O Estado de S. Paulo

José Pastore: A classe média está espremida

As tecnologias modernas têm criado no mundo poucos espaços para a ascensão dos profissionais na pirâmide social

Nos últimos anos, além de substituir os trabalhos mais simples (de rotina), as novas tecnologias começaram a realizar muitas tarefas dos profissionais de classe média. Para eles, a educação convencional deixou de ser um passaporte para a ascensão social. Apesar de escolarizados, eles passaram a descer na escala social por não conseguirem entrar nas poucas e concorridas profissões sofisticadas de status mais alto.

O resultado final desse processo é a polarização do mercado de trabalho. As tecnologias modernas abrem espaços para poucas pessoas subirem na pirâmide social e fazem encolher as profissões de classe média. Ao fim, muitos profissionais são forçados a descer.

Nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 1 em cada 6 profissionais de classe média está tendo a sua profissão eliminada pelas novas tecnologias. É um fenômeno que atinge liberais, técnicos em várias áreas, chefes, supervisores e outros. A maioria desce na escala social. Os que ainda resistem correm o risco de descer nos próximos anos (OECD, Under pressure: the squeezed middle class, Paris: OECD, 2019).

Em pleno século 21, diz a OCDE, “o elevador social quebrou” (OECD, A broken social elevator, Paris: OECD, 2018). É o reverso do que ocorreu na segunda metade do século 20.

A polarização no mercado de trabalho agrava a desigualdade de renda. Os salários têm crescido menos do que a produtividade do trabalho. Para ser mais preciso, os salários têm aumentado no topo (para poucos), mas não no meio e na base da pirâmide social.

A redução das oportunidades da classe média tem sido contornada com os trabalhos atípicos, casuais, intermitentes, à distância, em tempo parcial e outros da economia dos aplicativos (gig economy) que não garantem o nível e a estabilidade de renda que as pessoas tinham quando eram de classe média. Para ver isso no Brasil, basta conversar com um motorista de Uber que é engenheiro e trabalhou até há pouco tempo como supervisor de produção industrial.

Nos primeiros estudos que fiz sobre mobilidade social no Brasil, cobrindo o período de 1940-1970, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) registraram uma enorme ascensão social entre pais e filhos. Uma parte decorria da migração rural para urbana. Outra, das pessoas que subiam na escala social ao entrarem em cargos de status mais alto nas empresas do novo surto industrial, nas multinacionais, nas estatais e no sistema financeiro que se expandiram no período de 1950-1970.

O quadro atual é bem diferente. Como no resto do mundo, a classe média brasileira está espremida. Entre os seus filhos adultos, poucos chegaram à posição de seus pais. A maioria não tem a menor perspectiva de ultrapassá-los. Para eles, a ascensão social está cada vez mais distante. Será o novo normal?

A compressão da classe média gera muita frustração e explica parte dos movimentos sociais que ocorrem em quase todo o mundo.

Por trás dos motivos alegados está o desânimo de quem vê sua situação social estagnada e longe de melhorar. Com o agravante de que as redes sociais fazem todos se sentirem mal ao mesmo tempo.

Penso que um estudo sobre mobilidade social nos dias atuais mostrará o reverso do que foi o Brasil da segunda metade do século 20. O mesmo ocorre nos países onde os movimentos sociais propelem os governos populistas. É o lado inconsistente da modernidade. As pessoas não se conformam em descer na escala social enquanto o setor produtivo progride e ganha eficiência. Compreender as mudanças estruturais do mercado de trabalho é o maior desafio para os governos e os cientistas sociais da atualidade.

*Professor da Fea-USP, membro da Academia Paulista de Letras, é presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP


William Waack: A oportunidade

Uma onda política sem precedentes abriu uma janela histórica

A década foi curta, parafraseando título famoso de livro de Eric Hobsbawm. Começou com a vitória do “dedaço” de Lula em 2010 (a primeira eleição de Dilma) e terminou com a onda disruptiva de 2018. Destaco essa onda, e seu resultado eleitoral, como o principal fato do período, sabendo muito bem que é impossível tomá-lo de forma isolada (mas nosso editor de Política, o Eduardo Kattah, disse que os colunistas só poderiam destacar um fato).

Ela alterou os rumos da política, destruiu figuras consolidadas, encerrou um período de capitalismo de Estado que produziu resultados catastróficos do ponto de vista econômico – mas, sobretudo, moral –, destruiu por período ainda imprevisível o chamado “centro” do eleitorado político, alterou o funcionamento do sistema de governo (com o Legislativo encurtando as prerrogativas do Executivo). Por último, expôs à sociedade o severo desafio que uma geração (a partir de 1988) não conseguiu enfrentar de forma satisfatória: o de diminuir a desigualdade, aumentar a prosperidade e encurtar a diferença que separa o País das economias mais avançadas.

A natureza da onda é disruptiva, pois afetou a credibilidade de instituições centrais para o funcionamento da política nacional, e não foram só lideranças ou partidos estabelecidos. A onda disruptiva mexeu com fundamentos do estado de direito, como está demonstrado no embate entre setores do STF e a Lava Jato. Colocou o País diante de uma encruzilhada complexa, que é definir quem, no fim das contas, estabelece o controle sobre a esfera da política. Jogou suas elites econômicas que se dizem “liberais” nas ideias diante da tarefa de que modelo adotar de funcionamento do Estado e suas decisões.

A onda arrasou a credibilidade de setores importantes da mídia, especialmente grandes grupos de comunicações. Acentuou pelas redes sociais o comportamento “tribal” de vastos segmentos da sociedade, demonstrando que a moderna tecnologia de informação não é sinônimo automático de “avanço” ou “progresso”. As redes, ao mesmo tempo causa e efeito, tornaram ainda mais fechadas e excludentes as “tribos” políticas ou culturais que hoje nem sequer conseguem concordar sobre fatos, ou se dispõem a admitir fatos que não combinem com o que já pensam.

Ela tem menos o caráter de “revolução conservadora” do que alguns de seus principais beneficiados (começando por Jair Bolsonaro) gostariam. Na sua essência, ela traduziu uma enorme indignação e insatisfação populares com um “sistema” entendido como contrário a qualquer um que é honesto, trabalha e se esforça. Partes integrantes do “sistema”, nessa percepção bastante disseminada, são imprensa, políticos, partidos, Legislativo, impostos exagerados e incompreensíveis, um conjunto sufocante de leis e regulamentos.

A mesma onda expôs a difícil encruzilhada a que chegou o Brasil, país que se tornou velho antes de ficar rico. Falhou nossa tentativa de construir um Estado de bem-estar social apoiado em crescentes gastos públicos, que nem sequer uma carga tributária inédita entre economias de países comparáveis consegue sustentar. E expôs a necessidade de as elites pensantes encararem outra questão desagradável: qual a razão da nossa produtividade permanecer tão baixa durante tanto tempo?

