O Estado de S. Paulo
Paulo Delgado: Brasil, Nobel do pessimismo
Não adianta ter força no País quando o jogo moral é jogado lá fora. A assimetria é mortal
O que está levando Trump ao impeachment não é aquela culpa no cartório, mas o fato de usar uma nação estrangeira para influenciar decisões dentro da política interna americana.
Diferente do Brasil, que pratica há anos uma política mórbida, por isso não tem até hoje um Prêmio Nobel, e entregou de mão beijada a supremacia que adquiriu com a fabricação de aviões médios e está fazendo tudo para entregar a agroindústria à intriga internacional. Porque, internamente, além de olharmos mal para o futuro, externamente inúmeros brasileiros adoram falar mal do País e até se dedicam a escrever cartas, telefonar, visitar e azucrinar os suecos e noruegueses para não reconhecerem o papel de descortino mundial que tiveram Alysson Paulinelli, Nise da Silveira, César Lattes, Ozires Silva, Lara Rezende-Pérsio Árida, dentre outros.
O Brasil tem de se dedicar um pouco mais a valorizar o que sabe fazer. Pois a qualidade de tudo o que é descoberto ou inventado hoje, especialmente tecnologia, deveria ser objeto de contratos de como deve ser seu uso, e não de discursos patrióticos sobre se aquilo é ou não oportuno. Tudo o que é serviço será digital, toda a poluição será monitorada, e não é possível imaginar um país sem unidade interna, política e empresarial, para criar sua própria legislação sobre o uso do que comanda o mundo moderno.
Não haverá nenhum Simão Cirineu ajudando o País a carregar a sua cruz.
O brasileiro precisa parar de viver achando que tem de ser arruinado para que restauradores da calamidade se apresentem. A prosperidade exige compromisso com a harmonia. Pede autoridade e confiança, não força e discriminação. Maldades civis, indiretas militares e incitação à revolta, devemos desconfiar, debaixo de qualquer oratória.
Só o comedimento e a perseverança nos salvam. A hostilidade constante não permite que o País respire e aumente o ânimo dos que querem paz. Nossa época explosiva é muito forte. Fracos são os líderes que não armazenaram ou economizaram nada que os estimulasse a ver a encruzilhada em que está o destino do mundo. E aí, alerto, nosso presidente, especialista em cortar o galho em que está assentado, depois do desamor de Trump pelas ligas e pelos metais brasileiros, deve refletir sobre algo mais grave.
A COP-25, que está sendo realizada em Madri, é desmistificadora: infelizmente, não há clima político no mundo para evitar o aquecimento global. A principal causa das mudanças climáticas é a matriz energética de base fóssil. Sem sair do petróleo, carvão e gás natural não é possível evitar que o clima do planeta mude para pior. Todo o resto é paliativo. E o único paliativo mais honesto é aplicar tecnologias que capturem dióxido de carbono (CO2) dos locais que o emitem e da atmosfera.
O problema causado pelos diferentes interesses relacionados à mudança climática é exacerbado por quem ganha ao desviar a atenção da necessidade de enfrentar uma saída para o uso do petróleo. Os grandes poluidores possuem trilhões de dólares e já se organizam para preparar o futuro de confrontos por conta de mudança climática.
O Brasil, apesar de ser o quinto maior país do mundo e ter a sexta maior população, é apenas o 13.º maior emissor de CO2 do planeta. O Brasil é verde, não poluente, mas se permanecer na matriz atual e for crescer é que vai poluir para valer.
Curiosidade de que ninguém se dá conta é que, fora o uso industrial e para o transporte, uma das principais emissões de gases de efeito estufa se dá por causa do frio que sentem as pessoas que vivem nas zonas temperadas e subpolares. Quase que uma exclusividade da Eurásia e da América do Norte. Países com invernos rigorosos que precisam ficar com calefação funcionando boa parte do ano e que continua ativa até mesmo quando saem de férias, fugindo do inverno.
Cerca de 40% de todos os gases de efeito estufa emitidos pela cidade de Nova York são decorrentes de calefação e água quente obtidas pela queima de combustível fóssil. Quem quiser reduzir para valer a mudança climática tem de começar parando de fazer calefação com combustível fóssil. Não adianta parar de comer bife e meter o pau no Brasil.
O fato é que é a parte fria do mundo que esquenta o planeta. E é ela que tem capital para fazer o mundo parar de esquentar. Entretanto, sua população gasta mais energia criticando as áreas tropicais e subtropicais, que são as que mais sofrem com as mudanças climáticas porque são, já de início, mais quentes.
Entretanto, há mais gases causadores do aquecimento. O metano corresponde a cerca de 16% das emissões de efeito estufa decorrentes da atividade socioeconômica. O Brasil é um dos cinco maiores emissores desse gás no mundo. Vem muito atrás da China, que é o maior emissor, mas também atrás da Índia, da Rússia e dos Estados Unidos.
A emissão de metano pelo Brasil vem da agropecuária e do desflorestamento. Seria inteligente o agronegócio brasileiro decidir se tornar a ponta mundial do desenvolvimento tecnológico para captura de metano. Esse é nosso calcanhar de Aquiles e será miseravelmente explorado por quem quer desviar a fúria política global para longe dos combustíveis fósseis e das regiões mais ricas.
Tanto a grande indústria petrolífera quanto o agronegócio que concorre com o Brasil são dois lobbies formidáveis num brutal ataque conjunto à questão do desflorestamento e da emissão de metano. A matemática da correlação de forças tem um resultado muito objetivo: no confronto direto, o agronegócio brasileiro vai perder.
Não adianta ter força no Brasil quando o jogo moral é jogado fora daqui. A assimetria é mortal e cresce a imagem de que estamos poluindo, sem saber despoluir. Vamos dar com os burros n’água se não aprendermos a ganhar dinheiro no mercado da despoluição. Para destruir a imagem de nossa agroindústria é preciso primeiro destruir a imagem do Brasil como país verde. Não deve ser o que queremos.
*Sociólogo
Eliane Cantanhêde: Injustiça e desigualdade
IDH toca na maior ferida do Brasil: desigualdade social. País rico, cidadãos pobres
O Brasil ficou na 79.ª posição geral e na quarta da América do Sul no IDH, atrás de Chile, Argentina e Uruguai, mas a pior notícia não é essa, é o pódium da desigualdade. O índice brasileiro vai melhorando devagar, mas continua péssimo e sem reduzir o gap triste e vexaminoso entre os mais pobres e os mais ricos. Simplesmente 1/3 da renda vai todinha para apenas o 1% de mais ricos.
Os avanços foram mais acentuados de 1990 a 2013, até que a crise Dilma Rousseff, com todos os seus fatores, estancou esses avanços. Em 2018, a melhora foi de um milésimo no IDH. O que puxou o freio foi a educação. Alguma surpresa? E há uma grande previsão de melhora?
Ao lado disso, a confirmação agora, como ocorre ano após ano, de que as mulheres estudam mais, mas ganham menos que os homens. Muito menos, aliás, em torno de 41,5%. Novamente, há alguma surpresa? E há uma grande previsão de melhora?
