O Estado de S. Paulo
Vera Magalhães: CPMI das Fake News pega fogo
Joice Hasselmann disseca funcionamento de esquema de milícia virtual bolsonarista
Treta. A CPMI das Fake News foi palco de mais um embate entre bolsonaristas e a ala bivarista do PSL. O depoimento da ex-líder do governo no Congresso Joice Hasselmann foi marcado por acusações sobre a participação de Eduardo Bolsonaro na organização das milícias virtuais bolsonaristas. Ela disse que o chamado "gabinete do ódio" é financiado com dinheiro público, pois haveria funcionários de gabinetes e do governo na organização dos linchamentos a inimigos e ex-aliados.
Pressa. O dia foi agitado no Congresso. A presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), contrariou a orientação do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e pautou para a semana que vem a votação de relatório de projeto de lei que altera o Código de Processo Penal para permitir a prisão após condenação em segunda instância. Ela atendeu a requerimento assinado por 43 senadores, e disse que só poderia segurar uma matéria na comissão se essa fosse a decisão da maioria dos integrantes do colegiado, ou decisão unânime dos líderes partidários. Alcolumbre, por sua vez, anunciou sessões do Congresso Nacional para a próxima semana, colocando em risco o funcionamento da comissão.
Time do Moro. Com isso, Tebet se alinha à pressão feita pelo ministro Sérgio Moro (Justiça) para acelerar a discussão da mudança. Moro participou de debate em que voltou a defender a medida. Em entrevista à Jovem Pan, o ministro disse que, da forma atual, as penas são cumpridas apenas no "dia de São Nunca". Ele negou que pretenda ser vice de Bolsonaro nas eleições de 2022 e afirmou que a melhor solução seria repetir a chapa com Mourão.
Militares. Na liquidação de fim de ano do Congresso, o Senado aprovou o projeto que altera a Previdência dos militares, que agora segue para sanção presidencial. Como a proposta reestrutura a carreira militar, a princípio ela levará a uma elevação de gastos, em vez de gerar economia. No cômputo final, a economia em dez anos será de apenas R$ 10 bilhões.
Eugênio Bucci: Mentiras, mais mentiras e rock’n roll
O poder que se instalou na Esplanada sabe que seu sucesso depende do fracasso da verdade
Ao longo desta semana, como em todas as semanas anteriores, o governo pôs no ar o seu show de mentiras escalafobéticas para, de novo, sucatear o estatuto da verdade, blasfemar contra a História, destruir o bom senso, promover a ignorância, banalizar o desrespeito aos fatos e desacreditar a imprensa. O roteiro é sempre igual. Na superfície, no jogo das aparências, entram em cena as mentiras canastronas, meio carnavalescas, que servem de factoides para bagunçar o debate público. Aí, as inverdades parecem meros acessos de loucura inconsequente e ridícula, mas são mais do que isso: são uma cortina de fumaça para uma operação subterrânea de minar as bases da cultura democrática, que já está muito debilitada no Brasil.
Nas profundas, no esgoto do bolsonarismo, o que existe é uma densa e betuminosa mentira essencial que instila o ódio contra todos os que podem verificar a verdade dos fatos, sejam os cientistas que detectam incêndio na floresta, sejam os professores que, dentro das universidades, ousam pensar criticamente, sejam os jornalistas, principalmente os jornalistas, cuja profissão consiste em investigar os acontecimentos e desmontar as mentiras oficiais.
O autoritarismo que se vai estruturando entre nós pode ser definido como o império da mentira e toda semana, uma depois da outra, temos as provas desse fato atroz e trucidante. Desta vez o protagonista da velha e repetida encenação, o mestre de cerimônias do show horripilante de mentiras, foi o novo presidente da Funarte, o maestro Dante Mantovani. Na superfície barulhenta, ele enunciou as mentiras canastronas. Nos subterrâneos da propaganda, pôs em marcha a mentira essencial, declarando uma vez mais a guerra de extermínio contra os verificadores da verdade factual.
Há dois ou três dias os brasileiros ficaram sabendo que Mantovani costuma declarar estultices em suas redes sociais. Exemplo: “O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto”. O que pode haver de mais destrambelhado? Ao mesmo tempo, o que pode haver de mais afinado com o estilo bolsonarista de bater boca? A sanha moralista é tão desmesurada que a gente tem a sensação de que, na cabeça do presidente da Funarte, os efeitos satânicos do rock atravessam o passado e o futuro, exatamente como o demo que o faz arregalar os olhos. O sujeito parece crer que, já na era de Hamurabi, todas as técnicas de interrupção da gravidez foram projetadas por essa gente cabeluda que começou a tanger a guitarra elétrica somente em meados do século 20.
Ainda no capítulo das alucinações lisérgico-reacionárias, dessas que o governo põe em circulação para desorientar o público e os pauteiros dos jornais, o maestro profissional repaginado em ordenador de despesas deu de confundir Lennon & McCartney com Lenin & Marx e assegurou que “na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.” Lucy, in the sky, manda lembranças.
Mas, atenção, esse tipo de psicodélica macabra que explode na superfície é apenas metade da invencionice sistemática operada pelo bolsonarismo. A outra metade, menos espalhafatosa, é mais insidiosa. A outra metade se dissemina pelos porões imaginários dos ativistas que morrem de saudade da ditadura e toma por alvo não as bandas de heavy metal ou as canções melosas dos garotos de Liverpool, mas os institutos democráticos incumbidos de apurar os fatos, como os cientistas do Inpe e os repórteres dos jornais independentes. Por baixo das mentiras canastronas da superfície alastra-se a mentira essencial e betuminosa do poder, escalada para revogar a História e tirar do horizonte qualquer forma de registro da realidade. Aí está a vertente mais ameaçadora pela qual o governo golpeia a sociedade.
Mantovani espelha-se diligentemente em seus superiores, que já proclamaram que o nazismo era de esquerda, e afirma que o fascismo também é de esquerda. Para quê? Para reescrever a História, invertendo seus sinais. Quanto apregoa que as fake news não passam de uma invenção dos globalistas, interessados em ampliar o poder da imprensa no mundo inteiro, quer achincalhar os jornalistas profissionais. E isso funciona. De tanto insistir no ponto, os bolsonaristas estão conseguindo enfraquecer os jornais.