Essa onda ocorreu também por causa de um fenômeno positivo de engajamento político de vastas camadas da sociedade. Há não só um interesse inédito do público por política, mas uma crescente percepção de que a dedicação à política traz resultados e mudanças, ainda que seja notória a frustração com a velocidade com que as transformações ocorrem. A onda disruptiva abriu uma janela histórica de oportunidade.

Quem sabe ela também reforçará a noção de que a realização dessa oportunidade não é automática, e só depende de nós.


José Serra: Presidencialismo de colisão x parlamentarismo

Precisamos alcançar, nos termos da Constituição, caminhos para enfrentar crises conjunturais

Os recorrentes embates entre o Executivo e o Congresso representam uma generosa fonte de incentivos para a reflexão sobre a mudança do sistema de governo em nosso país. Os exemplos desses embates são numerosos e não estão circunscritos aos mandatos atuais.

Tudo começa com a falta de entendimento entre o Executivo e os parlamentares que apresentam proposições para a solução de problemas nas mais diferentes áreas, que acabam sendo atropeladas por recursos que o governo utiliza heterodoxamente com o propósito de formar maioria. É esta maioria que lhe permite dar curso a seus projetos ou amenizar a fiscalização que poderia e deveria sofrer.

Nesse contexto, as saídas propostas pela sociedade (impeachment, por exemplo) para contornar as ondas de perda de credibilidade que recaem sobre o presidente tendem a transformar o nosso sistema de governo num verdadeiro presidencialismo de colisão. Penalizando o País, como trava ao nosso desenvolvimento.

Para a opinião pública, passamos a impressão de que nos dedicamos mais a aparar as arestas políticas do dia a dia do que a dar retorno positivo aos que depositaram em nós a confiança para resolver as dificuldades econômicas e sociais.

O parlamentarismo é uma convicção que carrego desde a época da Constituinte, partindo de um argumento fundamental: a necessidade de participação mais efetiva e responsável do Congresso na definição, implantação e controle das políticas governamentais. O presidencialismo favorece a situação oposta: a grande concentração do poder de decisão nas mãos do Executivo leva o Parlamento a sentir-se pouco comprometido, flertando constantemente com a polarização.

Há quem acredite que a nossa democracia esteja em perigo, que estamos andando no fio da navalha entre o seu enfraquecimento e o risco do autoritarismo. Não penso assim, mas acredito, não é de hoje, que o modelo presidencialista esteja desgastado e que precisamos voltar a cogitar o parlamentarismo.

Um parlamentarismo sem subterfúgios, sem meias palavras, que fortalecerá o chefe do Poder Executivo, seus ministros e o seu programa de governo.

No presidencialismo, o Parlamento se fortalece na razão direta do enfraquecimento do governo. No parlamentarismo, aumenta a chance de uma aliança política positiva Executivo/Legislativo, que proporcione um governo mais forte.

O parlamentarismo permite mudanças na equipe e no programa de governo sem traumas institucionais. Abre caminho, igualmente, para coalizões governamentais baseadas em programas, e não em puras adesões em troca de favores.

Oportuno enfatizar que uma condição essencial para o pleno funcionamento do parlamentarismo reside na possibilidade de o presidente, em face de impasses que impeçam a definição de maioria parlamentar estável, dissolver a Câmara e convocar novas eleições. O sistema favorece, a médio prazo, as condições de governabilidade no país, abaladas em momentos de crise.

O Brasil viveu, desde a promulgação da Constituição, momentos dignos de registro. Consolidamos a democracia política, que tem na Carta sua guardiã mais efetiva, e, apesar dos muitos percalços, estabelecemos as bases de uma economia fundada numa moeda consistente e sólida. Mas precisamos alcançar, nos termos constitucionais, mediante amplo entendimento político, os caminhos para o enfrentamento de crises conjunturais. Abrindo a oportunidade para um avanço que respeite a história e a cultura do povo brasileiro.

Diz-se, com frequência, que o parlamentarismo é apresentado como uma panaceia toda vez que o País passa por alguma crise política ou de governabilidade, mas que os problemas de crescimento econômico, inflação, salários, emprego, desenvolvimento e, sobretudo, de injustiça social não serão resolvidos pelo sistema de governo. A meu ver, não se trata de criar ou recriar panaceias, mas de encontrar uma forma de governo que aumente as possibilidades de os problemas nacionais serem mais bem enfrentados e equacionados.

É, também, corriqueira a crítica de que, no parlamentarismo, o fisiologismo e a cooptação exercerão de forma plena e livre sua influência negativa no processo político brasileiro. Esse é um argumento equivocado, que tem como ponto mais fraco o fato de ignorar que, num sistema parlamentarista, o Congresso passa a ser corresponsável pelas decisões do Executivo, aprovando os programas de governo e a composição do próprio gabinete. Estas atribuições constituem um poderoso fator para atenuar os vícios e reforçar as qualidades do Parlamento. Sem um Congresso forte e responsável, a democracia sempre sairá perdendo.

Arraigar-se na máxima de que no Brasil o presidencialismo é o sistema de governo que tem tradição, por ter cruzado toda a história da República, e que ao parlamentarismo falta condição semelhante é opor-se, como princípio, a todas as possibilidades de mudanças institucionais significativas, sugerindo que elas sempre conduzirão ao desconhecido. Mas esse desconhecido e os horrores que comporta não são, contudo, explicitados.

Ficar preso à ideia de que o presidencialismo é bom, mas o presidente em exercício, seja quem for, é que não é bom é imaginar que as crises políticas e econômicas às quais o Brasil está sujeito podem ser separadas do sistema de governo que as envolve.

Defendo o parlamentarismo porque acredito que é possível e necessário um Poder Executivo mais forte. Quando digo isso, evidentemente, não estou falando num Executivo repressor dos direitos individuais ou sociais, ou que tenha força para oprimir o Legislativo. Penso exclusivamente num governo com capacidade para definir e implementar políticas públicas de forma mais coerente, persistente, que tenham como resultado concreto o crescimento e o desenvolvimento do Brasil. Penso na eficácia, na legitimidade e na flexibilidade do sistema de governo, num contexto democrático cada vez mais fortalecido.

* Senador (PSDB-SP)


Pedro Fernando Nery: Natal na miséria

Desde 2016, o mercado de trabalho adicionou mais de 4 milhões de vagas, pelos últimos números da Pnad

O fim do ano é de otimismo com números da economia. O último relatório Focus, divulgado ontem pelo Banco Central, trouxe novas revisões para cima na expectativa do PIB: próximo a 1,2% para 2019 e, mais importante, subindo a 2,3% no ano que vem. A Bolsa tem quebrado sucessivos recordes – ultrapassando os 115 mil pontos na semana passada – e a valorização do Ibovespa é superior a 30% no ano. A consolidação da recuperação econômica, porém, esconde um resultado: a pobreza teima em não ceder. Para os brasileiros mais pobres, a recessão parece não ter acabado.

