O Estado de S. Paulo

Vera Magalhães: Com cerco a Flávio se fechando, PF pode sair de Moro

O fechamento do cerco em torno das relações financeiras entre Fabrício Queiroz, o ex-assessor que gerenciava os gabinetes da família Bolsonaro, o senador Flávio e familiares da segunda ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, Ana Cristina, fez com que ganhasse corpo a ideia de tirar a Polícia Federal da alçada do ministro Sérgio Moro.

É isso que explica a discussão, extemporânea aparentemente, de se recriar o Ministério de Segurança Pública, que existia sob Michel Temer e foi extinto justamente para concentrar atribuições e poderes em torno de Moro.

A relação entre o ministro da Justiça e Bolsonaro tem sido um jogo de afagos públicos seguidos de consecutivas iniciativas do presidente para esvaziar ou desautorizar o ex-juiz. Os afagos se devem à evidência de que Moro ainda goza de imenso prestígio na sociedade, superior ao do próprio Bolsonaro, e incluí-lo no rol dos ex-aliados transformados em adversários não seria uma operação simples como foi a de Gustavo Bebianno e Santos Cruz.

A ideia de Bolsonaro é designar para o Ministério de Segurança, caso a ideia prospere, o amigo e ex-deputado Alberto Fraga, expoente conhecido da “bancada da bala” e um dos maiores propagandistas da política armamentista defendida por Bolsonaro, da qual Moro é crítico.

A possibilidade de que o caso Queiroz atinja Bolsonaro e a família, o que levaria a PF a ser acionada, explica a pressa em tirá-la da alçada de Moro e colocá-la sob o comando de alguém mais próximo de Bolsonaro, além de político.


Eliane Cantanhêde: Um mito em xeque

Por que Bolsonaro jogou a família inteira na política? A resposta pode estar no MP-RJ

O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro pode estar dando agora, a menos de 15 dias do fim do primeiro ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro, a resposta a uma pergunta que há anos não quer calar: por que Bolsonaro se candidatou, passou 28 anos no Congresso, meteu os três filhos mais velhos na política e já começa a entronizar também o menino caçula, Jair Renan?

Após encerrar prematuramente a carreira militar, aliás com graves motivos, Bolsonaro enveredou pela política mantendo sempre o discurso antipolítica, antipolíticos, antissistema, antipartidos, anti-Congresso. Se tinha essa ojeriza toda, por que entrou na roda e jogou para dentro dela a própria família? As revelações do MP sobre o gabinete do primogênito, Flávio Bolsonaro, na Alerj, autorizam uma conclusão, ou suposição: porque era fácil todo mundo “se dar bem”. Com dinheiro público, frise-se.

O MP não está necessariamente certo e as investigações ainda estão em andamento, mas o que se tem publicamente até agora é chocante – e preocupante. O gabinete do então deputado estadual Flávio, agora senador da República, embolava o Queiroz, policiais aposentados, parentes de líderes da milícia e a família inteira da segunda mulher do atual presidente: pai, tios, tias, primos.

Além da “rachadinha”, quando os funcionários repassam parte do salário ao parlamentar que os emprega, há suspeita de lavagem de dinheiro do próprio Flávio na compra de apartamentos e na sociedade de uma loja de chocolates que sofreu busca e apreensão do MP, com autorização judicial.

O efeito político dessas investigações, relatórios e notícias é devastador. Já seria complicado para qualquer um, mas é pior porque se trata do filho do presidente da República e, pior ainda, de um presidente que se elegeu como o salvador da Pátria contra a corrupção, o sistema, a “velha política”. Tem algo mais velha política do que rachadinha? E que tal rachadinha com miliciano no meio?

Sem contar que havia um certo trânsito de funcionárias entre os gabinetes do filho no Rio e do pai em Brasília. Algumas, aliás, onipresentes: eram personal trainers ou vendiam guloseimas no Rio, mas recebiam salário em Brasília. Tudo mal explicado.

O ano de 2019 termina e o ano de 2020 começa com os Bolsonaros às voltas com essas histórias todas que tiram o presidente da costumeira posição de ataque e o empurram para a desconfortável posição de defesa. “Não tenho nada a ver com isso”, limitou-se a reagir Bolsonaro, que tem fugido de repórteres na saída do Alvorada e nas solenidades do Planalto. Será que não tem o que dizer?
Há dúvidas, porém, sobre o uso que a oposição pode fazer disso tudo. O ex-presidente Lula pode tripudiar, recém-saído da prisão? O PT pode fazer fila no plenário da Câmara e do Senado para apontar o dedo contra o presidente? Qual dos partidos grandes vai se declarar surpreso, chocado e indignado com a “rachadinha”?

Aliás, esse será o ponto central da “defesa” que Bolsonaro está desde quarta-feira acertando no Alvorada com os filhos, inclusive o próprio Flávio: a surrada saída de que era “só rachadinha”, que “todo mundo faz”, aliada à desqualificação de quem investiga e quem noticia, ou seja, o MP e a imprensa. A estratégia não tem efeito jurídico, mas cola onde mais interessa ao presidente: nos seus apoiadores incondicionais.

Assim como os trumpistas só ouvem e acreditam no que querem e no que convém, os bolsonaristas também só consideram o que reforça suas crenças e tapam os ouvidos (e a mente) para tudo e qualquer coisa que possam arranhar a imagem que têm do “mito”. Afinal, mito é mito. Não tem defeito, sempre está certo e pode tudo. Até quando?


Elena Landau: Exterminadores do futuro

Que futuro pode ter um país sem educação e cultura; sem história; sem imprensa?

Fui contra o impeachment da Dilma. Pensava que seria pedagógico deixar o ciclo da equivocada política econômica, iniciada ainda no governo Lula, se encerrar. O fracasso da Nova Matriz Econômica nos livraria das tentações populistas, se não para sempre, por muito tempo. Não estava de todo errada, porque há muitos que, ignorando a recessão e o desemprego gerados, ainda advogam por um aumento dos gastos. Mas Temer assumiu e com ele uma equipe econômica de primeira, que colocou a economia nos trilhos.

