O Estado de S. Paulo
O Estado de S. Paulo: 'O governo vai bem porque dá sequência ao que eu fiz', diz Temer
O ex-presidente Michel Temer diz em entrevista ao ‘Estado’ que votou em Bolsonaro, mas discorda de bandeiras do sucessor
Pedro Venceslau, de O Estado de S.Paulo
Oito meses depois de ser preso na rua por policiais, o ex-presidente Michel Temer mantém uma rotina discreta. Afastado das articulações políticas, hoje ele se dedica a fazer palestras e a escrever um romance de ficção inspirado em sua própria história. Em entrevista ao Estado, o emedebista diz que o governo Jair Bolsonaro “vai indo bem” porque dá sequência ao que ele fez, mas afirma ser contrário a bandeiras de seu sucessor, como o excludente de ilicitude.
Ao falar sobre política, Temer avalia que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria ter buscado a pacificação ao sair da cadeia e descarta a “rotulação” dos políticos entre direita, esquerda e centro. “Essa coisa de esquerda e direita ninguém dá mais importância. Mesmo o centro”, disse.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Como o sr. avalia o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro?
O governo vai indo bem porque está dando sequência ao que fiz. Peguei uma estrada esburacada. O PIB estava negativo 4%. Um ano e sete meses depois o PIB estava positivo 1.1%, além da queda da inflação e da recuperação das estatais. Entreguei uma estrada asfaltada. O governo Bolsonaro, diferente do que é comum em outros governos que invalidam anterior, deu sequência. Bolsonaro está dando sequência ao que eu fiz.
O estilo de Bolsonaro não prejudica a imagem do Brasil?
Cada um tem o seu estilo. Ele tem o estilo do confronto, que é oposto ao meu, de conciliação. Fui falar em Oxford, Madrid e Salamanca e pude avaliar uma certa preocupação com isso. Mas a preocupação central é com a segurança jurídica. As pessoas querem ter certeza que se investirem aqui não terão surpresas. O presidente Bolsonaro diz uma determinada coisa, mas sua ação é diversa. Quando ele me visitou logo após a eleição, me pediu modestamente para dar conselhos. Eu disse que não daria conselhos para quem foi eleito com quase 60 milhões de votos, mas disse que daria palpites. Disse que a relação com China é importantíssima. Não podemos ser unilateralistas. E verifiquei que, tempos depois, ele foi à China.
O anti-esquerdismo do presidente serve para manter a base?
Talvez seja um discurso dirigido para sua base. Eu sou contra qualquer tipo de rotulação. Essa coisa de esquerda e direita ninguém dá mais importância. Mesmo o centro. As pessoas querem resultado. Tem um livro do Norberto Bobbio chamado “Esquerda, direita. Direita, esquerda”. Ele mostra cientificamente que muitas vezes a direita usa teses da esquerda e vice versa.
O que o sr. acha desse discurso de nova política?
Isso é uma palavra nova, nada mais que isso. O Bolsonaro vai muito ao Congresso Nacional. Foi mais que eu. Ao modo dele, ele faz uma articulação política.
O sr. votou no Bolsonaro?
Acabei votando nele (no segundo turno) por uma razão. Eu recebia muitas críticas indevidas da outra candidatura (Fernando Haddad). Votei em quem não falou mal do meu governo.
O sr. vetaria o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões?
É fundamental ter um fundo partidário por uma razão pautada pelo princípio da igualdade. Se não tiver, só vai se eleger quem for milionário.
O sr defende o projeto do excludente de ilicitude?
Eu não sou a favor. No autoritarismo se dizia que o medo não era do ministro, mas do guarda da esquina. O excludente de ilicitude pode entusiasmar uma espécie de ação policial. Isso passa por uma área de subjetividade muito grande. E a subjetividade é a negação da segurança jurídica.
O que pensa sobre prisão após condenação em 2° instância?
O Supremo decidiu corretamente do ponto de vista jurídico. Hoje há muito populismo nas questões de natureza jurídica. Nesse episódio da 2° instância a Constituição diz muito claramente que só será considerado culpado aquele que tiver a sentença condenatória transitada em julgado.
Como o sr. viu a soltura do ex-presidente Lula?
Como eu prego muito a pacificação, imaginei que a sabedoria política determinaria que ele dedicasse os 580 dias na prisão à unidade do País. Ele ganharia politicamente. O Brasil também ganharia. Mas ele radicalizou. Achei que isso foi equivocado institucionalmente.
A polarização interessa tanto ao Bolsonaro quanto ao Lula?
Ouso dizer que sim. Se Lula radicaliza de um lado, dá chance ao Bolsonaro ficar na posição inversa. Talvez eles tenham isso em mente.
A Lava Jato cometeu excessos?
A tese do estado democrático de direito é a da imparcialidade. Nem o juiz pode facilitar a vida do advogado, nem do acusador.
O que sentiu quando foi preso, acusado de corrupção?
Não foi uma detenção, mas um sequestro. Quando se fala em detenção, se pensa em um processo penal regular. Os autos baixaram do Supremo sem que eu fosse denunciado, ouvido ou indiciado. Os procuradores da República assinaram a representação em grupo. O juiz recebeu e determinou o sequestro. Se viesse alguém na minha casa ou escritório e dissesse que tinha um mandado de prisão, eu ficaria surpreendido mas ia acompanhar. O que fizeram? Primeiro avisaram a imprensa. Eles esperaram eu seguir três ou quatro quadras para depois fazer o espetáculo. Abriram a porta com metralhadora, bazuca, lança-chamas. Me preocupei com o Brasil.
Até hoje o MDB não abriu processo de expulsão de Sérgio Cabral e Eduardo Cunha, que estão presos. O partido não deveria ser mais rigoroso?
O MDB tomou a decisão de aguardar decisões definitivas do Judiciário. As decisões preliminares não são definidoras de eventual afastamento.
William Waack: Apertem os cintos
Ninguém gosta de turbulência, mas não é uma grande causa de queda de avião
A maior lição de humildade para integrantes da minha profissão é o já clássico livro “Superprevisões – a arte e a ciência de antecipar o futuro”, publicado em 2016 por Philip Tetlock e Dan Gardner. Uma das célebres conclusões da obra, apoiada em mais de 20 anos de material empírico, é a de que jornalistas (especialmente os de televisão) acertam na média menos prognósticos do que um chimpanzé atirando dardos numa parede onde estão escritas respostas para perguntas como “qual será o preço do barril do petróleo no fim do ano?” (a taxa de acerto aleatória está em torno de 18%).
Claro que previsões só têm validade se respeitarem um limite de tempo – é fácil acertar a previsão “o mundo vai acabar”; a questão é acertar quando. Com toda humildade vamos, então, a alguns prognósticos para temas que devem ocupar espaço no noticiário.
Donald Trump deve perder o voto popular nas eleições de novembro (Hillary Clinton já o havia derrotado por 3 milhões de votos em 2016), mas conseguirá se reeleger. Os eleitores anti-Trump já vivem em colégios eleitorais democratas como Nova York ou Califórnia. Portanto, seu voto é “desperdiçado” e a verdadeira batalha é em colégios eleitorais menores, no Meio-Oeste, onde dificilmente Trump decepciona os mesmos eleitores que lhe garantiram a vitória quase quatro anos atrás.
