O Estado de S. Paulo

Vera Magalhães: Livros para colorir

Ao sugerir que livros sejam ‘suavizados’, Bolsonaro segue script de todo candidato a autocrata

Retorno hoje a este espaço depois de um breve recesso de ano-novo. Para ele, escolhi dois livros tirados da estante de “ficção”, mas que se mostraram perturbadoramente atuais. Primeiro devorei Submissão, do francês Michel Houllebecq. Depois, ainda abalada, enfileirei finalmente O Conto da Aia, de Margaret Atwood. Duas distopias que têm em comum, além da discussão sobre fanatismo religioso e sua imbricação com o poder, o ataque à educação, e aos livros como seu combustível. De volta à realidade (sic), encontro Jair Bolsonaro estreando 2020 com um ataque aos livros didáticos, que, para ele, contêm um “amontoado” de coisa escrita e deveriam ser suavizados. Qualquer semelhança…

Todo candidato a autocrata tem horror ao conhecimento, à ciência, ao pensamento crítico, ao contraditório, a dados, evidências, fatos históricos, à dúvida, à filosofia, às ciências humanas, à pluralidade de pontos de vista, à palavra sem cabresto.

Não é à toa que não só as obras que me acompanharam nas férias, mas toda a literatura do gênero, tenham na destruição dos livros um ponto fulcral. No ano passado, convidada pelo Estado a listar livros para quem se interessa por política, recomendei o clássico sobre o assunto, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, este devorado nos tempos de faculdade – ah, essa universidade pública subversiva –, em que a sociedade de um futuro então longínquo, e hoje assustadoramente familiar, é construída a partir da queima de todos os livros (o título faz referência à temperatura em que o papel entra em combustão) por “bombeiros”. Nada mais atual que esta ironia num país em que o ministro da Educação ofende os cidadãos nas redes sociais, não?

O problema dos livros didáticos brasileiros está longe de ser o fato de que contêm textos demais. Ao presidente do País e a seus auxiliares deveria caber zelar pela acuidade das informações publicadas, pela revisão da linguagem e, principalmente, pela didática.

Uma das grandes chagas da Educação brasileira é que os alunos não compreendem o que é ensinado. Não adianta simplificar o conteúdo dos livros até torná-los tatibitate, enchê-los de figuras e muito menos, a pretexto de “suavizá-los”, recheá-los de ideologia e narrativas convenientes ao poder de turno – o que, no fim do dia, é o desejo subjacente à fala depreciativa de Bolsonaro.

Depois de investir contra o suposto hermetismo do material oferecido aos alunos, o passo seguinte imediato de todos os que seguem a cartilha autoritária é passar a apontar nele riscos de “doutrinação”, de “alienação” ou de “falsificação” de tudo aquilo que contrarie as crenças, os valores e a leitura de mundo e da História sustentados pelo ocupante do poder da vez.

Ao criar uma narrativa absolutamente fantasiosa – bem mais que a criatividade dos mestres da ficção científica distópica poderia supor, uma vez que o artefato “mamadeira de piroca” não encontra paralelo nem na República de Gilead –, segundo a qual Paulo Freire é ensinado nas escolas para promover lavagem cerebral nas crianças, o “kit gay” vem na lista de material escolar e as universidades são lavouras de maconha em larga escala, o governo Jair Bolsonaro investe diuturnamente, de forma sistemática e absolutamente irresponsável, contra a Educação que prometia resgatar das trevas da “esquerda”.

O legado do PT na corrupção e na falência da economia brasileira é uma chaga que será difícil de aplacar e cujo horror levou a que o bolsonarismo cruzasse a fronteira das distopias e virasse realidade. Mas em nenhum momento o PT demonstrou pelo conhecimento o desapreço que o presidente e seu entorno não conseguem esconder e que parece que não sossegarão enquanto não transformarem em política de Estado.


Rosângela Bittar: Ciranda, cirandinha

Na ciranda do Jair que ama Sérgio, que ama Jair, também tem passe livre o Paulo

Por que Sérgio Moro, juiz conhecido no exterior, popular no Brasil, primeiro lugar na confiança do eleitorado, carcereiro de políticos e empresários, está engolindo tanto sapo?

O presidente Jair Bolsonaro, em cujo governo ele foi alçado à política, o desautoriza, contraria e confronta. Demite quem ele contratou, desfaz negociações, não veta quando ele pede, veta quando não pede. E o ministro da Justiça vai ficando, altivo, como se com ele não fosse, oferecendo explicações para justificar cada revés.

Uma hipótese a considerar é que Moro precisa tanto do governo quanto Bolsonaro precisa dele. O presidente, ao trazê-lo para perto, sugou sua credibilidade, identificou-se com o combate à corrupção, criou uma película de proteção ao redor dos seus que, mesmo frágil, oferece resistência.

Moro mantém o posto para continuar nutrindo seu portfólio de realizações com vistas ao futuro. Agora, na política. Seja como candidato a cargo executivo ou legislativo, seja ministro do Supremo Tribunal Federal ou autoridade internacional em qualquer organismo. O temido juiz de Curitiba extrapola o figurino da primeira instância.

Moro precisa da visibilidade, da proeminência, do holofote, que o credenciam a tudo.

Na ciranda do Jair que ama Sérgio, que ama Jair, também tem passe livre o Paulo, de quem Sérgio e Jair dependem para o sucesso seguinte. Já marcando seus pontos nas pesquisas de popularidade, o ministro da Economia também é um exímio engolidor de sapos: uma demissão de autoridade do seu gabinete, um passo atrás na reforma, um reajuste de preço sustado. Mas Paulo Guedes também está na posição da dependência mútua. Ele tem uma ideia na cabeça e um superministério na mão. Bolsonaro lhe proporcionou a condição de agir incondicionalmente, e ele usa a carta-branca.

E não chia quando contrariado: dois meses depois de perder o amigo e secretário que defendeu a CPMF, demitido pelo presidente, ao estilo indireto e público, Guedes encontrou um substituto e passou a defender a CPMF digital. Faz que não é com ele, um efeito do método de sobrevivência na selva. Afinal, as transações financeiras em pouco tempo serão todas digitais, portanto é melhor brigar por algo que vai existir do que por algo que tem os dias contados.

Paulo depende de Jair para realizar seu plano, e Jair depende do sucesso de Paulo para se reeleger. Se rompida essa corrente, Sérgio Moro, que já faz política em tempo integral, estará garantido. Para os incrédulos sobre o apetite e chances de Guedes, há o exemplo de Fernando Henrique Cardoso. Basta repeti-lo.

Guedes tem tudo para chegar aonde quiser e, embora não pareça gostar da política e dos políticos (até este traço em comum tem com Bolsonaro e Moro), é política o que faz, também em tempo integral.