Impossível ignorar a importância do interregno do governo Temer, que iniciou o – longo – processo de recuperação cíclica da economia brasileira. Imagine onde estaríamos com a passagem direta de um país quebrado para um governo sem nenhuma experiência em políticas públicas?

A continuidade dos ajustes nas contas públicas e a aprovação da reforma da Previdência mudaram o humor da economia e, se não nos prometem um futuro brilhante, mostram uma luz no fim do túnel. Resta torcer para o País crescer de forma sustentada, acima do normal da economia brasileira, para que empregos sejam gerados e pobreza e desigualdade reduzidas.

Como só de economia não se faz um país, não podemos fechar os olhos para o retrocesso civilizatório deste governo. O reformismo econômico, que se pretende liberal, não compensa a destruição que se vê em importantes pilares da democracia liberal.

A ousadia destrutiva de Bolsonaro surpreende até os mais pessimistas. Juntou em torno de si um grupo de exterminadores do futuro. Que futuro pode ter um país sem educação e cultura; sem história; sem imprensa; com meio ambiente em risco; sem liberdade de expressão; que elogia torturadores e ditadores, que ataca nas redes uma senhora de 90 anos, que dedicou sua vida a este País através de sua arte?

Governos totalitários começam por desmontar a cultura e a liberdade de expressão. Não querem cidadãos críticos, que pensem, que perguntem, que duvidem. As fake news devem ser recebidas sem questionamentos. ONGs que se dedicam à defesa do meio ambiente derramam óleo de seus navios e tocam fogo na Amazônia financiadas por um ator de Hollywood. O rock é a porta do satanismo e do aborto, brasileiros são ladrões de mantas em aviões. Caetano e suas letras estimulam o analfabetismo. As universidades federais são grandes plantações de maconha e seus laboratórios produzem drogas químicas.

Ao mesmo tempo, há fatos que, se fossem falsas notícias, seriam ótimos: filmes brasileiros têm seus cartazes retirados do site da agência de fomento do cinema e no comando da fundação que atua contra o racismo, um racista. Uma ministra vai a eventos esperando ver mulheres com crucifixos na vagina, outro trata com naturalidade a possibilidade de um novo AI-5, e até o general Franco é homenageado com citações a seu lema predileto. Na cultura, o “tal do Alvim” foi premiado pela agressão que fez à Fernanda Montenegro e se cercou de um bando de lunáticos. Poderia ser motivo de chacota, não fosse um movimento racional e planejado para desmontar a cultura neste País. Não está nada engraçado.

O presidente ri. E seus seguidores tomam essas loucuras como verdade, reproduzindo os despautérios e mentiras. É uma caça as bruxas, típica do pré-Iluminismo. Uma alma religiosa e complacente diria: “Perdoai-os Senhor, eles não sabem o que dizem”. O grave é que sabem e, usando o santo nome em vão, destilam um ódio e preconceito em nada compatível com qualquer ensinamento cristão. Está faltando mais papa Francisco, e sobrando o mago de Virgínia, na vida desses fiéis. Infelizmente, a lista de absurdos é longa e nada indica que vai parar de crescer.

O extermínio não é exclusividade do governo federal. O Rio de Janeiro está se desmontando por um misto de má administração e desamor pela cidade. Crivella é, sem dúvida, o pior prefeito da história, e olha que a concorrência é grande. Sobre Witzel, deixo o drible que levou de Gabigol falar por si. Não sei como, no futuro, vou conseguir explicar ao meu neto que do Rio saíram Crivella, Witzel e Bolsonaro.

A sensação de impotência é grande. Muitos se perguntam como barrar o avanço do autoritarismo e do obscurantismo. A Justiça impediu a posse de Sérgio Camargo na Fundação Palmares. É um caso excepcional porque suas declarações sobre escravidão e racismo são incompatíveis com a missão da Fundação, diz a sentença, confirmada na segunda instância. Muitos viram a decisão como uma intervenção indevida do Judiciário no direito da administração pública de escolher seus executivos. Só o despreparo não é motivo para impedir a posse de um administrador público. Se essa moda pega, vamos brincar de resta um.

O voto continua sendo nossa única arma para evitar que o futuro seja colocado em risco. Três anos parecem uma eternidade, mas as eleições municipais podem ser o começo da mudança. Hasta la vista, baby.

Feliz Natal!

* Economista e advogada


José Álvaro Moisés: Bolsonaro trocou combate à corrupção por defesa de sua família

Presidente foi eleito com o compromisso de combater a corrupção, mas o que se assistiu de 1º de janeiro para cá foi um lento processo de abandono desse combate pelo governo

Esta operação envolvendo a família do presidente Jair Bolsonaro sinaliza a importância política que teve a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitindo que informações dos órgãos de controle – como a receita federal ou o antigo Coaf - possam ser acessadas para instruir inquéritos criminais. Foi a partir dessa decisão, por exemplo, que o Ministério Público do Rio retomou as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro.

Ainda não se apuraram completamente as responsabilidades desse caso. As pessoas podem especular a respeito, baseadas no que a mídia tem publicado, mas não temos ainda um inquérito concluído. Portanto, é preciso cautela. Mas caso se verifique o envolvimento das pessoas citadas no caso, como o senador Flávio Bolsonaro e o seu ex-assessor Fabrício Queiroz, isso poderá ter grande impacto sobre a posição do governo e a proposta da Aliança Pelo Brasil de combater a corrupção.

Jair Bolsonaro foi eleito presidente em um vácuo deixado pelas lideranças democráticas que, a meu juízo, não assumiram claramente o compromisso de combater a corrupção nas eleições de 2018. Bolsonaro ocupou o vácuo e se comprometeu a fazê-lo. Mas o que se assistiu de 1º de janeiro de 2019 para cá foi um lento processo de abandono desse combate pelo governo.

A questão pareceu se deslocar mais para a defesa de pessoas da família do presidente. É claro que denúncias nesse sentido ainda precisam ser verificadas. Ninguém pode afirmar, com certeza, que houve esse envolvimento. Mas as investigações avançam nessa direção, indicando que essa perspectiva é considerada por quem tem a responsabilidade de fazer as investigações.