O principal alerta sobre o significado de tudo isso está aqui perto, no Chile. Considerado um oásis, com bons indicadores econômicos, políticos e sociais, o país ficou novamente em primeiro lugar no IDH na região. Então, há alguma coisa fora de lugar. Se o país tem o melhor IDH e indicadores tão elogiados, por que pipocaram manifestações gigantescas contra tudo?
A resposta, não científica, mas compartilhada pelos meios acadêmicos e diplomáticos tanto do Chile quanto do Brasil, é essa: o país vai bem, mas as pessoas não tanto. A renda é alta, a divisão é precária. E, atenção, quanto mais a sociedade tem informação, serviços adequados e suas reivindicações atendidas, mais ela fica exigente.
Afinal, informação é poder. Se as pessoas têm mais acesso a escola, a saúde, a habitação e aos seus direitos, mais ela acha que pode conseguir. E está certa. Daí a pressão. E daí o temor no Brasil de que a onda de protestos no Chile venha cruzando fronteiras e desembarque por aqui. Esse temor é reforçado pelo ambiente geral na região. Também vivem graves conflitos de rua Colômbia, Bolívia e Equador, sem falar na Venezuela, um caso perdido. E há troca de governo na Argentina e Uruguai.
É instigante que os protestos não perdoem os regimes nem de direita (Colômbia) nem de esquerda (Bolívia). O “povo” não quer saber desse mimimi de direita e de esquerda. Quer direitos e serviços: educação, saúde, habitação, transporte, emprego, dinheiro no bolso – e inclusão social.
No Chile, todas as forças políticas, exceto o Partido Comunista, se reuniram para tentar entender o que está acontecendo e providenciar uma reação consistente à sociedade. O manifesto dessa nova “Concertación”, “pela democracia”, acena com uma resposta ao “clamor dos cidadãos”, um “acordo social” e uma “nova era”, avançando com a atualização da Constituição.
No Brasil, pego de surpresa, como todos os demais, por essas ondas de rebelião ao seu redor, a questão é tratada superficialmente, só pelo ângulo da repressão. Ou melhor, como caso de polícia, de tropas do Exército ou até mesmo de AI-5.
O correto, porém, é passar os olhos pelo manifesto chileno e focar num parágrafo sobre o “bom momento” para reformas sociais e econômicas que possam “outorgar justiça e maior igualdade de oportunidades, ajudando aqueles que necessitam da presença de um Estado solidário, de bem-estar e seguridade social”. Esse é o pulo do gato.
É arregaçar as mangas, lá, como cá, para que o Estado deixe de servir às castas estatais e privadas e passe a se voltar para o interesse da maioria, para aqueles que realmente precisam do Estado. Reformas já! Mas não só enxugando os privilégios de quem não precisa, mas garantindo direitos para quem precisa. O começo de tudo é a Educação.
Rubens Barbosa: O Mercosul em questão
O bom senso e o pragmatismo devem prevalecer e, assim, o bloco sair fortalecido
A discussão sobre o futuro do Mercosul tornou-se urgente. Não se trata de um debate no vácuo ou teórico. Há uma situação real que tem de ser examinada à luz dos interesses concretos do governo e do setor privado.
Essa discussão tem necessariamente de levar em conta as recentes mudanças políticas e econômicas resultantes das últimas eleições no Brasil, com tendência liberal na economia, e a vitória do centro-esquerda na Argentina. O fim do isolamento do Mercosul, com a conclusão das negociações com a União Europeia (UE) e a Efta, mais as consequências de eventual redução da Tarifa Externa Comum (TEC), da ampliação da rede de acordos comerciais (incluído um improvável acordo com os EUA) e da repercussão da crise ambiental na Amazônia sobre a ratificação do acordo com UE e Efta, não podem ser descartados. Devem-se também ter presente as transformações globais que apontam para uma mudança do eixo econômico para a Ásia e a guerra comercial entre os EUA e a China.
Nas últimas reuniões presidenciais do Mercosul, na Argentina, e na semana passada no Brasil, os governos tomaram a decisão de adotar medidas para fazer do Mercosul novamente um instrumento de abertura comercial, conforme previsto no Tratado de Assunção. As principais decisões tomadas pelos presidentes reforçaram o bloco e enfocaram as regras econômicas, o enxugamento das instituições e a facilitação do comércio. O Brasil apresentou estudo para permitir uma rebaixa da TEC média (hoje de 14%) para níveis que sejam similares à média global, o que, sem acordo, ficou de ser retomado no próximo ano com o novo governo de Buenos Aires.
A política econômica e comercial do novo governo argentino – antes mesmo de ser conhecida – passou a ser uma preocupação do governo brasileiro pela possibilidade de que medidas protecionistas de nossos hermanos sejam contrárias às medidas de abertura da economia e de ampliação da negociação externa do Mercosul.
Sem entrar no exame das consequências comerciais para o Brasil, a simples cogitação de mudanças profundas no funcionamento do Mercosul pareceriam desconhecer as regras incluídas no Tratado de Assunção, que criou o bloco regional, e em outros atos relevantes. Modificações substantivas do seu funcionamento não entram em vigor imediatamente, nem podem ser tomadas unilateralmente por nenhum membro do bloco, sob pena de representar o descumprimento do Tratado de Assunção. Em termos concretos, essas modificações terão de ser aprovadas por todos os países-membros, depois de ratificada a modificação do tratado. A redução da TEC, se não aprovada por todos os países-membros, e a entrada em vigor do acordo com a UE, na medida em que os Congressos do Mercosul o ratificarem, poderão levantar dúvidas sobre a necessidade de alterar o tratado para serem implementadas.
Torna-se, assim, difícil analisar o futuro do Mercosul levando em conta tantas e tão importantes variáveis políticas e econômico-comerciais. A vontade política que permitiu a criação e a evolução do subgrupo regional até aqui deve prevalecer. É pouco provável – apesar da retórica em Brasília e Buenos Aires – que o processo de integração seja substancialmente alterado na direção contrária ao real interesse nacional, tanto do ponto de vista econômico-comercial, quanto de política externa.
O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro terá de levar em conta, acima das considerações ideológicas. Brasil e Argentina já passaram por crises sérias, superadas por pragmatismo e interesses concretos. No momento não existe uma crise com a Argentina. Há diferenças ideológicas e provocações de ambos os lados, que não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países. A paciência estratégica pode ser o caminho. Os empresários daqui e de lá estão preocupados com a escalada ideológica de lado a lado. A Fiesp emitiu nota em defesa do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser superados de maneira consensual entre todos os países-membros. A Argentina é o principal mercado brasileiro para produtos manufaturados e, portanto, o impacto sobre o setor industrial não pode ser ignorado, em especial o automobilístico e o de linha branca.
Os países-membros do Mercosul deveriam é estar preocupados com o day after da entrada em vigor do acordo Mercosul-União Europeia, até fins de 2021. Sem reformas estruturais, como a trabalhista, a tributária, a do papel do Estado, e o implemento das medidas de facilitação e desburocratização com o objetivo de reduzir o custo Brasil (que representa 22% do PIB) para melhorar a competitividade, a simples redução das tarifas no mercado europeu não poderá ser aproveitada pelas empresas nacionais. Sem avanços relevantes na inovação e na tecnologia, o setor industrial não terá como competir com empresas chinesas, sul-coreanas e norte-americanas no mercado europeu. Sem o fortalecimento institucional do Mercosul será mais difícil enfrentar os desafios que o acordo colocará para o Brasil e os demais membros do subgrupo.
