresso para um ministério que reúne Direitos Humanos, família, mulher e sei lá mais o quê. Assim, roda o mundo com visões muito peculiares, não raro estranhas, sobre família, gênero, educação infantil. Todos eles têm a mesma credencial poderosa: são “de direita”.

Na era Lula e PT, “nós contra eles”, “cumpanheirismo”, ideologia e aparelhamento do Estado, que deu no que deu: desmandos, incompetência, corrupção. Saiu o aparelhamento de esquerda, entrou o de direita. A esquerda pela esquerda, a direita pela direita. Pobre Brasil.


Fernando Gabeira: Os fantasmas atacam de novo

Paulo Guedes sobressalta a economia com sua miopia política ao reviver o AI-5

D repente o fantasma do AI-5 volta a assombrar. É como se tivéssemos entrado na máquina do tempo e ela nos levasse, célere, para 13 de dezembro de 1968. Zuenir Ventura escreveu um livro chamado 1968, o Ano que Não Acabou. O título pode ter sido mal interpretado, pois não fala em momento algum que o tempo correria para trás.

Estamos em 2019, que, por sinal, está quase acabando. Muita coisa mudou nestas seis décadas. Hoje, na sombra do AI-5, há outro mais assustador: as demonstrações no Chile. Ele estava embutido nas ameaças de Eduardo Bolsonaro, parcialmente apoiadas pelo general Heleno, e ressurge agora na entrevista de Paulo Guedes. É sempre o mesmo fantasma arrastando correntes nas névoas de uma miopia histórica.

Tanto o governo como Lula partem de um pressuposto equivocado: o de que um movimento como o chileno é provocado por exortações nos palanques ou inibido por ameaças de virar a mesa democrática. Tivemos grandes movimentos populares em 2013 e ninguém falou no AI-5. Mesmo no Chile, o que se vê é o horizonte de um novo acordo social.

O Financial Times disse que os acontecimentos no Chile foram uma ducha de água fria no governo Bolsonaro. Afinal, os mesmos objetivos econômicos fazem parte de sua agenda liberal. E o mesmo Paulo Guedes trabalhou no Chile sob Pinochet e reaparece agora conduzindo o processo no Brasil. Iria um pouco mais longe. Os acontecimentos no Chile abalaram a confiança do governo Bolsonaro e o que vemos desde então não passa de sinais de insegurança sobre os rumos da agenda liberal.

Lula, é verdade expressou no palanque o desejo de ver algo no Brasil como o que aconteceu no Chile. Mas talvez saiba que as exortações têm poder limitado, revoltas desse tipo são fermentadas por múltiplos fatores e não se fazem de cima para baixo.

Surpreendido pela eclosão do movimento em 2013, quando era governo, o PT tenta se antecipar a ele, na oposição. Se acontecer, pode dar a ilusão de que foi o grande personagem.

Não é verdade, entretanto, que Lula tenha exortado a violência, como disse Guedes nos EUA. Ele tem experiência para saber que a violência é um fator que desagrega um movimento, assusta as pessoas que querem demonstrar pacificamente.

Houve focos de violência tanto no Brasil em 2013 como no Chile agora. Eles não conseguiram esvaziar o movimento chileno. Mas o preço foi alto: mais de 200 pessoas cegas inteira ou parcialmente por balas de borracha, a maioria delas manifestantes pacíficos.

Bolsonaro voltou a insistir na chamada exclusão de ilicitude, que na prática é a liberação da porrada. Ainda não conhecemos bem o que virá por aí, como os ingredientes fermentam, que tipo de estopim pode provocar a explosão, quaisquer 20 centavos a mais. Mas uma coisa aprendemos tanto em 2013 como no Chile: é importante superar a crise sem golpear a democracia.

Diriam: Piñera decretou estado de sítio. Mas sua primeira promessa em seguida foi precisamente anular o estado de sítio. Essa trajetória seria suficiente para as pessoas saírem da máquina do tempo, rasgarem seu AI-5 de estimação, caírem em 2019 e trabalharem exclusivamente com saídas democráticas.

Os generais que fizeram o AI-5 tinham um pé na realidade, tanto que o consumaram com êxito. As pessoas que insistem em usar o velho instrumento num mundo transfigurado me intrigam. Ser mais velho tem alguma utilidade. Posso lembrar que não havia internet na época do AI-5. O estado de exceção é uma espécie de estado de espírito que parecem carregar por todos os momentos históricos.

Paul Guedes, entre outros, tem a tarefa de manter o curso da economia mais ou menos protegido dos sobressaltos políticos. Ele fez o contrário, sobressaltou a economia com sua miopia política ao reviver o AI-5 como uma possibilidade.

Lembro-me do AI-5 nas vésperas do Natal, panfletagens na porta de igrejas, sinos, o embrulho dos presentes. Não simpatizo com a terraplanismo, muito menos acho Trump salvador do Ocidente. No entanto, os arautos do AI-5 de certa forma me devolvem a juventude, ter algo obsessivo e prioritário para fazer na vida: derrubar o governo. Não há heroísmo nessa fantasia. Outra utilidade de ser velho é distinguir as épocas: desta vez eles cairiam bem mais rápido e os heróis seriam coletivos.

Algo me impressionou no jogo Flamengo x River Plate: a torcida que empurrou o time brasileiro até o ultimo minuto. Sem ela dificilmente haveria aquele feito histórico. Não creio que haja uma força no Brasil capaz de instalar um estado de exceção e segurar o tranco, nacional e internacional. Mas já que insistem tanto no tema, talvez merecessem paciência; que façam o AI-5 e aguentem as consequências. O problema é que sua aventura seria devastadora para o Brasil.