São fatores de uma conta de somar, não de dividir. A estratégia de contrapor um ao outro – Moro a Guedes e vice-versa – está fadada ao fracasso, por enquanto. Este entrelaçamento pertence a um movimento, o bolsonarismo, cuja existência e força não se pode negar. Já com três protagonistas, está em vantagem quanto ao lulismo, ainda sem peça de reposição.

Um quarto nome, com a inclusão de Hamilton Mourão, o general vice-presidente que muitos citam como destaque no bolsonarismo, ou um quinto sócio-atleta que ainda poderá surgir, será resultado da porta entreaberta precocemente.

Hoje é o presidente quem comanda. Ele decide quando apoiar e quando queimar, quando afagar e quando agredir. Suas regras são aceitas. Se os empresários saúdam Bolsonaro, estão apoiando Guedes; se o eleitorado manifesta crença no presidente, é a paixão por Moro que se transfere.

Nas condições atuais, o candidato do bolsonarismo, em 2022, ainda é Jair Bolsonaro, mas há alternativas, como se vê. Que outro movimento pode dizer o mesmo?


Pedro Fernando Nery: Economia e felicidade

Felicidade do brasileiro tem caído nos últimos anos, segundo pesquisa mundial

Em 1974, o professor Richard Easterlin observou que o crescimento da renda dos Estados Unidos nas décadas anteriores não alterou a felicidade dos seus cidadãos. O achado ficou conhecido como Paradoxo de Easterlin e inaugurou o campo denominado economia da felicidade, que busca responder questões universais como “o dinheiro traz felicidade?”. A primeira coluna do ano é sobre esse simpático campo de pesquisa.

O Paradoxo de Easterlin é disputado: diversas pesquisas posteriores identificaram correlação e mesmo relação de causalidade entre renda e bem-estar. Dois prêmios Nobel em Economia, Daniel Kahneman (2002) e Angus Deaton (2015), estimaram um teto em uma renda anual de US$ 75 mil: acima desse nível, mais dinheiro não traria mais felicidade. Os autores parecem concluir que não importa ser rico, mas importa não ser pobre: “As dores dos infortúnios da vida – como doenças, separações e solidão – são significativamente exacerbadas pela pobreza”.

Uma série de estudos discute duas perguntas: se o efeito do dinheiro na felicidade é temporário (adaptação hedônica) e se o efeito do dinheiro na felicidade é relativo (depende da comparação com pessoas próximas – como o cunhado, o vizinho, o colega de trabalho). Para a primeira pergunta, são comuns as pesquisas com vencedores de loterias, experimento natural que isola o dinheiro de outras características pessoais. Em geral, o efeito é identificado, mas a magnitude varia na literatura.

Com base em uma pesquisa mundial da Gallup, tem sido publicado a cada dois anos o World Happiness Report (WHR). Segundo o relatório, a avaliação do brasileiro quanto à sua felicidade tem caído nos últimos anos. A “nota” média dada pelos entrevistados, de 0 a 10, era de 6,98 no biênio 2012 a 2014, caindo para 6,64 entre 2014 a 2016 e, mais recentemente, para 6,3 entre 2016 e 2018 – isto é, já após o início da recuperação econômica. Em um ranking, o País seria o 32.º, e se destaca no quesito suporte social (parentes e amigos para contar se precisar).

Desde que passou a ser publicado, Venezuela e Síria foram os países com pior variação negativa no índice. A variação brasileira recente não chega perto, mas chama a atenção seu início coincidir com a recessão do governo Dilma e pela queda contínua, mesmo depois da retomada do PIB a partir de 2017.

Chegamos então a duas outras variáveis também estudadas pela economia da felicidade: desemprego e desigualdade, duas mazelas que ainda pouco têm respondido ao crescimento da economia depois da crise. No trabalho seminal de Andrew Clark e Andrew Oswald, o desemprego era a variável que mais afetava negativamente o bem-estar individual, sendo pior que um divórcio. Em anos recentes, têm se apontado que os efeitos da economia sobre o psicológico são muito mais significativos quando negativos do que quando positivos. Deaton lembra que o efeito do desemprego é pronunciado mesmo quando considerado isoladamente do efeito da perda de renda.

Quanto à desigualdade em nível nacional, há resultados encontrando efeito positivo sobre a felicidade em países emergentes, talvez por sinalizar a possibilidade de mobilidade social. Entre os que encontram efeito negativo, explicações passam pela desconfiança e ansiedade com status social.

A medição da felicidade é um tema a parte: o WHR traz duas medidas além da nota de felicidade, uma de “afeto positivo” (frequência de risada e prazer no dia anterior) e outra de “afeto negativo” (frequência de preocupação, tristeza e raiva no dia anterior). São medidas comuns em estudos de psicologia positiva e próximas das usadas pelos Nobéis Kahneman e Deaton.

De forma análoga, no Reino Unido, o equivalente do IBGE monitora em uma equivalente da Pnad quatro indicadores (separando a satisfação com a vida em termos gerais da percepção de sentido e propósito da vida). É uma prática diferente do experimento autoritário do Reino do Butão, conhecido por maximizar um índice de “Felicidade Interna Bruta”. Proposta de adoção da experiência inglesa no Brasil consta Projeto de Lei 2.067/2019, do senador Eduardo Girão.

O campo deve ganhar mais atenção nos próximos anos, porque guarda relação com a preocupação com o meio ambiente e a busca por novas métricas para medir a prosperidade humana em alternativa ao PIB. Pesos-pesados da economia compuseram uma comissão para tratar do tema, encomendada pelo governo francês: o trabalho é revisitado no livro recém-lançado Measuring What Counts: The Global Movement for Well-Being, que tem entre os autores o prêmio Nobel ativista Joseph Stiglitz. Vale ressaltar, porém, que 99,9% da população mundial ainda se encontra abaixo do limite calculado por Kahneman e Deaton. Para quase todo o mundo, mais PIB ainda é mais felicidade.

* Doutor em economia


Paulo Hartung: A hora da bioeconomia

Temos de trabalhar em rede em prol da reinvenção dos modos de habitar a Terra

Utilização de materiais de origem fóssil, emissão de gases de efeito estufa, mudanças climáticas, desastres naturais... Precisamos superar o círculo vicioso dessa necroeconomia, que põe o nosso futuro em risco. Já não basta mudar, é necessário revolucionar. Transformar a maneira de fazer negócios, consumir, construir, enfim, viver. Já passou da hora de entrarmos de vez no círculo virtuoso da bioeconomia.

Nesse desafio, é preciso que as instituições – governos nacionais, organismos multilaterais, corporações, empresas, ONGs e outras forças da sociedade, como a academia – apressem o passo para não serem atropeladas pelas mudanças que já estão em andamento. Não há mais espaço para esforços individuais ou desarticulados. O mundo tem urgência por resultados práticos e só a mobilização compartilhada pode garantir um horizonte para o nosso planeta.