Depois de conhecidas a política econômica e a linha de atuação do governo de Alberto Fernández, caberia uma atitude de moderação e de consultas bilaterais em nível técnico. A diplomacia parlamentar, recém-inaugurada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também poderia ajudar. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Parece improvável que Brasília possa adotar uma posição ideológica radical em relação ao Mercosul sem um amplo debate com a sociedade e dentro do Congresso Nacional.
Como das vezes em que tensões entre os dois países foram superadas, o bom senso e o pragmatismo deveriam prevalecer e, assim, o Mercosul sair fortalecido. Ideologias não devem afetar o interesse nacional. Em primeiro lugar deveria estar o Brasil.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
O Estado de S. Paulo: Desigualdade faz País perder 23 posições no ranking do IDH
Universo dos 1% mais ricos representa 28,3% da renda, a segunda maior concentração do mundo nesta parcela populacional
Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O Brasil é o país que mais perde posições no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) quando o valor é ajustado à desigualdade, ou seja, quando se leva em consideração as distorções em saúde, educação e renda. O IDH brasileiro cai de 0,761 para 0,574, uma perda de 24,57% no valor, o que faz o Brasil cair 23 posições quando comparado ao restante do mundo. Se a desigualdade de um País é grande, a perda no índice também é.
De acordo com o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD), a fatia dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda nacional. O universo dos 1% mais ricos representa 28,3% da renda, a segunda maior concentração do mundo nesta parcela populacional – atrás apenas do Qatar (29%).
“A desigualdade é um problema conhecido da sociedade brasileira e dos políticos. Certamente uma das mensagens do nosso relatório é de que as desigualdades são importantes para as populações porque elas não têm a ver com um ou dois governos, mas com questões históricas”, disse ao Estado o diretor do relatório de desenvolvimento humano da ONU, Pedro Conceição.
Gênero
O relatório também analisa as desigualdades entre homens e mulheres no Brasil. Se o IDH do universo masculino é de 0,761, o das mulheres é de 0,757 – quatro milésimos a menos. Por aqui, 61% das mulheres adultas chegam ao menos ao ensino médio, em comparação com 57,7% dos homens. Mesmo apresentando melhor desempenho nos quesitos educação e longevidade, as mulheres ficam atrás dos homens no que diz respeito à renda (41,5% menor que a dos homens). No mercado de trabalho, a participação feminina é de 54%, ante 74,4% dos homens.
Último colocado no ranking mundial do IDH, o Nìger possui mais mulheres no Parlamento do que o Brasil – a representação feminina é de 17% no país africano, ante 15% aqui. Na vizinha Argentina, a porcentagem é mais do que o dobro – 39,5%.
No Índice de Desigualdade de Gênero (IDG), que faz parte do relatório, o Brasil ocupa a 89.ª posição entre 162 países que tiveram esse dado analisado. Foram consideradas as desigualdades em saúde reprodutiva (mortalidade materna e taxas de natalidade na adolescência); empoderamento (participação no Parlamento e escolaridade); e participação no mercado de trabalho.
Para a economista Betina Ferraz Barbosa, chefe da unidade de desenvolvimento humano do Pnud, o relatório aponta para uma situação de “emergência global”. “Se a gente se debruçar sobre esse relatório, é muito preocupante os achados em nível global. Não é a percepção se o IDH subiu ou desceu, e sim uma análise sobre toda a transformação que a sociedade passa globalmente, com mudanças de paradigmas que vão enfraquecer a força de trabalho. É uma questão de agir agora.”
Eliane Cantanhêde: Reeleição no papo?
No cenário de hoje, Bolsonaro não é só favorito como o único candidato para 2022
Os que apoiam estão tripudiando, os que se opõem entram em pânico, mas o fato é que, neste momento, o presidente Jair Bolsonaro não é apenas fortíssimo para vencer a reeleição como o único candidato realmente à vista para 2022. Três anos são uma eternidade na política, mas uma chapa Bolsonaro-Sergio Moro soa como imbatível. Não custa lembrar que Moro é o personagem mais popular do governo, mais até do que o presidente.
A esquerda continua imobilizada pela presença do ex-presidente Lula, que está inelegível. O centro... bem, João Doria recua, Luciano Huck avança, mas os dois nem chegam perto de ameaçar o franco favoritismo de Bolsonaro, que ainda por cima tem o precedente histórico a seu favor: nenhum presidente deixou de ser reeleito depois do instituto da reeleição. Nem Dilma Rousseff, apesar de tudo.
Bolsonaro aprofunda a estratégia da campanha de 2018, mantendo o foco no combate à corrupção, recuperação da economia e dos empregos, defesa da ordem, família e propriedade, ojeriza ao “politicamente correto” e o medo - ou pretexto - da volta do PT e de Lula.
Provoque qualquer bolsonarista, seja ele "de raiz" ou de conveniência, e a primeira resposta é: "O que você quer? A volta do PT?". A segunda: "o governo já tem um ano, você ouviu uma única palavra sobre corrupção?". A terceira: "A Dilma destruiu a economia, mas o Paulo Guedes está recuperando, a economia vai bem".
Pode-se perguntar sobre o aparelhamento indecente da Cultura, o desmonte das políticas e da fiscalização do Meio Ambiente, a bagunça na educação, a falta de notícias sobre a saúde, a esquizofrenia da política externa, as ameaças de autoritarismo dos filhos do presidente. Pode-se perguntar até do terraplanismo, de gurus, do AI-5, das amizades do presidente. Sabem a resposta? Tudo é mimimi de intelectual, de jornalista, ninguém está preocupado com isso.
Aqueles da direita moderna até torcem o nariz para os absurdos ditos e feitos por Bolsonaro e cia, demarcando uma linha clara entre eles e ele, mas não arredaram pé nem estão (até agora, ao menos) buscando alternativas. Pensam assim: Bolsonaro pode não ser adequado, mas que jeito? Ruim com ele, pior sem ele.
Do outro lado, a esquerda continua com o mesmo discurso atrasado, a mesma obsessão em Lula, as mesmas divisões, sem energia para fazer uma oposição consistente no Congresso nem para mobilizar a sociedade. E a situação de Lula é incerta e não sabida. A prisão em segunda instância vai voltar? Quando? Como será o julgamento da anulação do processo do triplex no STF, que pode anular a inelegibilidade? Para onde vai a condenação pelo sítio? E os demais processos?
Já o centro, que virou uma tábua de salvação, ainda é uma miragem. Faltam líderes, convencimento, discurso objetivo, rumos, convicção, reverberação no Congresso. E há dois pontos centrais: no Brasil, o presidencialismo é fortíssimo e a política gira em torno de personalidades. Bolsonaro encarnou o anti-Lula. Para enfrentá-lo, só uma cara e uma voz tanto anti-Lula quanto anti-Bolsonaro.