Desde 2016, o mercado de trabalho adicionou mais de 4 milhões de vagas, pelos últimos números da Pnad. O orçamento da Seguridade Social é recorde ano após ano. Mas a melhora do mercado de trabalho e o gasto social recorde, que é puxado pela Previdência, não impediu o aumento da extrema pobreza. Os mais pobres seguiram perdendo renda até 2018. E dados recentes sugerem que a situação pode não ter se alterado este ano. Seria uma recessão invisível.

Dois novos estudos jogam luz sobre a “recessão invisível”. A última carta de conjuntura do Ipea divide os brasileiros em seis faixas de rendimento. O estudo monitora não apenas a evolução do rendimento dessas faixas pela Pnad ao longo do ano, mas também a inflação que incide sobre cada grupo. E mostra que a faixa mais pobre teve perda real nos 2.º e 3.º trimestres deste ano. Os ganhos de rendimento em 2019 teriam se concentrado em altas expressivas nas faixas de renda média e média-baixa. A carta é assinada pelos pesquisadores Maria Andreia Lameiras, Carlos Henrique Courseil, Lauro Ramos e Sandro Sacchet, e a discrepância foi divulgada por Carlos Madeiro, do UOL.

O resultado é preocupante quando se considera a evolução da extrema pobreza. Em novembro, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais de 2018: apesar da recuperação, a extrema pobreza cresce desde 2014 (ainda que menos a cada ano). Pela linha de extrema pobreza do Banco Mundial, seriam 6,5% dos brasileiros. Estudo de Rogério Barbosa (USP), Pedro Souza e Sergei Soares (Ipea) indica que o crescimento dos últimos anos foi “pró-rico”: parcelas mais pobres da população não se beneficiaram da retomada.

Há razão para classificar de recessão invisível essa perda de renda dos grupos mais excluídos. Não apenas ela pouco chama a atenção da opinião pública, como pesa pouco na medida do PIB, agregada, quase indiferente à variação da renda de quem tem pouca renda.

No cálculo dos pesquisadores, se o crescimento entre 2015 e 2018 tivesse sido distribuído de forma igual na população, a taxa de pobreza extrema teria caído 0,25 ponto porcentual. Como sabemos, a taxa aumentou (em 1,6 ponto porcentual).

O programa mais bem posicionado para evitar o aumento da extrema pobreza é o Bolsa Família, que não foi reforçado nos últimos anos. Em 2019, voltou a ter fila de espera.

O Congresso Nacional tem reagido. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou no início do mês a PEC 200, de Tabata Amaral, apoiada por 23 de 25 líderes da Casa. O esforço integra a chamada Agenda para o Desenvolvimento Social, que, entre outras medidas, constitucionaliza o Bolsa Família e amplia em R$ 9 bilhões o orçamento do programa. Quem acha a constitucionalização desnecessária está convidado a refletir se faz sentido haver fila para o programa (miseráveis com direito, mas que não conseguem receber) após pelo menos quatro anos de aumento da extrema pobreza e em um 2019 em que a economia cresce.

Atores usualmente hiperativos como a Defensoria Pública e o Ministério Público mostram lamentável insulamento diante dos cortes no Bolsa e da fila.

Já o Senado aprovou ainda em novembro a PEC paralela, que unifica o Bolsa com outras políticas e cria o Benefício Universal Infantil (BUI). Nunca é demais lembrar que são crianças as principais beneficiárias do Bolsa Família e as principais vítimas da pobreza.

Também é sempre oportuno destacar que a evidência científica é de que o programa não altera de forma relevante a fecundidade ou a disposição de trabalhar dos pais. Ao alcançar as crianças miseráveis que não escolheram onde nascer, o BUI teria efeito poderoso no combate à pobreza e à extrema pobreza.

Tanto o BUI quanto a Agenda para o Desenvolvimento Social custam pouco e cabem no teto de gastos, especialmente após a aprovação da reforma da Previdência e se a PEC emergencial – que foca o ajuste fiscal no funcionalismo – for adiante.

Há boas notícias na economia. Mas é doloroso constatar que o Natal ainda será na miséria para milhões de famílias e crianças, mais do que anos atrás. Nesse contexto, foi de tremenda infelicidade a manifestação do ministro responsável pela área, na semana passada, sobre a noite de hoje. Tuitou: “Lição de vida da saudosa Hebe: ‘O que te engorda não é o que você come entre o Natal e o ano-novo, mas o que você come entre o ano-novo e o Natal!’”.

*Doutor em economia


Rubens Barbosa: Bioeconomia e a Zona Franca de Manaus

Não se pode mais adiar a discussão da mudança de foco nas políticas públicas da região

O tema do meio ambiente entrou definitivamente na agenda global. E mais cedo ou mais tarde voltará a ser uma prioridade para o governo brasileiro, por realismo político e por razões pragmáticas.

Diante das atitudes do atual governo, são crescentes as ameaças de prejuízo para o setor do agronegócio pela possibilidade de boicote de consumidores e pela crescente influência da política ambiental sobre as negociações comerciais. A atuação na defesa dos legítimos interesses do setor está levando as associações das diferentes áreas e a frente parlamentar da agropecuária a defender mais atenção aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nos acordos assinados desde 1992 e, sobretudo, uma atenuação da retórica governamental e uma correção de rumo de algumas políticas anunciadas pelo governo.

As percepções críticas no exterior têm como foco a Amazônia. Recentemente, as queimadas e o desmatamento foram alvo de manifestações no mundo todo. Informações distorcidas e meias verdades se misturaram a fatos, ampliando as consequências negativas para nossos interesses comerciais e políticos. As diferenças quanto à gestão do Fundo Amazônico puseram em risco a cooperação internacional com Alemanha e Noruega.

Não estão em questão a soberania e a capacidade do governo de determinar as políticas para a região. As recentes manifestações no mundo inteiro, sobretudo de jovens, para sensibilizar os governos a tomar medidas que evitem as grandes alterações no clima com o aumento da temperatura no planeta, incluem a preocupação com a preservação da Floresta Amazônica.

No Brasil, nos últimos 50 anos, houve uma política declarada dos governos para integrar a Amazônia e gerar emprego para a população que habita a região. Uma das mais relevantes foi a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), no final dos anos 60. Com subsídios anuais do governo federal que sobem atualmente a cerca de R$ 25 bilhões, a ZFM nunca se voltou para o maior potencial da Amazônia: a floresta e a biodiversidade.

Sujeita a muitos questionamentos quanto a seus resultados em relação à preservação da floresta, ao custo/benefício das isenções e incentivos fiscais, estão surgindo algumas ideias que merecem ser examinadas. Todas vão na linha da defesa do interesse brasileiro ao defender a biodiversidade da região.

O Instituto Escolhas, sob a coordenação de Sergio Leitão (www.escolhas.org), apresentou proposta de uma nova economia para o Amazonas: a Zona Franca de Manaus e a bioeconomia. A proposta sugere um novo modelo de desenvolvimento sustentável com estímulos aos investimentos, diversificação das atividades econômicas e dinamização do parque industrial com o objetivo de integrar a ZFM com a vocação natural da região à inovação tecnológica e ao uso da biodiversidade amazônica - a bioeconomia.