Estive na Bélgica, onde conheci o Instituto de Biotecnologia de Flandres – Vlaams Instituut voor Biotechnologie (VIB) –, numa região próxima à fronteira com a Holanda. A entidade construiu um sistema de governança bastante interessante e formatado de modo a reunir diferentes atores sociais em torno da inovação sustentada pelo conceito de bioeconomia. O local é financiado pelo governo, mas atua em parceria com empresas e cinco universidades. São 51 milhões de euros de investimento entre 2017 e 2021.

Em Ghent, também na Bélgica, visitei a Bio Base Europe Pilot Plant, biorrefinaria que é mais um exemplo a ser seguido. Investimento do governo local, o espaço está à disposição de empresas e da academia para pesquisa e desenvolvimento de soluções que tenham em seu DNA o aproveitamento de resíduos biológicos que substituam matéria-prima agressiva ao meio ambiente.

Altamente tecnológica, a biorrefinaria já recebeu mais de 120 companhias da Europa, da Ásia e das Américas que pesquisaram ou desenvolveram soluções inovadoras e fundamentais. Dali já saíram biocombustíveis, bioquímicos, bioadesivos, cosméticos, solventes, ingredientes para alimentos e medicamentos, entre uma infinidade de outros itens que em breve estarão no dia a dia da sociedade ajudando a migração para a bioeconomia. Sem uma companhia por trás da Bio Base Europe Pilot Plant, as empresas sentem-se confortáveis para desenvolver projetos, seguras da confidencialidade necessária para o avanço de pesquisas e obtenção resultados.

No Brasil não falta potencial e temos muito campo para avançar. Dentro do País há potencialidades e cases que demonstram ser possível mergulhar no mundo da bioeconomia e ter um papel de liderança nesse tema.

Quando o assunto é biomassa, as oportunidades são ainda maiores. O setor florestal nacional é referência em árvores cultivadas para fins industriais e seus resíduos têm alto valor.

A economia circular já faz parte do processo produtivo dessa indústria. Tocos de árvores, galhos e outros resíduos são utilizados para gerar energia, por exemplo. Na indústria de papel a reciclagem é muito forte.

O momento é propício. As novas gerações estão mais conectadas à sustentabilidade, conscientes de seu papel e da necessidade de assegurar um futuro para a humanidade. Essa garotada vai definindo novos padrões de consumo, com exigências que já se tornam o novo normal: menos produtos de plástico e de origem fóssil em geral, com explicitação de requisitos como reciclabilidade, renovabilidade e compostagem, com uma visão da circularidade da economia e crescente intolerância ao desperdício e ao single use.

A COP-25, em Madri, resume bem o momento. Não foi realizada no Brasil nem no Chile e coube à Espanha correr contra o tempo para evitar que a conferência se mostrasse de todo irrelevante do ponto de vista de seus resultados concretos e considerando que em aspectos centrais da implementação do Acordo de Paris, especialmente a aprovação do artigo 6 – mercado de créditos de carbono –, persistiu um impasse.

O fato é que a lógica das negociações multilaterais, como são as conferências da ONU sobre mudanças climáticas, por sua própria natureza e dimensão, na prática, estão na contramão de qualquer ideia de urgência.

No Brasil ainda precisamos sentar à mesa e pensar estrategicamente nesses assuntos, que são fundamentais para nosso futuro. Não há problema algum em olhar para fora de nossas fronteiras e nos inspirarmos.

Nesse sentido, a União Europeia lançou em Madri o documento The European Green Deal, com diretrizes para tornar a região neutra de carbono até 2050. A China até poucos anos atrás era um exemplo de degradação ambiental. Hoje se tornou um case de sucesso: suas metrópoles já não apresentam o ar irrespirável de antes, seu sistema de transporte coletivo vai adotando a eletricidade... Nos EUA, circunstancialmente afastados dos debates globais sobre economia de baixo carbono, os Estados subnacionais, a exemplo da Califórnia, já realizaram a reconversão de suas respectivas matrizes energéticas.

Somos uma potência ambiental e sem favor algum estamos predestinados ao protagonismo. Nosso desafio é nos reconectarmos em mutirão de mobilização colaborativa, para que possamos enfrentar e superar problemas inaceitáveis, ainda persistentes quando iniciamos a terceira década do século 21, em áreas decisivas à dignidade da vida, como educação e saneamento.

O fundamental no momento é uma visão cuidadosa, que, de fato, mire um futuro sustentável para o planeta, o que passa pela promoção e valorização de nossa caminhada civilizacional no rumo da economia circular e da bioeconomia. Aqui estou falando diretamente da sobrevivência de todos. Por isso temos de sair do discurso apequenado pelo viés ideológico e atrasado, passando a trabalhar em redes de cooperação em prol da reinvenção dos modos de habitar a Terra. Não podemos vacilar mais. O nosso futuro depende do agora.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Eliane Cantanhêde: Entrando de gaiato

Essa guerra não é nossa. O Brasil não tem nada a ganhar, só a perder, se entrar nela

Se fosse confirmada a retirada das tropas americanas do Iraque, depois de 17 anos de invasão, estaria encerrada uma das histórias mais inacreditáveis e sujas da política internacional recente. O governo George W. Bush atacou o Iraque unilateralmente, sem o aval do Conselho de Segurança da ONU e baseado em mentiras – caso claro de fake news institucionais.

Depois de dominar o Iraque por quase duas décadas, sob vistas grossas da ONU e da comunidade internacional, os EUA agora atacam sem cerimônia a capital iraquiana para trucidar o principal líder militar iraniano. Agora, como se estivessem dizendo “até logo”, podem abandonar o país deixando um rastro de destruição e falta de horizonte. Uma terra arrasada.

Um livro revelador e de fácil compreensão sobre essa tragédia moderna, Curveball, do jornalista norte-americano Bob Drogin, foi escrito com base em manifestações oficiais, documentos, entrevistas e bastidores da decisão de Bush de invadir o Iraque. É estarrecedor como uma decisão dessa dimensão pôde ser tomada pela maior potência mundial sem qualquer cobrança ou punição. O mundo assistiu calado, lavou as mãos.

Em resumo, sem dar “spoiler”, Drogin conta a história da decisão, que começa com o relato de um desertor iraquiano que se dizia engenheiro químico e descrevia em detalhes, e até desenhava, como o seu país desenvolvia sofisticado programa de armas químicas e biológicas móveis. Espertalhão e viciado em internet, tudo o que ele queria, na verdade, era fugir do Iraque e se asilar na Alemanha. Faria, ou diria, qualquer coisa para isso.