Brexit deve chegar a um acordo comercial com a União Europeia, que terá dois grandes desafios. Um deles é razoavelmente previsível: Angela Merkel não conseguirá segurar sua frágil coligação, complicando a difícil questão de como dar um “reset” na relação com a Rússia, uma forma que o presidente francês vem propondo para redefinir o papel da Europa frente ao que foi (e promete continuar sendo) o fenômeno Trump + populistas (vão continuar fortes). Se parecer melhor, o prognóstico é mais do mesmo.
Vale também para a grande relação geopolítica do século, entre China e Estados Unidos, na qual a guerra comercial é apenas uma manifestação de uma pergunta para a qual ninguém até agora conseguiu produzir uma resposta convincente: o surgimento de uma super potência como a China, contestando o papel hegemônico dos Estados Unidos, será pacífico ou acompanhado (como historiadores clássicos sugerem) por confronto militar? Mas não é nada difícil prever que a China se tornará (se já não é) a principal potência das telecomunicações, com sérias consequências para o resto do mundo.
Protestos, descontentamentos e turbulência devem prosseguir na América Latina. A frustração e as manifestações mais ou menos violentas não escolheram ou pouparam perfis ideológicos dos diversos governos, no que parece ser uma expressão de ampla insatisfação de populações que “percebem” seu atraso relativo frente ao resto do mundo e consideram que seus mandatários não são capazes de dar respostas convincentes e em prazo rápido a demandas populares.
E o Brasil? Meu prognóstico é mais do mesmo. A economia vai andar melhor, o que é pouco para o grande desafio de um País aprisionado na armadilha da renda média. A onda disruptiva de 2018 partiu-se em suas diversas correntes, o que promete um cenário político “estável” no fracionamento das forças políticas e, portanto, na incapacidade de um só grupo se afirmar como dominante. O esforço de levar adiante reformas será grande e caminhará de forma lenta tanto pela notória resistência oferecida pelas corporações que tomaram o Estado brasileiro mas, em boa medida, também pela opção política do governo de não consolidar uma base tipo “tropa de choque” no Congresso.
Será turbulento. Apertem os cintos e um bom voo para todos nós em 2020. Turbulência não costuma derrubar avião.
Rosângela Bittar: Roletas tímidas
Chamadas de intermediárias, as eleições municipais sinalizam o futuro
Este é o ano da graça das eleições municipais, quando o humor dos eleitores será testado numa espécie de ensaio geral para a próxima disputa nacional. No momento, não se identificam fenômenos, nem naturais, nem construídos.
Uma volta ao passado não seria surpreendente, menos ainda uma demonstração, contra a corrente, de sentimento antibolsonarista. Bem como a presença do presidente, com vitórias importantes em capitais, reunindo vantagens a serem levadas à próxima campanha. Tudo ainda é possível.
As roletas estão começando a rodar, ainda tímidas, e ninguém fez apostas relevantes, por enquanto. A desconfiança é ampla, geral e irrestrita.
É que, se prefeitos e vereadores constroem o poder nacional, a recíproca não é necessariamente verdadeira. Por isso a cautela nas previsões.
A polarização vai se manter? Lula estará solto? O presidente Jair Bolsonaro conseguirá criar seu partido a tempo de seus candidatos disputarem pela nova sigla? Os temas em discussão serão de interesse apenas local? A ideologia vai prevalecer, como agora, ou a vida real irá predominar? Só vendo. O que é certo, em qualquer tempo e país, é que, chamadas de intermediárias, as eleições locais sinalizam o futuro.
Aqui também. Em 2016, o PT perdeu substância nas eleições municipais deixando aos adversários 60% das prefeituras que administrava. Houve influência negativa do fato na eleição seguinte de deputados e senadores, que definiram o financiamento do partido. Em 2018, destroçado pelas denúncias de corrupção, o PT chegou à campanha presidencial se arrastando em visita ao líder preso e ainda por cima sem um candidato de consenso.
Retornando a 2016: naquela eleição não havia sinal de um Jair Bolsonaro ou de um partido chamado PSL que viriam, em 2018, vencer a disputa presidencial. Houve sinais para uns, não para todos. Prepara-se agora o presidente para a campanha da reeleição, em 2022, sem definir que impacto buscará nas municipais deste ano.
Se a divisão nacional do eleitorado persistir nas eleições locais, o apoio do presidente será valioso, principalmente para ajudar um dos lados a se manter na liderança tocado pelo antipetismo e pela luta ideológica. Esses, Bolsonaro terá a seu lado no futuro. Se não, candidatos a prefeitos e vereadores podem se dispersar e procurar, cada um, seu séquito, seu financiador e sua aposta. As chamadas nominatas para vereador (listas de candidatos disponíveis à escolha do eleitorado) terão que ser diversificadas e com gente muito boa, é o que recomenda a regra não escrita da eleição sem coligação proporcional.
Há uma máxima preferida de cientistas políticos de formação diversa: deputados, senadores, governadores, presidente da República não são importantes para eleger prefeitos e vereadores. Seu peso está na capacidade de apoiar financeiramente os candidatos e passar-lhes prestígio, quando o têm. Mas prefeitos e vereadores são excelentes e imprescindíveis cabos eleitorais para deputados, senadores, governadores. É melhor respeitar este entrelaçamento de funções.
“Uma vez que toda eleição municipal é intermediária entre uma nacional anterior e uma nacional subsequente, ela revela um pouco da anterior e um pouco do que ocorrerá no futuro”, assinala o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda. Para o professor David Fleischer, da UnB, “um partido que elege mais prefeitos elegerá mais deputados dois anos depois e vice-versa”. Assim, terá fundo partidário bem maior.
O professor e cientista político Paulo Kramer impõe nuances: “Essa hiperpolarização, com campanha em redes sociais, fatores novos condicionando as eleições, colocaram tudo de cabeça para baixo. Tínhamos indicadores seguros no passado, de que a eleição municipal era armação do cenário para as eleições nacionais. Agora isto não está tão claro.”
Pedro Fernando Nery: Vencemos o desafio maior
A reforma da Previdência deveria ter sido tema das eleições de 2014
A principal reforma aprovada na década começou a ser pautada por Dilma Rousseff. Em seu último ano de governo, foi ao Congresso, e conclamou: “nos cabe enfrentar o desafio maior para a política fiscal no Brasil e para vários países do mundo, que é a sustentabilidade da Previdência Social em um contexto de envelhecimento da população.” De fato, amanhã já se completam quatro anos do artigo “Um Feliz 2016 Para o Povo Brasileiro”, em que anunciara a construção de “uma proposta de reforma previdenciária, medida essencial para a sobrevivência estrutural desse sistema que protege dezenas de milhões de trabalhadores”. Anos depois, vencemos em 2019 o que Dilma chamou de desafio maior da política fiscal. A reforma foi promulgada no penúltimo mês deste ano.
A reforma já deveria ter sido tema das eleições de 2014. Mas a propaganda de João Santana para a chapa vencedora falava que direitos não seriam mexidos “nem que a vaca tussa”. Enquanto isso, o opositor falava em “rever” o fator previdenciário – sugerindo acabar com o puxadinho que controlava o gasto na ausência de uma idade mínima.