É cedo para certezas e mesmo previsões, mas no cenário de hoje Bolsonaro corre sozinho, sem adversários, com boas perspectivas na economia e dono único do discurso anti-corrupção. Seus principais inimigos são ele próprio, seus filhos, ministros esquisitões e o danado do imponderável. Este pode estar em cada esquina, em cada gabinete, em cada descuido. E na CPI das fake news.
Enquanto isso, Bolsonaro fortalece sua base militar, evangélica, ruralista e ultraconservadora, dá os cargos da Cultura de mão beijada para Olavo de Carvalho, ajusta a política externa ao pragmatismo e deixa o "gabinete do ódio" do Planalto trabalhar. Todo o pacote de 2018 está ativo e muito eficiente.
Vera Magalhães: Navegando sem bússola
Retaliação dos Estados Unidos e insistência em embaixada em Jerusalém mostram política externa amadora
Na semana que passou, Donald Trump, o amigão dos Bolsonaro, anunciou a sobretaxação ao aço e ao alumínio brasileiros, nossa política ambiental foi gongada na COP-25 e vimos Eduardo Bolsonaro, que não virou embaixador, mas segue dando pitacos em política externa, voltar a pregar a transferência da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. Resumo da ópera bufa? 2019 foi um ano em que retrocedemos em política externa.
Volto ao tema que já tratei aqui pelo menos em duas ocasiões: logo no início do governo, depois que o olavismo se instalou no Itamaraty e na antessala de Jair Bolsonaro, e às vésperas do discurso do presidente na abertura da Assembleia-Geral da ONU. Nas duas ocasiões meu ponto era o mesmo: ideologização extrema e sem amparo no pragmatismo e em dados levaria nossa política externa a ser motivo de piada no exterior. E é nessa condição que chegamos ao fim do ano.
Bolsonaro tascou um “I love you” para seu colega de madeixas alaranjadas um dia depois de subir ao púlpito da ONU e mandar ver em ideologia de gênero, defesa de exploração mineral em reservas indígenas, marxismo cultural e todos os outros clichês do bolsolavismo.
A declaração de amor era apenas mais uma demonstração de subserviência a Trump, depois de o filho 03 desfilar por Washington com um boné ridículo, pai, filho, chanceler e o assessor especial Filipe Martins passearem pela Casa Branca achando que eram da casa e Bolsonaro ensaiar mandar Dudu para um intercâmbio para se aprimorar na arte de fritar hambúrgueres.
Nada disso resultou em ganhos para o Brasil. O Brasil fez uma série de concessões unilaterais aos norte-americanos (na Base de Alcântara, ao abrir mão de visto para cidadãos norte-americanos, na elevação de importação de etanol sem contrapartida), mas assistiu, em retribuição, ao governo dos EUA barrar nossa entrada mais rápida na OCDE, manter barreiras sanitárias à nossa carne e, agora, sobretaxar aço e alumínio.
O caso da nossa relação com a China é emblemático, também. Em meio à guerra comercial de Trump com Pequim, os EUA pressionam para que o Brasil não adote a tecnologia chinesa do 5G. Em entrevista na semana passada, Filipe Martins mostrou preocupação com o tema, sugerindo que há opções europeias (Nokia? Ericsson? Sério?) à comprovadamente superior tecnologia chinesa. Vamos, de novo, ser subservientes a um interesse que não é nosso?
Gongado para a embaixada, Eduardo foi com o irmão Flávio para Abu Dhabi para engrossar o lobby pela transferência, à custa de rios de dinheiro público, da Fórmula-1 de São Paulo para o Rio. Detalhe: apesar da pinta de surfista e do sotaque, Dudu é deputado eleito por… São Paulo! Em entrevista a uma emissora israelense, voltou a pregar a transferência da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, uma patacoada para agradar o eleitorado e os aliados evangélicos às vésperas da criação do novo partido, a Aliança pelo Brasil, de forte inclinação neopentecostal. De novo, os interesses do País sacrificados no altar da ideologia, do obscurantismo religioso e da agenda da família Bolsonaro.
O ano de 2020 será tenso no cenário externo. As eleições nos EUA, com Trump favorito, mas pressionado pelo processo de impeachment, o desenlace imprevisível da guerra comercial com a China, o acordo União Europeia-Mercosul precisando ser chancelado e uma recessão global no horizonte exigirão do Brasil, mais do que nunca, maturidade nas negociações e fim de paixões ideológicas ou puramente paranoicas que têm norteado nossa ação diplomática. Não parece que nosso time olavete esteja minimamente equipado para dar conta do recado, como os resultados vexatórios de 2019 deixam patente
Pedro S. Malan: A ousadia da moderação
Temos menos de três anos para achar saídas pelo diálogo franco, sem escolha entre ‘nós e eles’
“Presidents are not kings”, escreveu juiz federal norte-americano ao decidir (contra a vontade expressa de Donald Trump) que um ex-funcionário da Casa Branca deveria atender à convocação para depor como testemunha em investigação em andamento no Congresso. A Casa Branca vai recorrer, mas a decisão mostrou, mais uma vez, que as preocupações dos founding fathers com a importância de checks and balances, pesos e contrapesos, freios e filtros em decisões de chefes do Poder Executivo continuam vivas e operantes, passados 230 anos.
Presidentes podem muito, mas não podem tudo. Há limites à sua vontade, impostos não apenas pelos outros Poderes, mas também pela reação da opinião pública quanto a planos e intenções que afrontem em demasia valores e expectativas de parte expressiva da sociedade. Afinal, presidentes, e outras lideranças políticas, emitem poderosos sinais sobre o que são padrões de conduta e decência considerados aceitáveis na vida pública.
Vale sempre lembrar o artigo hoje clássico de Madison (em The Federalist n.º 51, de fevereiro de 1788). “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos fossem governar os homens, nem controles externos nem controles internos sobre o governo seriam necessários. Na construção de um governo a ser administrado por homens e exercido sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados e, em seguida, obrigá-lo a controlar a si próprio”.
A História registra numerosos exemplos de governos e governantes com “grande dificuldade” para controlar seus próprios instintos, paixões e interesses. Registra também tentativas de estabelecer relações diretas com a parte da população mais cúmplice de suas ilusões, incluída a ilusão da falta de limites ao exercício de seu poder. A tentação de ocupar a máquina pública com militantes fiéis e, principalmente, de utilizar as ferramentas do poder para combater os “inimigos” e intimidar vozes discordantes é mais comum do que parece.
É preciso resistir, em particular, a certa visão que neste momento aparentemente encontra ampla acolhida entre extremos do espectro político brasileiro, baseada na clássica formulação do alemão Carl Schmitt, para quem “a distinção política específica à qual ações e motivos políticos podem ser reduzidos é a distinção entre amigo e inimigo”. Para Schmitt, uma coletividade constitui um corpo político apenas na medida em que haja definido com clareza seus “inimigos”. E como mostrou Mark Lilla, para Schmitt tudo é potencialmente político: costumes morais, religião, economia, arte, cultura podem se tornar questões políticas, encontros com o inimigo, e transformar-se em fonte de deliberado, aberto e sempre renovado conflito.