O espantoso é como a BND da Alemanha comprou a história, repassou para o MI-6 da Inglaterra e o Mossad de Israel e deu de mão beijada para a CIA dos EUA o pretexto para Bush anunciar um ataque daquele porte. A princípio reticente, o secretário de Estado Colin Powell acabou comprando a versão e a invasão foi decretada. E o que os EUA encontraram? Nada. O Iraque não tinha arma químicas e biológica nenhuma. Mal tinha armamento tradicional de guerra, ainda mais contra a potência econômica, política e bélica.

Com o Iraque transformado em casa da Mãe Joana, foi fácil, quase natural, Washington agora usar um drone sofisticadíssimo para explodir o general iraniano em solo iraquiano. Assim, os EUA saem do Iraque como entraram: tratando o país como se fosse seu quintal, estivesse à sua mercê.

Nunca vai se saber como o Irã teria evoluído se tivesse vingado o acordo nuclear assinado por ele em 2010, com a mediação de Brasil e Turquia e solapado por EUA e França. Mas todo o mundo, literalmente, sabe que a crise só chegou ao ponto que chegou após os EUA retirarem, em 2015, o aval ao segundo acordo nuclear aceito pelo Irã e sancionado. Sem os EUA, os países europeus que o subscreveram perderam força. E o Irã, isolado, partiu para retaliações e provocações e agora anuncia que vai jogar todo o acordo fora, aprofundando o enriquecimento de urânio e o desenvolvimento de ogivas nucleares.

Apesar de todos esses erros e de todo esse excesso de pretensão dos EUA, a nota do Brasil sob o conflito abandonou a prudência tradicional da política externa e privilegiou o viés ideológico do governo Bolsonaro, com o danoso alinhamento automático a Trump. Rússia e China de um lado, OTAN de outro, europeus discutindo freneticamente como negociar uma bandeira branca e evitar o pior, ou seja, uma guerra.

Se a situação degringolar de vez, o Brasil vai ser chamado a se posicionar mais explicitamente e até a agir. Cometerá um erro histórico se ceder ao chamamento, ou pressão, de Trump. Essa guerra não é nossa. O Brasil não tem nada a ganhar, só a perder, se entrar nela de gaiato.


Luís Eduardo Assis: Voa, galinha, voa!

Se o governo não engendrar logo uma forma de alavancar investimentos, estaremos condenados a voar baixo

Em entrevista logo após a aprovação da reforma da Previdência, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, deitou falação e assegurou que o Brasil poderia, a partir de então, “oferecer aos investidores a tal previsibilidade que permite o cálculo econômico e que dá segurança a quem investe”. O ministro, que é veterinário, tocou num ponto que ocupa a teoria econômica há séculos. É fato que perspectivas favoráveis são cruciais para engendrar um novo ciclo de crescimento, mas desde então não só o ministro despontou para o anonimato, como também o investimento deu demonstrações apenas tépidas de que atendeu ao chamamento oficial.

Medir o comportamento do investimento não é coisa simples no século 21. Na enciclopédia editada pelo economista David Glasner (Business Cycles and Depressions), o verbete “investimento” é definido como “o fluxo da produção corrente alocado para a acumulação de capital”. Isso é coisa do tempo em que a indústria dava as cartas. Hoje é diferente, mas a metodologia do cálculo do investimento no Produto Interno Bruto (PIB) não se alterou de forma significativa. Se uma empresa gasta bilhões em novos sistemas, novos processos, novas marcas ou novos produtos, isso impacta pouco o cálculo do investimento, apesar de acumular enorme capital intangível.

Por essa métrica convencional, o Brasil ainda está devendo. A Formação Bruta de Capital Fixo (o nome completo que consta no passaporte do investimento) crescia, em termos anualizados, 4,1% no terceiro trimestre de 2018, ritmo que caiu para 3% no terceiro trimestre de 2019, quando ficou 23% abaixo do patamar do terceiro trimestre de 2013. Na indústria de bens de capital, núcleo duro do conceito tradicional de investimento, o quadro ainda é desolador. O crescimento porcentual anualizado em outubro de 2019 estava em 0,2%, ante 8,7% 12 meses antes. Ou seja, esse segmento da indústria está desacelerando. A produção de bens de capital de outubro de 2019 era 33% menor que a do final de 2013.

O crescimento mais intenso da economia em 2020 parece assegurado. Virá do consumo, estimulado pelo pequeno aumento do emprego e pela forte queda nos juros.

Juros menores também impulsionarão a construção civil, já que os órfãos da renda fixa terão de procurar alternativas para a valorização de seus capitais. Mas será o comportamento dos investimentos que definirá se este crescimento será ou não um novo voo de galinha.

O governo parece alheio a este empecilho. Dentro do fundamentalismo liberal que dá a tônica das medidas econômicas, o pressuposto é de que o mercado resolve tudo e que basta o governo se recolher para que a iniciativa privada preencha automaticamente o hiato. Algo como uma reedição tardia do credo professado por Thatcher ou Reagan. Aqui ainda estamos passando flanela nessas ideias antigas.

O investimento industrial pode reagir ao aumento do consumo. Não será a salvação da lavoura, mas salvam-se algumas couves. Já o investimento em infraestrutura não pode decolar sem a coordenação direta do governo. Fala-se em concessões como se fosse trivial atrair a iniciativa privada para projetos de longo prazo. Mas a Lei Geral de Concessões tramita na Câmara dos Deputados sem a chancela do governo, do que resultou um projeto megalomaníaco e de duvidosa eficácia. O governo Bolsonaro não entende que foi eleito para fazer política. Sem falar que nem todos os projetos de infraestrutura são passíveis de serem explorados por empresas que visam ao lucro. O mercado projeta hoje um crescimento de 10% no acumulado dos próximos quatro anos. É pouco, quase um voo de galinha. Se o governo não engendrar logo uma forma de alavancar investimentos, estaremos condenados a voar baixo.

*Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor de economia da PUC-SP e da FGV-SP.


Eliane Cantanhêde: E o Brasil com isso?

No maior teste da nova política externa, Brasil adota neutralidade ou assume lado?

O conflito dos Estados Unidos com o Irã é o maior teste do governo Jair Bolsonaro e já exibe duas claras guinadas, não apenas em relação aos governos petistas, mas à própria política externa tradicional do Brasil. E o pior está por vir, pois a vingança do Irã é certa, mas não se sabe quando, como e com que grau de ferocidade. O que fará o Brasil?

As duas mudanças perpassam as discussões de cúpula do governo e podem ser identificadas na nota do Itamaraty. A primeira é que o foco no Oriente Médio não é mais o conflito Israel-Palestina e sim o Irã. A segunda é que o Brasil deixa de tratar o terrorismo como uma questão distante, dos países desenvolvidos e do Oriente Médio. O terrorismo passa a ser problema nosso, sim.