Ajustes
Já em 2014 os ajustes começaram. Há cinco anos era editada a Medida Provisória 664, que reformava a pensão por morte: seu ponto principal, contudo, foi rejeitado pelo Congresso (a redução da pensão por morte em famílias com poucos dependentes, que terminou constando da reforma da Previdência). A despesa com pensão é equivalente a quase 6 Bolsa Família no conjunto dos regimes.
Em abril de 2015, Dilma criou um fórum interministerial para analisar expressamente a sustentabilidade do sistema e suas regras de acesso, inclusive idade mínima. O fórum concluiu que deveriam ser repensados até a diferença de regras entre homens e mulheres e a previdência rural.
Já em 2016, a mensagem presidencial lida pessoalmente por Dilma na abertura dos trabalhos do Congresso colocara ao centro a reforma da Previdência, o desafio maior. Justificada pela rápida transição demográfica, que pressionava o sistema pela redução no nascimento de futuros contribuintes e aumento da expectativa de vida de beneficiários, foi assim resumida pela Presidente:
“A reforma da Previdência não é uma medida em benefício do atual governo. Seu impacto fiscal será mínimo no curto prazo. A reforma da Previdência melhorará a sustentabilidade fiscal no médio e no longo prazo, proporcionando maior justiça entre as gerações atuais e futura e sobretudo um horizonte de estabilidade ao País.”
Dilma já tinha contra si um processo de impeachment em andamento, quando decidira priorizar uma reforma complexa e pouco compreendida. “De reforma da Previdência não quero nem ouvir falar”, afirmou o presidente do seu partido.
O impeachment precedeu a apresentação da reforma, que ficou para dezembro de 2016, já sob Temer. A PEC 287 foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e na Comissão Especial para analisá-la.
Mas veio o 17 de maio de 2017. Este foi um dia chave para a reforma da Previdência, apelidado no mercado financeiro de Joesley Day. A notícia de que havia uma gravação do ex-delator dono da JBS comprometendo o presidente sugeria um aprofundamento da crise política, com potencial vacância do cargo e eleições indiretas. A Bolsa perdeu 12% em uma hora. Temer se manteve, mas não havia fôlego para levar a reforma a Plenário, que teve de deliberar duas vezes sobre denúncias do Procurador-Geral da República contra o presidente. Perdemos dois anos. (Em 2019, Temer foi absolvido pela Justiça Federal, que avaliou que a transcrição do áudio bomba pela acusação não era fidedigna).
O tema enfrentou campanhas de desinformação. Meu primeiro artigo no Estado, em 2015, se chamava “O negacionismo do déficit da Previdência”. O segundo, em 2016 – “A coisa mais inesperada que acontece a um país” – desmistificava a leitura dos dados sobre expectativa de vida e a visão de que uma idade mínima era prejudicial aos mais pobres.
No novo governo, a reforma foi adiante: Bolsonaro se convenceu de sua necessidade, Paulo Guedes trouxe Rogério Marinho para tocá-la e o Ministério da Economia liderou o processo no governo (o que não era óbvio: na campanha bolsonarista o responsável pelo tema era um então desconhecido professor da Unifesp de ideias exóticas).
Os esforços desta década deixam frutos para a próxima. Impactos imediatos foram sentidos na queda do risco-país, dos juros longos, da taxa básica de juros e no rali da Bolsa. Na análise recente da XP, a reforma construiu a base para uma retomada mais forte a partir de 2020, com um “novo ciclo econômico” – marcado pela baixa sustentável dos juros. A dívida pública seria estabilizada nos próximos anos, reduzindo muito o risco de insolvência: “O Brasil não está mais quebrado e isso é transformacional.”
* Doutor em economia
Eliane Catanhêde: Coleção de retrocessos
Em 2019, Brasil avançou devagar na economia e recuou velozmente no resto
Último dia do ano, hora de discutir o que deu certo, o que deu errado, o que poderia ser melhor. No governo Jair Bolsonaro, a economia andou devagar, mas andou. O problema foi o resto, que andou rápido, mas em marcha a ré. Uma coleção de retrocessos.
A reforma da Previdência foi o grande marco político e econômico de 2019. O grande mérito do governo foi enviar o projeto e o do Congresso foi ter encaminhado, debatido e votado com razoável rapidez e com a menor desidratação possível. Bolsonaro jogou o pacote no Congresso e lavou as mãos, deixando a condução, a negociação, os ajustes e os votos por conta de dois personagens-chave no seu primeiro ano de governo: Rodrigo Maia, do Legislativo, e Paulo Guedes, do Executivo. Com a reforma da Previdência aprovada, abriu-se uma avenida de oportunidades para novas reformas e a própria economia.
A previsão do PIB foi ao fundo do poço em meados do ano, mas recuperou-se e é otimista neste 31 de dezembro. A inflação e os juros estão baixos como nunca e o desemprego continua dolorosamente alto, mas caindo. Logo, as condições são boas. O preço da carne precisa baixar e Bolsonaro tem de parar de atrapalhar.
Quando se fala (ou reclama) em recuos, pensa-se logo em Meio Ambiente, que jogou o Brasil na imprensa internacional e abriu atritos desnecessários com parceiros como França, Alemanha, Suécia. E Bolsonaro também bateu de frente com China, Argentina, Chile, o mundo árabe, além de chegar no Paraguai elogiando Stroessner.
Houve ainda recuos assustadores na Cultura, até na última semana do ano, com o veto ao projeto de incentivo ao audiovisual, e na Educação, que saiu de um ministro inútil para outro que só vê “balbúrdia” nas universidades. Cultura e Educação não são inimigas, presidente! Nem a mídia e os jornalistas.
De tudo isso, fica o histórico de manifestações do presidente da República, ora machistas, ora homofóbicas, ora pró-ditadores sanguinários, ora acusando Paulo Freire de “energúmeno”. Para que? Ninguém sabe, mas o fato é que os filhos vão atrás. Sem citar hienas e “golden shower”, ambas de péssima lembrança.
Por falar nisso, a ida do deputado Eduardo Bolsonaro para a Embaixada do Brasil em Washington foi um sonho de verão para ele e um pesadelo para muita gente, dentro e fora do Itamaraty. E o ano termina deixando em aberto a situação do senador Flávio Bolsonaro, alvo do Ministério Público do Rio de Janeiro e com muitas histórias mal contadas a explicar à opinião pública brasileira. Carlos Bolsonaro? Esse continua lá, tuitando.
Se as pesquisas registram a baixa popularidade do presidente, não captaram o esforço do Legislativo, que trabalhou muito e bem ao longo de 2019. Motivo: continua “dando Ibope” falar mal do Congresso. Faz parte.
Quanto ao Judiciário, esteve no centro da suspeita de um cerco institucional à Lava Jato. Vamos combinar que o fim da prisão em segunda instância e os meses de interrupção de investigações pautadas pelo Coaf foram ataques frontais à maior operação de corrupção, talvez, do mundo. E ambos conduzidos pelo Supremo.
No foco, o presidente Dias Toffoli, determinado a derrubar a prisão em segunda instância e autor da canetada que feriu gravemente a atuação do Coaf e suspendeu as investigações com base na inteligência financeira. O discurso “em javanês” do ministro é um dos destaques de 2019. Cada um conclua o que quiser.