Para a preservação da floresta e a interiorização do desenvolvimento e do consumo, foram definidas algumas diretrizes: desenvolvimento científico e tecnológico, com foco em inovação; uso do potencial da biodiversidade de modo sustentável; descentralização econômica e geração de ganhos sociais e ambientais; dinamização do polo industrial de Manaus e de seu modelo atual.

Com investimentos públicos e privados de R$ 7,15 bilhões ao longo de dez anos - oriundos de concessões, parcerias público-privadas e outras -, a geração de empregos diretos e indiretos no Amazonas poderia chegar a 218 mil vagas. Só durante as obras de infraestrutura seriam gerados 12 mil empregos.

Não podem mais ser adiadas a discussão sobre uma mudança de foco nas atuais políticas públicas da ZFM e em todo o Amazonas e a definição de uma política de estímulos aos investimentos na região com o objetivo de alavancar o desenvolvimento tecnológico, produtivo, industrial e social com foco em pesquisa e desenvolvimento tripartite - governo, empresas e academia.

A geração de inovação partiria do uso de matérias-primas existentes nas diversas regiões do Estado, com ênfase nos insumos de biodiversidade. Para suscitar exportações e internacionalizar os negócios, as empresas deveriam estar capacitadas a ser competitivas para garantir a integração às cadeias globais produtivas de valor.

A análise desses elementos resultou na identificação de quatro eixos de oportunidades: bioeconomia, polo de economia da transformação digital, ecoturismo e piscicultura.

Na bioeconomia, o estudo sugere a dinamização do Centro de Biotecnologia da Amazônia para se transformar num foco de excelência da floresta. Manaus poderia ser o primeiro hub de pesquisa em bioeconomia, integrado com os principais centros de pesquisa do mundo, com conhecimento específico sobre os ecossistemas de florestas tropicais. Poderiam ser desenvolvidas pesquisas para emprego de madeira tropical em escala industrial nos sistemas estruturais da construção civil, para emprego dos produtos da floresta nas indústrias da moda e têxteis, das fibras amazônicas na indústria automobilística e de plásticos verdes, dos produtos da biodiversidade na indústria de cosméticos, das plantas e insetos para food tech.

O polo de economia da transformação digital seria viabilizado pela criação de governança tripartite para estruturar ecossistemas de inovação em tecnologia, informação e comunicação.

O ecoturismo seria desenvolvido pela identificação de nichos de interesse para realização de ecoturismo científico.

Na piscicultura, sugere-se a dinamização do Centro de Biotecnologia da Amazônia com linhas de pesquisa sobre os peixes para seu emprego em escala industrial em food service e food premium, além do couro do peixe na indústria da moda.

O Ministério da Economia está estudando um plano para o desenvolvimento econômico da região com o objetivo de discutir o regime de incentivos fiscais da União, inclusive no contexto da reforma tributária. A proposta de associar a ZFM com a biodiversidade da Floresta Amazônica poderia inicialmente complementar as atividades industriais hoje existentes.

* Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior (IRICE)


Affonso Celso Pastore: Em defesa das agências reguladoras

Cabe às agências reguladoras independentes exercerem livremente o seu papel

Mais uma vez, o presidente da República demonstrou profundo desconhecimento sobre o papel e a importância das agências reguladoras ao reclamar do seu "excesso de independência". Nada mais errado!

Uma das condições fundamentais para elevar a produtividade total dos fatores e acelerar o crescimento econômico é investir pesadamente em infraestrutura, o que, diante de um governo sem recursos, somente pode ser feito pelo setor privado na forma de concessões. Quando o governo faz um leilão competitivo – no sentido que é aberto a empresas nacionais e estrangeiras, evitando a formação de um cartel –, e concede ao ganhador a construção e a administração de uma rodovia, uma ferrovia, um porto, um aeroporto, uma usina geradora de energia ou uma linha de transmissão, está também criando um “monopólio natural”. O concessionário daquele serviço passa a ser o único a oferecê-lo, e para ser tolhido na tentação de explorar seu “poder de mercado”, quer elevando as tarifas de forma a penalizar os usuários, quer negligenciando na qualidade do serviço prestado, tem de obedecer às regras e aos limites impostos por uma agência reguladora independente, que use critérios técnicos e econômicos para garantir a qualidade e o preço dos serviços.

No passado, na grande maioria dos países eram os governos que realizavam tais investimentos. Mas, com o tempo, o mundo foi aprendendo que – desde que bem regulado – o setor privado é muito mais eficiente do que o governo. Há extensas análises realizadas por economistas mostrando que as “falhas do governo” neste campo superam em muito as “falhas de mercado”, que no passado eram usadas como justificativa para que essa atividade fosse executada diretamente pelos governos (Megginson e Netter; From State to Market: A Survey of Empirical Studies on Privatization). Simultaneamente a teoria econômica foi evoluindo, criando o novo campo – a Teoria da Regulação – que atualmente é perfeitamente entendido por economistas, formuladores e executores de políticas públicas, e em cuja criação e desenvolvimento contou com a contribuição de Jan Tirole, que em 2014 ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos nesse campo.

Até recentemente, o Brasil vinha cometendo inúmeros erros no campo da regulação. Cito apenas dois exemplos. No afã de “exercer a sua autoridade” de presidente da República, Dilma Rousseff alterou as “regras do jogo” quando este ainda estava em andamento, quer no caso da renovação de concessões na transmissão de energia elétrica – através da MP 579 –, quer na fixação dos critérios relativos ao cálculo da receita de pedágio nas rodovias, quando eliminou a cobrança de pedágio sobre o eixo suspenso dos caminhões.

Introduziu, com isso, um “risco regulatório” contra o qual o setor privado teria de se defender elevando as tarifas de forma a produzir uma taxa de retorno que o compensasse, ou baixando a qualidade do serviço prestado. Mas a presidente Dilma foi além e, para “proteger” os consumidores de energia elétrica e os usuários das estradas, colocou um limite superior às taxas de retorno admitidas nos leilões, que nada tinham de competitivos, compensando o custo incorrido pelo vencedor do leilão com um subsídio nos empréstimos do BNDES, que era o único financiador possível naquelas condições. Tal volume de interferências criou enorme risco, afugentando os investimentos.

Que implicações essas decisões tiveram sobre as agências reguladoras? Uma de suas tarefas seria observar os dois lados da moeda na fixação das tarifas, o dos usuários e dos fornecedores do serviço. Para garantir que a remuneração aos investimentos fosse a mais benéfica para os usuários, teriam de garantir a ausência de um risco regulatório, o que significa que teriam de ser as agências, e não o presidente da República, que determinaria tanto as regras nas renovações das concessões na transmissão de energia quanto o que os concessionários de rodovias deveriam cobrar no pedágio. Seguidos critérios técnicos, decididos por agências reguladoras independentes, tais erros não teriam sido cometidos.

O presidente da República pode ter enorme contribuição ao bom funcionamento da economia garantindo a independência das agências reguladoras, impedindo que pressões políticas contaminem as suas decisões. Cabe às agências independentes exercerem livremente o seu papel.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


José Castello: Brasil real se parece com ficção

Este mundo em que o presente é engolido pelo pesadelo já nos foi anunciado por Verissimo, Loyola, Noll e Joca Terron, entre outros autores

Livros crescem com o avançar do tempo. Alguns se tornam espantosos. Já se passam quase 40 anos que Ignácio de Loyola Brandão publicou Não Verás País Nenhum (Global, 1981). O romance desenha uma impressionante distopia que antecipa, em traços medonhos, o futuro brasileiro. Lido hoje, e isso é assustador, ele não trata mais de um futuro longínquo, mas de algo muito parecido com nosso presente. As distopias guardam esse poder perverso: quanto mais o tempo passa, em vez de se dissolverem no passado, elas se agigantam e devoram a realidade. Afirmam-se não mais como pesadelos, mas como verdade.

O romance de Loyola, que antevê um Brasil dominado pelo fascínio autoritário, pela destruição da natureza, pela legalização da violência e pela reinvenção perversa da História, traça um retrato aterrorizante de nosso futuro não mais distante e improvável, mas imediato.

Uma década antes, em plena ditadura militar, José J. Veiga publicou Sombras de Reis Barbudos” (Companhia das Letras), narrativa em que a tirania e a violência se apresentam como benignas. Assim como em Não Verás País Nenhum, o presente é dominado por uma organização todo poderosa conhecida apenas como o “Esquema”. Veiga desenha um futuro em que noções de eficácia, vantagem e lucro atropelam todos os valores humanos e se impõem como única lei. Ideário que, mais uma vez, antecipa nossos tempos.

Um salto para a frente nos traz a narrativas não menos atordoantes. A Morte e o Meteoro (Todavia), novela de Joca Reiners Terron, reafirma, de modo agudo, tudo o que a ficção de Loyola anteviu. Já não estamos em nosso presente, mas dez ou vinte anos adiantados. A Amazônia está destruída. Uma última e frágil tribo indígena, sem a floresta que sempre a abrigou, e em uma operação ousada, pede asilo ao México. Os valores humanos foram jogados no lixo. O mundo se torna inóspito e a paranoia, real. Já não há mais para onde fugir. Até porque Terron vislumbra um desastre ainda maior, que destruirá todo o planeta.

Mas a devastação não é só exterior, é também interior, como anuncia, aos calafrios, A Estética da Indiferença (Iluminuras), romance de Sidney Rocha. Em um mundo irrespirável, só nos resta sobreviver em condomínios fechados, isolados da realidade, bolhas arquitetônicas que, se trazem a sensação de segurança, geram também um indisfarçável sentimento de morte. Michi e Ana, os dois protagonistas, refugiam-se em um falso Éden, que mais se parece com a gaveta de um necrotério. Para não morrer, morrem.

O passado e história – como hoje – já não lhes interessa mais. Escondem-se numa espécie voluntária de sonambulismo, tornam-se fantasmas ambulantes a exibir sua falsa felicidade. Em Cromane, a cidade em que vivem, “a luz é sempre teatral”. O mundo fake derrotou a realidade e tudo o que sobra é uma grande melancolia. O livro de Sidney Rocha faz uma síntese do que nos resta para viver: ou nos fingimos de vivos, ou desaparecemos. Mas isso é uma escolha?

Este mundo em que o presente é engolido pelo pesadelo já nos foi anunciado por João Gilberto Noll na novela Harmada (Companhia das Letras), de 1993. Quando o real desfalece e sobram apenas prenúncios de morte, só resta ao protagonista vaguear, perambular, saltar de um ambiente a outro – de um palco a outro, como um ator sem papel. Não mais buscando alguma coisa, porque nada mais há a buscar, e tampouco fugindo, porque não adianta mais fugir, mas só para conservar a sensação – vaga, trêmula – de existir. O outro não passa de um vulto, ou de um objeto quebrado. Afundamos na solidão.

Esse cenário de falência espiritual já se anuncia em um clássico infelizmente esquecido como Os Ratos, de Dyonélio Machado, de 1935, ou no ainda hoje estranho e quase inaceitável Noite (Companhia das Letras), relato breve e dissonante que Erico Veríssimo publicou em 1954. No romance de Dyonelio, a impossibilidade de um futuro se sintetiza em uma dívida miserável com um leiteiro. O protagonista Naziazeno, como tantos de nós hoje, vaga por uma sociedade adversa, que lhe bloqueia seus caminhos para as necessidades mais elementares e que o vê apenas como “mais um”.

Também em Noite, de Veríssimo, o protagonista, desfigurado por uma sociedade que o descartou, já não é, senão, um fantasma. Ele circula pela cidade sem ter muita certeza de seu caminho, já que tudo o que a realidade lhe oferece são traços esfumaçados e miragens inconvincentes. Nos dois relatos, agiganta-se o sentimento do vazio – que, no nosso ano de 2019, se converte em depressões, suicídios e ataques de pânico. Quando não, e cada vez mais, na violência brutal. Quando a realidade adoece, aprendemos hoje a duras penas, cada um de nós adoece também. O mal que Dyonélio e Veríssimo capturam na primeira metade do século passado se parece, cada vez mais, com o nosso mal. A distopia engole o real.

*É autor de ‘Ribamar’ (Bertrand Brasil)


Eliane Cantanhêde: Nervos à flor da pele

Nem tudo são espinhos para Bolsonaro, mas ele coleciona derrotas no STF e no Congresso

O presidente Jair Bolsonaro acusou o golpe ao atacar repórteres que meramente cumpriam sua função fazendo perguntas, até óbvias. Ficou evidente que a crise Flávio Bolsonaro mexeu com os seus nervos e, sem respostas, ele parte para ironias e grosserias. Esse, porém, é só um dos muitos problemas que desabam sobre a cabeça presidencial neste fim de ano.

Enquanto as revelações sobre o filho “01” borbulham no Rio de Janeiro, Bolsonaro vai colhendo más notícias ora do Supremo, ora do Congresso, e a relação entre ele e o deputado Rodrigo Maia, que nunca esteve às mil maravilhas, parece ir de mal a pior.

O mais ameaçador para Bolsonaro é o volume de informações que envolvem Flávio com funcionários fantasmas, desvio de salários do gabinete, ligações com líderes de milícias, lavagem de dinheiro em compra de loja e de apartamentos. Mas não é só isso.

Nesses derradeiros dias até 2020, o STF, que reativou as investigações do MP contra Flávio e Queiroz, reuniu também maioria para derrubar a proposta de Bolsonaro de acabar com o DPVAT, um seguro fundamental que no ano passado atendeu a quase 330 mil vítimas do trânsito ou suas famílias.

Isso remete a projetos, digamos, pessoais de Bolsonaro que foram bombardeados pela opinião pública e por especialistas e acabaram derrotadas ou esquecidos no Legislativo. O caso mais vistoso é o das armas, o primeiro projeto que Bolsonaro enviou orgulhosamente ao Congresso. Mas há outros.

São todos surpreendentes, como o que acaba com a obrigatoriedade de cadeirinhas para crianças em carros, o que suspende os radares móveis nas estradas, o que elimina dezenas de conselhos de diferentes áreas, como Educação. Pelas estatísticas nacionais e internacionais, cadeirinhas e radares salvam vidas e evitam sequelas graves. E o que falar de conselhos? São para contrapor ideias e chegar às melhores propostas.

O Congresso também engavetou o “excludente de ilicitude”, apelidado de “licença para matar” dada a policiais, e já há dois novos atritos com Bolsonaro, o fundo eleitoral e a recriação da CPMF, ops!, a criação de um imposto que não é a CPMF, mas é tão parecido que virou “CPMF digital”. Para Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, a chance de passar é praticamente zero.

Se havia dúvidas, o motivo veio no meio da pesquisa CNI/Ibope que captou o aumento da desaprovação e da desconfiança em relação ao presidente. A área mais mal avaliada foi a dos impostos. É claro que a culpa não é de Bolsonaro, mas a sociedade avisa que não aceita pagar mais impostos. O Congresso já tinha entendido o recado.

E Maia foi irônico ao avisar que, se o presidente vetar a proposta que ele próprio enviou ao Congresso, de um fundo eleitoral de R$ 2 bilhões para 2020, ok, ele pode vetar, mas o Congresso também pode derrubar o veto. Guerra é guerra.

Mas nem tudo são espinhos para o presidente. Os juros estão no seu menor patamar histórico, a inflação nem faz cosquinha, a geração de empregos vem melhorando e a previsão de crescimento voltou a subir, depois de despencar no meio do ano.

Last but not least, Bolsonaro espalha que Donald Trump “desistiu” de sobretaxar o aço brasileiro depois de 15 minutos de conversa com ele, mas aqui vai um bom bastidor: desde o início, Buenos Aires e Brasília receberam sinais de Washington de que a ameaça de Trump não era para valer. Era só uma “trumpada” para inglês, ou melhor, americano ver.

O problema é que, se os fatos não correspondem às versões, danem-se os fatos. E Bolsonaro não vai desperdiçar a sua versão, que vem bem a calhar para melhorar seu humor e desviar as atenções de MP, Flávio, Queiroz, milícia, “rachadinha”. Os produtores de aço agradecem, o presidente solta fogos.


Vera Magalhães: Bombons de Bolsonaro

Caso Flávio explicita todos os vícios de um ano de governo

As revelações espantosas do Ministério Público do Rio de Janeiro explicitam todos os vícios da carreira de Jair Bolsonaro, apontados pela imprensa desde a campanha, mas ignorados pelo eleitorado, e também os de seu primeiro ano de mandato, igualmente assinalados pelo jornalismo profissional, já aceitos por uma parcela do mesmo eleitorado, mas ignorados (até aqui) pelo núcleo duro da militância bolsonarista e por setores da elite liberal. Vamos a eles, em pequenos bombons:

1. Bolsonaro nunca foi baluarte anticorrupção.

Trata-se de uma construção recente essa do Bolsonaro lavajatista. Em sua carreira, o deputado do baixo clero sempre esteve mais voltado às pautas corporativas, a fazer da política um negócio em família e a chocar com opiniões ofensivas que em combater a corrupção. Nunca integrou nenhuma CPI. Nunca foi do Conselho de Ética. Sempre criticou o Ministério Público. E, agora se sabe, praticou aquilo que sempre condenou na “velha política”.

2. Misturar política e família não tem nada de nova política.

Os Bolsonaro se instalaram no poder sem nenhuma cerimônia. Na campanha, os filhos deram as cartas. Na posse, Carluxo se aboletou de carona no Rolls-Royce, numa das cenas mais emblemáticas desta era. Bolsonaro disse que daria o “filé” aos filhos, que um podia ser ministro e outro, embaixador em Washington. Juntos, os quatro amealharam patrimônio milionário tendo sido só políticos na vida. E, agora se apura, muito desse patrimônio pode ter vindo da prática de “rachadinha” e da existência de funcionários fantasmas. A imprensa mostrou na campanha. O eleitor fechou os olhos deliberadamente.

3. Decoro e liturgia do cargo importam.

O presidente, com o filho pilhado num escândalo que mistura laranja com chocolate, se descontrolou na frente do Alvorada. Em sua tradicional “paradinha”, em que fala de improviso a jornalistas com a claque de apoiadores, ofendeu repórteres e passou um recibo ao vivo, pelas redes sociais, de que o caso assombra o clã. Ao presidente da República cabe prestar contas, e não dar piti. Comunicação improvisada dá nisso, como sempre alertaram aqueles que têm bom senso. Apelar à comunicação direta como forma de populismo pode parecer boa ideia aos filhos idólatras e aos puxa-sacos aboletados em cargos públicos, mas expõe o governante. Bolsonaro sem filtro é isso aí.

4. Paranoia e mania de perseguição são passaporte para o autoritarismo.

Um presidente que não se vexa em acusar um ex-ministro, sem nenhuma evidência possível, de integrar um complô para matá-lo, não tem mais nenhum compromisso com os fatos e com as obrigações que o cargo lhe impõe. Está, portanto, a um passo de se mostrar disposto a tudo no combate a inimigos imaginários cada vez mais abundantes e espalhados. Cabe às instituições, como venho repetindo aqui e não me cansarei de lembrar quantas vezes precisar, dar um freio aos ímpetos persecutórios e claramente autoritários do presidente.

5. Relação com milícias coloca em xeque o discurso liberal de que a economia justifica tudo.

Na quarta-feira escrevi que, a despeito de ser um recordista de impopularidade, Bolsonaro seria favorito em 2022 se a economia seguisse crescendo, ainda que devagar. Eduardo, o 03, tirou onda, querendo desviar o foco do irmão chocolatier. Pois a impopularidade está confirmada, mas o favoritismo será fortemente abalado se o mito de pés de barro ficar nu, como já está ficando. Além de laranjal e rachadinha, o caso Flávio & Queiroz tem tudo para deixar ainda mais patente uma explosiva relação do clã com as milícias do Rio. Algo que será difícil até para a elite liberal, disposta a fechar os olhos para tudo em nome da agenda econômica, engolir.


José Botafogo Gonçalves: O papel do Brasil no mundo a partir de 2019

O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para fora com abertura comercial

O Brasil enfrenta hoje dois desafios de natureza econômica e política. O primeiro refere-se ao modelo de desenvolvimento econômico que garanta o crescimento anual do produto interno bruto (PIB) acima de 3,5%. O modelo de substituição de importações e protecionismo comercial e de crescimento para dentro, em vigor há sete décadas, esgotou-se em função de seu próprio sucesso. O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para fora conjugado com abertura comercial.

O desafio político implica definir os interesses prioritários do País no concerto das nações, à luz do neoisolacionismo norte-americano, da emergência da China como potência econômica, política, militar e de ambições imperiais, o esforço da Federação Russa de manter seu poderio na Europa do Leste e no Mediterrâneo Oriental. No momento, a diplomacia, a academia e a mídia têm elaborado cenários variados que buscam responder reativamente à pergunta de qual papel cabe ao Brasil diante dos conflitos, abertos ou latentes, entre esses grandes polos de poder mundial.

Nestas notas sugiro uma inversão de perspectiva. Busco sugerir uma política externa brasileira definida estrategicamente em função de suas fortalezas atuais e potenciais para então, como consequência, explicitar planos de ação concretos nas suas relações com os Estados Unidos da América, a China continental, a Rússia e outros polos regionais de poder como Índia, Indonésia e África subsaariana. Excluo intencionalmente a América do Sul desta enumeração por acreditar que este subcontinente, sob a liderança brasileira, deve constituir o campo de ação propositiva da nova política externa do País e não se sujeitar a ser meramente alvo de iniciativas políticas e econômicas vindas de fora da região.

Não se trata de inventar a roda. O Brasil pode desenhar um plano estratégico semelhante ao que Chu En-lai desenhou para a China com o objetivo de transformá-la numa grande potência combinando o crescimento fronteiras adentro com uma adequada inserção internacional. A partir de 1950 o Brasil também havia decidido se transformar numa potência combinando o crescimento fronteiras adentro com um protecionismo comercial, autárquico e fortemente subsidiado pelo Tesouro Nacional. Entre os séculos 20 e 21 a China tomou carona na onda de globalização e rapidamente colocou a indústria chinesa se integrando às cadeias globais de valor. O Brasil, diferentemente, ensaiou um tímido programa de inserção de sua indústria nas cadeias regionais de seus sócios do Mercosul e manteve uma visão autárquica e protecionista em relação ao resto do mundo, seja o desenvolvido, seja o em desenvolvimento.

Segundo a revista The Economist, a globalização está sendo substituída pela “slowbalisation”, em que a integração de cadeias regionais de valor ganham uma sobrevida. É nesse contexto que se abre uma grande oportunidade para o Brasil almejar transformar-se num polo regional de crescimento econômico e de importância política, por meio de um ambicioso programa de revisão conceitual dos objetivos integracionistas do Mercosul, acoplado, também, a um igualmente ambicioso programa de negociação com a Aliança do Pacífico, com a Bolívia e o Equador e, quando possível, com a Venezuela.

Considerando que as barreiras tarifárias já quase se extinguiram nesse grupo alargado de países, os principais objetivos das negociações comerciais devem estar concentrados nos campos das restrições não tarifárias, dos obstáculos burocráticos no comércio transfronteiriço e no vasto campo das políticas regulatórias que tornam viável o melhor aproveitamento das estruturas logísticas subcontinentais, das normas técnicas até os diversos modais de transporte transfronteiras. A geografia subcontinental oferece uma base sólida sobre a qual repousaria essa nova rede de acordos comerciais.

Em primeiríssimo lugar, a produção agropecuária e seu relevante papel na conservação de uma política mundial de segurança alimentar.

Em segundo lugar, as potencialidades já bem quantificadas da capacidade de produção e exportação de petróleo, gás natural e biocombustíveis.

Em terceiro lugar, o valor e o volume crescentes de produção de energias renováveis e limpas (água, sol e vento), ambos favorecendo a sustentabilidade das produções minerais e agrícolas e seu comércio internacional.

Finalmente, em quarto lugar, o enorme potencial atrativo para os capitais públicos e privados internacionais investirem na infraestrutura sub-regional que será requerida para dar vazão ao crescimento do comércio internacional, particularmente em direção aos mercados emergentes da Ásia do Leste e do Sudeste.

O potencial a que acabo de me referir no parágrafo precedente se encontra geograficamente situado na vertente atlântica da América do Sul. As terras férteis, as bacias hidrográficas com vocação exportadora, os grandes planaltos centrais com topografias adequadas ao uso de tratores e implementos agrícolas de última geração tecnológica, a abundância de subclimas que permitem que as terras tropicais, subtropicais ou temperadas produzam enorme variedade de grãos, frutas e pecuária de corte, todos são fatores que, bem aproveitados, dão suporte a um ambicioso programa subcontinental de produção de bens e serviços destinados aos mercados continentais ou extracontinentais.

Do ponto de vista geopolítico, parece promissor que as duas maiores economias atlânticas da América do Sul, Brasil e Argentina, tomem a si a decisão de aprofundar a já existente aliança estratégica e juntas lancem um programa de integração regional ofensivo, e não defensivo, aberto, e não protecionista, amigável para os capitais disponíveis num mundo desenvolvido, mas em encolhimento estrutural, fazendo com que o conceito de latino-americanidade, tão decantado em prosa e verso pelos nossos intelectuais ibéricos, se liberte da retórica poética e invada o universo das realidades políticas.

* Ex-embaixador do Brasil na Argentina


O Estado de S. Paulo: Na era da economia de baixo carbono, Brasil já tem 552 startups ambientais

Espalhados por todas as regiões, esses empreendedores atuam nos setores de gestão da água e de resíduos, agropecuária, energia, logística e mobilidade, e uso do solo e florestas

Nos corredores da Feria de Madrid, onde foi realizada a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) nas duas primeiras semanas do mês, enquanto diplomatas discutiam, sem muito sucesso, como avançar no combate ao aquecimento global, um grupo brasileiro mostrava que negócios inovadores estão avançando rapidamente. São as chamadas clean techs – startups que fazem negócios bons para o clima e trazem soluções com o objetivo nada modesto de tentar salvar o planeta.

Esse movimento vem crescendo no País e no mundo. Entre 2018 e 2019, somente o Instituto Climate Ventures, que ajuda a estruturar startups com esse propósito, mapeou 552 negócios no Brasil que rendem impacto positivo no clima, promovendo o que eles chamam de economia regenerativa e de baixo carbono. Espalhados por todas as regiões do País, atuam nos setores de gestão da água e de resíduos, agropecuária, energia, logística e mobilidade, e uso do solo e florestas.

Em novembro, na Climate LaunchPad, competição internacional de clean techs que ocorreu em Amsterdã, o Brasil foi o país com o segundo maior número de negócios inscritos – 155 –, perdendo só para a Índia, com quase 500. No total, participaram do evento 2.601 empreendedores de 53 países.