No “novo Brasil”, alinhado incondicionalmente não só aos EUA, mas ao governo Trump, o Irã é a maior ameaça internacional, com seu projeto audacioso de hegemonia na região e insinuando-se até como novo líder mundial a partir do seu programa nuclear. Persa, não árabe, é o Irã quem assume a dianteira no enfrentamento a Israel, negando até o holocausto e o próprio Estado de Israel, como já se esgoelava Mahmoud Ahmadinejad, homem forte do país entre 2005 e 2013.

Tanto Trump quanto Bolsonaro têm forte base política entre judeus e evangélicos, que estão na linha de frente pró-Israel. Não por acaso, o primeiro compromisso e a segunda manifestação de Trump após o ataque que matou o principal líder militar iraniano foram em Miami, num evento evangélico.

Agregue-se à ascensão do Irã a sua proximidade com a Venezuela de Nicolás Maduro e tem-se a suspeita de apoio iraniano à instalação de células do Hezbollah na América do Sul. Bom pretexto para a mudança da posição brasileira sobre terrorismo. Não é mais “coisa dos outros”.

As primeiras manifestações do presidente Jair Bolsonaro foram bem-vindas. Ele admitiu o impacto da crise sobre o preço do petróleo, mas descartou tabelamento. Ponto com o mercado e com o Ministério da Economia. E lembrou que o Brasil não tem armamento nuclear e não pode assumir um lado, ficando sujeito a retaliações. Ponto com os militares e com a diplomacia responsável.

A nota do Itamaraty, porém, é toda em cima do combate ao terrorismo e embica para a condenação ao Irã e o apoio aos EUA, deixando em aberto qual será a posição brasileira se, ou melhor, quando o Irã retaliar. Nesse momento, Trump cobrará posição e ação. O que o Brasil responderá?

A nota não condena a ação americana e o assassinato do general Suleimani, mas sim, além do “terrorismo”, os ataques à embaixada dos EUA em Bagdá. E diz que o Brasil está pronto para participar de “esforços” para evitar uma escalada. Participar como? Como mediador neutro ou a favor de um lado?

Ouçam-se os generais e estrategistas militares e eles responderão: “não é coisa nossa”. Ouçam-se embaixadores e especialistas em política externa e eles farão coro: “não temos nada a ver com isso”. E, juntos, concordam com a primeira avaliação de Bolsonaro: o Brasil não tem tamanho para entrar nessa guerra. Melhor seguir o exemplo da França: pedir cautela e fim da escalada. Ponto.

Além da questão geopolítica e dos riscos para o planeta, a crise envolve questões internas. Trump convive com o impeachment e a reeleição neste ano. O Irã sofre rejeição em parte do Iraque e do Líbano. Logo, arrumar “inimigos externos” é conveniente a ambos, assim como Hugo Chávez recorria ao “demônio” EUA a toda hora para unir a Venezuela.

Objetivamente, o Brasil pode muito pouco num conflito ou numa guerra assim e tem de se preocupar com a ameaça imediata: o preço do petróleo. Isso, sim, tem reflexos diretos no País. Inclusive, na política interna.


Priscila Cruz, Guilherme Lacerda e Lucas Hoogerbrugge: Melhor governança, mais resultados na educação

Falta de um sistema nacional faz o Estado desperdiçar recursos materiais e humanos

Imagine duas escolas públicas de ensino fundamental vizinhas, uma municipal e outra estadual. Ambas atendem crianças do mesmo bairro, têm salas de aula ociosas e, vistas de fora, parecem muito semelhantes. Por outro lado, cada uma tem um processo para formação de professores, alunos que chegam em diferentes tipos de transportes, mesmo sendo vizinhos, e a merenda também é distinta. Nesse cenário, há completa falta de racionalização de recursos, perda de escala e ineficiências sobrepostas, que poderiam ser minimizadas caso houvesse articulação e colaboração entre a gestão estadual e a municipal.

Essa desarticulação tem origem no formato do pacto federativo vigente num país que se divide em 5.570 municípios, 26 Estados e o Distrito Federal, além da própria União. Cada um desses entes tem autonomia administrativa, formula e gerencia suas políticas educacionais de forma isolada.

Dados as características demográficas, a heterogeneidade regional e o modelo federativo brasileiro, nossos legisladores dividiram as responsabilidades pela oferta da educação pública da seguinte forma: a educação infantil é promovida pelos municípios, o ensino médio pelos Estados e o ensino superior é majoritariamente ofertado pela União. Já na etapa do ensino fundamental, a oferta é compartilhada e as divisões de responsabilidades não são claras.

Como não há no Brasil um Sistema Nacional de Educação que organize a governança no setor, a distribuição das matrículas entre redes estaduais e municipais tornou-se muito heterogênea, com pouco ou nenhum alinhamento gerencial e pedagógico, o que provoca uma série de distorções e reforça as desigualdades de oferta educacional e os resultados. Além das consequências negativas na aprendizagem dos alunos, o próprio Estado desperdiça recursos materiais e humanos que poderiam ser mais bem investidos nas escolas.

O bem-sucedido regime de colaboração do Estado do Ceará, com enorme repercussão nos resultados de aprendizagem de seus estudantes, só foi possível porque o processo de formulação e de gestão da política educacional é pactuado entre o Estado e seus municípios. Tanto as ações estaduais de apoio técnico e pedagógico às secretarias municipais de Educação quanto o repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) aos municípios que melhoram a aprendizagem de suas crianças são viáveis somente em um contexto de cooperação entre os entes federativos. O regime de colaboração exige convergência de objetivos, governança compartilhada e colaboração no processo decisório.

Entretanto, ainda que a cooperação entre Estado e municípios no Ceará tenha decorrido de maneira articulada, a falta de um sistema nacional de educação já fez o Estado ter dificuldades com programas criados pelo governo federal, como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). Inspirada justamente no caso cearense, a iniciativa foi implementada pelo Ministério da Educação sem levar em consideração as ações já promovidas nas redes de ensino de Estados e municípios, o que resultou em retrabalho e desarticulação da política educacional. Ironicamente, Estados como o Ceará, que desenvolviam ações em colaboração com os municípios, foram prejudicados pelo programa nacional, pois, além da duplicidade de ações e da desarmonia entre os currículos, materiais e metodologias pedagógicas, o arranjo organizacional para a implementação da política era totalmente diferente. Assim, o Estado foi forçado a modificar uma estrutura que já funcionava, aumentando os custos do programa.