Caso se confirme, sem falar da impressão de que o governo se afastou do combate à corrupção, isso afetará seriamente tanto a imagem do partido em processo de organização, como do próprio presidente. Todo o tempo ele parece mais preocupado em defender os seus do que tomar distância e garantir a autonomia e a independência que as investigações exigem.

Exemplos disso foram suas tentativas, meses atrás, de interferir em investigações em curso tanto no âmbito da receita como da Polícia Federal. Isso afeta a qualidade da democracia, pois o império da lei só é efetivo quando governos, quaisquer que sejam suas orientações ideológicas, aceitam se eximir de influir ou de controlar os organismos de fiscalização e monitoramento.

* É professor de Ciências Políticas da USP


Vera Magalhães: Queiroz para estragar o Natal dos Bolsonaro

Tal como o Grinch, ex-assessor de Flávio volta à cena para assombrar o fim de ano da família presidencial

Busca e apreensão. Na penúltima semana do ano e um ano depois de Fabrício Queiroz se tornar um personagem conhecido nacionalmente graças a uma reportagem do Estadão, o Ministério Público do Rio trouxe o ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro de volta à cena política ao deflagrar uma operação de busca e apreensão com vários alvos, ligados a ele e a uma das ex-mulheres do presidente, Ana Cristina Valle, na capital do Rio e em Resende, interior fluminense. Os parentes são todos ex-assessores do filho 01 de Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio e figuram no inquérito que investiga se o ex-assessor foi usado para organizar uma "rachadinha" dos salários dos funcionários e quais as circunstâncias que explicam sua intensa e incompatível movimentação financeira e bancária.

Endereços. Uma loja de franquia de chocolates de Flávio Bolsonaro foi um dos lugares que receberam a visita do MP. O advogado do senador, Frederick Wassef, disse que não vão "encontrar nada", uma vez que o cliente não teria o que esconder. Reportagem da revista Crusoé esmiúça transações imobiliárias de Flávio e da mulher e diz que o MP trabalha com a hipótese de que imóveis tenham sido vendidos como forma de "lavar" o dinheiro proveniente da rachadinha dos salários dos funcionários.

Atraso. As buscas marcam a retomada do caso Queiroz depois de quatro meses de paralisia, graças a uma liminar concedida pelo presidente do STF, Dias Toffoli, que sustou o inquérito e, de quebra, atingiu todas as investigações que tinham origem em relatórios do Coaf. Esta e as demais apurações só foram retomadas depois que, em novembro, o pleno do Supremo derrubou a liminar.


Eugênio Bucci: Sob ataque o regime da liberdade de imprensa

Em 2019 o presidente moveu sua guerra suja contra o jornalismo. Como será 2020?

Entre os balanços negativos que o governo federal deixa em 2019, não nos esqueçamos da campanha estridente para desmoralizar a imprensa. Poucas vezes um presidente da República se empenhou tanto em difamar as redações profissionais. Segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a autoridade máxima do Poder Executivo alcançou, entre 1.º de janeiro e 30 de novembro de 2019, a marca de 111 ataques à imprensa. A campanha infamante cravou a média de um insulto a cada três dias.

No cômputo da Fenaj aparecem episódios da mais tosca brutalidade verbal. Mesmo quem não gosta de jornalismo se sente vexado. Num post de 9 de agosto, por exemplo, o presidente reclamou da ausência de punição contra “excessos” dos jornalistas. Além de mal-educado, o chilique é desinformado, pois todas as legislações democráticas, desde a histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França, preveem a responsabilização dos que abusam da liberdade de expressão (está lá, no artigo 11 da declaração).

Naquele mesmo dia 9 de agosto, no Palácio do Alvorada, ao lado do ministro da Justiça, o presidente permitiu-se uma agressão suplementar (essa, aliás, nem consta do rol organizado pela Fenaj). Dirigindo-se a um grupo de repórteres, fez uso de sua rispidez habitual: “Se excesso jornalístico desse cadeia, todos vocês estariam presos agora, tá certo?”.

O que vem a ser “excesso jornalístico”? Ninguém sabe. A lei conhece a figura do abuso de um direito, assim como conhece o abuso de poder, mas não estabelece nada sobre “excesso jornalístico”. Nem teria como estabelecer. A locução adjetiva carece de objeto. É só na escuridão das fantasias tanáticas do sujeito que a pronuncia que ela ganha sentido: para esse sujeito, o jornalismo não passa de um impulso desagradável (como a raiva, como as explosões de mau humor), é uma forma de demência que precisa ser vigiada e contida. No léxico presidencial, o jornalismo não é profissão ou função social, mas uma neurose que acomete indivíduos desviantes. Por isso o presidente, que nunca diria “excesso advocatício”, “excesso médico” ou “excesso arquitetônico”, sai por aí falando em “excesso jornalístico”. Para ele, o jornalismo encerraria uma disfunção tóxica. Em doses moderadas, já faz um mal danado. Em “excesso”, deveria dar cadeia.

Excessos à parte, não há muito a fazer quanto ao despreparo do governante de turno. Temos de conviver com isso. Cumpre-nos, isso sim, entender sua lógica ilógica. Se seus discursos desinformam os brasileiros e deformam as linhas de equilíbrio da opinião pública, o que nos cabe, dentro de todos os limites, é escrever para esclarecer, mesmo que em vão. A gente pode (e deve) perguntar: o que pretende essa caótica retórica que atira randomicamente contra repórteres, órgãos de imprensa (que ele ocasionalmente chama de “inimigos”) e quem mais estiver na frente? Seria sua finalidade quebrar um jornal especificamente ou caluniar este ou aquele profissional de forma seletiva?

A resposta é “não”. O propósito dos 111 ataques em 11 meses é quebrar a vigência da liberdade de imprensa. O presidente parece saber, mesmo sem saber como sabe, que sem liberdade de imprensa a sociedade estará entregue às mentiras e, de modo especial, às piores mentiras, as que são enunciadas pelo poder. Ele quer menos liberdade para os jornalistas checarem os fatos porque – ao menos é o que parece – quer mais espaço para mentir.