A democracia permite a defesa de ditaduras tanto à direita quanto à esquerda. Às vezes somos tentados a legislar sobre isso. Mas não creio que isso resolva. O melhor mesmo é uma reação em cadeia cada vez que invocam o fantasma da ditadura.

No meio desse fogo cruzado, o Parlamento, com todos os seus defeitos, faz outra leitura do Chile. Ele não se contenta em levar apenas a agenda liberal, mas se dispõe a combiná-la com iniciativas sociais. Na minha cabeça nem sempre essas agendas estão separadas. Convergem, por exemplo, no saneamento básico, campo em que abertura econômica e aumento do bem-estar caminham ombro a ombro. Como foi a privatização da telefonia.

De qualquer forma, o caminho do Congresso parece ser mais realista, contribui para conter os extremos. Diria um caminho do centro. No entanto, o centro do Brasil, em alguns quesitos, como a corrupção, consegue ser tão ou mais vulnerável que os extremos. Esse é um dos motivos que o afastam da sociedade. Em síntese, não empolga a torcida.

Mas pode, pelo menos, não se acovardar diante de ameaças de AI-5. Lembram-se do que aconteceu com o Congresso, a censura entrando de corpo presente nos jornais? Vale algo mais que simples declarações de praxe.


Zeina Latif: Presidente, a balança encolheu

As importações têm crescido mais do que o sugerido pela recuperação da economia

Não é novidade o encolhimento da balança comercial. Ocorre que o tema entrou no radar dos mercados.

As exportações não estão crescendo, com poucas exceções, como as beneficiadas pela guerra comercial entre EUA e China. A razão principal é o comércio mundial estagnado. A demanda externa pelos produtos brasileiros é variável-chave para determinar a performance das exportações.

A cotação do dólar tem influência modesta, afetando mais a rentabilidade do exportador, e menos o volume exportado. Para começar, quando o real entra em ciclo de depreciação é porque o dólar está se fortalecendo nos mercados globais, o que significa que as moedas dos nossos concorrentes também estão se enfraquecendo.

Outra consideração é que nossos produtos são caros, refletindo a carga tributária elevada e cumulativa e a infraestrutura deficiente, entre outros. Não haveria cotação do dólar alta o suficiente para compensar tantas distorções internas sem causar riscos à dinâmica inflacionária. E, nesse caso, a depreciação cambial seria, ao final, ineficaz, pela corrosão inflacionária da taxa de câmbio.

As importações estão em alta. Sem surpresas aqui, afinal, a economia ganha tração. Mas há algo extra, já discutido neste espaço.

Desde o ano passado, as importações têm crescido mais do que o sugerido pela recuperação da economia. A participação do produto importado na cesta de consumo está aumentando, possivelmente, como reflexo do parque produtivo defasado tecnologicamente. A grave crise, que gerou paralisia prolongada de investimentos, cobra seu preço.

Enquanto isso, as importações têm sido menos afetadas pelo dólar forte. É verdade que os salários em dólar mantêm-se em patamares elevados, preservando a relevante presença dos importados. O ponto é que a queda dos salários em dólar desde 2018, decorrente do ajuste do câmbio, não está impedindo o aumento da participação das importações, como ocorria no passado.

O quadro acima deixa claro que o nosso problema não é a taxa de câmbio fora de lugar. Já perdemos tempo demais discutindo esse tema. Vamos virar a página e avançar tempestivamente em reformas estruturantes que gerem ganhos de produtividade e maior competitividade dos nossos produtos e serviços.

O encolhimento da balança comercial deve prosseguir, gerando elevação do déficit em transações correntes (inclui também a balança de serviços). Este último atingiu 3% do PIB em outubro. Não é um valor elevado na comparação com países pares. Porém, chama a atenção a velocidade de deterioração, a despeito do crescimento modesto da economia e da alta do dólar.

O câmbio será afetado pelo aumento do déficit em transações correntes? Menos do que se imagina. Na verdade, é o dólar que influencia o desempenho do saldo externo ao longo do tempo (agora menos do que no passado), e nem tanto o contrário. Certamente o humor dos mercados pode sofrer impacto, gerando volatilidade de curto prazo no mercado cambial. O ciclo da taxa de câmbio, no entanto, é de outra natureza. Decorre do comportamento do dólar no mundo e da capacidade do País de crescer, atraindo o interesse de estrangeiros e locais para investirem no Brasil, e não no exterior, financiando, assim, o déficit em transações correntes.

O déficit externo não é um problema, mas sim suas razões e a capacidade do País de financiá-lo. Se o País ingressar em um ciclo de investimento robusto e com a abertura comercial paulatina, ambos ampliando a importação de bens (maquinário e insumos) e serviços tecnologicamente mais sofisticados, o déficit externo mais elevado será algo saudável; e também necessário, diante da baixa taxa de poupança interna do Brasil. Ele ajudará a impulsionar o crescimento de longo prazo ao elevar a produtividade da economia, atraindo assim capitais para financiá-lo e afastando pressões cambiais. Não é o que ocorre no momento, porém.

Há patologias na economia brasileira. São elas que precisam ser atacadas. O resto é conversa.

*ECONOMISTA-CHEFE DA XP INVESTIMENTOS


O Estado de S. Paulo: Grupos denunciam Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional por 'incitação a genocídio indígena'

Comissão Arns e advogados do CADHu citam incêndios no Brasil e dizem que presidente pode ser enquadrado em 'crime contra a humanidade'; Bolsonaro deu risada ao ser questionado sobre ação

Matheus Lara, O Estado de S.Paulo

Um grupo de advogados e militantes de direitos humanos informou nesta quarta, 27, que denunciou o presidente Jair Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional (TPI) por "incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil".