Para além das dificuldades gerenciais e pedagógicas, a ausência de um sistema nacional de educação impacta diretamente a sustentabilidade fiscal dos investimentos na educação. A falta de uma instância de pactuação entre União, Estados e municípios na área faz não só todos reformularem e implementarem políticas educacionais simultaneamente e de forma descoordenada, mas também não haver acordo sobre o que é prioridade e a melhor forma de alocar recursos. Isto é, embora seja do interesse de todo o País uma trajetória escolar para crianças e jovens sem percalços e com qualidade, cada um de nossos gestores está falando apenas com os seus.

Uma boa notícia é que o assunto está sendo pautado no Congresso Nacional e deve se tornar mais importante conforme a agenda de financiamento da educação avança. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mencionou a criação de um sistema de governança na educação como uma das quatro áreas que considera prioritárias para o desenvolvimento do País.

Entretanto, ainda que exista algum consenso acerca da necessidade de criar o sistema, o desafio atual consiste em conceber uma lei que estabeleça mecanismos de governança efetivos, garantindo que a autonomia dos entes federativos seja exercida de forma coordenada, evitando engessamentos ou burocracias desnecessárias, como é hoje. Não é trivial desenhar um sistema que respeite a autonomia dos entes federados, promova a equidade nos sistemas de ensino e garanta a qualidade do investimento na educação. Por isso, o foco há de estar em definir com clareza a repartição de responsabilidades entre os três níveis da Federação e institucionalizar espaços deliberativos para a articulação e a ação conjunta entre os entes na formulação e implementação de políticas educacionais.

Isto posto, é urgente que os parlamentares mergulhem na discussão da melhoria da governança da educação brasileira. Além de ouvir os especialistas no assunto, é preciso estudar os casos bem-sucedidos de articulação do pacto federativo, dentro e fora da educação. Afinal, com um sistema nacional de educação bem estruturado teremos as bases para chegar mais rápido a um cenário de mais qualidade e equidade.

* RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE EXECUTIVA DO TODOS PELA EDUCAÇÃO, SECRETÁRIO EXECUTIVO DO COLABORA EDUCAÇÃO E GERENTE DE ESTRATÉGIA POLÍTICA DO TODOS PELA EDUCAÇÃO.


Eugênio Bucci: Como o jornalismo tece a liberdade

A imprensa livre surge como conquista das revoluções liberais, mas o que tece a liberdade é o exercício radical da liberdade de expressão

Bem sabemos que a imprensa é uma invenção do Iluminismo: para que o poder emane do povo, é preciso que os comuns do povo possam controlar o poder, e para isto foi preciso inventar o ideal da imprensa. A livre circulação das ideias, esse “direito precioso”, aparece na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (artigo 11), de 1789. A liberdade de imprensa, esse “baluarte”, consta da Declaração de Virgínia (art. 14), de 1776. Mas o jornalismo, esse ofício, esse método, esse idioma peculiar pelo qual a imprensa se manifesta diariamente, não se reduz à conquista do liberalismo: é o exercício cotidiano de construção da liberdade.

Em outras palavras, a imprensa livre surge como conquista (sangrenta) das revoluções liberais, mas o que tece a liberdade é o exercício radical da liberdade de expressão, do qual a liberdade de imprensa (que inclui o direito de investigar, fiscalizar e criticar o poder em público) é o centro gravitacional.

Logo, se queremos compreender a democracia como construção social (o que ela é), com direitos que vão além dos horizontes das revoluções liberais (como vão), precisamos pensar o jornalismo não como beneficiário, mas como construtor de liberdades. As boas práticas jornalísticas deixam um saldo de liberdade a mais.

Quanto a isso, devemos distinguir as chamadas liberdades negativas das positivas. As negativas existem à medida que inexistam restrições externas que oprimam o indivíduo (daí o qualificativo negativas): minha liberdade começa onde termina a do outro e, principalmente, onde termina a interferência do Estado sobre mim. Temos aí o espírito do liberalismo por excelência: minha liberdade coincide com minha propriedade e ambas coincidem com minha felicidade (privada).

Mas a esfera privada é pequena para essa matéria. A liberdade de expressão, como a liberdade de reunião, são liberdades não privadas, mas públicas – fluem na direção da ação política. No dizer de Hannah Arendt, são liberdades positivas, liberdades que se afirmam apenas em público. Nesse caso, como já perceberam alguns, como Cornelius Castoriadis, a minha liberdade começa onde começa a do outro.

As liberdades públicas, positivas, vêm completar e dar sentido democrático às liberdades privadas, negativas. Sou livre porque sei que meus iguais exercem suas liberdades públicas e, assim, asseguram a minha. Sou livre porque há jornalistas que investigam, fiscalizam e criticam o poder, mesmo quando discordo do que dizem. Se existem jornalistas exercendo e ampliando suas liberdades públicas, sei que o poder terá menos espaço para abusar de mim.

*Jornalista e professor da ECA-USP


Miguel Reale Júnior: O desafio de 2020

Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos de confronto

Em 14 de maio de 1989 publiquei artigo na Folha de S.Paulo em que ponderava ser o momento propício a seduções inconsistentes, como se via no sucesso de Fernando Collor nas pesquisas eleitorais, sobressaindo a postura impetuosa do candidato como caçador de marajás. Lembrava então que conteúdo, passado político e compromisso com a liberdade eram desprezados, valendo mais buscar um salvador sem maiores avaliações ou perquirições. E indagava se seria Collor moralizador da administração, pois quando prefeito biônico de Maceió nomeara mais de 4.500 funcionários, a maioria apaniguados.

Seria consolidador da democracia o jovem deputado federal Collor, que votara contra a emenda da eleição direta para presidente? Seria instrumento de justiça social o deputado que apoiou os decretos de arrocho salarial? Seria Collor o construtor do futuro, pois preferira votar em Paulo Maluf, e não Tancredo Neves, para presidente? E concluía que o momento requeria muito mais que impensadas saídas milagrosas. Mas pouco valiam tais considerações!

Já em maio de 2018, igualmente ano de eleições, disse em artigo publicado nesta página: “Assusta que o pré-candidato Bolsonaro arregimente adeptos quando suas ideias são manifestamente elogiosas à violência na política”. Trazia para aumentar esse espanto exemplos de suas manifestações, pois aplaudia a tortura como meio de obtenção de prova; a seu ver, “o erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Pinochet devia ter matado mais gente”; “não poderia amar um filho homossexual”. Terminava o artigo considerando que aceitar essa candidatura presidencial, alimentada por tais ideias, seria a volta piorada da ditadura pela via do voto. Mas pouco valiam tais considerações!

Ambos, Collor e Bolsonaro, terminaram o primeiro ano de mandato, conforme indica o “monitor-popularidade” do Estadão, com reduzidas taxas de satisfação, abaixo de 30%, tendo os dois iniciado o governo com mais de 50%. Vê-se, portanto, que a impensada busca de um salvador, tratado como mito, se decompõe facilmente, mesmo porque a decepção não decorre apenas das exageradas expectativas positivas, mas da realidade negativa não visualizada pela emoção dominante durante o processo eleitoral, que disfarça a face verdadeira do preferido nas urnas.