Inconscientemente coerente com seu propósito pulsional, ele esconde que a liberdade de imprensa, mais do que uma prerrogativa burocrática do profissional, é um direito de toda a sociedade. Fala como se a liberdade de imprensa fosse a “exclusão de ilicitude” dos jornalistas. Nada mais mentiroso. O jornalista é, sim, quem em primeiro lugar exerce a liberdade de imprensa, mas o jornalista não é o beneficiário da liberdade de imprensa. O beneficiário é a sociedade. O jornalista exerce a liberdade como um dever e, agindo assim, assegura que a sociedade possa desfrutar a liberdade de imprensa como um direito. Se não pudesse contar com o direito à liberdade de imprensa, a sociedade não teria como se proteger contra as inverdades que aparecem na propaganda do poder. Ficaria indefesa.

Contra tudo isso o discurso presidencial convida a sociedade a repudiar a imprensa. Culpa os jornalistas por todos os relatos inverídicos que circulam, caracteriza os repórteres e os articulistas como vilões e, por meio desses artifícios, procura angariar apoio para, intimidando os jornalistas, esvaziar esse direito essencial de toda a sociedade.

Um jornal sozinho não entrega a verdade de mão beijada a ninguém, sabemos disso. Mas, repetindo, uma sociedade com órgãos de imprensa sérios, profissionais e independentes está mais protegida contra fraudes e estratégias de tapeação. A melhor forma de entendermos a liberdade de imprensa é concebê-la como um regime geral para o fluxo das ideias na sociedade democrática. A liberdade de imprensa é o princípio norteador do regramento que autoriza os jornalistas a verificarem diariamente os indícios da verdade factual e assim realizar um trabalho que, se não encontra a verdade pronta e acabada, impõe limites decisivos contra as propagandas do poder.

Se cumprirem seu dever de exercer a liberdade, os órgãos de imprensa ajudam a sociedade a se proteger contra os mentirosos que tentam primeiro tapeá-la para depois oprimi-la. Será por isso que o presidente está em campanha contra a liberdade? Talvez.

Fiquemos com os fatos. Quando ataca pessoalmente uma repórter do Estado, quando tenta afastar ilegalmente a Folha de S.Paulo de uma licitação, quanto chama a Rede Globo de “inimiga”, o chefe de Estado não quer apenas ofender o Estado, a Folha ou a Globo. Ele quer ferir o regime da liberdade de imprensa. Por isso em 2019 moveu sua guerra suja contra a imprensa. Como será 2020?

*Jornalista, é professor da ECA-USP


William Waack: Capitalismo político

A modernidade do choque no Brasil entre economia ‘liberal’ e autoritarismo político

O debate se a Lava Jato destruiu empresas e empregos ou se salvou a “ética” que permite o funcionamento virtuoso de instituições públicas e privadas revela um aspecto mais profundo das relações que organizam o funcionamento da economia brasileira. Na verdade, a pergunta levantada pela Lava Jato é outra. É o grau de aproximação do Brasil com o chamado “capitalismo político”.

O termo não é novo, mas voltou à moda devido ao sucesso do livro Capitalism, Alone (assim mesmo, com vírgula), de Blanko Milanovic, um intelectual de origem iugoslava atualmente na City University de Nova York e com longa passagem por instituições multilaterais como o Banco Mundial – experiência que o ajudou a escrever outra obra recente de sucesso, sobre o desequilíbrio global. A tese central dele é a de que pela primeira vez na História da humanidade um só sistema econômico prevalece – o capitalismo – e a ele pertence o futuro. Mas a qual capitalismo?

O tipo que se revela de grande êxito é o “capitalismo político”, em oposição ao capitalismo liberal meritocrático. Seus grandes expoentes são China, Rússia, Índia e vários asiáticos e, entre suas características principais, segundo Milanovic, destacam-se a ausência da aplicação uniforme das regras legais e a imensa autonomia do Estado. Nesse modelo, prossegue o autor, não são as elites econômicas que tomam as decisões em função de seus interesses, mas uma elite política que as coopta e as dirige em função de seus objetivos políticos – o paralelo com o PT e os “campeões nacionais” é evidente.

A corrupção num sistema desses é endêmica, pois os códigos legais são usados para favorecer amigos ou punir inimigos. Nesse sentido, a Lava Jato revelou as entranhas do “capitalismo político” à brasileira, incluindo o entusiasmo com que elites empresariais abraçaram o programa de um partido político que parecia haver encontrado no favorecimento de setores da economia a chave para se perpetuar no poder. Ao destruir o esquema petista, a Lava Jato afastou o Brasil do “capitalismo político”?

As elites empresariais empolgadas com os aspectos “liberais meritocráticos” dos planos da equipe de Paulo Guedes e, ao mesmo tempo, entusiásticas apoiadoras de Sérgio Moro e do que ele significa ainda não se deram conta totalmente de que os dois “modelos” estão em choque. Parte fundamental do embate entre setores do STF e expoentes da Lava Jato, por exemplo, se dá em torno do controle de quem investiga, dos limites de quem pune – por último, de quem controla a esfera da política.

Hoje empresários honestos temem mais a Receita Federal do que os homens vestidos de preto de Curitiba, sem perceber que a margem de ação que se atribuíram órgãos investigativos é uma demonstração da autonomia do Estado e de corporações que dele se apropriaram (como o alto funcionalismo público, entendido como elite política também). Não são grupos que aplaudem o “capitalismo meritocrático”. Seu viés ideológico, ainda que não petista, é claramente da permanência do controle do Estado sobre a iniciativa privada.

A empolgação (justa e legítima, importante assinalar) de elites econômicas pelo binômio Guedes-Moro turva a percepção básica de que o capitalismo meritocrático, ao contrário do capitalismo político, depende da aplicação estrita da “rule of law” (aqui o STF tem dado péssimo exemplo). São elites que olham para a eficiência administrativa de regimes sob o capitalismo político (como a China) e sonham com um grau de autoritarismo que permita destravar os óbvios obstáculos à expansão da economia brasileira, muitos deles localizados num Estado balofo e perdulário.