De acordo com os denunciantes, o presidente poderia ser enquadrado em "crime contra a humanidade", previsto no Estatuto de Roma, tratado internacional do qual o Brasil é signatário desde 1998 e que reconhece o TPI.

Os advogados que entraram com a ação contra Bolsonaro integram a Comissão Arns, que reúne ex-ministros de Estado e militantes dos direitos humanos, e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), que atua desde 2012.

O Estado aguarda retorno do Planalto sobre o caso. Em frente ao Palácio da Alvorada nesta quinta, Bolsonado deu risada ao ser questionado sobre a denúncia. "Próxima pergunta", disse.

A denúncia foi apresentada à procuradora-chefe do tribunal, Fatou Bensouda. De acordo com os acusadores, agora Fatou deve solicitar informações a Estados, órgãos das Nações Unidas, organizações intergovernamentais ou não-governamentais e a outras fontes que considere relevantes. Só então Fatou pode apresentar um pedido de autorização de investigação à Câmara de Questões Preliminares, ligada ao tribunal.

A ação cita os incêndios na região amazônica, que deflagraram neste ano a primeira crise internacional do governo Bolsonaro.

"Os incêndios, que ainda se perpetuam na região, geram um dano ambiental e social desigual e de difícil reversão. Acompanham as pressões sobre a floresta e associam-se à disputa — frequentemente violenta — pela terra para empreendimentos agropecuários, grandes obras de infraestrutura, grilagem, garimpo e exploração de madeira. Tais atividades exercem grande impacto sobre a floresta e os povos que a habitam e vêm sendo ora estimuladas ora negligenciadas em seu potencial de degradação”, diz a denúncia.

Entre as penas previstas no Estatuto do TPI estão até 30 anos de prisão e até prisão perpétua em casos extremos. Também são possíveis sanções como multas e perda de bens.

"Chefes de Estado e de governo têm, perante o direito internacional, o dever de coibir crimes e proteger populações vulneráveis", informam a Comissão Arns e a CADHu em nota. "Por sua gravidade, os crimes sob jurisdição do TPI não prescrevem. Mesmo que seu mandato tenha terminado, Bolsonaro continuará passível de punição pelo tribunal."

O que é o Tribunal Penal Internacional?
Diferentemente da Corte Internacional de Justiça, que examina litígios entre Estados, o TPI julga apenas indivíduos. O tribunal processa e julga indivíduos acusados de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e, desde 17 de julho de 2018, crimes de agressão.

Em julho deste ano, o TPI o ex-líder rebelde congolês Bosco Ntaganda por 18 crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos entre 2002 e 2003. Entre eles, assassinato, estupro, escravidão sexual e uso de crianças-soldado. A conclusão foi tomada durante audiência pública em Haia, na Holanda, sede do TPI, após revisão de documentos e audiências com testemunhas. A sentença foi anunciada em novembro: 30 anos de prisão. Ele recorre da decisão.

Réu declarado culpado de escravidão sexual, Ntaganda se entregou em 2013 na capital de Ruanda, Kigali. Ele pediu para ser encaminhado ao TPI em Haia, onde ficou preso até 2016. Esse tempo será descontado da sentença de 30 anos.

A sentença informou que 102 testemunhas prestaram depoimento, incluindo uma mulher cuja garganta foi cortada por aliados de Ntaganda. Uma das conclusões da investigação foi que Ntaganda matou a tiros um padre. /COLABOROU MATEUS VARGAS.


Érica Gorga: Criminalidade e prisão em segunda instância

Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza a análise empírica

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, ao proferir o voto que mudou novamente a cambiante jurisprudência da mais alta Corte, afirmou que não é a prisão após segunda instância que resolve problemas de criminalidade e de impunidade, ou evita a prática de crimes. No entanto, tal argumento retórico, defendido com forte emoção, não é amparado por estudos científicos que fundamentam a política criminal da grande maioria dos países.

Convém lembrar a Toffoli e aos demais ministros do STF, que repetem acriticamente argumentos de advogados criminalistas muito bem remunerados, que a hipótese sobre se a aplicação de punição severa (prisão) de modo mais ágil contribui ou não para a diminuição da criminalidade é empiricamente testável. Ou seja, tal hipótese pode ser considerada válida ou inválida a partir de análise empírica.

Cesare Beccaria e Jeremy Bentham, que lançaram as bases da criminologia nos séculos 18 e 19, respectivamente, entendiam o crime como produto de decisão de cálculo racional. Infratores avaliam a probabilidade de serem condenados e punidos, e quando ela é baixa se engajarão em mais práticas criminosas. Ambos defenderam a tese de que as leis e as penas devem desestimular indivíduos a cometer infrações, e que a prisão produz efeito preventivo, inibindo comportamentos criminosos em toda a sociedade.

Mas foi o professor Gary Becker, da Universidade de Chicago, que, em 1968, desenhou a análise criminal contemporânea, fomentando o surgimento de literatura abundante que instrui as políticas públicas na Europa, nos Estados Unidos e em outros países. Becker estabeleceu modelo matemático internacionalmente reconhecido para avaliar a criminalidade, contribuição que lhe valeu nada menos que o Prêmio Nobel de Economia em 1992.

O modelo de Becker usa variáveis sobre danos causados pelos crimes, custos de apreensão e condenação dos criminosos, número de crimes e formas de punição, entre outros fatores, para investigar as melhores políticas públicas de combate à delinquência. Atualmente há consenso internacional entre os estudiosos, amparado por estatísticas e metodologia científica, de que, mantidas outras variáveis constantes, o aumento na probabilidade de condenação e punição, em geral, repercute na redução do número de delitos.