As circunstâncias de ambos em seguida ao primeiro ano do mandato têm aspectos parecidos e diversos. Após o fracasso do Plano Collor, a inflação reincidia e se instalara um processo recessivo. Collor envolveu-se nas tramas corruptas de seu auxiliar predileto, PC Farias, e a cada dia perdia força no Congresso Nacional, estando sem partido. Decrescia o respeito da sociedade civil.

Com Bolsonaro, a inflação está contida e há melhora da economia, mas não tanto quanto desejam alguns agentes econômicos. Mas há uma grande pedra no sapato, relativa à possível corrupção familiar no que tange ao emprego dos membros da família da ex-mulher do presidente no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, com participação nos salários auferidos, além das investigações sobre as relações do clã com milícias fluminenses. Bolsonaro não tem articulação política no Congresso, está sem partido e não terá tão cedo. A sociedade civil o deplora.

Mas há um fator fundamental existente à época da debacle de Collor e inexistente hoje: a presença de líderes capazes de construir uma conciliação, um ponderado centro político garantidor de harmonia social, representado por homens como Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Franco Montoro, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel.

Exemplo da importância dessa circunstância está no seguinte episódio: como um dos redatores do impeachment de Collor, fui procurado por chefes militares em vista também de minhas relações com Ulysses e com os líderes do PSDB. Esses militares desejavam saber se essas lideranças apoiariam o governo Itamar Franco, pois a única preocupação do setor fardado era com a governabilidade. A resposta, como não podia deixar de ser, foi positiva. E esses líderes conduziram o País em conjunto com Itamar, tornando-se viável o Plano Real.

Fácil é pretender exercer o poder com radicalismos e demagogia. Difícil é ter autoridade na conciliação, buscando impor harmonia e acatamento por via de compromisso que reúna os diversos atores, com a escolha consentida e refletida de prioridades e pela negociação tolerante, que ameniza o conflito sem eliminá-lo, supera os impasses e se prepara para os próximos, evitando desbordar na violência.

Os conflitos são perenes, mas com ponderação e persuasão se formulam caminhos temporariamente redutores de embates. Numa época de tanta paixão, de comunicação impensada e rápida pelas redes sociais, é ainda mais necessária uma autoridade que se afirme por gerar confiança sopesada e consistente.

Para tanto há de se ter lideranças que tenham por alicerce a coragem de reconhecer no antagonismo não o desastre fatal, a fraqueza, mas a própria força da democracia. Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos escuros de confrontos à flor da pele.

Esse o grande desafio para 2020. Pouco se pode esperar de Bolsonaro como mediador de controvérsias. Ao contrário. De outra parte, o governo não tem no Congresso líderes que possam falar por ele, estabelecer prioridades e conseguir compor propostas negociadas para superar divergências nas reformas tributária, administrativa e política e no combate à desigualdade social.

Assim, com presidente tosco e na falta de chefias partidárias capazes de assumir a condução da grande política, a sensação é de um país em busca sôfrega de recuperação econômica que supra as deficiências da ausência de comando, antes que o descontentamento e a descrença nos Poderes constituídos venham a materializar-se nas ruas. Nosso futuro é opaco, sem perspectivas claras.

* Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Everardo Maciel: Há perigos à espreita

Recente decisão do STF, alargando as hipóteses de crimes tributários, é outro perigo à espreita

Em 2019 houve muita agitação no mundo tributário brasileiro. Felizmente, não prosperaram as pérolas da temporada de ideias ruins, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, autodesignada reforma tributária. Às vezes, não fazer é também uma vitória.

Lentamente, foram sendo desvendadas as agendas ocultas daquela PEC, despertando a consciência dos parlamentares e dos contribuintes.

Não se deve, é claro, interditar o debate tributário. Assim, embora não esteja de acordo, reconheço autenticidade em proposta que pretende punir, entre outros contribuintes, as pequenas escolas e clínicas, os pequenos comerciantes e prestadores de serviços, os produtores de leite, os optantes do Simples e do Lucro Presumido e, concomitantemente, reduzir a tributação das instituições financeiras. Trata-se de opção de fundo ideológico.

Esconder esse propósito dos destinatários da proposta, entretanto, pode ser tido como politicamente desleal.

Dizia Amós Oz, notável escritor israelense: “O fanatismo começa no afã de mudar os outros supostamente ‘para o bem deles’. Utopias degeneram em distopias, paraísos teóricos em infernos práticos”.

Já não bastam a adoção dos padrões internacionais de contabilidade, que complicaram desnecessariamente a apuração do Imposto de Renda das empresas, e a ridícula tomada de três pinos, cuja obrigatoriedade infernizou a vida dos brasileiros e deve ter feito a fortuna de fabricantes.

Esse foco equivocado desvia a atenção para os verdadeiros problemas tributários brasileiros: o claudicante processo que responde pelo escandaloso volume de litígios tributários (só no âmbito federal, R$ 3,4 trilhões); o burocratismo, que constitui a causa principal das deploradas exigências no cumprimento das obrigações tributárias; a resolução das grandes controvérsias (ágio, preços de transferência, stock options, lucros no exterior, dano ao erário, etc.); o financiamento da Previdência Social tendo em vista as novas formas de trabalho e a excessiva sobrecarga tributária da folha de salários; a revisão do conceito de taxas; e o enfrentamento dos problemas específicos do ICMS, ISS, PIS e Cofins, que não são muitos, conquanto relevantes.

Como se percebe, é uma agenda longa e complexa, que requer muito trabalho e pouca espetaculosidade. O que não se deve, como diz a sabedoria popular, é matar o gado para acabar com o carrapato.

Recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) alargando as hipóteses de crimes tributários é outro perigo à espreita. Agora, será crime declarar e não recolher o ICMS, sempre que houver dolo, como no caso do devedor contumaz.

O tema vem sendo objeto de reflexões de inúmeros juristas, com especial destaque para o brilhantismo das intervenções de Igor Mauler Santiago, que praticamente esgotou a matéria. Ouso suscitar outras polêmicas.

Não se sabe a quem caberá apurar o dolo. Mais grave: o crime do devedor contumaz não está tipificado. Se tipificado, não deveria aplicar-se ao ICMS, mas a qualquer tributo.

Na atividade de varejo, é prática comum a venda a prazo, com descasamento entre as datas de recolhimento do tributo e o pagamento pelo consumidor. Se o contribuinte declarar e não recolher, e o consumidor não pagar, haveria crime? Em caso afirmativo, a quem seria atribuído o crime?