No mais, o governo abriu tudo para os EUA, mas, até agora, ninguém sabe, ninguém viu, no que isso conta a favor dos interesses do Brasil. A olho nu, não se vê pragmatismo, muito menos reciprocidade. Só Trump ri. Não tem graça nenhuma.
Carlos Pereira: O Brasil mudou, só cego não vê
A condenação de corruptos transformou radicalmente a trajetória da política brasileira
Fim de ano nos chama à reflexão. Uma espécie de retrospectiva do que de mais relevante ocorreu nas nossas vidas. Fatos que alteram o curso da nossa história. Que chegam quase a mudar o nosso DNA e, portanto, nos fazem trilhar uma nova trajetória. Para o bem ou para o mal, eventos dessa magnitude não acontecem todos os dias. Vivemos na maior parte do tempo numa condição de piloto automático, em que, mesmo insatisfeitos, continuamos nas nossas rotinas sem realizar grandes transformações. Quando mudanças acontecem, elas são apenas pontuais, como se fossem pequenos ajustes de percurso.
Há ocasiões, entretanto, em que somos acometidos por grandes choques (endógenos ou exógenos) que, se aproveitados, têm potencial de nos catapultar para uma nova direção... para um novo equilíbrio.
Assim como fumantes inveterados podem parar de fumar quando descobrem que o seu melhor amigo está prestes a morrer de câncer de pulmão ou obesos podem passar a reeducar sua alimentação e a praticar exercícios físicos de forma regular após descobrirem que uma de suas artérias coronárias está obstruída, sociedades que se aprisionaram em equilíbrios insatisfatórios durante décadas, caracterizados pelo vale-tudo da corrupção sistêmica, podem, a partir de um evento inusitado ou crise generalizada, mudar o rumo da sua história.
Como reflexão de maior fôlego, o editor de Política do Estado sugeriu que minha última coluna do ano fosse dedicada à análise do evento político mais relevante para o Brasil, não apenas de 2019, mas da última década. Vários fatos políticos foram relevantes nesse período. Mas dois, para mim extremamente concatenados, alteraram definitivamente a trajetória do País. Refiro-me especificamente ao julgamento do mensalão e à Operação Lava Jato.
Esses eventos acarretaram mudanças sem precedentes em várias dimensões da vida política, econômica e ética do País. O julgamento do mensalão quebrou o paradigma predatório de que ricos e poderosos sempre encontrariam maneiras de se livrar de condenações judiciais pelos seus crimes. Os números das 113 operações da Lava Jato falam por si sós: 186 ações penais; 204 condenados; 96 acordos de colaboração; 19 acordos de leniência; mais de R$ 14 bilhões previstos de recuperação. Na conta da Lava Jato também é possível incluir o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff por crimes fiscais e orçamentários, o surgimento de uma direita eleitoralmente competitiva à Presidência da República, fato comum em democracias desenvolvidas, bem como investigação do filho do atual presidente.
Esses eventos certamente não livrarão o País de comportamentos desviantes de agentes políticos, atores econômicos e burocratas. Mas, seguramente, os riscos e os custos de tais comportamentos aumentaram exponencialmente.
Mesmo diante de mudanças institucionais de ampla magnitude que o Brasil tem vivido nesta última década, não é possível assegurar que o País estará imune a retrocessos. Uma vez no trilho, trens podem descarrilar. A recente decisão da Suprema Corte de que a execução da pena de um condenado pela Justiça só pode ter início após o trânsito em julgado, e não mais a partir da condenação por um colegiado em segundo grau, pode ser interpretada como uma reversão no combate à corrupção. Mas a observação de eventos isolados às vezes gera falsas interpretações do que de fato está acontecendo. Da mesma forma que implementar reformas tem custos, reversões institucionais também têm custos.
Democracias maduras e consolidadas também apresentam inconsistências ao longo da sua história. Após o atentado de 11 de setembro de 2001, por exemplo, os EUA, a partir da sua agência de inteligência (CIA), passaram a adotar técnicas de tortura como meio de obter informações de pessoas supostamente ameaçadoras sob a justificativa de evitar a todo custo novos ataques terroristas. O reconhecimento público e o repúdio de tal prática abominável pelo governo subsequente recolocaram a democracia americana no seu curso.
Desenvolvimento, portanto, não é linear nem constante em nenhum lugar do mundo. O importante é cuidar para que potenciais desvios não se transformem em mudanças de direção.
Zander Navarro, Alfredo Homma, Antônio Menezes e Carlos Santana: Rumo à Amazônia mais sustentável
Região precisa de iniciativas realmente viáveis, com resultados mais efetivos e rápidos
Eis um fato categórico: este será um ano que jamais esqueceremos. São incontáveis os acontecimentos memoráveis, alguns trágicos, muitos outros bizarros. Sendo impossível comentar sobre tantos eventos extraordinários, destacam-se os desastres ambientais.
Começaram com o dantesco rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, com centenas de vítimas. A partir do meio do ano, as notícias, igualmente apocalípticas, sobre incêndios que sugeriam o fim do mundo na Amazônia. E, recentemente, a assombrosa contaminação de óleo nas praias nordestinas, sobre a qual mal identificamos a origem. Três tragédias que demonstram a improvisação do País para lidar com situações ambientais de maior gravidade.
Especificamente sobre a Amazônia, acesos debates vieram à tona sobre as medidas que garantiriam mais sustentabilidade àquele bioma. É discussão urgente, pois somente assim se irá construir um caminho consistente a seguir. A região sempre foi irresistivelmente sedutora, pois é misteriosa e gigantesca, fomentando teorias e especulações. Afinal, isoladamente, seria o sétimo país em extensão, abrigando dez vezes mais espécies de peixes do que em toda a Europa, e onde convive um quarto das borboletas do planeta! Seria o “celeiro do mundo”, asseverava Von Humboldt em 1800; depois, o “inferno verde”, na conhecida expressão de Alberto Rangel consagrada em 1904. E ganhou manchetes internacionais em 1975, quando o livro de Irwin e Goodland introduziu a possibilidade de transformar a região num “deserto vermelho”, resultante dos desmatamentos e queimadas.
Mas a visão que vem procurando se afirmar como científica, no entanto, não aponta caminhos que são, de fato, prováveis de ocorrência. Defende a constituição na Amazônia de um polo de “bioeconomia da floresta em pé”, alicerçado no “conhecimento profundo da natureza” e, por isso, capaz de produzir riquezas que seriam imensuráveis. Se a biodiversidade é a mais espetacular, afirma-se, o corolário de sua exploração seria altamente lucrativo. É certo, todavia, que a coleta extrativista de produtos da natureza ainda é inversamente inviável com a expansão dos mercados, pois é de baixa produtividade e com oferta limitada, pois está dispersa nas matas. É preciso aprofundar as pesquisas que favoreçam a domesticação dessas plantas, oportunizando novos nichos mercantis.
Por essas e tantas outras razões, a Amazônia precisa ser objeto de iniciativas realmente viáveis, as quais, em seu conjunto, se implantadas, produziriam resultados práticos mais efetivos e rápidos. São diversas ações, e aqui são citadas apenas algumas.
Primeiramente, concretizar, de fato, o que sempre foi prometido por todos os governos, mas nunca cumprido: combater com rigorosa severidade o desmatamento ilegal, a principal fonte de devastação florestal que, depois, gera queimadas (a floresta, mesmo na seca, raramente vai pegar fogo por si mesma). Em segundo lugar, atribuir significado econômico concreto às áreas de reserva legal e de preservação permanentes previstas no Código Florestal, utilizando as plantas da biodiversidade amazônica e priorizando os cursos de águas.
Essas providências deveriam estar obrigatoriamente associadas a uma terceira: prover crédito atraente para aqueles desejosos de desenvolver suas atividades produtivas em mais de 10 milhões de hectares de pastagens degradadas. A proposta combinaria agricultura, pecuária de alta produtividade, criação de peixes e cultivos perenes - essas duas últimas, sim, seriam a vocação produtiva da região. Gradualmente, a perda de cobertura florestal se reduziria.
É importante lembrar, também, alguns fatos agronômicos que acarretam profundas implicações econômicas. Por exemplo: cultivos perenes saturam os mercados utilizando uma área total bem menor do que as lavouras temporárias. O Brasil é o maior produtor mundial de café ocupando 1,8 milhão de hectares. Ademais, é um grande exportador de suco de laranja plantando somente 650 mil hectares. Já uma lavoura anual, como a soja, utiliza mais de 12 milhões de hectares; o milho, em torno de 5,5 milhões; e o algodão, aproximadamente 800 mil, somente na região amazônica.
Muitas plantas originárias da Amazônia se tornaram relevantes em outras regiões do Brasil ou do mundo. Por que não são potencializadas na própria região? A seringueira ocupa quase 12 milhões de hectares, especialmente na Ásia, mas no Brasil não passa de 200 mil hectares. E desde 1951 nos tornamos importadores de borracha. O cacaueiro é outra planta amazônica hoje espalhada na África e na Ásia, enquanto a Bahia é o maior produtor de guaraná. Até a pupunheira, também originária nesse bioma, tem São Paulo, Bahia e Santa Catarina como os maiores produtores. Em razão deste contexto, é preciso dobrar as áreas cultivadas com seringueira, cacaueiro e açaizeiro, entre muitas outras plantas. É necessário, também, expandir as espécies exóticas, pois não se justificaria nenhuma xenofobia vegetal ou animal.
Outro grande tema é entender que não existe apenas “uma Amazônia”, mas um sem-número de “amazônias”, que exigem conhecimento e ações específicas. Se o Pará já está fortemente desmatado e é hoje, sobretudo, um Estado agrícola, pecuário e muito impactado pela mineração, esse não é ainda o caso do Amazonas ou do Acre. É preciso combinar políticas gerais para o bioma com ações regionalizadas.
A ciência brasileira sustentou grandes feitos: produzir em larga escala veículos a álcool como combustível, cultivar soja em áreas tropicais e extrair petróleo em águas profundas. Temos condições de promover uma revolução produtiva mais sustentável na Amazônia, promovendo esforços de pesquisa de alto nível com sólida sustentação empírica. E novas políticas públicas que iluminarão com segurança o potencial produtivo, econômico e ambiental da região.
*São pesquisadores em ciências sociais.
Monica de Bolle: A década da ansiedade
Os anos 2010 foram marcados pelo aprofundamento da polarização política como forma de lidar com o medo daquilo que não se sabe
"A ansiedade é a tontura da liberdade"
Soren Kierkegaard
Para alguns, a década prestes a se encerrar foi de rupturas. Na economia, a crise global de 2008 redefiniu os rumos da política econômica ao longo de todo o período transcorrido entre 2010 e o fim de 2019: velhos dogmas caíram por terra, como o de que inflação seria a consequência inevitável da emissão de moeda em grandes quantidades que ainda fazem os bancos centrais nos países desenvolvidos. Na política e nas relações internacionais, o repúdio à globalização, que parecia bem estabelecida durante os anos 1990 e o início dos anos 2000, fez ressurgir o nacionalismo estridente em seus diversos matizes. Na vida social e política, o alcance das mídias sociais contribuiu para exacerbar a polarização de arranjos, práticas e opiniões, abalando instituições que haviam sido concebidas para facilitar a convergência ao centro e à moderação. Tudo isso pode ser interpretado como ruptura. Mas tudo isso também pode ser interpretado como uma vertigem da liberdade, fruto de uma ansiedade causada por um mundo em contínua transformação.
A constatação de que as políticas econômicas não funcionavam mais como imaginávamos foi fonte de grande ansiedade ao longo da década. Como impedir que o abalo financeiro de 2008 se transformasse em profunda depressão econômica, tendo os instrumentos macroeconômicos se esgotado: os juros reduzidos a zero, a política fiscal com pouca margem de manobra ante dívidas elevadas? A ansiedade provocada por essas perguntas levou, no início da década, a uma profunda transformação na maneira de se pensar e de se fazer política monetária. Vieram os afrouxamentos quantitativos – as políticas de emissão monetária em grande volume pelos bancos centrais; vieram, também, as antes impensadas taxas de juros negativas. A ausência de pressões inflacionárias nos países desenvolvidos proveniente dessas medidas revolucionou a macroeconomia. Economistas e gestores de política econômica foram forçados a repensar todo o arcabouço teórico que sustentara durante décadas o que parecia ser um entendimento profundo dos canais de transmissão e dos efeitos associados ao uso desse ou daquele instrumento na economia. Esse esforço de reformulação está em curso, e isso é algo positivo. Há muito o que repensar na macroeconomia.
Os anos 2010 viram renascer, além disso, a preocupação da economia com a desigualdade e as suas diversas ramificações e inter-relações com o campo das ciências sociais. Como medir a desigualdade? Por que, ante todo o progresso alcançado, ela ressurgiu, sobretudo nos países avançados? O que fazer para combatê-la? A ansiedade derivada dessas perguntas tem sido fonte de grandes avanços na discussão do tema tanto entre acadêmicos quanto no público geral. Já não é mais possível tratar de política econômica sem olhar o tema da desigualdade. Já não é mais possível separar a política da justiça social. A vertigem da liberdade está em perceber que não há liberdade com injustiça social. O que fazer com isso, como repensar o conceito de liberalismo nesses termos será tarefa para a próxima década, e uma tarefa a ser cumprida em meio às transformações que já sabemos que nos esperam. Novamente, essa ansiedade haverá de ser a força propulsora de novas formas de refletir e de tentar entender problemas que requerem não só conhecimento, mas criatividade.
A ansiedade também se exprime de formas menos auspiciosas, evidentemente. Os anos 2010 foram marcados pelo aprofundamento da polarização política como forma de lidar com o medo daquilo que não se sabe. O medo, quando exacerbado, provoca a busca por explicações simplistas e por bodes expiatórios. A política nesse fim de década está repleta de exemplos de como esse medo se expressou: das promessas falaciosas do Brexit e de Donald Trump às falsas esperanças atreladas ao bolsonarismo. O bolsonarismo, aliás, pode ser encarado como expressão extrema da ansiedade – uma espécie de crise de pânico que acometeu a sociedade brasileira em um desenlace traumático do petismo. A crise de pânico ainda domina o discurso, a falta de rumo, a estridência que acometeu o Brasil. Para resolvê-la, de nada adiantará apegar-se ao pensamento mágico de que tudo mudou porque o ministro Y ou Z está lá para transformar o País. Há muita gente no Brasil, sobretudo no ministério bolsonarista, que não entendeu o quanto o mundo mudou nessa última década, e que se apega às suas referências e conceitos ultrapassados para responder perguntas erradas, anacrônicas. O fiscalismo estreito, o Estado mínimo, boa parte da agenda de reformas econômicas estão em rota de colisão com a desigualdade. Não reconhecer isso é não entender nada do que ocorreu nos últimos dez anos.
A partir de primeiro de janeiro de 2020 iniciaremos década em que, aplacada a ansiedade pelo Brexit, testemunharemos os efeitos da ansiedade por suas consequências. Com o freio na globalização, nela testemunharemos o contínuo desabrochar de movimentos nacionalistas, em que a desigualdade, a injustiça e a segmentação social continuarão a testar as instituições que não souberam se adequar ao mundo. A ansiedade provocada pelas mudanças climáticas poderá trazer grandes inovações na forma de desenhar mercados e instrumentos de política econômica, a exemplo do que têm pensado as lideranças europeias. A ansiedade provocada pela corrida tecnológica e pelo crescente domínio da China poderá ter graves consequências para a organização geopolítica e econômica do mundo.
O Brasil terá de escolher. Escolher se quer continuar a se desintegrar em meio à crise de pânico ou se pretende libertar-se da vertigem coletiva para integrar os novos debates que estarão ocorrendo, com ou sem o País. Feliz 2020.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Carlos Melo: Mesmo thriller, segunda temporada
Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu
O otimista rejubila-se com a reforma da Previdência enfim aprovada pelo Congresso Nacional. Também aponta a inflação sob controle, os mais baixos juros e a retomada econômica que, tímida, dá o ar da graça. É melhor ser alegre que ser triste. E é necessário justificar apostas (frustradas), feitas após a eleição. Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu.
Os mais rigorosos sabem que o ano poderia ter sido melhor. Rejubila-se o otimista porque o ano foi bom somente por não ter sido pior. Para um primeiro ano de governo, o presidente Jair Bolsonaro desperdiçou a lua de mel já na noite de núpcias: nos discursos de posse, amarrou-se ao mastro do sectarismo e ao gueto eleitoral. Não atinou para a obrigação de ser “presidente de todos”, foi estreito. Abusou do personalismo, desprezou a impessoalidade republicana; transformou a família no centro do governo. Não percebeu que deixara de ser deputado do baixo clero, da pauta de costumes, da crítica kitsch ao socialismo; da política externa incapaz de diferenciar interesses de ideologias.
De fato, Bolsonaro prometeu – e tem entregue – uma nova forma de fazer política: a não política, que troca o diálogo pela truculência. Quase nada construiu. Ganhou fama no planeta soando arrogante; isolou o País do continente; colocou em risco relações com a China, os árabes, a maioria da Europa. Agarrou-se a Donald Trump com paixão e indisfarçada submissão – política e estética. Na ciência, basicamente, retrocedeu ao terraplanismo; no meio ambiente, o descaso e o estímulo às piores práticas bateram recordes diários de constrangimento.
Se é verdade que rompeu com os vícios do presidencialismo de coalizão, é notório que restou sem coalizão alguma no Congresso Nacional, sequer com partido político. Inaugurou o “presidencialismo em transe”, que ao mesmo tempo implica em vertigem e alteração de consciência, como também parece ser um caminho sinuoso para algures.
Sorte sua ter podido contar com Rodrigo Maia na presidência da Câmara e na persistência de uma pauta positiva; não um tipo Eduardo Cunha. Pura sorte. É possível que o presidente eleito acredite que os 57 milhões de votos que recebeu no segundo turno da eleição o tornam mais legítimo que deputados e senadores. Negou-se a articular; blefou com a relação direta com o povo, que diz representar – e que não saiu às ruas.
O Congresso não piscou: ignorando os acessos dos bonapartistas do bolsonarismo, vem consolidando o sistema de freios e contrapesos possível. É inaudito e estruturalmente positivo, embora não vá aí qualquer sentido estratégico: o fortalecimento do Parlamento corresponde mais à fragilidade da liderança do Executivo do que retrata aprimoramento institucional.
De volta à economia: o presidente enfatiza nada compreender a respeito, o que é fato. “É ‘qüestão’ do Paulo Guedes”, como diz. Seria um sinal de liberdade e autonomia de seu ministro, livre para tocar a agenda reformista, de ajustes das finanças públicas. Mas a “carta branca” é, porém, mais complexa: trata-se de um lavar de mãos do presidente; o desresponsabilizar-se de ônus e insucessos. De fato, a economia não está no foco de Jair Bolsonaro.
Mas tampouco Guedes parece preparado a conduzi-la com a habilidade política necessária. Foram inúmeros os atropelos, sinais contraditórios, declarações infelizes; os desencontros com a democracia e com o Congresso. Também aí há sorte enorme em contar com Rodrigo Maia. E com as imposições próprias das circunstâncias: os imperativos que fizeram a reforma da Previdência, o corte dos juros; a baixa inflação, resultante de uma economia anêmica. Em 2019, o Congresso salvou o governo de si próprio.
Difícil dizer o que esperar de 2020: nos últimos dias, o noticiário tornou a ferver. O presidente e sua família estão acuados; o bolsonarismo movimenta-se desordenado, entre o embaraçoso e o patético das plateias nas portas dos palácios. A emoção estará ainda mais presente, sobretudo em ano eleitoral, como será o caso. O ambiente volátil, disputas nas bases municipais; a luta pelo território e pelas máquinas que pode reforçar conflitos.
Choques no seio da direita e no interior da esquerda serão comuns, assim como o embate entre estas. À falta de um centro, a polarização é inevitável.
Com o calendário apertado, deve-se esperar menos produtividade do Congresso. O fortalecimento da liderança do presidente da República tampouco pode ser projetado. E há também no horizonte a delicada sucessão das presidências da Câmara e do Senado, o que já é sussurrado nos corredores. Equação complexa, dada a importância que as disposições pessoais de Maia e Alcolumbre adquiriram. Sucedê-los será um risco, mantê-los ao arrepio da Constituição tampouco é solução. Além da insegurança jurídica, há fila no Centrão. A impressão mais forte é que 2020 será 2019, segunda temporada; a sequência do mesmo thriller alucinante. Sem virtù, o País depende da fortuna.
* Carlos Melo é cientista político e professor do Insper
Marco Aurélio Nogueira: Um ano de bizarrices, sectarismo e ideologia
Complexidade do Brasil e do mundo esteve além do entendimento médio do governo em 2019
Para dizer o mínimo: 2019 foi perturbador.
Chegamos a dezembro com sinais de que a economia começa a se recuperar. A taxa de crescimento bateu em 1% no ano, mas o desemprego e a renda continuaram a martelar os brasileiros. A produtividade permanece baixa, o crescimento não se mostra sustentado. Nos bastidores da estridência governamental, escorreu uma política econômica que se proclama liberal, mas age em nome de um governo que ameaça as liberdades básicas.
Nenhum país anda só com as pernas da economia. Depende de coisas que têm alto poder de determinação. É preciso olhar o todo, avaliar o que impacta o cotidiano da população, prestar atenção na política, naquilo que fazem as oposições e o governo, na repercussão de escândalos como o do senador Flávio Bolsonaro, nas atitudes intempestivas do presidente.
O balanço do ano não é animador. A política externa, ideologizada de modo caricatural, converteu o País em chacota mundial. Combinou sem critério o fundamentalismo religioso e o patriotismo rasteiro, trocando o pragmatismo característico do Itamaraty por pregações moralistas, subservientes, fechadas ao interesse nacional: uma visão que se aliena do mundo e do próprio País.
O meio ambiente foi tratado com desdém. As populações indígenas foram vistas como “entraves” à exploração do território e das florestas. Queimadas, desmatamento, óleo emporcalhando mares e praias, todo um cenário complicado a requerer uma atenção que não apareceu: em vez dela, sucederam-se insultos que isolaram o País.
A letalidade policial continuou a assustar. As mortes absurdas afetam principalmente os jovens, os mais pobres, os negros e mulatos, as periferias das grandes cidades. Uma parcela importantíssima da sociedade está sendo dizimada, encurralada, amedrontada.
A área da Cultura concentrou as principais aberrações, com encarregados a exibir seu reacionarismo e seu desprezo pelos produtos e produtores culturais. O aparelhamento é ostensivo: o que importa é a fidelidade ao chefe, não a competência. Artistas foram caçados como inimigos públicos. A Educação não ficou muito atrás, com a agravante de que o responsável por ela não só demonstrou completa falta de cultura e educação, como foi de uma inoperância a toda prova. Travou uma “guerra cultural” de baixíssimo nível contra escolas, professores, universidades, pesquisadores. Fez do MEC um deserto de ideias e iniciativas.
Das áreas que deveriam iluminar e fornecer diretrizes somente saíram fachos de obscurantismo e ideologia.
Um bizarro festival de besteiras assolou o País. Entre tapas, mentiras e fake news, instituiu-se a era da pós-verdade. A complexidade do Brasil e do mundo foi ignorada, esteve além do entendimento médio do governo. Autoridades públicas e agentes do Estado disputaram entre si para estabelecer quem fala a barbaridade maior, quem exibe a grosseria mais extremada ou demonstra a ignorância mais avessa à ciência e aos valores básicos da vida moderna. O presidente não demonstrou compostura ou respeito à liturgia do cargo que ocupa. Houve racismo explícito, preconceitos, difamações, ataques a direitos. A milícia digital foi abertamente incentivada. Consta que é coordenada por um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. O sectarismo deu o tom.
Obscurantistas empedernidos, monarquistas sem nobreza, filósofos de araque capricham em discursos e postagens que usam a religiosidade xucra para imbecilizar a população. O compósito é chocante. A Terra é plana, o aquecimento global é uma balela, o rock é satânico, os territórios e a natureza devem ser apropriados sem dó. Aos que pensam de outro modo, o fogo do Inferno.
Os colaboradores de Bolsonaro – civis e militares – mostraram-se mais serviçais do que se poderia imaginar. O capitão submeteu os generais. 2019 terminou com o País em regressão civilizatória, com muitos ataques e denúncias, à esquerda e à direita, mas nenhum debate.
Reforçou-se uma estranha dialética: o presidente tem alta impopularidade, mas é seguido por uma trupe de apoiadores que bebem suas palavras como se destilassem o soro da verdade e acreditam que é preciso, mesmo, “evitar a volta da esquerda”. É o que permite a um governo fraco falar grosso e sonhar com o futuro.
O Executivo não produziu, mas houve quem fez por ele. A Câmara e o Senado organizaram uma pauta “reformadora” e compensaram a inação governamental. O Supremo Tribunal Federal limitou excessos. Até a alquebrada Lava Jato ficou em evidência. A impressão foi de que havia um governo ativo, mas a falta de articulação entre os Poderes foi completa.
Consolidou-se a ideia de que é preciso administrar a crise fiscal e dinamizar a economia. Mas, no jogo que está sendo jogado, as cartas escondem blefes, os jogadores não revelam seus truques e a plateia acompanha sem entender os desfechos prováveis. Nada se fala sobre bem-estar, distribuição de renda, igualdade social e respeito. Na falta de um projeto nacional que proponha a reorganização democrática do País, as propostas governamentais vão passando, sem alternativas.
Um gestual, uma narrativa, atos em série – coerção à imprensa, ataques às instituições, agressões a minorias – soltaram um bafo de autoritarismo. O oficialismo quis passar a sensação de que tudo está “normal”. É uma “normalidade” fajuta, que intimida a população e abre espaços para fanáticos e radicais de direita, impulsionados pela ignorância que vai sendo decantada para a população a partir das cúpulas do governo.
Os democratas não podem assistir passivamente à onda de boçalidade e autoritarismo que se impõe, meio como pastiche, meio como pantomima. Precisam organizar uma agenda que congregue os que fazem da democracia uma praia comum, a ser defendida e valorizada. Não há mais tempo para projetos personalistas e cálculos partidários egoístas. Basta de divergências inúteis, diversionistas.
Arminio Fraga: ‘Não é justo governar só para economia formal’
Ex-presidente do BC cobra investimentos em educação e capacitação do trabalhador para reduzir a desigualdade
Douglas Gavras, O Estado de S. Paulo
“O governo atual parece não ter esse tema (o combate à pobreza) como prioridade, eles parecem comprar uma ideia mais antiga de que tem de fazer crescer o bolo antes de distribuí-lo. Ou que o crescimento por si só vai resolver o problema.”
Para Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, a reversão do avanço da desigualdade de renda e da pobreza passa pela retomada do crescimento mais robusto da economia com investimentos, de longo prazo, em educação e formação do trabalhador. “Não é justo governar só para os que estão na economia formal”, afirma. Para ele, é preciso olhar para a informalidade.
A necessidade de reverter o avanço da desigualdade de renda e da pobreza nos últimos anos, a partir da recessão de 2014 a 2016, passa pela retomada do crescimento mais robusto da economia e, no longo prazo, pelos investimentos em educação e formação do trabalhador, afirma o economista Arminio Fraga.
Ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, ele diz que é preciso prestar atenção ao aumento do trabalho informal, geralmente de pior qualidade e de remuneração mais baixa, e garantir que ele não seja um outro vetor de aumento da desigualdade.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O que pode ser feito para reverter o aumento da desigualdade?
O País está há décadas crescendo pouco e houve um descaso histórico com áreas importantíssimas, que têm ligação com qualidade de vida e desigualdade: educação e saneamento, por exemplo. A piora dos últimos anos tem a ver com a profunda recessão que ainda nos assola. Aqui, o Banco Central vem agindo dentro do seu mandato, reduzindo bastante os juros. Essa seria a resposta mais direta e mais natural, pois o Brasil não é um país que está em uma armadilha de liquidez. Além da política monetária, o BC vem perseguindo uma relevante agenda de redução dos juros para as pessoas e empresas, ainda altos na maioria dos casos. E algumas reformas feitas nos anos recentes, como a trabalhista, devem contribuir para um aumento do emprego.
O aumento da pobreza e da desigualdade já era esperado, dado o tamanho da crise?