Logo, dizer que a prisão após a decisão em segunda instância não contribui para solucionar problemas de criminalidade e impunidade, como fez Dias Toffoli, equivale a sustentar que a quimioterapia não auxilia no tratamento do câncer. Ora, estudos com evidências empíricas comprovaram que a quimioterapia é tratamento eficaz contra a doença, da mesma forma que foi demonstrado que a prisão é solução eficaz contra a criminalidade.

O resultado do julgamento do STF do dia 7/11 coloca o Brasil em posição isolada no mundo, conforme apontou estudo da subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, já que 193 dos 194 países da ONU adotam o início da execução da pena de prisão após decisão judicial de primeiro ou de segundo grau.

Pesquisas de Steven Levitt, da Universidade de Chicago, demonstram que a prisão impacta o crime em razão do efeito dissuasório sobre potenciais agentes criminosos. Levitt e Daniel Kessler testaram os efeitos de mudanças legais com incremento de penas de prisão para diversos crimes na Califórnia e concluíram que elas acarretaram a diminuição de ilícitos nos anos posteriores. Estudo de Siddhartha Bandyopadhyay analisou o impacto de condenações e prisões na Inglaterra e no País de Gales e concluiu que as prisões, no geral, fazem decrescer a criminalidade.

Becker também expôs que a probabilidade de condenação e punição é relacionada à renda do criminoso. Ao reconhecer o poder econômico de alguns litigantes, a literatura jurídica americana trata, cientificamente, de temas que entre nós ainda são verdadeiros tabus.

Por exemplo, artigo de John Goodman no Journal of Legal Studies já em 1978 argumentava que juízes podem ser persuadidos com os esforços financeiros das partes ao defenderem as suas causas, por meio de investimentos em pesquisa jurídica, contratação de advogados talentosos e argumentação mais bem formulada. Goodman apresentou modelo matemático em que a probabilidade de uma parte vir a ganhar um processo judicial dependerá do quantum em dinheiro que cada parte gasta para usufruir a melhor defesa.

O autor identificou que o Direito pode evoluir de maneira ineficiente para a sociedade quando os interesses da parte não refletirem os custos e os benefícios sociais agregados que decorrem da norma jurídica que está sendo questionada. Isso ocorre quando o resultado é bom para a parte, mas ruim para a sociedade.

Paul Rubin e Martin Bailey argumentaram que advogados têm interesse de longo prazo na jurisprudência resultante e exercerão pressão contínua para que ela evolua a favor de teses jurídicas que beneficiem seus clientes, atuando como grupo de interesses organizado. Os autores citam o caso da evolução da jurisprudência criminal que enfatiza questões processuais, assegurando a demanda por serviços advocatícios. Tal análise auxilia na compreensão do resultado do julgamento histórico do STF, já que uma das ações que suscitou a mudança jurisprudencial foi impetrada pela própria OAB.

Portanto, é de esperar que, dentre os cerca de 5 mil presos que se podem beneficiar da decisão do STF, os que têm mais recursos financeiros para despender na sua defesa perante o Judiciário sairão mais rapidamente da prisão, como já se vem verificando. Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza análise empírica, embora ela explique a certeza da impunidade para alguns e a insegurança jurídica em que vive a maior parte da sociedade.

Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza a análise empírica

*DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE


William Waack: Dólar e os nervos do Jair

Fatores estruturais explicam a subida do dólar, mas o raciocínio político do presidente também

Investidores tentam agir de cabeça fria. Portanto, é pouco útil associar a subida do dólar ao nervosismo de operadores de mercado diante de frases inapropriadas, confusas, indignantes, desconexas e que apenas geram barulho, bem ao gosto das frenéticas redes sociais, uma marca já estabelecida por integrantes do atual governo em seu repetitivo empenho em criar dificuldades políticas para si mesmo. Na superfície, os recentes recordes nominais do dólar contra o real são um “paradoxo”. Afinal, nos atuais 121 a pontuação do risco Brasil é a mais baixa desde 2012, quando começou a subir e beirou os 500 no auge da recessão e derrubada do PT em 2016. Da saída de Dilma em diante, o risco caiu, oscilou para cima na incerteza pré-eleitoral e, desde a vitória de Bolsonaro, só desceu – enquanto o dólar, nesse período de 12 meses, só subiu.

As raposas de mercado adiantam uma explicação para esse “paradoxo”. Olhando friamente a trajetória da dívida bruta brasileira, os investidores concluem que ela encostou nos 80% do PIB e que, mesmo com a relevante reforma da Previdência, ali continuará pelos próximos dez anos pelo menos. E conferem nos números do Banco Central que o desempenho das contas públicas entre 2018 e 2019 não está brilhante como se poderia pensar, para não falar da deterioração da balança comercial e das contas externas.

Há outro fator também levado em conta, este mais subjetivo: o índice de incerteza compilado pela FGV. Alguns podem alegar que se trata de uma falsa correlação, mas comparando-se os últimos 18 anos desse indicador de incertezas ao desempenho anual do PIB, salta aos olhos que, quanto maior a incerteza, pior é o desempenho da economia. A incerteza atual “calculada” pela FGV está nos mesmos patamares de 2015 – a mais alta dos últimos 10 anos – e o PIB ainda cresce pouco.

Nesse raciocínio, é a combinação da permanente crise fiscal com o nosso péssimo ambiente de negócios (o Brasil ocupa a posição de número 124 no ranking mundial) – no qual tem enorme destaque a insegurança jurídica – que esclarece a parte mais relevante da subida do dólar, mesmo sendo o Brasil um credor externo líquido. É neste ponto que entra o fator “os nervos do Jair”, já assinalado em editorial do Financial Times, publicação fora da suspeita de ser esquerdista/comunista.

O ministro Paulo Guedes confirmou que o presidente preferiu deixar para o ano que vem as reformas que constituem o eixo estratégico das ações com as quais se pretende alterar a estrutura e até a natureza do inflado e perdulário Estado brasileiro, tido como pior entrave à economia do País. A razão declarada é o temor – sim, temor, a partir de raciocínio político – que protestos como ocorridos no Chile, Equador, Colômbia e Bolívia se repitam por aqui, ainda mais com Lula solto. A ênfase em obter o “excludente de ilicitude” (na verdade, uma licença para matar) para combater eventuais distúrbios generalizados, que se seguiriam ao ambicioso programa de reformas, traduz medo de um adversário que, para o governo, surge como muito mais poderoso do que se registra na realidade. Para usar linguagem militar, se ao analisar a correlação de forças políticas o capitão foi acometido de excesso de prudência ou se faltou-lhe audácia, o resultado é o mesmo.

Financial Times, essa bíblia dos investidores internacionais, recomendou ao presidente brasileiro não perder os nervos para não desperdiçar o que lá fora e aqui dentro se identifica como a “janela histórica” – o “momento” político – favorável para seguir adiante com reformas de grande alcance, mas que provocarão formidável resistência de setores bem organizados, como o funcionalismo público, o Judiciário, e segmentos importantes da economia. Não é difícil entender o nervosismo do dólar.


José Serra: Fogo na casa para assar o leitão

O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço 

O governo apresentou propostas de emenda à Constituição (PECs) para atacar o desequilíbrio das contas públicas. Uma delas prevê a extinção dos chamados fundos públicos, que geralmente contam com receita carimbada para financiar determinados gastos. Há algumas ineficiências nessa matéria, mas virar a mesa não parece ser o caminho mais sensato. Em meio à estagnação da economia brasileira, o papel do Estado é central e decisivo.

Seguramente, há fundos desnecessários. Alguns deles se transformaram em feudos controlados por grupos que se acham donos de fatias do orçamento público. Contudo existem fundos importantes para a sociedade e para a economia, que muitas vezes não estão associados a vinculações orçamentárias. Na verdade, são instrumentos para canalizar recursos para parcerias público-privadas (PPPs), exportações e agronegócio, dentre outras áreas.

É preciso avaliar caso a caso antes de sacar recursos desses fundos, como pretende o governo. Alega-se que o saldo acumulado seria utilizado para pagar dívida pública. No entanto, esses pagamentos representariam, em última instância, aumento do dinheiro em circulação na economia. O Banco Central (BC), por sua vez, teria de enxugar esse possível excesso de liquidez com títulos – as tais operações compromissadas. No fim das contas, a queda inicial da dívida seria neutralizada por esse aumento das operações do BC. Elas por elas.

A OCDE recomendou aos líderes europeus ações para aumentar os investimentos públicos, com vista a reverter a desaceleração econômica na região. Na Europa, o Plano Junker segue essa diretriz. Seu objetivo é garantir assistência técnica e recursos para estruturar projetos de investimento. Um dos pilares do plano é o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, criado em 2015 para prover recursos nas áreas de concessões e PPPs.

A ideia desse fundo europeu é simples: atrair as instituições financeiras para projetos essenciais ofertando garantias com dinheiro do orçamento da União Europeia. Em tempos de taxas de juros negativas e de escassez dos recursos públicos, é uma saída inteligente. As garantias ajudam a mitigar os riscos associados a financiamentos de projetos com potencial para elevar as taxas de crescimento econômico. Assim, recupera-se a confiança e são estimulados os investimentos, cuja míngua aprofundou a crise por lá.

Para ter claro, o fundo europeu apoia investimentos estratégicos nas áreas de infraestrutura, eficiência energética, agricultura, educação, saúde e microempresas. O fundo já pôs à disposição ¤ 21 bilhões somente para garantir projetos de infraestrutura. Destes, ¤ 16 bilhões vieram do orçamento europeu e ¤ 5 bilhões, do Banco Europeu. Esses recursos foram suficientes para garantir investimentos privados no valor de ¤ 315 bilhões. Até o mais liberal dos economistas vai defender a ideia de que projetos com externalidades positivas elevadas devem ser apoiados com dinheiro público. A dose faz o veneno.

Aqui, como lá, também cabem medidas dessa natureza. Mas as ações recentemente anunciadas pelo governo parecem seguir rumo diferente. A PEC dos fundos públicos pretende reduzir a zero o funding público para investimentos, propondo até mesmo o fim de fundos que oferecem garantias nas operações de financiamento às exportações. Os problemas que existem nas vinculações, nos fundos e nas despesas obrigatórias precisam ser discutidos com clareza e cautela. A rigidez orçamentária é elevada, mas não será desfeita facilmente.

A proposta do governo é genérica, mas tem erros. Compreenda-se o contexto em que surgiu. O Orçamento enviado pelo governo ao Congresso contém apenas R$ 19 bilhões de investimentos para 2020. É o menor patamar da História recente, reflexo do avanço dos gastos obrigatórios e da queda de receitas. Sem crescimento econômico e controle adequado da despesa pública, segue-se à espera do ajuste fiscal para valer.

Uma radiografia dos gastos obrigatórios revela que 93% correspondem a gastos sociais e folha de pessoal – 69% e 24%, respectivamente. Metade das despesas com servidores refere-se a aposentadorias, que não podem ser reduzidas. Dos que estão na ativa, boa parte atua em áreas sensíveis, como defesa nacional, segurança, educação e saúde. Por isso a contenção do gasto com pessoal precisa ser feita a partir de um diagnóstico adequado e minucioso do serviço público. É necessário um rearranjo profundo das despesas obrigatórias.

Enquanto isso não é feito, os recursos para investimentos públicos ou para ofertar garantias em investimentos privados de alto risco diminuem dramaticamente. Acabar com todos os fundos públicos numa canetada aceleraria esse processo de desmonte do Estado brasileiro. A crença é que o mercado poderia, sozinho, resolver a questão do financiamento do desenvolvimento econômico nacional. Infelizmente, não pode.

A escassez de recursos públicos é um dado da realidade. O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço. A solução passa por adotar uma estratégia de contenção de despesas com base em revisões periódicas dos gastos públicos (spending reviews, em inglês), como já foi proposto em projeto de lei aprovado no Senado em 2017. A partir da elaboração de cenários econômicos e fiscais, calcularíamos o espaço orçamentário prospectivo e decidiríamos como distribuí-lo entre as diferentes prioridades do País. O futuro seria menos turvo. A alocação de dinheiro público, mais racional.

O ajuste fiscal linear, quase sem pensar, é temerário. As ineficiências existentes no processo orçamentário e na distribuição de recursos públicos precisam ser digeridas primeiro, para depois serem devidamente enfrentadas. Não é tarefa para resolver com propostas apressadas de alterações constitucionais. Menos ainda quando desacompanhadas de diagnóstico detalhado. Acabar com todos os fundos públicos – até mesmo os que funcionam bem – seria como botar fogo na casa para assar o leitão.


Vera Magalhães: Nem em tese

A democracia é um valor absoluto e intransitivo, que não permite relativização

Peço licença ao leitor do BRPolítico para desenvolver, nesta coluna, uma análise que publiquei no site nesta terça-feira. É que o assunto é inescapável. Trata-se, por óbvio, da entrevista do ministro Paulo Guedes nos Estados Unidos, em que teceu uma tese segundo a qual, se a esquerda radicalizar, não se poderá reclamar caso o “lado de cá”, do governo, replique falando em um novo AI-5.

Algumas coisas não devem ser ditas por homens públicos, em on ou em off, no caso concreto ou em tese. Menos ainda pelo responsável pela Economia do País e aquele a quem a sociedade, o mercado, o setor produtivo e o mundo veem como a âncora de confiabilidade de um governo em que esse ativo já foi completamente dilapidado em 11 meses.

Eu sei que Guedes não defendeu medidas extremas em sua fala. Não tenho por que desconfiar da convicção democrática do ministro. Já ouvi dele próprio o raciocínio que levou à sua declaração, em uma conversa informal recente.

A base é um lamento: ele sabe que sua agenda de reformas pós-Previdência foi abatida enquanto decolava com a soltura de Lula, a radicalização de seu discurso e a reação imediata de Jair Bolsonaro – a meu ver, misto de paranoia, autoritarismo e nenhuma fé no credo liberal.

Escrevi que isso iria acontecer neste mesmo espaço, no último dia 10, o domingo imediatamente subsequente ao “Lula solto”. O caudilho petista estava, então, havia dois dias na rua, mas eu cravei: a agenda de Guedes tinha tudo para ser a primeira vítima da volta da polarização esquerda-direita ao seu grau máximo.

Não deu outra, e não demorou. Bolsonaro mandou segurar a reforma administrativa e as demais Propostas de Emendas à Constituição que tratam de mudanças fiscais e federativas, que já tinham ido ao Congresso, agora devem andar em ritmo lento.

Mas naquele mesmo texto eu já dizia, no título, que a ocasião seria uma espécie de “PhD” para Guedes, economista brilhante, mas cujas declarações em política às vezes resvalam para a ingenuidade, outras tantas dão mostras de incompreensão dos ritos democráticos – como quando defendeu uma “prensa” no Congresso para aprovar as reformas, ainda na transição.

Dizer que não seria surpresa que setores do governo defendessem, ainda que como reação à oposição, medidas como um inadmissível AI-5 ou algo próximo, coloca o fiador da economia no mesmo barco que a ala ideológica e autoritária do governo – que, aliás, age para fustigá-lo, e à qual ele deveria ser um contraponto necessário.

Por isso, não dá para passar uma flanela na fala do ministro. Mesmo porque ela embute perigosa condescendência com o autoritarismo demonstrado pelo presidente e o entorno, que vêm numa nítida escalada de radicalização, usando a soltura de Lula e a conclamação que ele faz para que as pessoas vão às ruas como pretexto para defender, por exemplo, excludente de ilicitude para Operações de Garantia da Lei e da Ordem. A declaração tem, ainda, um erro factual: omite que Eduardo Bolsonaro falou em AI-5 muito antes da soltura de Lula – e não como reação a ele, como deu a entender o ministro.

É urgente que Guedes se retrate. O ministro acha que foi vítima de uma pegadinha, e sua fala foi distorcida e tirada de contexto. Mas algumas ideias complexas, que cabem bem numa conversa informal, se tornam desastrosas quando expressadas numa coletiva, por uma autoridade.

O AI-5 é uma chaga histórica indelével, de uma ditadura que o Brasil não aceitará repetir, em nenhum grau, sob nenhuma justificativa e em nenhuma circunstância. A democracia é um valor absoluto e intransitivo, que não permite meio termo. Eu coloco Guedes entre os democratas. Ele precisa deixar isso claro, pois nem todos à sua volta estão no mesmo pelotão.


Eliane Cantanhêde: É guerra?

Para Gleisi, conflitos chegam ao Brasil; Bolsonaro lança ‘GLO do campo’. Onde nós estamos?

Quando o torniquete apertou em torno do PT e do mandato da então presidente Dilma Rousseff, seu patrono Lula ameaçou “chamar o Stédile”. Nem completou ainda um ano de mandato, agora o presidente Bolsonaro tem a audácia de anunciar que quer chamar o Exército para reintegrações de posse no campo. Lembra do “chama o (general) Pires” da ditadura, mas fora de foco, de tempo e de lugar.

“Quero paz e democracia, mas também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas”, falou Lula há cinco anos, quando petistas e aliados entraram em confronto com manifestantes contra Dilma no Rio. Poderia ser só mais uma dessas bravatas típicas de Lula, mas continha uma clara ameaça.

Ameaça nunca cumprida, aliás, nem mesmo quando Gleisi Hoffmann, presidente agora reeleita do PT, disse que ia “ter de matar gente” se Lula fosse preso. João Pedro Stédile, principal líder do MST, não apenas nunca acionou suas tropas como saiu de fininho dos holofotes para se distanciar das denúncias de corrupção que passaram a bater firme no PT e a respingar em toda a esquerda. E ninguém matou ninguém na prisão de Lula.

No caso de Bolsonaro, que anunciou ontem um projeto para chamar o Exército nas reintegrações de posse – a “GLO do campo” –, não há bravata, mas, sim, uma intenção clara e um triplo objetivo: agradar à bancada da bala e à bancada ruralista e atender aos interesses dos proprietários de terra. O projeto, ainda em elaboração no Planalto, tem de passar pelo Congresso. Agora, é rezar.

Qual o risco se Lula reativar a fantasia de acionar o “exército do Stédile”, se os Stédiles do MST estiverem dispostos a bater continência e cumprir a ordem e se, enfim, o Congresso aprovar a tal “GLO do campo” de Bolsonaro? O risco é de uma guerra, com oficiais e soldados armados de um lado e os militantes do MST com seus porretes e facões, do outro. Sem contar os jagunços das próprias propriedades.

Mais uma vez, Gleisi Hoffmann entra na história para piorar as coisas. Ao assumir mais um mandato de presidente do PT olha o que ela disse, numa referência aos confrontos sangrentos no Chile, na Bolívia, no Equador e na Colômbia: “Quando as grandes manifestações ecoarem no Brasil, porque vão ecoar, nós temos de estar preparados para ajudar a conduzi-las.”

É de uma irresponsabilidade enorme a presidente de um dos maiores partidos do País falar assim, como é igualmente irresponsável Bolsonaro querer o Exército nos conflitos e fazendas pelo interior. Está todo mundo ficando louco?

A Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prevista na Constituição, é uma medida em casos muito graves e específicos, quando as forças policiais não dão conta de crises e os governadores pedem socorro à União. É algo, portanto, para exceção, emergência, não para jogar tropas daqui para lá, sob qualquer pretexto, a qualquer hora.

No caso da “GLO do campo”, há dois agravantes. O primeiro é que, como Bolsonaro deixou claro ontem, não se trata de agir com os governadores e a favor deles, mas passando por cima deles (que, ao ver do presidente, não cumprem as determinações judiciais de posse).

O segundo é que o presidente só usa seu poder e instrumentos de poder para defender os já poderosos: os desmatadores, que não têm mais seus tratores destruídos; os que pescam em reservas ecológicas, livres para fazer o que quiserem; os policiais que exorbitam; os patrões, cujos direitos se sobrepõem aos dos empregados.

Um alerta, porém: as Forças Armadas são disciplinadas e cumprem ordens, mas já têm resistência a jogar seus oficiais e soldados para atuar como policiais em favelas, contra bandidos comuns. O que acham da ameaça, e o risco, de vê-los enfrentando à bala acampamentos com homens, mulheres e crianças?


Vera Magalhâes: Bolsonaro agora quer GLO para tudo

Presidente, que já enviou ao Congresso projeto para excludente de ilicitude em operações, fala em usá-las para reintegrações de posse; virou moda?

Testando limites. O presidente já é bem conhecido por testar a acolhida de suas ideias algo heterodoxas de uso da força para depois submetê-las ao escrutínio do Congresso. O fato é que o governo está paranoico com a ideia de que protestos como os que ocorrem no Chile, na Bolívia e na Colômbia aconteçam no Brasil, sob patrocínio de Lula e do PT. O MST entra na jogada nessa mesma fantasia: Bolsonaro parte da ideia de que os "exércitos" de sem-terra poderiam ser usados no plano lulista para colocar fogo no País.

Aspirina. Que o presidente costuma ser acometido desse tipo de temor e dar corda a essas narrativas já se sabe. O que não é razoável é colocar as Forças Armadas nesta equação. Nem tornar um instrumento que a Constituição prevê para circunstâncias excepcionais de riscos à ordem pública, como as operações de GLO, algo banalizado a ser usado em qualquer circunstância - e ainda com o bônus do excludente de ilicitude para militares que agirem nessas novas circunstâncias.

Desvirtuamento. As Forças Armadas não têm o papel constitucional de atuar como força suplementar de segurança pública. Mais: militares não gostam que se recorra às GLOs como quem troca de roupa. Uma coisa é evocar a garantia da lei e da ordem em circunstâncias como chacinas em presídios, comandadas a partir de fora por facções criminosas, ou grandes eventos como Olimpíadas, outra é usar o expediente para cumprir reintegrações de posse em propriedades privadas, algo que é atribuição das polícias estaduais. Não vai passar no Congresso e não será aceito pelas Forças Armadas, mas o presidente gasta tempo e energia para disseminar esse tipo de ideia. E depois a culpa por se discutirem só pautas negativas é da imprensa.