Alerta de inundação.
Nesse cenário, estão iniciativas que podem ocorrer tanto na pequena escala quanto trazendo soluções para setores inteiros. Uma delas, de São Paulo, é a Pluvi.on, que surgiu com o objetivo de tentar salvar as pessoas de áreas de risco de eventuais enchentes. Em um mundo cada vez mais aquecido, a ocorrência de eventos extremos, como chuvas rápidas e intensas, com potencial de inundação, será cada vez mais frequente.

Para ajudar em projetos de adaptação para esse problema, a ideia dos fundadores da Pluvi.on foi desenvolver um sistema mais localizado e aperfeiçoado de previsão do tempo. Hoje, eles já conseguem dizer com uma precisão de mais de 80% (contra os cerca de 70% dos sistemas convencionais) se vai chover ou não. E o plano é em alguns anos não só elevar essa precisão para mais de 90% como conseguir alertar bairros e comunidades que podem sofrer com inundações.

“Em eventos extremos, às vezes uma tempestade intensa de poucos minutos é suficiente para causar enchentes. Uma chuva de 20 milímetros ao longo do dia não é um problema, mas em dez minutos causa um caos. E a previsão do tempo tradicional não traz essa precisão”, afirma Diogo Tolezano Pires, fundador da Pluvi.on.

A empresa começa um projeto-piloto neste verão em cinco comunidades da zona leste da capital, na várzea do Tietê, que têm alta vulnerabilidade a enchentes. Miniestações meteorológicas foram instaladas nos bairros e, por meio de uma ferramenta de conversa, apelidada de São Pedro, as pessoas poderão consultar a previsão do tempo para suas regiões.

Em um primeiro momento, elas saberão, por exemplo, se vai chover, mas a intenção é que, com o aprendizado da tecnologia e a coleta de mais dados, em alguns anos seja possível dizer, por bairro, de um modo mais micro, onde há risco de inundação.

Outro projeto vencedor da chamada deste ano de Bons Negócios pelo Clima da Climate Ventures foi o Macaúba, da startup Inocas, de Minas Gerais, que tem como objetivo gerar uma alternativa ao óleo de palma a partir da palmeira típica do Cerrado brasileiro.

“Hoje, 60% de tudo o que existe em um supermercado têm óleo de palma – do chocolate ao hidratante de corpo. Mas o plantio da palma levou ao desmatamento de grandes áreas de floresta tropical no mundo, em especial na Indonésia. Defendemos a macaúba como uma alternativa sustentável à palma”, explica Johannes Zimpel, diretor executivo da Inocas.

A ideia surgiu de uma provocação feita pela companhia aérea Lufthansa, que queria uma alternativa aos combustíveis fósseis para abastecer seus aviões. A macaúba surgiu como uma opção para isso. Hoje ela ainda não chegou ao estágio de substituir o diesel, mas a Inocas desenvolveu uma metodologia de extração otimizada do óleo, que mostrou ter as mesmas qualidades da palma.

O plantio vem sendo feito em áreas de pastagem degradada, aumentando a produtividade do gado e criando renda extra do óleo. “O Cerrado tem 50 milhões hectares de pastagens. Se o conceito fosse replicado em todas, seria possível não só melhorar a renda no pasto como ter uma produção de macaúba que atingiria o dobro da produção mundial de palma”, diz Zimpel.


Almir Pazzianotto Pinto: Utopia versus realidade

Creio que os defensores da Constituição a conhecem pela rama, como diria Eça

Foi o dr. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, que, num arroubo de entusiasmo, redigiu de uma penada a breve introdução encontrada na primeira edição do Senado. Eu o vejo cheio de esperanças, diante do texto promulgado em 5 de outubro de 1988, a escrever. “O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã.”

Foram passageiros os aplausos tributados à Lei Fundamental, nascida “do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade”, como afirmou o dr. Ulysses. A velhice e a decadência vieram céleres e cruéis. Podem ser aquilatadas nas emendas já realizadas pelo Poder Legislativo e na incorporação do espírito constituinte pelo Supremo Tribunal Federal.

Vários argumentos são invocados para impedir a busca de nova Constituição. Dois exigem mais atenção: o receio da volta ao autoritarismo e o medo da perda de direitos sociais. Só insanos e boquirrotos defenderiam a ditadura e o uso de atos institucionais. Tratarei, portanto, apenas dos direitos sociais, que compreendem, de acordo com o artigo 6.º, “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Consultei as Constituições dos Estados Unidos, da Alemanha, da Finlândia, países desenvolvidos, civilizados, cujos índices de desenvolvimento humano (IDH) são invejáveis. Em nenhuma encontrei garantias minuciosas, utópicas, extravagantes como as nossas. O ranking mundial aponta a Alemanha na 5.ª posição (0,936); na 13.ª, os Estados Unidos (0,924); na 15.ª, a Finlândia (0,920). O Brasil amarga o 79.º lugar (0,759), abaixo de Bósnia-Herzegovina, Sri Lanka, Granada, México, Cuba, Portugal e Albânia, o país mais atrasado da Europa.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, proclama o artigo 196. Com semelhante exagero o artigo 205 garante o direito universal à educação gratuita. Sobre o meio ambiente diz o artigo 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O parágrafo 4.º do dispositivo vai além e afirma: “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.

Também transcrevo o inciso IV do artigo 7.º, relativo aos direitos sociais, garantindo a trabalhadores urbanos e rurais, “além de outros que visem a melhoria da sua condição social”, “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. Observe-se, afinal, o que diz o artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Em que nível de alucinação se achavam os membros da Assembleia Nacional Constituinte, ao imaginarem ser possível proporcionar o Estado de bem-estar à Nação sem trabalho, suor, perseverança, ética e disciplina? Mesmo quem mal conhece a real situação do País percebe que a Lei das Leis é filha da empolgação e da fantasia. Nenhum direito baixaria das nuvens, qual chuva-criadeira, para aflorar como realidade.

A Constituição tem defensores. Não os censuro. Creio, porém, que a conhecem pela rama, como diria Eça de Queiroz. Não se deram conta dos prejuízos causados pela mitomania jurídica. Afinal, para que serve a Lei Superior? Segundo Ferdinand Lassalle, “uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum”. Para ser firme deveria ser verdadeira, o que a Constituição de 1988 não é. A culpa não lhe cabe, mas aos demagogos que a redigiram e promulgaram motivados por veleidades populistas.

Substituir a Constituição não é simples. Poderá ser fruto benéfico do consenso, ou nascer de golpe de Estado. Nada impede, contudo, que algum partido político apresente como programa de governo, nas eleições de 2022, esboço de Constituição enxuta, clara, objetiva, democrática e liberal. Para tê-lo à mão, por que não recorrer ao auxílio de instituição idônea, ligada ao mundo jurídico? O Instituto dos Advogados de São Paulo, onde se concentram a nata da advocacia paulista e constitucionalistas de escol, poderia assumir voluntariamente a tarefa e converter o saber acadêmico em obra concreta de interesse nacional.

O Brasil deve decidir se fica com uma Constituição prolixa e utópica ou encara a dura realidade.

*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘30 anos de crise - 1988-2018’