Milanovic sugere que o capitalismo político tem mais chances de sobrevivência. Nesse sentido, com forte dose de ironia, o Brasil está abraçando a modernidade.


Mônica De Bolle: A sanha de querer concluir

Como explicar, por exemplo, o ressurgimento, em países tão distintos quanto a Índia e os EUA, do nacionalismo?

“Meu caro amigo,
Dê ao povo, especialmente aos trabalhadores, tudo o que for possível. Quando lhe parecer que já deu muito, dê a eles ainda mais. Você verá os resultados. Todos tentarão amedrontá-lo com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é mentira. Não há nada mais elástico do que a economia que todos temem tanto porque ninguém a entende.”

Carta de Juan Perón para Carlos Ibañez, Presidente do Chile em 1953.

É claro que há certo exagero na carta de Perón – a política, por exemplo, é consideravelmente mais elástica do que a economia. Mas esse não é o ponto. O trecho da carta de Perón para Ibañez é comumente citado para sublinhar os males do populismo econômico, para concluir que políticas econômicas que desrespeitam restrições financeiras de forma sistemática estão fadadas a fracassar. Ainda que isso seja verdade, sobretudo na experiência latino-americana, a nuance em destaque é ignorada, talvez por ser demasiado inconveniente: todos temem a economia porque ninguém a entende. Se substituirmos economia por política, a frase é ainda mais verdadeira.

Em 1970, Albert O. Hirschman, um dos maiores pensadores contemporâneos – para mim, o maior – escreveu The Search for Paradigms as a Hindrance to Understanding (A Busca de Paradigmas como um Obstáculo à Compreensão). Hirschman, falecido em 2012, era economista, além de um cientista social que transitava entre Ciência Política, Sociologia e mesmo Antropologia. Nesse ensaio para a World Politics ele parte da comparação de dois estudos elaborados por cientistas sociais norte-americanos para tecer uma crítica feroz à tendência de dar respostas rápidas e unificadas para fenômenos sociais complexos – no caso, a Revolução Mexicana e a violência na Colômbia. Mas sua crítica é mais geral. Para Hirschman havia, já em 1970, uma doença que contaminava as ciências sociais, da economia à sociologia, passando pela ciência política. A patologia se apresentava na forma da busca incessante por paradigmas unificados para provar teorias no lugar de compreender a realidade. A realidade, sempre emaranhada e opaca perante a elegância e a clareza das teorias.

Esse ensaio de Hirschman, assim como quase tudo que ele escreveu, é fundamental para os dias de hoje. Da turbulência social na América Latina ao caos das eleições britânicas, à ascensão de Donald Trump, ao ressurgimento do nacionalismo em suas expressões mais abjetas – como a perseguição de Narendra Modi aos muçulmanos na Índia, ou a expressão brutal da nulidade absoluta representada pelo bolsonarismo –, há uma ânsia por responder. Autores celebrados mundialmente escrevem livros e mais livros repletos de respostas. Querem explicar por que as democracias correm perigo? Querem saber se as democracias são estáveis? Querem uma resposta elegante e clara para a turbulência política e socioeconômica que abala o mundo? Pois vá na prateleira digital ou real – o que não faltam são as respostas. Quanto às perguntas, bem, elas não andam em voga. Não falo das perguntas retóricas, aquelas feitas apenas por estilo ou efeito. “Quem poderia imaginar que voltaríamos a exaltar o AI-5?”. “Quem diria que uma menina de 16 anos seria capaz de mobilizar o mundo?”

As perguntas que estão em falta são: como explicar o ressurgimento do nacionalismo em países tão distintos quanto a Índia e os EUA? Por que a América Latina passa por tamanha turbulência agora, sobretudo considerando que desigualdade e reviravoltas externas sempre marcaram a região? Por que pensar que há explicações aprumadas para problemas tão distintos e confusos, babélicos até?

A economia não é tão elástica como diz a carta de Perón e como alguns economistas do presente querem fazer crer. Se fosse, bastava a confiança para crescer, a reforma para investir, os juros historicamente baixos para consumir. As previsões otimistas para o crescimento do Brasil feitas no fim de 2018 deveriam ter se concretizado, fosse a economia um exemplo de elasticidade. Não vale dizer que, “ah, mas são as defasagens”. Na sanha de querer concluir – “la rage de vouloir conclure” – essa é a pior resposta. Que o diga Flaubert. Que o diga Perón. Compreendemos, de fato, muito pouco. Ao contrário de pessimista, esse paradoxo conclusivo é uma oportunidade e um convite para ir além dos memes e da superficialidade. Deixo-o como presente de fim de ano aos leitores.

* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Gaudêncio Torquato: Política é missão, não profissão

A política não é um fim em si mesmo. Trata-se de um sistema-meio para administrar as necessidades do povo. Sendo assim, é uma missão, não uma profissão. Aristóteles ensina que o cidadão deve servir à polis, visando ao bem comum. Ao se afastar dessa meta, dá lugar à corrupção. Que acontece quando “quem governa se desvia do objetivo de atingir o bem comum, e passa a governar de acordo com seus interesses”, diz o filósofo.

Por conseguinte, a política não deve ser escada para promover pessoas nem meio para facilitar negócios. Como sistema, desenvolve a capacidade de responder aspirações, transformar expectativas em programas, coordenar comportamentos coletivos e recrutar para a vida pública quem deseja cumprir uma missão social.

Esse acervo é utópico? Pode ser, mas deve servir de inspiração aos políticos. Infelizmente, em nossa cultura, a política tem sido tratada por muitos como um bom negócio. Tradição que vem lá de trás. Quando d. João III, entre 1534 e 1536, criou e doou aos donatários 14 capitanias hereditárias, plantava a semente do patrimonialismo, a imbricação do público com o privado.