Pondera-se que as penas são brandas e não haveria, por conseguinte, privação de liberdade. Não é bem assim. A simples condição de réu é um penoso fardo, cuja possibilidade já é desestímulo para os empreendedores.

Ante a possibilidade de não pagar, chega-se à absurda conclusão de que seria preferível sonegar, pois declarar já seria indício de crime, ao passo que a sonegação só seria crime se apurada.

A única conclusão plausível é de que urge uma ampla reestruturação da legislação aplicável aos crimes tributários, melhor tipificando a matéria, disciplinando a representação fiscal para fins penais e dispondo sobre a extinção da punibilidade e a suspensão da pretensão punitiva do Estado. Caso contrário, os cerca de 80 milhões de processos em curso na Justiça vão caminhar para um pouco glorioso recorde internacional.

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)


Eugênio Bucci: Acertos e erros na cobertura da Lava Jato

A cobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de boa parte da imprensa, mas há também um saldo negativo a ser contabilizado

Depois de projetar para o primeiro escalão da República o ministro mais popular da Esplanada, Sergio Moro, da Justiça, a Lava Jato atravessou um ano amargo. As revelações do Intercept Brasil, publicadas em conjunto com outros órgãos de imprensa - Veja e Folha de S. Paulo entre eles -, fez os mais notórios expoentes da operação serem chamados explicar as evidências de jogo combinado entre integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário para prejudicar réus escolhidos a dedo. Foi um ano ruim para eles. Sua aura de liga de heróis investido de uma missão sacrossanta avinagrou.

A perda de prestígio não se deu sem, como anda na moda dizer, disputa de narrativas. Uma breve recapitulação nas páginas dos jornais mostra como foi. No começo, algumas das personagens flagradas nas conversas expostas pelo Intercept e pelos veículos a ele associados saíram dizendo que não reconheciam a autenticidade dos diálogos, mas, alegavam preventivamente, caso fossem verídicos não viam nada “de mais” no que estava ali. Essa primeira tática teve fôlego curto. A desconversa defensiva durou pouco, não só porque o material se mostrou autêntico (tal como foi atestado por diversas verificações feitas por diversos repórteres que apareciam nos registros vazados), mas principalmente porque as falas de uns e outros tinham, sim, muita coisa “de mais”.

Em seguida, vieram as acusações de que o Intercept se teria beneficiado de material roubado por um hacker, o que constituiria vício jornalístico equivalente ao crime de receptação, previsto no Código Penal. Outra vez o argumento logo caiu no vazio. As reportagens não surrupiaram nada de ninguém; ao contrário, entregaram ao público e à Justiça o conhecimento de condutas que jamais deveriam ter sido adotadas às escondidas. Em outras palavras, o trabalho jornalístico liderado pelo Intercept devolveu ao público o que era do público e retirou dos porões da clandestinidade o que nunca deveria ter estado lá. O público tinha o direito de saber; as autoridades é que não tinha o direito de esconder o que tentaram esconder.

Com os meses, passadas as escaramuças verbais (ou não apenas verbais), o saldo para a Lava Jato ficou ruim, mas o saldo para o jornalismo é positivo. A cobertura ampla das conversas impróprias foi um acerto de boa parte da imprensa - aí não devemos contar apenas os veículos que se associaram ao Intercept, mas também os que repercutiram e debateram, de boa-fé, sem parti pris, as revelações apresentadas.

Mas há também um saldo negativo a ser contabilizado. Sinais claros de abusos da Lava Jato já se mostravam desde antes da publicação dos diálogos escabrosos e não tiveram a cobertura aprofundada. Lembremos alguns deles.

Em setembro de 2016, um fatídico powerpoint do Ministério Público mostrou uma tela em que o nome de Lula aparecia como o centro de uma constelação de ilícitos, sem provas da ligação dos ilícitos a Lula. No powerpoint aparecia a palavra “propinocracia”, que não consta dos tipos penais previstos na legislação. Apontei essas e outras inconsistências numa coluna da revista Época, em 20/9/2016. O que estava por trás daquele delírio de data show? Não se descobriu a tempo.

Em outro artigo, publicado aqui em 27/10/2016, relembrei outras duas tratoradas da operação: a desnecessária condução coercitiva pela qual Lula foi levado a depor no Aeroporto de Congonhas em 4 março de 2016 e a divulgação, por ato do então juiz Sergio Moro, em 16 de março, de falas telefônicas entre Lula e Dilma. As falas tinham sido gravadas depois de expirado o prazo da autorização judicial para a escuta telefônica e, por isso, no final daquele mês Moro teve de se explicar ao ministro Teori Zavascki, a quem pediu “respeitosas escusas”.

No mesmo artigo procurei chamar atenção para outros indícios de autoritarismo. Em carta enviada à Folha de S.Paulo (12 de outubro, pág. A3) em que protestava contra alguém que o criticara, Moro afirmou que “a publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiculam somente preconceito e rancor, sem qualquer base factual, deveriam ser evitadas”. Ora, que visão era aquela de liberdade de imprensa? Por acaso a opinião de um juiz federal sobre o que sejam causas “panfletárias-partidárias”, “preconceito”, “rancor” e “base factual” deveria orientar critérios editoriais na imprensa? O que ele quis dizer com “deveriam ser evitadas”? Pretenderia ele censurar a pauta? Ou tudo não teria passado de um ato falho do juiz que meses depois, em março 2017, usou seus poderes para constranger um blogueiro a revelar sua fonte?

De novo as interrogações ficaram sem resposta. Não mereceram maiores investigações jornalísticas. Por quê? De minha parte, tenho uma hipótese - que, como hipótese que é, terá de ser ainda testada com metodologias e parâmetros mais finos. Minha hipótese é a seguinte: durante longo período o tom geral dos principais órgãos de imprensa, com poucas exceções, tratava as autoridades da Lava Jato não como representantes de poderes (aos quais o jornalismo tem o dever de lançar um olhar crítico e investigativo), mas como aliados das redações ou mesmo como sucursais avançadas das redações no interior da máquina estatal. Como essas autoridades presenteavam as redações com furos semanais - e eram furos relevantes, que escancararam capítulos de uma corrupção faraônica, na casa dos bilhões de dólares -, ganhavam em troca uma simpatia inercial.

Se a hipótese se mostrar verdadeira, o núcleo da chamada imprensa de qualidade no Brasil terá aderido acriticamente (e, talvez, inadvertidamente) à estratégia gerenciada pelos líderes da Lava Jato, uma operação que, sim, ajudou o Brasil contra uma parte da corrupção sistêmica, mas, como ficaria claro ao final de 2018, abrigava no seu DNA uma plataforma oculta de ambições partidárias. Terá havido, então, um erro de método. Deveríamos dedicar-nos a estudar o assunto.

* Jornalista, é professor da ECA-USP.