Documentos. Outra notícia que resvala nos pendores pouco democráticos do bolsonarismo veio do jornal O Globo, que mostrou que o Gabinete de Segurança Institucional tem travado o fornecimento de dados da Abin cujo sigilo prescreveu pela Lei de Acesso à Informação Pública, em vigor desde 2012. Mais de 90 pedidos de informações feitos pelo jornal foram negados sob o argumento de que eram dados sensíveis, concernentes a questões de Estado. Mas se a lei define o prazo e o grau de sigilo dos documentos, há que se debater: não é direito da sociedade conhecer as informações quando elas se tornam de domínio público? Qualquer mudança nas regras não teria de passar por emendas à lei que está em vigor?

Segunda instância. Enquanto comemora a melhora dos indicadores de mortes violentas e atribui os números a iniciativas de sua pasta, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, enfrenta um jogo de aparências com o Senado: foi cancelada uma audiência pública para debater o projeto que altera o Código de Processo Penal para prever a possibilidade de cumprimento de pena após condenação em segunda instância. No lugar dela, Moro foi chamado para uma reunião nesta terça, 26, na residência oficial da presidência do Senado, em que líderes tentarão convencê-lo de que estão empenhados em buscar formas de antecipar o cumprimento das penas, quando, na verdade, querem jogar o assunto para um futuro remoto.

Câmara. Enquanto isso, na Câmara, o presidente Rodrigo Maia diz que existe uma possibilidade de acordo com o Senado: os senadores que aprovem a PEC já chancelada pela CCJ da Casa quando ela chegar lá. Acontece que os deputados também não têm pressa de levar este tema ao plenário: a emenda vai passar por uma Comissão Especial, cujo prazo de discussão é bastante elástico. A ideia comum a senadores e deputados é esperar que a virada do ano faça arrefecer a pressão popular (e de Moro) pela mudança no rito de cumprimento de penas.


Eliane Cantanhêde: Para frente ou para trás?

Recuo no combate à corrupção, na diversidade, na inclusão; o mundo está de olho

Tudo embolado: o julgamento da restrição aos dados da Receita e do Coaf, a reviravolta na prisão em segunda instância, o pacote anticrime empacado. E é por isso que o presidente do Sindifisco, advogado e engenheiro mecatrônico Kleber Cabral, adverte, dentro e fora do País, para os graves efeitos dessa investida não mais apenas contra a Lava Jato, mas contra todos os avanços no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

“Essa é a percepção generalizada e qualquer decisão que restrinja o trabalho da Receita e o compartilhamento de dados de órgãos de controle tem impacto inclusive no desenvolvimento. Se o Brasil for carimbado como ‘não cooperativo’ no combate a ilícitos, isso será um forte obstáculo aos investimentos internacionais”, diz ele.

O Sindifisco, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais, já entrou com representações em quatro órgãos internacionais para denunciar e tentar brecar os avanços contra os órgãos de controle, Receita, Polícia Federal e UIF (Unidade de Inteligência Financeira, ex-Coaf). E esses ataques não se limitam a apenas um Poder.

Além dos julgamentos do Judiciário sobre segunda instância e compartilhamento de dados, há também decisões do Executivo e do Legislativo atravancando todo um processo que havia jogado luzes positivas sobre o Brasil, criando uma expectativa do fim da impunidade e uma onda de confiança nos brasileiros. Com tudo isso em risco, a decisão do Congresso sobre segunda instância também se torna crucial. A ver.

Não apenas os recuos no combate à corrupção, porém, preocupam, incomodam, irritam. Um professor universitário xingado de “macaco” e esfaqueado na rua por ser negro em plena semana da Consciência Negra? Um deputado federal vandalizando uma exposição contra o racismo? Um outro falando em “negrinhos bandidinhos”?

Depois da ditadura, destampou-se no Brasil a panela de pressão política e o vapor da democracia trouxe ao ambiente os grupos, interesses e confrontos tão reprimidos em duas décadas. A unidade de esquerda, centro e parte da direita para recuperar a normalidade perdida foi aos poucos cedendo terreno às divergências e nuances próprias das democracias.

Agora, o fim da era PT com a sucessão de mensalão e petrolão destampou uma nova panela de pressão: o que há de pior na pior direita, o discurso assassino das armas, a falsa religiosidade que rouba dos pobres e infelizes, a crueldade contra negros e a comunidade LGBT, a posição retrógrada sobre gênero disfarçada como defesa da família. Os recuos no combate à corrupção e essa barafunda vieram acompanhados de retrocessos em Meio Ambiente, Cultura, Direitos Humanos, pesquisa, educação, política externa. E não se fala aqui do governo, ou não apenas do governo, mas de toda uma classe média que saiu do armário para se assumir armamentista, racista, homofóbica... cruel.

Em meio à balbúrdia, sobressai-se o Ministério da Economia de Paulo Guedes. Ele e Rodrigo Maia trazem racionalidade a um ambiente de preocupante irracionalidade, mas eles podem muito, não podem tudo. A economia tem enorme peso na política e os índices inegavelmente favoráveis escamoteiam os demais problemas, mas a economia também depende da política, da percepção, dos ventos e da sociedade, tanto quanto a sociedade depende da economia.

O Brasil é um país imenso, amistoso, cheio de potencialidades, que tem tudo para se desenvolver e incluir os milhões de miseráveis que sobrevivem por aí não se sabe como. Mas, para isso, é preciso andar para frente, não para trás. Avançar na economia, no combate à corrupção, na igualdade de oportunidades, no respeito às diferenças, na dignidade de todos, não importa o sexo, a cor, a religião, o saldo bancário. Aliás, princípios básicos de humanidade.