Os donatários recebiam a posse da terra, podiam transferi-la para os filhos, mas não vendê-la. Consideravam a capitania como uma possessão, sua propriedade. A res publica virou coisa privada.

Hoje, parcela dos nossos representantes considera espaços públicos ocupados por seus indicados como feudos, extensões de suas posses. É assim que a política se transforma em um dos maiores e melhores negócios da Federação. O caminho é este: primeiro, conquista-se o mandato; a seguir, a política transforma-se em instrumento de intermediação. Temos um amplo mercado em um território com 27 Estados (com o DF), com nichos, estruturas, cargos e posições em três esferas: federal, estadual e municipal.

O negócio da política mexe com cerca de 150 milhões de consumidores, que formam o contingente eleitoral. Para chegar até eles, um candidato gasta uns bons trocados (o custo médio está hoje em torno de 12 a 15 reais por eleitor), a depender do cargo disputado: vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, governador, senador e presidente da República.

Para tanto, candidatos ricos bancam suas campanhas. A maior parte recebe recursos do fundo partidário ou doações. Para 2020, o fundo partidário deve ser em torno de R$ 2,5 bilhões, sendo que o PSL e o PT, os dois maiores partidos na Câmara, receberão as maiores fatias. O que se sabe é que numa campanha despende-se entre três a quatro vezes mais recursos do que a quantia apresentada aos Tribunais eleitorais. São poucos os que conseguem chegar ao Parlamento com somas pequenas.

Desse panorama, surge a pergunta: se a campanha política no Brasil é tão dispendiosa e se os candidatos gastam acima do que ganham, por que se empenham tanto em assumir a espinhosa e sacrificada missão de servir ao povo? Será que há muito desvio entre o espírito cívico de servir e o sentido prático de se servir?

É arriscado inferir sobre ações e comportamentos do nosso corpo político, até porque parcela do Congresso tem atuado de maneira nobre na defesa de seus representados. Sofre, injustamente, críticas por conta da corrupção cometida por alguns.

E onde brota a semente da corrupção? Vejamos. Nas cercanias da política há um costume conhecido como superfaturamento. Obras públicas, nas três malhas da administração (federal, estadual e municipal), geralmente acabam recebendo um “plus”, um dinheiro a mais. Parcelas dos recursos servem aos achacadores e vão para os cofres das campanhas, formando o círculo vicioso responsável pelo lamaçal. Hoje, esse lamaçal está sendo devassado pela Operação Lava Jato. Mas há sempre uma fresta por onde se desvia dinheiro. E isso ocorre porque nos postos chaves estão pessoas de confiança de políticos que as indicaram.

Portanto, há um PIB informal formado por recursos extraídos das malhas da administração nas três instâncias federativas. Sanguessugas predadoras escondem-se em parcela do corpo político para sugar as veias do Estado brasileiro.

Dinheiro e poder são as vigas da vida pública, mas começam a soçobrar nesse início de ciclo da ética e da transparência.

*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação


Fernão Lara Mesquita: Por que o centro não existe

O Brasil é refém de um ‘Sistema’ fechado em si mesmo, ancorado num passado que está morto

Esse nada do bolsonarismo x lulismo em que andamos vagando é o resultado da vitória da censura. A razão de ser do bolsonarismo é o lulismo e a razão de ser do lulismo é o bolsonarismo. Um existe como a negação do outro e os dois se equivalem e se anulam.

O diabo é que o centro não existe porque não sabe o que querer. Os social-democratas, portadores da síndrome do “renegado Kautsky”, nunca se livraram do “pecado original” que lhes permitiria existir por si mesmos. São a eterna sombra da esquerda antidemocrática dona do corpo que a produzia e que agora está morta. E os liberais made in Brazil simplesmente não têm no mapa a vasta planície que existe entre os dois abismos que assombram seus sonhos, o da presente iniquidade institucionalizada e o da anomia em que temem que o País caia se sair disso para o que lhes parece território incerto e não sabido. Faltam escola e jornalismo que dê a conhecer a ambos a hipermapeada solidez e a lógica prosaica da alternativa democrática real em funcionamento no mundo que funciona.

O Brasil das vilas perdidas do sertão que, no seu isolamento, tiveram de se auto-organizar para prover todas as suas necessidades praticou por 300 anos a “democracia dos analfabetos”, elegendo com pacífica e ininterrupta regularidade as lideranças da sua organização para a sobrevivência. Mas foi subitamente arrancado dessa sua “americanidade”. Tiradentes foi o último impulso de descolamento das velhas doenças europeias emitido por esse nosso DNA histórica e geopoliticamente democrático antes de elas passarem a nos ser instiladas de dentro, a partir de um Rio de Janeiro que purga até hoje o trauma do estupro em plena adolescência por uma monarquia decadente e corrupta no momento mesmo em que a democracia ensaiava os primeiros passos da sua terceira caminhada pelo planeta. Desde então temos sido cirurgicamente excluídos da trajetória dela...

O governo bipartido entre os Bolsonaros e o time de Paulo Guedes e Cia. corporifica essa dualidade. Ele é o filho tecnocrático importado, mas órfão do pai político e ideológico que o fez nascer nas democracias que fixaram a inviolabilidade da pessoa como o ponto de partida e de chegada de todas as ações do Estado e a hegemonia da iniciativa individual sobre a pesporrência de uma “nobreza” corrupta na busca da felicidade geral da Nação. Falta a humildade para importar o pai da experiência humana para a experiência brasileira, como têm feito os asiáticos e o resto do mundo que vai pra frente.

A ciência moderna só pôde estabelecer-se a partir do momento em que o dogma imposto pelo terror da “ira divina” passou a ser “protestado”. Mas onde a Contrarreforma, armada da Inquisição, fincou pé os “terraplanistas” da política seguem com sua furiosa campanha contra as vacinas institucionais que há mais de 200 anos fazem despencar a incidência de miséria onde quer que sejam aplicadas.