Qualquer semelhança com situações que não nos são estranhas não é mera coincidência. Teremos menos de três anos à frente para tentar aprofundar esta discussão e encontrar as saídas que devem prevalecer em democracias (sem adjetivos). Saídas que deverão sempre passar pelo diálogo franco, pela resolução de diferenças e conflitos via soluções de compromisso, sem a famosa escolha binária entre o “nós e eles” que tanto mal causou e vem causando ao País.
Os mundos (e os tempos) da política não podem, nunca, ser dissociados dos da economia. Por essa razão este meu último artigo do ano não poderia deixar de mencionar a importância crucial da continuidade do esforço centrado na agenda de reformas, em particular as do setor público. Sem elas não conseguiremos equacionar nossa insustentável situação fiscal (governo federal e especialmente Estados e municípios), tampouco recuperar de forma sustentada o crescimento econômico, cuja média anual foi, no período 2011-2018, de pífios 0,7%, ante 3,25% em 1995-2010.
Já escrevi muito neste espaço sobre as raízes da pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil, com ênfase nas nossas mudanças demográficas e na rapidez extraordinária de nosso processo de urbanização, sem paralelo no mundo. Esse processo gerou e gera demandas que continuam a exigir respostas de sucessivos governos, em termos de gastos de custeio e investimento nas áreas de infraestrutura física, infraestrutura social e redução de pobreza e desigualdades de oportunidades. As tentativas de resposta a elas levaram a taxas de crescimento real do gasto público muito superiores às taxas de crescimento da economia, com as implicações conhecidas sobre inflação (até o Real), além de endividamento do setor público.
A excelente e ousada entrevista com o atual governador do Rio Grande do Sul (Valor Econômico, 3/12) é imperdível para os brasileiros de boa-fé que estejam dispostos a entender quão dramática é a situação fiscal de muitas unidades da Federação. E queiram entender o que deve ser feito como inexorável ajuste, como condição para a retomada da capacidade de investimentos, da qual depende o crescimento.
Concluo com uma observação de 1994 do economista Edmar Bacha que retém surpreendente atualidade e relevância: “A resolução, sem uso da inflação, do conflito fiscal brasileiro (por fatias do orçamento público) envolve decisões políticas fundamentais sobre a composição do gasto público. O governo federal tem que transferir para outras esferas governamentais ou para o setor privado parte de suas exageradas atribuições atuais para que possa especializar-se com vantagem nas atribuições que de fato lhe cabem num modelo de desenvolvimento com inflação sob controle”.
Estamos há pelo menos 25 anos a tentar lidar com os problemas interligados do nível , da composição e da eficiência tanto do gasto público quanto da arrecadação tributária. É preciso perseverar, se quisermos realmente crescer a taxas mais altas, sem inflação e sem depender de choques externos favoráveis como os que nos ajudaram em passado recente.
* Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro ter canal direto com Trump era uma ficção, diz Ricupero
Para ex-embaixador em Washington, governo precisa perceber que, neste mundo de competição pelo comércio internacional, o interesse do Brasil é permanecer autônomo
Douglas Gavras, de O Estado de S.Paulo
No início desta semana, o governo do presidente Jair Bolsonaro foi surpreendido por uma mensagem publicada pelo colega dos Estados Unidos, Donald Trump, em seu perfil no Twitter. Trump anunciava a retomada imediata das tarifas americanas sobre o aço e o alumínio brasileiros e argentinos, em resposta à desvalorização das moedas dos dois países, que estaria sendo patrocinada pelos governos.
Na avaliação do ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero, o governo tem colecionado derrotas na condução dos interesses do Brasil no exterior e foi ingênuo ao imaginar que seria vantajoso se alinhar aos Estados Unidos.
Ricupero, que também foi embaixador do Brasil em Washington e representante na Organização das Nações Unidas (ONU), avalia que a economia tem dado sinais de recuperação, mas que as medidas tomadas até agora, como a redução dos juros e a liberação de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), têm efeito limitado e devem durar até o início do ano que vem.
A seguir, trechos da entrevista ao Estado:
Que lições a ameaça de taxação ao Brasil, feita pelo presidente Donald Trump, deixa em relação à condução atual da política externa do Brasil?
Esse episódio tornou patente o que já sabíamos: que era uma grande ficção a ideia de que o presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo tinham canal direto com Trump. O que podemos notar é que as nossas relações internacionais estão baseadas em premissas totalmente falsas, é uma visão alienada em relação ao mundo e em relação ao Brasil. O governo precisa perceber que, neste mundo de competição pelo comércio internacional, o interesse do Brasil é permanecer autônomo e ter o máximo de ganhos em cada negociação. É ingênuo se alinhar com uma potência.
O governo se precipitou ao abrir mão da exigência de vistos para turistas americanos sem contrapartida ou abrir mão do tratamento especial na Organização Mundial do Comércio (OMC)?
No caso dos vistos, é possível justificar um pouco pelo interesse brasileiro no turismo, que pode ser facilitado. Mas as outras medidas são mais graves, como abrir mão do tratamento especial diferenciado na OMC e nas negociações comerciais em troca do apoio pela entrada na OCDE (espécie de clube dos países ricos). Não tem cabimento abrir mão de uma vantagem que é dada a países com o status do Brasil, que é um país em desenvolvimento e precisa de prazos mais amplos ou de menores concessões de tarifas. China e Índia jamais aceitaram isso. Em troca de um apoio incerto dos Estados Unidos, o governo abriu mão de vantagens concretas.
Entrar na OCDE, como defende o ministro Paulo Guedes, é realmente vantajoso para o Brasil?
Caso não fosse acompanhada dessas exigências, teria um efeito positivo, mas a ideia de que ser membro seria uma vacina contra políticas econômicas equivocadas é errada. A Grécia sempre foi parte da OCDE, o México também. Não significa grande coisa.
Que preço o Brasil pode pagar por um alinhamento automático aos EUA?
A ideia de o Brasil ser um dos aliados principais fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) é um equívoco. Aliado significa escolher um lado - neste caso, o americano, que está em conflito com países como China e Rússia, com os quais o Brasil não está em conflito neste momento. No caso da China, no momento em que se fez o último leilão de petróleo, as únicas empresas estrangeiras que participaram eram chinesas. Quando o Brasil precisou, quem socorreu não foi o governo Trump. Imagine se o deputado Eduardo Bolsonaro tivesse mesmo virado embaixador nos Estados Unidos e a gente acordasse com esse tuíte do Trump? Seria um vexame maior.
O Brasil tem falhado na defesa de seus próprios interesses comerciais?
Eu respondo com uma pergunta: como se explica que, tendo tantos equívocos acumulados, nada mude na política externa? Nem no titular do Ministério das Relações Exteriores, nem na orientação que o ministro (Ernesto Araújo) recebe. O governo está satisfeito com o Paulo Guedes, na Economia, porque há alguns sinais de retomada do crescimento. Na política externa, os resultados são todos negativos. A minha explicação é que, nas áreas que estão mais próximas do núcleo ideológico do governo, o importante não é o resultado, mas o alinhamento com a ideologia de Olavo de Carvalho. No meio ambiente ou na educação, é a mesma coisa, porque esses outros ministros também estão afinados com esse núcleo duro.
O que explica isso?