O poder que se instalou na Esplanada sabe que seu sucesso depende do fracasso da verdade factual. É um poder viciado nessa droga pesada chamada mentira. Seu veneno mais letal não é a intolerância, não é o seu jeito miliciano de ser, não é a incompetência crônica no trato com a política. O seu pior veneno é sua mentira essencial, que prescreve censura e violência para resolver os problemas da democracia. O presidente da República, em pessoa, já vem ensaiando investidas cada vez mais concretas contra a liberdade de expressão. E não vai parar por aí. Vai aumentar a dose. Para ele, é questão de vida ou morte. Se a mentira vencer, ele fica. Se sua máscara cair, ele cai junto, pois sua identidade se transfundiu em sua máscara.
Enganam-se os liberais de boa vontade que dizem não haver lógica nos discursos alucinatórios das autoridades federais, obcecadas pelas drogas, pelo sexo, pelo rock abortivo e pelos comunistas infiltrados no show business. Há mais do que delírio e despreparo nos despautérios do governo: há a coerência da mentira e da fraude. Isso quer dizer que existe, sim, um nexo de consequência entre a teoria do rock abortogênico e a causa maior de acabar com a imprensa.
O governo pode bater cabeça feito um lobisomem rolando a ribanceira, mas sabe muito bem o que quer destroçar. Sabe que um país onde vigora a liberdade de imprensa está mais protegido contra a mentira. Sabe que não basta levar um ou outro jornal à falência. Sabe que precisa ter a seus pés um povo incapaz de buscar a diferença entre o que é verdade e o que é mentira. É nessa trilha que o governo avança.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
William Waack: O preço do churrasco
De volta ao básico: a economia permanece sendo o principal risco para Bolsonaro
Há um cálculo político transparente na decisão de Jair Bolsonaro de deixar para o ano que vem reformas mais ambiciosas que a da Previdência, consideradas essenciais não só pelo time de economia dele. Nada tem de original esse raciocínio político e se parece exatamente com o que foi tentado por Michel Temer. É simplesmente uma aposta no famoso “feel good factor”, assumindo que uma melhora na renda à disposição das famílias e uma retomada ainda que modesta da economia tirem nuvens de tempestade da política.
Para quem projeta os cenários de risco para além de 2020, a economia é o principal deles – é assim que pensam, por exemplo, as consultorias internacionais. Elas consideram que os principais fatores favoráveis a Bolsonaro para manutenção de apoio político-eleitoral continuam sendo Sérgio Moro e o combate ao crime, mas a economia será o grande teste para além das eleições municipais do ano que vem.
Existe aqui uma divergência de percepções entre o público em geral e as elites de vários segmentos econômicos, e essa diferença está se ampliando. Moro e o que ele significa continuam encantando plateias pelo Brasil inteiro, que abominam qualquer freio à Lava Jato, sobretudo por parte do STF, entendido como um ninho de tramoias a favor de criminosos e corruptos. Pelo seu lado, as elites pensantes estão horrorizadas com as posturas de integrantes do governo Bolsonaro na chamada “guerra cultural” e o peso ideológico dos olavistas em nomeações feitas pelo presidente. Boa parte delas considera não só que a Lava Jato cometeu crimes para combater crimes, mas também que está na hora de colocar um pé no freio nisso tudo – até para que a economia funcione com menos sobressaltos armados por procuradores e juízes de primeira instância.
O que une ambas as percepções é a expectativa de que a melhora nos indicadores acelere e se torne sustentável, e nisto (no entendimento de elites) essencial são as reformas. É nesse ponto que entra a aposta política do governo, explicitada pelo próprio Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes. Implicitamente (não mencionam isso de forma clara) reconhecem que a falta de uma coligação governista organizada no Congresso torna qualquer reforma ambiciosa ainda mais difícil, estão assustados com o espectro de manifestações de rua (até aqui inexistente) e que esse fator seria compensado pela melhora da economia.
De fato, desde que assumiu o governo há praticamente um ano, a caneta do presidente foi encolhida pelo Legislativo, e não o contrário – o que ficou evidente, mais uma vez, na série de vetos presidenciais que os parlamentares eliminaram recentemente em diversas matérias. A agenda econômica em apreciação pelo Legislativo é monumental, e vai do saneamento básico à lei de falências, passando por autonomia do Banco Central, PEC paralela da Previdência e uma série de medidas para lidar com a sufocante questão fiscal, entre elas a regra de ouro que estabelece gatilhos para conter o avanço de despesas correntes e um novo pacto para redistribuição de recursos entre os entes da Federação.
Como é notório, o grosso das reformas ficou para o ano que vem, que será um ano legislativo curto pela dedicação dos parlamentares à eleição municipal. O cálculo deles é primitivo e óbvio: para empurrar qualquer agenda significativa, um presidente com índices razoáveis de popularidade (como os que Bolsonaro mantém), mas com pouca capacidade de articulação no Congresso, vai continuar enfrentando dificuldades além das “normais”, que são a resistência das corporações e de interesses de segmentos econômicos, além da oposição das esquerdas.
Se índices pioram por culpa da economia, dificuldades “normais” viram obstáculos insuperáveis. É por esse motivo que vamos todos para longas férias até fevereiro do ano que vem pensando no preço do churrasco.
Vera Magalhães: Reforço positivo
O PIB mais 'parrudinho' do terceiro trimestre veio bem a calhar para Guedes
Paulo Guedes deverá usar o número positivo do PIB do terceiro trimestre como um antídoto para o risco de retrocesso em sua agenda de reformas.
Como já escrevi algumas vezes neste espaço, a soltura de Lula abateu a “linha de montagem” de projetos do ministro da Economia quando ela alçava o voo depois da promulgação da reforma da Previdência.
As três propostas de emendas à Constituição mandadas ao Senado tiveram boa acolhida dos parlamentares, boa vontade da cúpula da Casa, que rapidamente tratou de distribuir as relatorias e deslanchar a discussão, mas a reforma administrativa foi barrada pela circunstância política.
Agora, diante de números que indicam, na leitura da equipe econômica, que o caminho receitado desde a campanha está gerando frutos, de forma ainda lenta, mas contínua, Guedes deverá fazer nova tentativa junto a Jair Bolsonaro para reabilitar a reforma administrativa.
O ministro acha que enviá-la à Câmara, por onde vai começar a tramitar, ainda neste ano, será sinal de que o caminho será mantido e acentuado no ano que vem, contrariando as hesitações manifestadas até pelo presidente.
Seria uma forma, ainda, de o Posto Ipiranga terminar o primeiro ano de mandato renovando a carta branca que lhe foi conferida na largada. A menção de Bolsonaro a que lhe teriam pedido a “cabeça” do ministro soou como um recado do chefe ao ministro de que ninguém é insubstituível. Nesse cenário, o PIB mais parrudinho do terceiro trimestre veio bem a calhar.
‘Perseguição’ do PSL pode ajudar bolsonaristas
O anúncio de que os dissidentes bolsonaristas serão mesmo afastados pelo PSL de cargos em comissão e postos de comando nos diretórios e em lideranças será usado por eles como argumento na Justiça Eleitoral para que não percam o mandato por infidelidade partidária quando e se a Aliança pelo Brasil tiver a criação chancelada. Trata-se, por ironia, do mesmo argumento usado pelos deputados de “esquerda” Tábata Amaral (SP) e Felipe Rigoni (ES) contra seus partidos de origem, PDT e PSB, respectivamente.
Terceira ‘onda’ de olavistas toma Cultura
Depois de ondas de ocupação olavista resultarem em barraco, paralisia e demissões no Ministério da Educação e na Apex, a agência de promoção das exportações, a terceira onda de nomeações de pupilos do guru da Virgínia chegou com força aos postos da Cultura.
Com carta-branca de Bolsonaro, o dramaturgo Roberto Alvim designa para cargos em entidades como Funarte e Biblioteca Nacional seguidores de Olavo que têm como currículo um corolário de declarações e teses que vão de controversas a delirantes, como a de que a Terra é plana, defendida pelo maestro e youtuber Dante Mantovani em publicação depois apagada nas redes sociais.
Assim, Olavo, crítico do aparelhamento do PT da máquina pública, se torna patrono de um similar nos métodos, mas mais caricato no conteúdo, capaz de levar ao desmonte de uma indústria que vinha se estruturando em áreas como o audiovisual, mas teve um 2019 de obscurantismo ideológico e paralisia de investimentos e empregos.
Pedro Fernando Nery: Inflacionista nutella
Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações financeiras, os mais pobres não possuem instrumentos para se defender da 'ditadura' da hiperinflação; a concentração de renda piora
Chama-se Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês). Desconhecida até pouco tempo, ganhou notoriedade por parlamentares mais à esquerda no Partido Democrata americano, como Ocasio-Cortez e Bernie Sanders. Oferece a prescrição dos sonhos para qualquer político: em linhas gerais, o governo poderia gastar sem precisar aumentar impostos. O lema é que governos jamais vão quebrar, se imprimem a própria moeda.
É claro que a modinha já chegou aqui e na semana passada desembarcou no Brasil Randall Wray, professor expoente da MMT. Criticou as políticas do atual governo, mesmo trazido por um órgão federal (a Fiocruz, há muito caixa de ressonância da pauta do funcionalismo). Também participou de evento organizado por sindicatos de servidores.
O leitor pode se espantar com a autodenominação “moderna” da teoria. Afinal, o teste da impressora é um pelo qual o País já passou diversas vezes na tentativa de financiar o Estado de forma indolor. A emissão de moeda e a hiperinflação desorganizava a economia e deixava os miseráveis mais miseráveis. O próprio Wray admitiu no tour brasileiro que a MMT não traz nada de novo e faz a ressalva de que a emissão pode ter como consequência a inflação, mas é difícil conciliar os alertas tímidos com os slogans mais animados do movimento.
Wray veio ensinar a missa ao padre. Vá lá, a simpatia pela MMT na política americana é compreensível para o país que emite dólar, tem histórico de juros baixos e não viveu em décadas recentes episódios de hiperinflação. Aqui, não faz sentido ignorar o problema fiscal e cair no conto de que a impressora resolva os problemas.
De fato, recebeu críticas da esquerda nesse sentido. Na revista Jacobin, o jornalista Doug Henwood apontou neste ano que a MMT está enraizada em um contexto de país rico e na noção do excepcionalismo americano: “Seria triste ver a esquerda socialista, que parece mais forte do que esteve em décadas, cair nesse óleo de serpente. É um fantasma, um sonho febril e imperial, não uma política econômica séria”.
Veja: a Teoria Monetária Moderna pode ser usada justamente contra a agenda de tributação progressiva cara à esquerda. Por que uma reforma tributária com foco nos mais ricos, se o problema fiscal não existe de fato? A MMT é usada politicamente para dirimir preocupações sobre efeitos da despesa na dívida, mas pode da mesma forma ser usada contra alta de impostos.
Aliás, o tema já foi abordado recentemente por Stephanie Kelton, a economista de Bernie Sanders, e tão expoente do movimento quanto o nosso visitante Wray. Ela ironiza a esquerda que quer tributar os mais ricos, afirmando que eles não devem ser tratados como “cofrinhos”. Defende a superioridade da política prescrita pelo seu movimento: a emissão de moeda teria a vantagem de melhorar a vida de todos, enquanto a tributação progressiva com gasto pró-pobre melhoraria a vida só dos pobres, piorando a dos ricos.
É exatamente esse o apelo da MMT, a versão nutella do inflacionismo que a América Latina conhece tão bem: a promessa de solução indolor, que não exige sacrifícios de ninguém.
É gancho para falarmos do homem da hora: Pedro Souza, do Ipea, ganhou dois Jabutis com sua tese-livro sobre a história da desigualdade no Brasil – incluindo o prêmio de livro do ano. O trabalho documenta com dados a evolução da parcela retida pelo 1% mais rico do Brasil. Os picos de concentração de renda desde a década de 20 foram três: nos anos subsequentes à ditadura de Vargas e à ditadura militar, e na hiperinflação dos anos 80.
Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações financeiras, os mais pobres não possuem instrumentos para se defender da “ditadura” da hiperinflação. A concentração de renda piora.
Um economista brasileiro entusiasta da MMT confessa reservadamente: “Mais do que uma teoria, é uma bandeira”. Em suas palavras, a MMT seria sensacionalista, exagerada, mas serviria para chamar a atenção e estimular cidadãos a não se conformarem com a situação de elevado desemprego, e demandarem mais do Estado.
Mas os dias atuais não são só de inflacionismo nutella. Também na semana passada foram divulgados mais detalhes do Plan Verano, que Alberto Fernández ameaça cometer depois de tomar posse na Argentina. Prevê aumento da emissão de moeda para pagar aumentos a aposentados e trabalhadores.
Sua equipe acredita que há capacidade ociosa suficiente para que a impressão de dinheiro não resulte em aumento de preços. Mas a inflação acumulada em 12 meses já é de 50%, fechando outubro em 3,6% – mais do que o Brasil terá em todo 2019. O presidente eleito explicou: “Temos de voltar a fabricar, dar crédito para que se reative a produção, dar dinheiro aos aposentados para que consumam. Temos de fazer o que aqui se chama de peronismo”.
O inflacionismo raiz respira.
* Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: Infernópolis
Nove jovens mortos. Mas, com o excludente de ilicitude, vai ficar ainda mais macabro
Ao se transformar em Infernópolis, Paraisópolis confirma várias certezas num momento em que os governos e um lado doentio da sociedade aprovam e estimulam armas, polícias violentas e matanças de criminosos a qualquer custo. Não faltam “cidadãos do bem” pregando, sem um pingo de pudor, que “bandido bom é bandido morto”. Mas não são os bandidos, ou não só eles, que estão morrendo.
A palavra de ordem vem do próprio presidente da República e dos seus filhos, vai descendo para os governadores, atinge as secretarias de Segurança e, claro, chegam à ponta: os próprios policiais, que são pagos para defender vidas humanas e acabam virando ameaças à sociedade. Não raro, cidadãos e cidadãs acabam tendo tanto medo do policial fardado quanto do bandido que surge do nada.
As investigações continuam para estabelecer responsabilidades e circunstâncias, mas o fato nu, cru e cruel em Paraisópolis é que nove jovens, entre 14 e 23 anos, morreram de maneira estúpida e inadmissível numa invasão policial num baile funk de fim de semana. Mais uma vez, como já é corriqueiro no Rio, por exemplo, nove famílias, uma comunidade, uma cidade, um Estado e um país sofrem a dor da morte, da violência, do descaso com a vida. E por quem? Por agentes do Estado, pagos inclusive pelos pais, mães, amigos e vizinhos das vítimas de Paraisópolis.
Os mesmos policiais ocupariam um show de rock nos Jardins, ou no Leblon, ou em Boa Viagem da mesma forma e com a mesma agressividade com que invadiram um baile funk da periferia com 5 mil jovens se divertindo num domingo à noite? E tratariam com socos e cassetetes os filhos da elite branca como fizeram com os filhos mulatos e negros de Paraisópolis?
Se a ordem para “meter o pau” vem de cima, é natural também que policiais de Pelotas (RS) espanquem dois garotos pobres com a mesma “eficiência” com que os de São Paulo atacaram a juventude de Paraisópolis. É como se houvesse uma licença para bater, para matar. “Mira a cabecinha e... fogo!”, como disse o governador do Rio, Wilson Witzel, aquele que comemorou com pulinhos e socos no ar – como se fosse um gol, uma festa – a morte de um sequestrador. A “cabecinha” de quem?
Num país tão injusto e tão desigual como o Brasil, o endurecimento contra os bandidos corresponde a uma espécie de pacto: é chato ter uma, duas, três, 20 crianças mortas pisoteadas ou por balas perdidas, mas, bem, esse é o preço para garantir a ordem e reduzir a criminalidade. Perverso? Mas real.
A morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, com um tiro de fuzil disparado por um policial, comoveu o Brasil. De onde Ágatha era? Do Complexo do Alemão, equivalente ao Complexo do Chapadão, Comunidade da Chatuba, Bairro de Triagem e Bangu, todos no Rio, todos pobres, onde outras crianças também foram assassinadas brutalmente por balas perdidas.
Em resumo, o assassinato de crianças pobres, negras e mulatas é contabilizado como uma fatalidade, um efeito colateral do combate à criminalidade. A morte delas é o custo a pagar para que famílias brancas e ricas possam ter mais segurança...
Quanto menos direito à vida as comunidades, as crianças e os jovens pobres têm, mais o presidente Jair Bolsonaro defende o “excludente de ilicitude”, para livrar a cara de policiais que matam. Segundo ele, os bandidos “vão morrer na rua igual barata”.
O problema, presidente, é que nas democracias se matam bandidos apenas no último caso. E, na realidade brasileira, quem já está “morrendo igual barata” não são os bandidos, mas os filhos e filhas de pedreiros, empregadas domésticas, garis, pintores de parede. E sem o excludente de ilicitude... Com ele, a coisa vai ficar ainda mais macabra.
Paulo Hartung: A reforma do Estado e a refundação do Brasil
É preciso reconstruir a nossa máquina governativa, em todos os seus estratos
A impositiva mudança de rumo na História do Brasil passa necessariamente pela refundação do Estado. Para entrarmos no trilho que nos poderá levar a um caminho de prosperidade compatível com nossas potencialidades é preciso reconstruir a máquina governativa, que, ao longo dos séculos, dá prioridade ao patrimonialismo e ao privilégio, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunidades, da inclusão social e do desenvolvimento socioeconômico sustentável.
A dramática realidade de desigualdade e baixa mobilidade social remonta a uma sociedade constituída sobre o colonialismo e o escravagismo. Construímos um país que ostenta distância abissal entre quem tem acesso à instrução e aos bens e serviços do progresso e os empobrecidos que quase nada têm para subsistir e cuja possibilidade de ascender a outra posição socioeconômica é quase nula.
Isso tem muito que ver com a estrutura de Estado que vem sendo historicamente montada. Para não nos afastarmos muito na linha do tempo, basta olhar para o getulismo, a ditadura militar e a Constituinte de 1988 e perceberemos o vulto fortalecido de um Estado concentrador de renda e de oportunidades, e perversamente promotor de desigualdades.
Neste modelo injusto de organização governativa se sustentam desde a oferta precária da educação básica, passando pela constituição de insustentáveis sistemas tributário e previdenciário, até a manutenção de inconcebíveis privilégios em corporações/carreiras de Estado.
Entendo que chegamos ao término desse ciclo. Estamos num fim melancólico produzido por absoluta crise de sustentabilidade fiscal. Não há recursos públicos suficientes para financiar este modelo de Estado, caro, injusto e ineficiente.
Os nefastos efeitos socioeconômicos dessa desvirtuosa estrutura governativa se somam a uma série de fatores contingenciais e o que tivemos em 2018 foi um processo eleitoral esvaziado da política em seu sentido estrito. Ao se avizinharem as eleições municipais de 2020, soam os alarmes da emergência democrático-republicana.
O Brasil, depois de um ciclo de potente crescimento, originado com o Real e dinamizado pelo boom das commodities, entrou em grave recessão. Com o equivocado manejo da política econômica aprofundando a crise de 2008-2009, vivemos uma brutal crise no emprego e na geração de renda, incrementando a tragédia nacional das camadas historicamente marginalizadas da população. Some-se a essa cena o déficit de lideranças políticas que vem assolando o País já há algum tempo. Há um vazio crescente na seara de líderes que pensem, formulem e inspirem a modernização do Brasil em termos contemporâneos nos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais.
Deve-se, ainda, inserir nesse rol de complexidades a crise, vivida planetariamente, da democracia liberal, em tempos de alta conectividade digital em rede. Como bem formulado por Manuel Castells, “na raiz da crise de legitimidade política está a crise financeira, transformada em crise econômica e do emprego, que explodiu nos EUA e na Europa no outono de 2008”.
Como diz o pensador, essa crise política é global, mas também tem colorações nacionais. A brasileira, por exemplo, agravou-se assustadoramente por uma série de equívocos na gestão de políticas econômicas em ambiente atravessado por práticas de corrupção endêmicas. Esse conjunto explosivo nos jogou no fosso da mais grave recessão econômica de nossa História e só ampliou o descrédito da política.
Assim, nesse turbilhão de fatores desconcertantes da vida nacional, tivemos um processo eleitoral que não debateu o País, suas questões e suas oportunidades. Em vez de política genuína, tivemos embates de extremismos com conteúdos desimportantes para a cidadania e o desenvolvimento, dinamizados por redes sociais alimentadas por fake news, ódio e intolerância.
Olhar para a frente é buscarmos eleições em 2020 dignas de serem chamadas de republicanas, centradas que devem ser em ideias e em meios de se fazer prevalecer o bem-estar e o interesse comum. Mirar um futuro diferente do presente e muito distanciado do passado é incrementar os passos reformistas.
Nessa impositiva caminhada de reinvenção democrático-republicana nacional, precisamos fazer avançar as reformas estruturantes do Estado. É necessário reconstruir nossa máquina governativa, em todos os seus estratos. É preciso mudar a vocação de nosso Estado, fazendo de suas principais potencialidades não a promoção de privilégios e desigualdades, mas a indução de prosperidade para todos.
Precisamos que a reforma vá além de ajustes no mapa de arrecadações e responsabilidades governativas. Temos um Estado ineficiente para comprar, contratar e remunerar. Precisamos modernizar as máquinas de governo, dando-lhes capacidade de resposta, possibilitando-lhes agilidade nas entregas e fixando custos compatíveis com a realidade brasileira.
É necessário digitalizar os governos, promovendo o reencontro do modus operandi das institucionalidades com o modus vivendi da sociedade, infundindo eficiência e resolutividade às máquinas públicas e conectando os governos ao mundo em que o universo da produção já opera há muito.
Noutra frente, é preciso que se estabeleça um estável ambiente jurídico-normativo que inspire e torne viável o incremento da participação de empreendedores nacionais e estrangeiros, incluindo parcerias público-privadas, na dinamização da economia nacional.
Na urgente jornada de reinvenção da História brasileira, esse conjunto de reformas modernizantes do Estado é passo decisivo para que tomemos um caminho cujo horizonte seja um País contemporâneo do nosso tempo, verdadeiramente democrático e republicano, digno de nossas possibilidades de desenvolvimento humano e econômico, uma Nação de justiça social e inclusão autônoma e produtiva.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pelaeducação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
Eliane Cantanhêde: Guedes e Toffoli, os caras
Em 2020, Guedes precisa engrenar a segunda e é hora de Toffoli dar marcha à ré
Os dois grandes personagens da semana passada, não sob aplausos, foram o ministro Paulo Guedes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli. Um falou bobagens e ajudou a tumultuar o mercado e a aumentar as incertezas. O outro não só falou como fez bobagens, atraindo uma derrota fragorosa.
De pavio curto, Guedes não tinha nada que desdenhar da disparada do dólar e muito menos tratar com ligeireza do maldito AI-5, que mexe com velhas dores nacionais e o recente mal-estar institucional causado pelo filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro.
Se o País ainda se assusta, mas vai se acostumando com manifestações estapafúrdias do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, isso não ocorre em relação ao superministro da Economia. Guedes é um avalista do governo. Assim como persiste o “votei no Bolsonaro para evitar o PT”, mantém-se o “Bolsonaro pode falar o que quiser, o importante é o Guedes recuperar a economia”. Logo, frases enviesadas do ministro sobre câmbio e política causam desconforto desnecessário.
A marca de 2019 foi a reforma da Previdência, num ambiente fantasticamente calmo, mas Guedes encerra o ano sem engrenar a segunda e avançar nas reformas trabalhista, administrativa e tributária. Num governo em que o ministro da Economia precisa fazer as vezes de articulador político, Guedes foi atropelado pela pauta da prisão em segunda instância no Congresso, a falta de mínimo consenso na questão tributária e a decisão de Bolsonaro de não mexer num vespeiro, o funcionalismo público, já no seu primeiro ano.
Outro problema é que a herança bendita dos quase dois anos e meio de Michel Temer está se esgotando: a reforma trabalhista, o impulso da própria reforma da Previdência, os leilões de estradas, portos e aeroportos, além do Pré-Sal. Agora, é bola pra frente.
Quanto a Toffoli: acostumado a esticar a corda, ele jogou o STF em duas situações delicadíssimas. Na primeira, foi na contramão da antecessora Cármen Lúcia e pôs em pauta a reviravolta na prisão em segunda instância, já sabendo qual seria o placar (6 a 5) e o efeito (a soltura do ex-presidente Lula). Na segunda, causou um atraso de bom tamanho em cerca de 1.500 investigações do MP e da PF.
Juntando a primeira e a segunda, tem-se uma conta de compensação: favorece Lula, favorece o seu antagônico. E Toffoli usou um Recurso Extraordinário envolvendo a Receita Federal para meter a UIF (ex-Coaf) no meio e, numa liminar monocrática, suspender as investigações sobre o gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado no Rio. O preço foi caro: para livrar um, livrou milhares.
A questão foi ao plenário e virou um suplício para Toffoli. O voto dele foi de quase cinco horas e “em javanês”, na ironia do ministro Luís Roberto Barroso, mas isso foi só o começo. Ao longo dos demais votos, e das horas, sucederam-se dúvidas e críticas ao presidente da Corte, obrigado a ouvir lições elementares dos colegas.
A principal delas: órgãos de controle não apenas “podem” como têm a obrigação de repassar sinais de crimes para os órgãos de investigação. Elementar, meu caro Watson. Tão elementar que, no fim, para reduzir o vexame, Toffoli recuou e aderiu à maioria. Reduziu o vexame, não a flagrante derrota.
Assim, a liminar de Toffoli caiu, a de Gilmar Mendes que suspendia todas as investigações referentes a Flávio Bolsonaro também caiu e, a partir de agora, o Planalto tende a ficar exposto a revelações nem sempre bem-vindas.
Toffoli até tentou dar uma força para o presidente e seu primogênito, mas pode ter perdido nas duas pontas: não garantiu o fim das investigações de Flávio e atraiu chuvas e trovoadas, até dos próprios colegas. Que o recesso chegue rápido!
Vera Magalhães: Hora dos freios
O episódio da fala do ministro Paulo Guedes de que não seria surpresa caso alguém voltasse a falar de AI-5 é emblemático porque mostra uma distinção cada vez mais difícil de ser feita: a daqueles que apoiam as medidas econômicas do titular da Economia e, por isso, fecham os olhos para os sistemáticos e cada vez mais graves abusos do seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro. Guedes mesmo flertou com isso em sua declaração, embora não ache que o fez.
O mercado, os conservadores, setores da imprensa, partidos como o Novo, outros ministros de Estado, eleitores que não se enquadram na categoria “mínions”, deputados e senadores estão no mesmo barco. Até quando será possível entoar o discurso de que a agenda reformista é boa e necessária e condescender com o inadmissível?
É incompatível com o estado democrático de direito aceitar excludente de ilicitude para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para a atuação de militares na contenção de protestos de rua – que, por sinal, ainda existem apenas na mente paranoica do presidente e de seus acólitos.
É incompatível com o estado democrático de direito um presidente decidir quais veículos de comunicação podem ser lidos, assinados e entrar em licitações em órgãos públicos. É inconstitucional, é grave, é imoral, é inadmissível. Nenhum democrata pode aceitar isso, sob nenhuma justificativa. É um limite rígido, que quem aceitar ultrapassar pode não perceber agora, mas passou para o lado dos que aceitam transigir com a democracia.
É inadmissível que o presidente invista de forma deliberada contra a sociedade civil organizada, nomeando para cargos públicos – portanto aparelhando, assim como acusava a esquerda de fazer – pessoas imbuídas única e exclusivamente do espírito de promover revanche e retaliar uma parte do povo brasileiro. Um presidente não pode escolher para quem vai governar nem lançar instrumentos de Estado para perseguir aqueles a quem abdicou de representar.
Isso o tira dos trilhos delimitados pela Constituição, e deveria ser razão para que os demais Poderes, a OAB, a imprensa, a população e os partidos responsáveis usassem os mecanismos de freios e contrapesos disponíveis no mesmo ordenamento jurídico que vem sendo sistematicamente aviltado para pará-lo. Já. Independentemente da agenda de reformas, e até para que ela não seja rapidamente deslegitimada, colocada em segundo plano como já vem sendo colocada pelo próprio presidente aprendiz de autocrata, que resolveu rasgar a fantasia liberal e partir em marcha batida para a supressão sistemática de direitos e garantias que não são deles, mas nossos. Foram conquistados duramente, ao longo de décadas de uma volta à democracia que a ditadura que ele nega e apoia nos tirou ao longo de mais de duas décadas. Vamos deixar? Por que motivo?
Deputados e senadores, os senhores foram tão eleitos quanto o presidente. Engavetem logo essas tentativas de usar excludente de ilicitude como se fosse band-aid. Não é. É instrumento excepcional. Não sejam cúmplices desse atentado gradual e diário à democracia, pois a próxima vítima podem ser os senhores. Vale para veículos de imprensa, que olham acovardados para as investidas contra seus congêneres sem se dar conta de que estão no mesmo balaio.
E vale para os ministros do Supremo. Parem de investir vocês também contra a segurança jurídica do País e se assenhorem do seu papel de guardiões da Constituição.
Um ministro me disse nesta semana que se Bolsonaro insistir no caminho do arbítrio haverá demissão coletiva. Será? Senhores civis e militares, examinem suas consciências: com quanto de abusos os senhores estão dispostos a transigir? Porque um tanto vocês já engoliram em meio a risos nervosos e declarações bizarras.
Bolívar Lamounier: Quanto falta para a morte da democracia?
A China usa seu poder de mercado para projetar sua concepção totalitária de poder
A discussão sobre a crise da democracia representativa prossegue intensa pelo mundo todo, mas, salvo melhor juízo, acrescentando mais calor do que luz ao que sabemos desde muitas décadas atrás. Certas falácias e uma enorme lacuna podem ser facilmente identificadas.
A primeira é a suposição de que esse complexo mecanismo institucional a que chamamos democracia se pode romper em consequência de causas indiferenciadas, genéricas, sem ações políticas específicas que conduzam a tal resultado. No momento, o fato mais invocado como causa de uma possível quebra (breakdown) da democracia representativa é o descrédito generalizado das instituições que sustentam tal regime. Trata-se, efetivamente, de um fato. Por toda parte, uma grande parcela, talvez a maioria dos cidadãos, nutre clara hostilidade em relação aos políticos e partidos.
Mas, por si só, esse sentimento negativo não tem como provocar uma quebra constitucional. Não tem como provocá-la nem mesmo associado, como em geral acontece, a uma crise econômica, seja esta real (recessão, desemprego) ou imaginária (frustração de expectativas demasiado altas). Para que a quebra aconteça é preciso um Mussolini que prometa salvar rapidamente o país da “decadência”, movimentos ideológicos ou populistas atacando fisicamente as instituições e provocando reações policiais ou militares, formando uma espiral que acaba fugindo a qualquer controle; ou, no limite, um golpe, putsch ou revolução armada, como foi na Rússia durante a 1.ª Guerra, na Espanha durante os anos 30 do século passado ou na Venezuela, com a ascensão do chavismo nos anos 90. Mesmo em tais casos, a ruptura dificilmente se concretizará se lideranças políticas importantes se mantiverem firmes na defesa das instituições.
Outra lacuna digna de nota é que os profetas do apocalipse democrático raramente se dão ao trabalho de indicar que outro modelo institucional substituiria a democracia representativa caso esta chegue de fato ao colapso. No lugar dessa flagrante lacuna, o que mais encontramos é uma antiga estultice, a de que a democracia só pode florescer e se consolidar em determinado país quando ele houver atingido um nível elevado de renda, escolaridade e bem-estar. Só em países superdesenvolvidos, para dizê-lo de forma concisa. Ora, a realidade doutrinária e histórica indica precisamente o oposto. O mecanismo democrático foi inventado para equacionar com o mínimo possível de violência os conflitos (de interesse econômico, ideológicos, religiosos, raciais, etc.) que soem existir em toda sociedade. Equacionar tais conflitos aceitando a legitimidade dos adversários que se disponham a disputar o poder respeitando as regras do jogo, a primeira das quais é o processo eleitoral: eleições periódicas limpas e livres.
Mencionei duas falácias – discutidas acima – e uma enorme lacuna, que passo agora a considerar. Refiro-me aqui à China. Decifrar a esfinge chinesa, eis o osso duro de roer. O atual modelo chinês combina, como sabemos, um capitalismo selvagem, vale dizer, uma economia assaz desregulada, com um férreo controle totalitário da sociedade pelo Partido Comunista. O peso que terá na ordem econômica mundial por certo nos forçará a manter relações estreitas com ela.
Anotemos, de início, que a China não registra um só dia de democracia em seus 5 mil anos de História. Num plano especulativo, não creio que o país possa atingir um elevado nível de renda, diversificação social e abertura ao exterior sem afrouxar em alguma medida o rigor dos controles que lá prevalecem. Até o momento não há o menor indício de que um processo desse tipo esteja em curso.
Bem ao contrário. Para qualquer outro país do mundo, uma população de 1 bilhão e 300 milhões seria com certeza um problemaço, não um tremendo recurso de poder na esfera internacional. Mas a China compreendeu que aquela enorme massa de gente, combinada com seu rápido avanço econômico e com o férreo controle que sobre ela exerce o Partido Comunista, poderia ser usada como uma arma poderosa. Arma que ela de fato utiliza, seu poder de mercado, sem a menor vacilação. Utiliza-o não apenas para sustentar uma posição de força em suas negociações com outras potências, mas para projetar sobre elas, até sobre os Estados Unidos, sua concepção totalitária de poder.
Os estúdios de Hollywood, por exemplo, estão aprendendo que têm de aceitar a censura se quiserem ter acesso ao vasto mercado chinês. Mesmo na esfera esportiva, uma das associações americanas de basquete teve de se desculpar pelo fato de um atleta (repito: um atleta, não a associação como tal) ter manifestado apoio aos manifestantes de Hong Kong. Ou a associação se retratava ou perdia seus direitos de transmissão de jogos para os aficionados chineses.
Outro caso deveras impressionante é o de 40 empresas aéreas internacionais, relatado pelo jornalista Jonah Blank na revista The Atlantic. O governo chinês exigiu que apagassem de seus websites e materiais publicitários referências a Taiwan como um “país”. Para a China, como se sabe, Taiwan é um “território rebelde”. Todas obedeceram, claro.
A questão, portanto, está muito longe de ser o hipotético advento de uma democracia na China. Por enquanto, o que estamos vendo são intervenções específicas e decisivas da China limitando a liberdade de expressão nas democracias ocidentais.
Apontar causas específicas de possíveis rompimentos das regras constitucionais da democracia, indicar que outro modelo institucional as substituiria se um dia o limite da ruptura for de fato atingido e como lidar com uma superpotência avessa à democracia no plano doméstico e disposta a restringir a liberdade de expressão no plano internacional, eis aí três requisitos que me parecem indispensáveis no presente debate.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘De onde, para onde – Memórias” (Editora Global, 2018).
Fernando Henrique Cardoso: Resposta democrática às explosões sociais
Depredações precisam ter fim para que o processo constituinte no Chile possa avançar
Em conferência recentemente feita em Valparaíso, no Chile, Manuel Castells voltou a caracterizar as manifestações populares contemporâneas (como já o fizera em seu livro Rupturas) como “explosões”, mais do que como movimentos sociais. Parece que a irritação contra “los que mandam” se generaliza.
Castells, que há muito estuda as “sociedades em rede”, mostra que estas são fruto da comunicação interpessoal via internet. Os novos meios de comunicação tornam-se não só propiciadores da expansão de movimentos sociais, como também facilitadores de súbitas expressões coletivas de repúdio. Estas chegam a dar a sensação de serem capazes de abalar as estruturas de poder, o que às vezes de fato se verifica.
Desde que mostrou os efeitos do uso de telefones celulares para explicar como se deu a reação na Espanha contra as explicações inaceitáveis do governo sobre o caso famoso do atentado na estação de metrô madrilenha de Atocha, nosso autor escreveu vários trabalhos que confirmavam suas análises sobre as sociedades da “informação”.
Pois bem, novamente o caso do Chile chama a atenção: país exemplo de crescimento econômico e estabilidade institucional, de repente surge no noticiário mundial como mais um caso de revolta popular e reação policial violenta.
Convém repetir o dito por Castells na conferência de Valparaíso: o Chile é mais um caso de uma série de manifestações com dinâmicas semelhantes. Ou nos esquecemos do ano de 2013 no Brasil? Ou da primavera árabe? E por que não acrescentar o Occupy americano ou os coletes amarelos franceses? E em nossa América Latina, a vizinha Bolívia agora mesmo, ou pouco antes o Equador? E acaso o que tem ocorrido no Iraque nas últimas semanas será diferente?
Sim e não. Há algo em comum: mudanças tecnológicas e culturais que põem em xeque as estruturas de poder em todo o mundo. Nos países em que há eleições e liberdade, a reação popular, contraditoriamente, é maior e mais visível. Nos autoritários, o controle da informação e as restrições políticas, por ora, contêm os ímpetos populares. A diferença se nota mesmo onde a liberdade não é plena: basta comparar Hong Kong com a China continental.
O certo é que as explosões sociais se tornaram quase o “novo normal”, quando antes eram um ponto fora da curva. Nos anos 60 e 70 surgiram ondas de protesto social. A origem do mal-estar estava nas universidades, mas ele só se irradiava quando se fundia com as reivindicações tradicionais “de classe”. Aí, sim, parecia que o sistema pegaria fogo.
Eu vi de perto o que aconteceu em 1968 em Nanterre – onde Castells era jovem professor assistente. O movimento estudantil ultrapassou os limites da universidade, mas só se tornou um fato político nacional quando ganhou a adesão dos sindicatos, confluência que levou a uma greve geral de grandes proporções. No conjunto, o movimento apareceu como uma revolução cultural, ainda sem símbolos claros para se expressar.
As explosões contemporâneas não se orientam por grandes projetos utópicos. No Chile, o protesto se passa num país que cresceu economicamente e ampliou muito o acesso à educação superior. Não é decorrência do empobrecimento, mas da frustração de expectativas que se foram elevando ao longo de 30 anos de crescimento acelerado, ainda que mais lento no período mais recente.
A onda de protestos no Chile mostra que uma economia de mercado não dispensa, e sim requer, mecanismos de promoção e proteção social que só o Estado é capaz de manter. Prova também que, se já não há lugar para as utopias igualitaristas, a igualdade de direitos continua a ser uma aspiração forte das sociedades democráticas.
O presidente Piñera fez o que se espera de um chefe de Estado em momentos de crise: apelou ao conjunto dos partidos políticos em defesa da democracia. O efeito foi positivo, a maioria deles se engajou num acordo para responder aos protestos.
As forças políticas, da direita ao centro-esquerda, convergiram em torno da proposta que simboliza o desejo de mudança expresso nas ruas: uma nova Constituição. A atual ainda carrega parte das suas marcas de origem, na ditadura do general Pinochet, embora tenha sido reformada em vários pontos ao longo dos 30 anos de democracia.
Com exceção de partidos menores de esquerda, as lideranças políticas juntaram-se em torno de uma saída democrática. À diferença do caso brasileiro, em que coube ao Congresso essa tarefa, no Chile a nova Constituição será obra de uma assembleia constituinte exclusivamente eleita para essa finalidade.
Em abril o povo decidirá em plebiscito se a assembleia constituinte terá representantes dos partidos políticos (no máximo, metade) ou será integralmente formada por constituintes eleitos por outras formas de representação da sociedade. A nova Constituição será submetida a referendo popular.
Que o presidente eleito e os partidos tenham construído em poucos dias um acordo pelo qual cedem poder em favor de um processo deliberativo que produzirá a nova Constituição do país mostra a consciência das lideranças políticas chilenas sobre a necessidade de assumir riscos para restabelecer a legitimidade das instituições políticas e da autoridade pública. Sob pressão, agiram com coragem: ampliaram significativamente os canais de participação política da sociedade e assumiram o compromisso, governo e oposição, de apurar as violações de direitos humanos na repressão aos protestos.
Pesa agora sobre as forças sociais e políticas que não aderiram ao acordo a responsabilidade de cooperar para que a normalidade se restabeleça nas ruas. Protesto político é legítimo. Depredações ao patrimônio público e privado são crime. Estas precisam ter fim para que o processo constituinte possa avançar sem sobressaltos.
Só o caminho da política democrática levará o Chile a bom porto. Confio que o Chile saberá consolidar-se como uma comunidade nacional em que a cidadania tem vez e voz na definição do presente e na construção do futuro.
*Sociólogo, foi presidente da República
Adriana Fernandes: Trocando o encanamento
É sintomático que o número de CEOs de bancos que se reúnem no BC tenha subido
Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central, lançou um petardo regulatório na direção dos bancos para aumentar a competição bancária e baratear o crédito no País. Elas não se resumiram à fixação pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) de um teto de juros de 8% ao mês para o cheque especial.
Em uma semana, ele disparou uma artilharia maior do que foi feito em anos pelos seus antecessores no cargo. Foi uma sequência de medidas de uma agenda bem maior, completamente disruptiva, sustentada na inovação tecnológica e capaz de provocar uma ruptura muito rápida na forma de fazer crédito do País.
É claro que o avanço dessa agenda já era esperado. Desde antes da transição de governo, ela estava sendo construída pelo grupo de economistas que assessoram o hoje ministro da Economia, Paulo Guedes, e que tinha Campos Neto como um dos seus principais participantes.
O que tem espantado muitos segmentos do mercado (sobretudo os grandes bancos detentores de 84% do mercado) é a velocidade com que Campos Neto e sua equipe estão promovendo as medidas. Mesmo diante de resistências na área técnica, o BC conseguiu o apoio de um receoso Guedes, preocupado com o risco de a medida ser interpretada como antiliberal.
A aposta do presidente do BC é audaciosa. A resistência já é grande. Muitos argumentam que o BC está fazendo uma espécie de “arbitragem regulatória” para acelerar o processo.
No Brasil, é mais comum presidentes de BCs falarem de câmbio e juros. Campos Neto começou a virar o jogo dando peso grande à agenda micro. O presidente do BC costuma comparar o sistema de crédito com um encanamento que está entupido. Por muitos anos, o BC tem se preocupado com a quantidade de pressão da água que precisava colocar no encanamento.
Agora, o BC está trocando o encanamento. Na visão do BC, isso significa, na prática, que o cano precisa ficar mais largo para que a política monetária (de juros) tenha maior potência.
Como o BC quer fazer isso? Aumentando a intermediação financeira da economia, com mais competição, bancarização, inclusão, educação financeira, transparência e troca de informações para o acesso ao crédito.
O cano estava entupindo por uma série de fatores. Uma parte do entupimento começou a ser removido com a saída do governo do financiamento, reduzindo os subsídios, principalmente para as grandes empresas. A hora que o governo sai, o tamanho do cano começou a aumentar. Com a mesma pressão da água, o BC consegue mais efeito lá na frente. No economês, isso significa dar mais eficiência ao canal de transmissão da política monetária.
Está faltando a parte da competição do crédito. Distorções do sistema brasileiro bancário têm impedido um efeito mais forte da queda da taxa Selic, que está em patamares mínimos históricos, no custo do crédito.
Historicamente, os grandes bancos no Brasil – um grupo de apenas cinco – adotaram barreiras para que os menores tivessem dificuldade de entrar: 1) capilaridade: os bancos chegaram a ter mais pontos de venda do que agências; 2) estrutura fechada: dificulta o acesso a produtos e serviços de outros locais; 3) meio de pagamentos concentrados num único banco; 4) facilidade de o balanço permitir a multiplicação da base de depósitos; 5) monopólio de dados dos seus clientes.
Todas essas barreiras estão diminuindo. O crescimento das fintechs (as startups financeiras) é o maior sinal desse cenário. Já são 13 fintechs operando e crescendo o crédito a 300% ao ano. É ainda uma base baixa, mas o BC tem uma fila de mais 20 fintechs para entrar em operação. Mais 60 são esperadas pelo BC em 2020, segundo apurou a coluna. Esse mercado avança exponencialmente com novas plataformas de oferta de crédito a custos mais baratos.
Os grandes bancos estavam sentados nesses cinco castelos e agora começaram a se mexer. Uns com mais atraso que os outros. Nessa competição acirrada, o BC já avisou que não bastará eles comprarem uma empresa digital para se aproveitarem das vantagens regulatórias das fintechs. Se fizerem isso, terão de vender o controle. Essa é regra do jogo.
É sintomático que o presidente do BC tenha aumentado de cinco para sete o número de CEOs de bancos que se reúnem periodicamente no BC. O clubinho está aumentando.