O Brasil é refém de um “Sistema” fechado em si mesmo, ancorado num passado que está morto e hermeticamente blindado contra qualquer eflúvio de renovação. E o monopólio da oferta de candidaturas ao eleitorado atribuído aos partidos políticos, recém debatido no STF, é a peça fundamental dessa blindagem. Nada na nossa ordem partidária e eleitoral tem o propósito de reproduzir fielmente o País real no País oficial, o pressuposto básico da constituição de uma democracia representativa. O único objetivo do “Sistema” é autorreproduzir-se e prevenir a ferro e fogo qualquer hipótese de surgimento de concorrentes.

Que os seus sumos sacerdotes fulminem qualquer dissidência no altar do STF com a invocação da letra da sua própria lei e os seus inquisidores eletrônicos corram o reino prometendo o fogo do inferno a quem ousar desafiá-la não põe nada de novo sob o sol. Toda igreja, da primeira à última, acenou com o seu céu para impor o seu inferno. Mas quando ouço a afirmação de que candidaturas avulsas seriam “obras individuais” que “atentam contra a democracia representativa e o Estado Democrático de Direito” tento convencer-me de que se trata apenas de um equívoco acaciano e não consigo.

Tais candidaturas seriam atentatórias ao Estado de Direito se, como os nossos partidos, fossem sustentadas pelo Estado à revelia do que pensam delas os eleitores. Posta num contexto histórico então essa condenação emparelha, em matéria de anacronismo, com a afirmação em pleno terceiro milênio de que a Terra é plana e o resto do Universo é que gira em torno dela. Afinal, a própria Constituição de 88 confessa seu dolo “ao exigir filiação partidária e fazer depender o exercício do direito de se candidatar de uma aceitação prévia de seus pares”, e não da aceitação prévia dos eleitores, como acontece em todas as democracias sem aspas, que não apenas aceitam e incentivam candidaturas avulsas independentes, como também, para prevenir a apropriação indébita da vontade do povo, da qual todo poder emana, impõem aos partidos regras internas permeáveis de apresentação de candidaturas a serem decididas em eleições prévias diretas.

A cura do Brasil, assim como historicamente se deu com outras democracias que se curaram antes da nossa, passa necessariamente pela instituição de eleições distritais puras, as únicas a proverem uma identificação à prova de falsificações entre representantes e representados, pela aceitação de toda e qualquer candidatura que o povo chancelar, pela despartidarização completa das eleições municipais, tanto porque não faz sentido misturar ideologia com a gestão técnica da infraestrutura das cidades quanto para encurtar o espaço dos proprietários de partidos políticos, pela imposição de primárias diretas das eleições estaduais para cima e, finalmente, pela instituição dos direitos de recall, referendo e iniciativa legislativa para os eleitores manterem seus representantes sob rédea.

Isto porque – é claro como o sol! – democracia existe quando é o povo quem manda. Na outra ponta estão as venezuelas e as cubas da vida. E no meio, isto é, no nada, boia o Brasil junto com outros náufragos.


Eliane Cantanhêde: Educadores, tremei!

A TV Escola vai acabar ou virar veículo de propaganda da extrema direita?

O ano vai terminando, mas o presidente Jair Bolsonaro parecer disposto a atrair chuvas e trovoadas e causar marola até o último dia, o último minuto. Xingar o patrono da Educação brasileira de “energúmeno”? Acusar a TV Escola de ser esquerdista e “deseducar”? É, no mínimo, chocante.

Energúmeno significa endemoniado, possuído, mas costuma ser usado para denegrir a imagem de alguém como idiota, louco, bobo, às vezes fanático e exaltado. Quem, em sã consciência, pode achar que Paulo Freire é merecedor de algum desses adjetivos? Um homem que dedicou a vida à educação, sonhou e trabalhou pela igualdade, pelos direitos dos mais desvalidos, pela consciência coletiva de que, sem condições iguais na largada, ou na infância, o Brasil jamais será um país igual para todos.

Fica ainda mais trágico quando quem chama Paulo Freire de endemoniado enaltece demônios como Pinochet, Stroessner, Brilhante Ustra. Freire lutou pela vida, pelo bem. Os ídolos do presidente geraram morte, tortura, desaparecimentos, destroçando vidas e famílias cruelmente.

Nada anda na educação, que acaba de perder mais um ano e acumula déficits há décadas (inclusive porque jogaram fora os princípios e métodos de Paulo Freire). Veio o patético Vélez Rodriguez, que demorou, mas caiu. Veio o performático Abraham Weintraub, que está demorando e, segundo Bolsonaro, não vai cair. E a política para o ensino básico, o ensino médio, o ensino superior? Ninguém sabe, ninguém viu. No MEC, o foco está em ideologia.

Só se ouve um ministro mandar professores e alunos decorarem e entoarem o slogan de campanha do presidente da República e o outro acusar as universidades de só servirem para “balbúrdia” e plantação de maconha, enquanto imita Gene Kelly num vídeo, faz palhaçadas em outro, ataca todo mundo e não perdoa nem Paulo Guedes.

E por que o presidente Bolsonaro avisa que não vai demitir ministro nenhum e classifica Weintraub como “excelente”? Provavelmente porque o ministro da Educação participa de um amplo plano político para 2020, quando haverá eleições municipais.

Sem partido, depois de abandonar o PSL e os laranjais, Bolsonaro pode não ter condições para viabilizar o Aliança pelo Brasil a tempo de concorrer a prefeituras e câmaras legislativas. Logo, ele precisa de um plano B para eleger os futuros militantes da nova sigla.

A campanha maciça pela internet, tão eficaz na eleição de 2018, tende a ser de novo importante, mas não tão determinante em 2020. Eleição municipal exige presença, cara, voz, líder local. E onde se encontram esses fatores de campanha? No caso de Bolsonaro e de seu futuro partido, nos templos evangélicos e nas escolas. Sempre haverá pastores, pais e professores prontos a acreditar que “ser de direita” é ser isso aí: contra a igualdade, a educação inclusiva, o respeito às diferenças, os direitos das minorias.

Enquanto xinga Paulo Freire e promove quem xinga Fernanda Montenegro, Bolsonaro fecha a TV Escola com um pretexto daqui, outro dali, mas no fundo por um único motivo: ele acha, ou foi convencido de que ali só tinha esquerdista.