A pobreza extrema caiu ao longo dos anos, a desigualdade também, mas ela vem caindo pouco desde 2006 – esse cenário só piorou nos últimos quatro anos. Ouço dos especialistas que tem mais a ver com o impacto assimétrico da recessão sobre os mais pobres. Parece claro que existem algumas dimensões que precisam ser repensadas ou reforçadas. Os investimentos em educação estão no topo da lista, mas são de longo prazo. Tenho batido bastante na tecla de que redução das desigualdades e crescimento têm de andar juntos. Existe uma imensa agenda de redução de desigualdades e aumento de mobilidade social que precisa ser posta em prática. E inclui a viabilização de investimentos em outras áreas sociais, como saúde, transporte urbano, saneamento, segurança.
Se a volta do crescimento é importante para a redução da desigualdade, o que tem atrapalhado?
A minha visão é que prevalece um grau elevado de incerteza política, jurídica e até mesmo institucional que afeta decisões de longo prazo. E, como o espaço maior para investimento no Brasil parece ser o da infraestrutura, isso dificulta o deslanchar de projetos em uma área que já é, por natureza, muito difícil.
Se os índices pioraram desde a recessão, a tendência é que eles voltem a melhorar, com o reaquecimento da economia?
Sim, por definição, seria bom. Mas mesmo que as coisas deem muito certo, serão décadas para recuperar o tempo que se perdeu e reduzir a distância que nos separa dos melhores padrões globais. E também é importante levar em conta as tensões sociais e políticas, que prejudicam a formulação de boas políticas. Não vejo o Bolsa Família como uma política de combate à recessão. Ninguém quer estar em recessão, mas isso, às vezes, permite respostas mais rápidas.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que falta ao governo levar a questão da pobreza para o centro das discussões.
Sim, concordo. Esse deveria ser um foco permanente de atenção. O que acontece é que diferentes governos têm diferentes prioridades. O governo atual parece não ter esse tema como prioridade, eles parecem comprar uma ideia mais antiga de que tem de fazer crescer o bolo antes de distribuí-lo. Ou que o crescimento por si só vai resolver o problema. E outros, como eu, pensam que há muito espaço para agir em paralelo e que um lado reforça o outro.
A falta de recursos públicos pode justificar a ação do governo?
É uma questão de estabelecer prioridades, pois a falta de recursos é real. Especialistas em políticas sociais dizem que existe um problema de gestão e que repensar a maneira de gastar os recursos teria um impacto de primeira ordem. É um ponto de vista que precisa ser considerado, sobretudo quando o Estado brasileiro está em situação fiscal tão precária, do lado das suas finanças.
A ideia que o governo Bolsonaro já considerou, de não reajustar o salário mínimo, poderia frear a redução da pobreza e da desigualdade?
Quem analisa no detalhe o papel do salário mínimo, reconhece que o aumento dele foi muito importante ao longo de mais de 20 anos. No entanto, como política social, existem também custos. Fica essa questão. Outro tema delicado, quase censurado, é a questão da informalidade, que merece mais discussão. Falta uma análise aberta e honesta dessa questão. Ter 50% das pessoas desempregadas ou empregadas na informalidade é um problema social e de produtividade gravíssimo. É inevitável analisar isso de uma maneira desapaixonada. Não é justo governar só para os que estão empregados na economia formal e pertencem a sindicatos, que são mais fortes e cuidam mais dos seus. Como ficam os outros? Isso é debatido na academia, mas não vejo esse tema chegando à política.
Zeina Latif: Será que desta vez será diferente?
A julgar pelo nosso passado, o risco a ser combatido é a complacência
Os anos 2010 se vão sem deixar saudades. O PIB per capita cresceu tímidos 0,5% ao ano – muito pouco para um País onde 60% dos trabalhadores ganham até 1 salário mínimo –, em meio ao aumento da pobreza e à piora da distribuição de renda.
As medidas demasiadas e equivocadas de estímulo já davam sinais de exaustão em 2010, pela inflação teimosa acima da meta e pela rápida deterioração das contas externas. Ajustes eram necessários para que a fartura não virasse indigestão. Além disso, a expectativa era de o País avançar nas reformas estruturais pró-crescimento. O que se assistiu, no entanto, foram retrocessos. Prometeu-se muito e entregou-se uma grave crise.
Dilma preferiu ignorar os “sinais vitais” da economia e dobrou irresponsavelmente a aposta, em meio a muito intervencionismo estatal e ingerência em órgãos e empresas públicas. Para citar alguns dos equívocos, os bancos públicos, menos eficientes e sujeitos a pressão política, tornaram-se mais importantes na concessão de crédito do que os bancos privados e políticas setoriais equivocadas foram feitas aos montes. Os resultados foram investimentos economicamente inviáveis e a rápida deterioração das contas públicas, mascarada por truques contábeis.
Ciclos econômicos são praticamente inevitáveis. O que distinguiu os anos 2010 foi a profundidade da crise, em uma obra escrita a várias mãos: omissões de instituições democráticas; falhas de instituições de controle que permitiram o desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal; e complacência e oportunismo de boa parcela do setor privado, com muitos segmentos se beneficiando das benesses e aproveitando o espaço para pedir mais. Não à toa a bronca da sociedade é generalizada.
Entristece o Brasil ter ido tão longe na trajetória rumo ao abismo.
O basta da sociedade levou ao impeachment de Dilma. Um governo que quebrou o País, e não sabia e não tinha apoio político para consertar. Quando tentou, no início do segundo mandato, o fez de afogadilho, sem avançar em reformas estruturais. Com as dúvidas em relação à solvência do País, refletidas na perda do grau de investimento, a crise ganhou contornos mais dramáticos, com o aperto do crédito.
A pressão nas ruas começou em 2013. Surpreendeu pelo ativismo inesperado da sociedade, pois motivos havia de sobra. Vale compartilhar uma experiência pessoal. Em um seminário internacional, em janeiro de 2013, alertei a plateia sobre os riscos de retrocessos sociais no Brasil, pois os econômicos já eram claros, apesar da negação de muitos. A reação do moderador francês foi afirmar que haveria protestos no Brasil. Eu desconfiei do alerta. Estava, felizmente, errada. A inquietação da sociedade foi gatilho para mudanças.
A sociedade rechaçou o modelo econômico de Dilma e, mesmo com baixíssima popularidade, Temer silenciou as ruas. O governo Temer foi a grande surpresa positiva desses anos 2010. Houve equívocos, como o de reajustar o salário de servidores públicos, mas o saldo final foi muito positivo. Com plano estruturado, entregou um País muito melhor do que recebeu e plantou sementes para a volta do crescimento. Mudou o debate econômico no Brasil, a ponto de Jair Bolsonaro rever seus preconceitos e apoiar a reforma da Previdência que até então sempre criticara.
A classe política passou a compreender melhor a necessidade de reformas e o País se surpreendeu com um Congresso disposto a fazer reformas estruturais. Não é só isso. A sociedade cansada tem conseguido tirar os políticos da zona de conforto.
Não sabemos, porém, quão ambiciosos seremos; quando conquistaremos maior crescimento sustentado. Será que vivemos uma correção de rumos efêmera, fruto da falta de recursos, ou estamos mudando nossas crenças?
A julgar pelo nosso passado, o risco a ser combatido é a complacência. Nos momentos de recuperação da economia desistimos das reformas. Esperemos que seja diferente nos anos 2020.
*Economista-chefe da XP Investimentos