A meu ver, a explicação é que o presidente é indiferente à esfera internacional. O fato é que políticas de algumas áreas, como o meio ambiente, preocupam compradores internacionais dos produtos brasileiros e tornam mais difícil para o País vender lá fora. Mas têm pouco efeito sobre o presidente. Essas nomeações provocativas em órgãos da cultura e de direitos sociais que o governo faz agradam a esse núcleo mais fanatizado, mas assustam o restante da sociedade. O governo tem uma visão perversamente distorcida da avaliação do seu próprio desempenho.
Na economia, esse desempenho tem sido melhor?
A condução da economia (com juros mais baixos, melhoria do crédito, liberação do FGTS) vai dar uma espécie de alívio para o País respirar. Isso deve durar até março do ano que vem. E, se tudo continuar bem, é bastante plausível que o Brasil cresça 2% em 2020. Mas não é suficiente para reduzir o número altíssimo de desempregados. Precisaria acelerar para 3,5%, 4%, e só com investimento público é que se poderia chegar a isso. Vejo uma melhora da atmosfera, mas muito limitada.
Qual seria a saída?
Não há outra saída sem investimento público. Só pode ter crescimento por investimento ou consumo. O consumo é limitado pelo número de desempregados, e a demanda vai bater logo no teto. E o investimento privado pode aumentar, mas não no nível necessário, sobretudo em infraestrutura, que depende do investimento público. Nenhum investidor de fora vai se arriscar em aportes que demoram 20 ou 30 anos para serem amortizados.
O investidor estrangeiro não está esperando o andamento das reformas para voltar os olhos para o Brasil?
A economia internacional cresce menos do que se esperava, o comércio internacional está caindo e não há perspectivas de melhora. O nosso superávit comercial também está em queda. Do lado externo, não há nada a esperar. E investimentos vultosos do exterior dificilmente virão quando, além das incertezas, fatores como a declaração de um novo AI-5 do ministro Guedes e do filho do presidente vêm a público. Essas coisas causam muita inquietação.
As declarações sobre um novo AI-5 vieram como uma resposta, caso o Brasil enfrente ondas de protestos nas ruas, como os que ocorrem no Chile e na Colômbia. Esse temor do governo é justificado?
Isso só mostra a incapacidade brasileira de captar a realidade à sua volta. O que há na América Latina são manifestações contra políticas econômicas de inspiração ultraliberal, como as que o Brasil adota agora. No Chile e na Colômbia, a insatisfação é com excessos que houve com o liberalismo. O México mudou essa rota, com a eleição de Andrés Manuel López Obrador. A Argentina também está mudando, com a volta do peronismo ao poder. O Brasil precisa de uma dose de liberalismo, mas não se pode fazer isso sem levar em conta o enorme número de desempregados e de pobres que nós temos. Esse tipo de insensibilidade em relação ao lado mais vulnerável é justamente o que acaba alimentando as manifestações. Não é o liberalismo correto, mas uma espécie de cegueira para o lado social.
Miguel Reale Júnior: Aliança com o passado
Para Bolsonaro e os ‘pensadores’ que o cercam importa explorar o radicalismo
Manifesta a postura retrógrada do programa do pretenso partido Aliança pelo Brasil. Apontam-se como suas principais linhas a segurança do cidadão graças ao direito de andar armado; o louvor a Deus, que revela caminhos e direitos inalienáveis; os valores tradicionais proclamados pelos nossos pais fundadores; a consagração da família tradicional; o confronto com a ideologia do garantismo; a liberdade do mercado como solução única para nossa economia; a destruição do socialismo. Deus, pátria e família, especialmente a própria.
Escolho alguns pontos para análise. Na introdução, desenha-se quadro irreal de estar o País calado, sofrendo a dominação do crime violento, do narcotráfico e do crime organizado. Dramatiza-se o passado, como se tivesse havido condescendência com a alta criminalidade como consequência da promessa de paz, por entregarem os brasileiros suas armas em pacto suicida para a abdicação do direito à legítima defesa.
Ao ver dos aliancistas, houve desrespeito ao referendo de 2005, impondo-se o controle das armas. Duas inverdades: o controle da criminalidade não se realiza pela população armada, situação cujos resultados comprovados são nocivos. A menor repressão ao crime que amedronta, o assalto à mão armada, depende da baixíssima apuração de autoria pelos órgãos de segurança dos governos estaduais. A criminalidade não será estancada dando um revólver a cada cidadão.
O referendo de 2005 não concedeu posse e porte de arma aos brasileiros. Nessa consulta popular se indagava se deveria prevalecer o disposto no artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, sobre comercialização ou não de arma de fogo. Perguntou-se, então: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Não se tratava de garantir a todos, sem critérios e limites, posse ou porte de armas, mas de saber se a comercialização de armas deveria ser totalmente proibida.
Outro aspecto ligado à segurança pública está no ataque ao inimigo imaginário, a ideologia do garantismo, doutrina formulada pelo jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli, acusada de ser a raiz do problema da impunidade no Brasil, um “garantismo socialista”, favorecedor do narcotráfico.
Santa ignorância. Dos princípios básicos do garantismo penal, destaco o da legalidade (não haverá crime ou pena sem lei anterior); o da lesividade (não há crime sem que haja violação de um bem relevante à sociedade); o da culpabilidade (não há responsabilidade objetiva em matéria penal sendo o crime doloso ou culposo); o acusatório (garantindo ao réu ampla defesa e direito ao contraditório). Denominar tal doutrina de socialista e em favor do narcotráfico é demais!!!
O caráter religioso do partido é patente. Segundo o programa, a providência divina indica o caminho do partido, que toma como seus os valores fundantes do Evangelho. Transforma-se, apesar de se tentar negar, o exercício do poder político em missão confessional, de vez que, sendo a relação entre a Nação e Cristo intrínseca e inseparável, é o povo brasileiro religioso e igualmente devem ser seus representantes, tendo Deus em sua vida.
Depois, em culto às tradições, o programa exalta os brasileiros ilustres do passado, que deixa de indicar, os quais denomina de fundadores e formadores do Brasil, em pura imitação da figura dos pais fundadores da nação norte-americana.
Posso lembrar duas figuras de nossa República, Rui Barbosa e Campos Sales. Rui há um século, na campanha presidencial de 1919, proferiu importante discurso sobre a questão social. Dizia o mestre: “Estou, senhores, com a democracia social (...) que quer assentar a felicidade da classe obreira não na ruína das outras classes, mas na reparação dos agravos a que ela até agora tem curtido. Aplaudo no socialismo o que tem de são, de benévolo, de confraternal, de pacificador”.
Campos Sales, por sua vez, ensinava não ser importante “saber o que é popular, mas sim o que é razoável e justo, sendo um dos deveres do homem de Estado combater as ilusões populares, mesmo à custa do poder e das posições”. Não parece que o bolsonarismo siga as lições desses importantes personagens do passado.
O programa, portanto, de ideias retrógradas, desconhece as mudanças significativas do pensamento político, ignora até mesmo a lição de Rui de cem anos atrás, para fazer do socialismo um bicho-papão, explorando ilusões populares e ignorando deliberadamente toda a evolução do socialismo, que, como bem acentua Antônio Paim (O Socialismo Brasileiro, vol. II, pág. 18), teve papel notável na História do Ocidente por seu substrato moral.
Doutra parte, no plano econômico, o programa adota como única solução a liberdade do mercado, que se autorregula, pois “a liberdade econômica não se contrapõe à existência da moral”. Todavia sem diretrizes de cunho social, num país pobre e desigual como o nosso, a receita neoliberal só aumentará o desnível das classes sociais.
Por fim, cabe destacar que o programa volta aos anos 30 do século passado ao se referir ao homem e ao desenvolvimento integral. Meu pai, integralista na juventude, posteriormente, em diversas obras, como Pluralismo e Liberdade, adotou o pensamento liberal-social, por via do qual se respeita o mercado como agente de produção de riquezas, reservando, contudo, ao Estado, em especial à União, o papel de articulador e promotor de políticas sociais fundamentais em áreas como saúde e educação, criando rede de saneamento básico e valorização dos docentes, promovendo políticas de inclusão social nas periferias das grandes cidades.
Mas para Bolsonaro e os “pensadores” que o cercam importa antes explorar o radicalismo imperante, açular as ilusões, gritar sua fé em Deus que abrirá os caminhos para a destruição de perigosos inimigos. Em defesa da razão, resta apenas conclamar: iluministas do Brasil, uni-vos.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Eliane Cantanhêde: Moro, Guedes e o vácuo
‘Superministros’ da Justiça e da Economia viram articuladores políticos
É injusto e incorreto classificar a votação do pacote anticrime como derrota do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que fez o que pôde pelo texto e, assim como o ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu um papel que não é dele, para o qual não foi preparado e para o qual ele próprio julgava não ter talento: a articulação política.
O presidente Jair Bolsonaro passou longos 28 anos na Câmara, meteu os filhos 01, 02 e 03 na política e agora está entronizando o 04, mas insiste em negar a política e nem se preocupa em ter uma base aliada sólida e organizada. Joga um projeto atrás do outro no Congresso e lava as mãos. Os ministros que se virem e seja o que as bancadas quiserem.
Num governo em que o chefe da Casa Civil só serve para viagens, solenidades e fotos com o presidente e o anunciado articulador político é um general de quatro estrelas, da ativa!, as negociações, conversas e o esforço de convencimento de deputados e senadores acabam sobrando para quem não é do ramo. Se dá certo, é “vitória do governo”. Se dá errado, é “derrota do ministro”.
Na Previdência deu certo porque a importância da reforma decantou na opinião pública, nos partidos, no Congresso, e as mudanças passaram com razoável facilidade e sem grandes protestos. Mesmo assim, o economista Paulo Guedes viu (e sofreu) o vazio da articulação palaciana, arregaçou as mangas e abriu as portas do gabinete para fazer as vezes de articulador.
Moro, que atuou a vida toda no Judiciário, olhou para um lado e para o outro e viu que, se não entrasse na articulação com o Congresso, o pacote anticrime não seria aprovado nem em parte e corria o risco de ir parar numa gaveta, senão no lixo. E lá se foi ele, com seu jeitão tímido, cara de mau humorado, tratar de convencer deputados e senadores da importância do pacote contra (atenção!), mais do que a corrupção, o crime organizado. Detalhe: Guedes tinha a boa vontade do deputado Rodrigo Maia com a Previdência, mas Moro não tanto com o anticrime.
O que saiu não foi o ideal, mas foi o possível e Moro sabia disso. Sabia que a prisão após segunda instância teria tramitação própria, paralela, e viu como as chances do excludente de ilicitude, que já eram mínimas, foram definhando a cada criança e jovem mortos em operações policiais. E ainda teve de engolir Bolsonaro numa “live” dando de ombros para o pacote. Logo, o ministro não foi derrotado, ele apenas conviveu com a realidade. E continua na guerra da segunda instância.
O desvio dos dois superministros para a articulação política já indica como o Planalto vai agir nas reformas tributária, administrativa e trabalhista. Se é que a coisa não vai piorar ainda mais. O presidente pode, nesses casos, ir além de apenas lavar as mãos e passar a trabalhar contra. Guedes tem pela frente um exercício de paciência diário.
Enquanto isso, Moro estará jantando, trocando telefonemas e mensagens com parlamentares pela prisão em segunda instância, que avança, mas cercada de suspeitas de jogo de cena. A maioria dos senadores desconfia das reais intenções de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e rompeu o acordo entre eles para votar na próxima terça-feira na CCJ, lembrando que os projetos são diferentes: uma emenda constitucional na Câmara, um projeto mudando o Código do Processo Penal no Senado.
E a CPI das fake news? Ela vai esquentando, especialmente após a ex-aliada Joice Hasselmann acusar os filhos do presidente e o “gabinete do ódio” do Planalto por quase dois milhões de robôs pagos pelos cofres públicos para espalhar mentiras e atingir reputações. Isso está crescendo e é uma dor de cabeça para o governo e o presidente da República. Quem vai pegar o touro a unha? Guedes? Moro? Seria pedir demais.
Eros Roberto Grau: Ainda a prisão em segunda instância
É só o Legislativo inovar, com prudência, nossos Códigos de Processo Penal e Civil
O texto do artigo 5.º, inciso LVII, da nossa Constituição - uma de suas cláusulas pétreas - é cristalino: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A partir daí afirmei aqui mesmo, em texto publicado no dia 22 de novembro, que só uma nova Assembleia Constituinte poderia impor a prisão após condenação em segunda instância. Desejo agora dar a mão à palmatória, pois essa minha afirmação decorreu da consideração isolada do artigo 5.º, inciso LVII, e não do todo que a nossa Constituição compõe.
Há alguns dias li num jornal uma notícia muito interessante. Plenamente consciente de que o artigo 60, parágrafo 4.º, IV, da nossa Constituição estabelece que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, cogita de algo novo. Uma emenda constitucional que estabeleça que as sentenças penais condenatórias transitarão em julgado imediatamente após sua confirmação em segunda instância, a partir daí tornando-se possível a propositura de ações rescisórias perante o Superior Tribunal de Justiça.
Retornei, então, à Constituição no seu todo e à prática da pesquisa, como a exercitava no meu tempo de jovem. De lá para cá, de cá para lá encontrei a ata da 23.ª Reunião Extraordinária da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, realizada em 7 de junho de 2011. Uma audiência pública destinada a debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/2011, que alterava os artigos 102 e 105 da Constituição para transformar os recursos extraordinário e especial em ações rescisórias. Audiência em torno da exposição do ministro Cezar Peluso, então presidente do Supremo Tribunal Federal, sobre a matéria.
A leitura dessa exposição muito esclarece, especialmente quanto à origem dessa PEC, uma ideia do próprio ministro Peluso. Não de transformação desses recursos em rescisórias, porém de exclusão, retirada dos seus efeitos obstativos. Em síntese, o que ele então sugeria era que esses recursos passassem a ser dotados de eficácia rescindente ou rescisória. Vale dizer, desconstituição ou substituição de determinado juízo por outro.
Essa proposta de emenda constitucional, por alguma razão, não sei qual, foi arquivada. Mas a releitura da exposição de Peluso - além do quanto me esclareceu meu irmão de coração Aloysio Nunes Ferreira, que foi seu relator - é hoje, aqui e agora, fundamental. Permitam-me dela extrair alguns ensinamentos.
Nosso sistema recursal sendo composto de quatro instâncias, a mera admissibilidade de recursos impede o trânsito em julgado do quanto afirmado pelos nossos tribunais. Acontece que a nossa Constituição nada define sobre a coisa julgada e sobre o marco do trânsito em julgado. Faz referência a ambos os institutos, cuja definição é objeto de normas infraconstitucionais. Sucede que hoje, em virtude de um preceito infraconstitucional do Código de Processo Civil, a concepção de coisa julgada está ligada à condição de exaustão de todos os recursos possíveis. Bastará, portanto a alteração do seu texto para impor a prisão após condenação do réu em segunda instância.
A admissibilidade dos recursos não impedirá o trânsito em julgado das decisões recorridas. Seu eventual provimento pode conduzir à desconstituição, anulação ou cassação da decisão impugnada, caso em que o processo retornará ao tribunal de origem para que nova decisão seja proferida. Daí que esses recursos não consubstanciam ações rescisórias. Não se instaura um novo processo a partir deles. Eles somente ganham uma eficácia diversa, eficácia rescisória da coisa julgada, em caso de provimento. Coisa julgada que já se terá formado por julgamento nos tribunais de Justiça de segundo grau e nos tribunais regionais. O recurso extraordinário, o recurso especial e o recurso da área trabalhista continuarão sendo instrumentos de revisão do acerto jurídico das decisões dos tribunais locais e regionais. Recursos que não permitem exame de questões de fato e cuja possibilidade de conhecimento está adstrita unicamente a questões jurídicas, questões de Direito.
Outro ponto a considerarmos está em que a prisão após condenação do réu em segunda instância não reduz os direitos e garantias individuais. Nosso direito positivo assegura plenamente aos réus o direito de defesa mediante alegações e provas produzidas em primeiro e segundo grau de jurisdição. Em terceira e quarta instância as alegações giram apenas em torno de questões jurídicas.
No mais, procurando sintetizar suas afirmações quanto à presunção de inocência, nada, nenhuma referência a ela encontramos na nossa Constituição. Nada. Ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ela apenas confere a cada réu uma garantia de tratamento digno no curso do processo. É isso que a Constituição assegura.
A leitura da notícia que li num jornal a respeito do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e a lição do Peluso, meu amigo, me fazem mesmo dar a mão à palmatória. Além de tudo, porque não me farto de afirmar, no quanto escrevo, que não se interpreta a Constituição em tiras.
A volta à juventude, quando eu não gozava da presunção de que sabia tudo e me dedicava mais à pesquisa, me dá plena consciência de que a nossa Constituição nada dispõe a respeito dos efeitos dos recursos especiais e extraordinários, matéria processual a respeito da qual a lei - não ela, a Constituição, em razão dessa ou daquela emenda - poderá/deverá dispor. O que me leva a sugerir que o nosso Poder Legislativo tudo resolva limitando-se a inovar, prudentemente, nossos Códigos de Processo Penal e Civil.
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF
Zeina Latif: Primeiros sinais
Preocupa o fato de o aumento da inadimplência partir de um patamar que não é baixo
Crédito é bom, pois permite às famílias anteciparem seu consumo e elevarem seu bem-estar. Desde que sem excessos, porém. Há sinais recentes no mercado de crédito que precisam, pois, ser monitorados.
O crédito ao consumidor cresce de forma robusta. As novas concessões subiram 14% nos últimos 12 meses encerrados em outubro. O endividamento dos indivíduos atingiu 45% da sua renda anual, um patamar comparável aos do pré-crise, que eram elevados.
O crescimento do estoque do crédito para pessoa física, que atingiu o recorde de 27,5% do PIB, demanda atenção, pois a cifra atingida está acima da tendência histórica da série. Esse diferencial, denominado “hiato do crédito”, é uma variável importante a ser monitorada, pois é apontada na literatura internacional como um alerta robusto de futuros problemas na saúde do sistema bancário.
A preocupação aqui não é com os bancos, que estão sólidos, inclusive pelo rigor regulatório do Banco Central. A questão levantada são as implicações do crédito aquecido na condução da política monetária e na vida das famílias. O endividamento excessivo (ou hiato positivo) guarda elevada correlação com o aumento da inadimplência adiante, depois de 2 a 3 trimestres.
Outro indicador que serve de alerta é o comprometimento da renda mensal dos indivíduos com o pagamento da dívida (principal e juros). Ele voltou a subir, atingindo 20,6% em setembro ante 19,8% há um ano. Sua elevação significa restrições crescentes de liquidez dos consumidores, o que eleva o risco de inadimplência. O ciclo de queda da inadimplência concluiu-se e agora dá sinais de reversão.
A inadimplência bancária da PF exibe elevação, ainda que modesta (de 3,25% em dezembro de 2018 para 3,53% em outubro último), segundo o BC. O movimento é puxado pela inadimplência no cartão de crédito parcelado e no cheque especial. Convém monitorar se vão contaminar as demais categorias de crédito.
As dívidas negativadas aumentaram 7,8% em agosto na variação anual, de acordo com a Serasa Experian, puxadas não só pelas dívidas com bancos/cartão, mas também pelas contas de consumo (água, luz, gás). Nada bom.
O porcentual dos chamados ativos problemáticos no sistema financeiro – soma de inadimplência, reestruturações e risco elevado – cresceu ligeiramente ao longo do primeiro semestre para 6,7%, segundo o BC. O patamar mantém-se baixo. No entanto, uma medida alternativa de ativos problemáticos, que mede o risco de cada “safra” de devedores (e não do estoque total de crédito), retomou uma trajetória firme de alta, colocando o indicador nas máximas históricas da série iniciada em dezembro de 2014.
A deterioração do mercado de crédito parece precoce à luz de uma recuperação da economia que mal começou. A explicação está na lenta melhora do mercado de trabalho, gerando baixo crescimento da massa salarial (1,4% nos últimos 12 meses). A dúvida é se esses sinais, por ora incipientes, tendem a piorar. Já discutimos neste espaço que a geração de vagas seguirá tímida. Se a avaliação estiver correta, isso implicará continuidade da piora dos indicadores de crédito.
Preocupa o fato de o aumento da inadimplência partir de um patamar que não é baixo, pelo menos não para os consumidores. A inadimplência é baixa para os bancos, pois representa parcela ainda modesta da carteira total de crédito. Porém, ela pesa no orçamento dos indivíduos. A razão entre dívidas em atraso por mais de 15 dias e a renda dos indivíduos manteve-se elevada desde o fim da recessão e já ensaia tendência de elevação. A crise econômica deixou marcas de difícil superação.
No contexto descrito acima, é compreensível o tom mais cauteloso do BC em relação às perspectivas da política monetária. A autoridade monetária reconhece que há incertezas quanto à resposta da economia aos juros básicos em patamares inéditos.
Excessos precisam ser evitados. Crescimento sustentado depende da saúde financeira das famílias.
*Economista-chefe da XP Investimentos