A TV Escola, porém, não era de esquerda e era muito importante para divulgação de métodos, técnicas e informações relevantes para um nicho específico: professores e estudantes. Com o perfil institucional, não seria justo exigir que competisse com TVs comerciais, mas tinha boa audiência, maior do que a TV Câmara e a TV Senado.

Agora, não se sabe o que é pior: fechar a TV Escola pura e simplesmente ou transformá-la num instrumento de propagação em massa de ideologias conservadoras e virulentas. Ela não era de esquerda, mas pode vir a ser de extrema direita.


José Eduardo Faria: Redes sociais e democracia

Que a internet transformou os padrões comportamentais seguido pela sociedade, isso não é novidade. O problema é saber se o impacto dessas transformações na vida política foi bom, aprofundando a democracia, ou mal, corroendo-a. Quando a internet surgiu, a organização horizontal e descentralizada das redes sociais foi vista como um avanço rumo a uma democracia direta digital, com base em consultas populares eletrônicas. O tempo, contudo, deixou claro que as redes sociais têm corroído a democracia representativa baseada no sufrágio universal e no mandato eletivo, levando à perda da capacidade dos governos sobre os processos sociais. Em que medida o poder das tecnologias digitais está se sobrepondo à ação política e qual é a legitimidade desse poder?

A questão surgiu no contexto das transformações ocorridas nas décadas finais do século 20. Uma foi a revolução econômica, que ampliou a autonomia do capital com relação aos poderes políticos. Outra foi a revolução sociológica, pois os novos métodos de produção desestruturaram o mundo do trabalho e, por consequência, a composição social do operariado e da burguesia. Uma terceira revolução foi a tecnológica, que propiciou comunicação em tempo real e a formação de redes sociais. A quarta foi a política, com o enfraquecimento de muitos Estados nacionais frente à hegemonia de poderes transnacionais. A quinta revolução foi a cultural, que reconfigurou os horizontes de vida dos cidadãos e gerou conflitos de identidade, radicalizando disputas e tornando determinados conflitos não negociáveis.

Nesse contexto, as possibilidades democratizadoras das redes sociais foram recebidas como uma forma de superar os vícios da representação política. Décadas depois, o otimismo cedeu vez ao pessimismo, à medida que foi ficando claro o potencial disruptivo das novas tecnologias de informação. A comunicação em tempo real introduziu uma lógica de curto prazo e substituiu a formulação de políticas públicas por agitação, marketing e improviso. Ideias, promessas, projetos e alianças passaram a ser corroídas rapidamente. Em vez de ajudar a moldar o futuro, as redes sociais propiciaram movimentos de adaptação constante. Em vez de viabilizar a formação de um consenso em torno de um projeto de nação, reduziram as discussões a um moralismo fundado em pautas simplificadoras para julgar cidadãos.

Na sociedade digitalizada, tudo funciona a partir de mensagens e discursos que acenam com uma rejeição generalizada ao estado de coisas, prometendo soluções e redenções pela descontinuidade e ruptura. A mobilização por meio de redes sociais possibilita vetos e protestos. Mas não o labor argumentativo nem a construção de acordos com base num debate livre e crítico e a consecução de compromissos cívicos. O que é absurdo na democracia representativa, como ameaças de retaliação a anunciantes nos meios de comunicação, na democracia digital torna-se algo normal ou comum.

Apesar do contínuo fluxo de informações sem filtros na chamada ciberesfera, poucos são os cidadãos capazes de processá-las com precisão. Sem informações verazes sobre o que políticos estão fazendo, torna-se difícil para os cidadãos exercer com responsabilidade o direito de voto. Com isso, em vez de se ter na vida política uma diversidade de fatores que esclareçam os acontecimentos e permitam situar partidos e eleitos diante de suas respectivas responsabilidades, o jogo político é reduzido à busca de culpados e às explosões verbais de populistas, moralistas e aventureiros, cujo desprezo às instituições tende a crescer quanto maior é a receptividade de suas falas na opinião pública.

Por causa da disseminação massiva de intrigas, mentiras, insultos e difamações, esse jogo acaba sendo instrumentalizado por quem faz do discurso antissistema uma forma perversa de ação política. Por consequência, quanto menos representatividade têm os atores tradicionais, como partidos, sindicatos e imprensa convencional, maior é a assimetria de conhecimento e poder. Mais vulnerável a fica a sociedade a toda forma de inconsequência e insensatez. E maior é o espaço deixado a demagogos, militantes ideológicos e bonapartistas, o que abre caminho para rumos perigosos.

A política é um modo de obter, pelo diálogo, as condições mínimas de articulação de regras e procedimentos que, além de orientar de modo coerente o cotidiano da máquina pública, permite a definição de objetivos, o estabelecimento de prioridades e a elaboração de estratégias. É pela política que um Estado democrático pode ter, em momentos distintos, distintas funções adequadas a distintos objetivos. E, por sua natureza, essa negociação é complexa e lenta¬ – portanto, incompatível com a fluidez e a volatilidade inerentes ao tempo real da era digital. Por isso, é impossível entender a política fora de um quadro de referências normativas instituído pelo Estado. Além de ser um mecanismo de entendimento que acomoda divergências e compõe soluções, a democracia pressupõe a delimitação de direitos e deveres.

Por isso, também, é difícil estimar como suportará a tensão entre interesse público de médio e longo prazo, definido por mediações democráticas, e interesses privados imediatistas, que mudam ao sabor dos ventos. Ainda que seja difícil saber o que vai acontecer com a política, uma coisa é certa: ao propiciar fluxos contínuos de todo tipo de informações, sem que ninguém se apresente como responsável por muitas delas, transformações na tecnologia de comunicações configuram um processo que a democracia representativa não tem conseguido controlar. O que coloca em risco a liberdade à medida que avançam, em velocidade digital, a demagogia e o autoritarismo.

*José Eduardo Faria é jornalista, professor titular da Faculdade de Direito da USP e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP.